O QUE É FILOSOFIA

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CAPÍTULO 8
O QUE É
FILOSOFIA?
O que pretendo sob o título defilosofia, co/no fim e campo eles ,ni,,íias elaborações, sei—o,
naturalmente. E contudo não o sei... Qual o pensador para quem, na sua tida de filósofó, a
fïlosof ia deivoo de ser um eníg— nia? á os pensado res secundarios que. na cerdade, não
se podem chamar filósofos, estão contentes com as suas definições.
(Husseri)
A te is/aden-a tilosotia é reaprender a ter o mundo.
(Merfeau-Ponty)
1. Introdução
Lembremos a figura de Sócrates. Viveu em Atenas no século V a.C. Dizem que era um
homem feio, mas, quando falava, era dono de estranho fascínio. Procurado pelos jovens.
passava horas discutindo na praça pública. In terpelava os transeuntes, di zendo-se
ignorante, e fazia perguntas aos que julgavam entender determinado assunto. Colocava o
interlocutor em tal situação que não havia saída senão reconhecer a própria ig norância.
Com isso Sócrates conseguiu rancorosos i ni fli gos. Mas também alguns dis e ípu los.
O interessante é que na segunda parte do seu méto do’, que se seguia à destrui ção da ilusão
do conhecimen to, nem sempre se chegava de fato a uma conclusão efetiva. Sabemos disso
não pelo pró prio Sócrates, que nunca es creveu, mas por seus discípu los, sobretudo Platão
e Xeno Ver referéncias ao método de Sócrates na Primeira Parte do Capítulo lO Teoria do
conhecimento.
1
fonte (ver o texto complementar II deste ca pítulo: “Ciência e missão de Sócrates”).
Afinal, acusado de corromper a mocida de e desconhecer os deuses da Cidade, Sócrates foi
condenado à morte. A história de
Morte de Sócrates, de Louis David. Sócrates foi condenado à morte, acusado de corromper
a mocidade e de desconhecer os deuses da Ci dade. Enquanto aguardava a execução da
sentença, discutia com seus discípulos a respeito da imortalidade da alma.
sua condenação, defesa e morte é contada no belo diálogo de Platão, Apologia (te Sócrates.
Na prisão, o mestre discutia com os discípu los questões sobre a imortalidade da alma, re
latadas no Fédon, também de Platão.
A partir do que foi dito, podemos fazer algumas observações:
• Sócrates não está em seu “gabinete” contemplando “o próprio umbigo”, e sim na praça
pública.
• A relação estabelecida com as pessoas não é puramente intelectual nem alheia às
emoções.
• Seu conhecimento não é livresco, mas vivo e em processo de se fazer; o conteúdo é a
experiência cotidiana.
• Guia-se pelo princípio de que nada
sabe e, desta perplexidade primeira, inicia a
interrogação e o questionamento do que é
familiar.
• Ao criticar o saber dogmático, não quer com isso dizer que ele próprio é detentor de um
saber. Desperta as consciências ador mecidas, mas não se considera um “farol” que
ilumina; o caminho novo deve ser construído pela discussão, que é intersubjetiva, e pela
busca criativa das soluções.
• Portanto, Sócrates é “subversivo” por que “desnorteia”, perturba a “ordem” do co nhecer
e do fazer e, portanto, deve morrer.
Se fizermos um paralelo entre Sócrates e a própria filosofia, chegaremos à conclusão de
que o lugar da filosofia é na praça pública, daí a sua vocação política. Por ser alteradora da
ordem, perturba, incomoda e é sempre “ex pulsa da cidade”, mesmo quando as pessoas se
riem do filósofo ou o consideram “inútil”. Por via das dúvidas, o amordaçam, cortam o
“mal” pela raiz e até retiram a filosofia dos cursos secundários... Mas há outras formas de
“ma tar” a filosofia: quando a tornamos pensamen to dogmático e discurso do poder, ou,
ainda, quando cinicamente reabilitamos Sócrates morto, já que então se tornou inofensivo.
2. A atitude filosófica
Entre os antigos gregos predominava inicialmente a consciência mítica, cuja maior
expressão se encontra nos poemas de Homero e Hesíodo, conforme já vimos no ca pítulo
anterior.
Quando se dá a passagem da consciên cia mítica para a racional, aparecem os pri meiros
sábios, sophos, como se diz em grego. Um deles, chamado Pitágoras (séc. VI a.C.). que
também era matemático, usou pela pri meira vez a palavra tïlosofïa ( philos-sophia). que
significa “amor à sabedoria”. E bom ob servar que a própria etimologia mostra que a
filosofia não é puro logos, pura razão: ela é a procura amorosa da verdade.
O trabalho filosófico é essencialmente teórico. Mas isso não significa que a filosofia esteja
à margem do mundo, nem que ela cons titua um corpo de doutrina OU um saber aca bado,
com determinado conteúdo, ou que seia um conjunto de conhecimentos estabelecidos de
uma vez por todas.
Para Platão, a primeira virtude do filó sofo é admirar-se. A admiração é a condição de onde
deriva a capacidade de problematizar, o que marca a filosofia não como posse da verdade,
mas como sua busca. Para Kant, fi lósofo alemão do século XVIII, “não há filo sofia que se
possa aprender; só se pode apren der a filosofar”. Isto significa que a filosofia í sobretudo
uma atitude, um pensar permanen te, E um conhecimento instituinte, no sentid de que
questiona o saber instituído.
Portanto, a teoria do filósofo não consti tui um saber abstrato, O próprio tecido do sei
pensar é a trama dos acontecimentos, é o coti diano. Por isso a filosofia se encontra no sei
mesmo da história. No entanto, está rnerguIh da no mundo e fora dele: eis o paradoxo er
frentado pelo filósofo. Isso significa que o fik sofo inicia a caminhada a partir dos problem
da existência, mas precisa se afastar deles pa] melhor compreendê-los, retornando depois
fim de dar subsídios para as mudanças.
3. A filosofia e a ciência
No seu começo, a ciência estava liga à filosofia, sendo o filósofo o sábio que ref tia sobre
todos os setores da indagação hun na. Nesse sentido, OS filósofos Tale Pitágoras eram
também geômetras, e Aris teles escreveu sobre física e astronomia.
Na ordem do saber estipulada 1 Platão, o homem começa a conhecer pela 1 ma imperfeita
da opinião (doxa), depois pa ao grau mais avançado da ciência (episten para só então ser
capaz de atingir o nível rr alto do saber filosófico.
A partir do século XVII, a revolução metodológica iniciada por Galileu promove a
autonomia da ciência e o seu desligamento da filosofia. Pouco a pouco, desse período até o
século XX, aparecem as chamadas ciências particulares — física, astronomia, química,
biologia, psicologia, sociologia etc. —, deli mitando um campo específico de pesquisa.
Na verdade, o que estava ocorrendo era o nascimento da ciência, como a entendemos
modernamente. Com a fragmentação do sa ber, cada ciência se ocupa de um objeto espe
cífico: à iïsica cabe investigar o movimento dos corpos; à biologia, a natureza dos seres
vivos; à química, as transformações substan ciais, e assim por diante. Além da delimitação
do objeto da ciência, se acrescenta o aperfei çoamento do método cientijïco, fundado so
bretudo na experimentação e matematização (ver Capítulos 14 e 15).
O confronto dos resultados e a sua verificabilidade permitem uniformidade de conclusões e,
portanto. certa objetividade. As afirmações da ciência são chamadas juízos de realidade, já
que de uma forma ou de outra pretendem mostrar como os fenômenos ocor rem, quais as
suas relações e, conseqüente mente, como prevê-los.
A primeira questão que nos assalta é imaginar o que resta à filosofia, se. ao longo do tempo.
foi “esvaziada” do seu conteúdo pelo aparecimento das ciências particulares, tornadas
independentes. Ainda mais que, no século XX, até as questões referentes ao ho mem
passam a reivindicar o estatuto de cientificidade, representado pela procura do método das
ciências humanas.
Ora, a filosofia continua tratando da mesma realidade apropriada pelas ciências. Apenas
que as ciências se especializam e ob servam “recortes” do real, enquanto a filoso fia jamais
renuncia a considerar o seu objeto do ponto de vista da totalidade. A visão da filosofia é de
conjunto, ou seja, o problema tratado nunca é examinado de modo parcial, mas sempre sob
a perspectiva de conjunto, re lacionando cada aspecto com os outros do contexto em que
está inserido.
Se a ciência tende cada vez mais para a especialização, a filosofia, no sentido inver s0, quer
superar a fragmentação do real, para que o homem seja resgatado na sua integrida de e não
sucumba à alienação do saber parce lado. Por isso a filosofia tem uma função de
interdisciplinaridade, estabelecendo o elo en tre as diversas formas do saber e do agir.
O trabalho da filosofia sob esse aspecto é importante e, sem negar o papel do especia lista
nem o valor da técnica que deriva desse saber, é preciso reconhecer que o saber espe
cializado, sem a devida visão de conjunto, leva à exaltação do “discurso competente” (ver
Capítulos 5 e II) e às conseqüentes for mas de dominação.
A filosofia ainda se distingue da ciência pelo modo como aborda seu objeto: em todos os
setores do conhecimento e da ação, a filo sofia está presente como reflexão crítica a res
peito dos fundamentos desse conhecimento e desse agir. Então, por exemplo, se a física ou
a química se denominam ciências e usam de terminado método, não é da alçada do próprio
físico ou do químico saber o que é ciência, o que distingue esse conhecimento de outros, o
que é método, qual a sua validade, e assim por diante. Eles até podem dedicar-se a esses as
suntos, mas, quando o fazem, passam a se co locar questões filosóficas. O mesmo acontece
com o psicólogo ao usar, por exemplo, o con ceito de homem livre. Indagar sobre o que é a
liberdade é fazer filosofia.
Mudando o enfoque: e se a questão for o comércio, ou a fábrica? A partir da análise das
relações sociais resultantes da divisão do trabalho, podemos questionar sobre o concei to
subjacente de homem que se encontra nas relações estabelecidas socialmente.
Portanto, a filosofia não faz juízos de realidade, como a ciência, mas juízos de va lor. O
filósofo parte da experiência vivida do homem trabalhando na linha de montagem,
repetindo sempre o mesmo gesto, e vai além dessa constatação. Não vê apenas como é, mas
como deveria ser. Julga o valor da ação. sai em busca do significado dela. Filosofar é dar
sentido à experiência.
4. O processo do filosofar
A filosofia de vida
Como seria o caminhar do filósofo? Na medida em que somos seres racionais e sensí veis,
estamos sempre dando sentido às coisas. Ao “filosofar” espontâneo do homem comum,
costumamos chamar filosofia de vida.
No Capítulo 5 (Ideologia), quando nos referimos à passagem do senso comum para o bom
senso, identificamos esse último à filo sofia de vida. Enquanto o senso comum é
fragmentário, incoerente, preso a preconcei tos e dogmático, o bom senso supõe a capaci
dade de organização que dá certa autonomia ao homem que analisa sua experiência de vida
cotidiana.
Como veremos adiante, enquanto o ho mem comum faz sua filosofia de vida, o filó sofo
propriamente dito é um especialista. Mas o especialista filósofo é diferente dos outros
especialistas (como o físico ou o ma temático). Por exemplo, quando observamos o
estudioso de trigonometria, podemos bem pensar que grande parte dos homens não pre cisa
se ocupar com esse assunto. No entanto, o mesmo não acontece com o objeto de estu do do
filósofo, cujo interesse se estende a qualquer homem.
Segundo Gramsci, “não se pode pensar em nenhum homem que não seja também fi lósofo,
que não pense, precisamente porque pensar é próprio do homem como tal”. Isso significa
que as questões filosóficas fazem parte do cotidiano de todos nós. Se o filósofo da educação
investiga os fundamentos da pe dagogia, o homem comum também se preo cupa em
escolher critérios — não importa que sejam pouco rigorosos a fim de decidir so bre as
medidas a serem tomadas na educação de seus filhos.
Estamos diante de diferentes filosofias de vida quando preferimos morar em casa e não em
apartamento, quando deixamos o em prego bem pago por outro não tão bem remu nerado,
porém mais atraente, ou quando esco lhemos o colégio onde estudar. Há valores que entram
em jogo aí. Se escolho um “colégio fraco para passar de ano e ter tempo para pas sear”, ou
se, ao contrário, prefiro um “colégio forte para me preparar para o vestibular”, ou, ainda
dentro dessa última opção, “um bom colégio para ter um contato melhor com o mundo da
cultura e abrir as possibilidades de autoconhecimento”, é preciso reconhecer que existem
critérios bem diferentes fundamen tando tais decisões.
É por isso que consideramos tão impor tante a introdução do estudo de filosofia na:
escolas de 2 grau. Não propriamente para pre parar futuros prováveis filósofos especialistas
mas a fim de dar alguns subsídios para o apri moramento da reflexão filosófica inerente
qualquer ser humano. Nesse sentido, o ensim da filosofia deveria se estender a todos os cor
sos e não só às classes de ciências humanas.
A filosofia propriamente dita
A filosofia propriamente dita tem coo dições de surgir no momento em que o pensa é posto
em causa, tornando-se objeto de refle xão. Mas não qualquer reflexão. Como vimos o
homem comum, no cotidiano da vida, é le vado a momentos de parada, a fim de retoma o
significado de seus atos e pensamentos, nessa hora é solicitado a refletir. Entretantc ainda
não é filosofia rigorosa o que ele faz.
Examinemos a palavra reflexão: quan do vemos nossa imagem refletida no espelh há um
“desdobramento”, pois estamos aqui estamos lá; no reflexo da luz, ela vai até o e pelho e
retorna; refiectere, em latim. signifk “fazer retroceder”, “voltar atrás”. Portanto, o fletir é
retomar o próprio pensamento, pens o já pensado, voltar para si mesmo e coloc em questão
o que já se conhece.
É ainda Gramsci quem diz: “o filóso profissional ou técnico não só ‘pensa’ cc maior rigor
lógico, com maior coerência, cc maior espírito de sistema do que os outros l mens, mas
conhece toda a história do pen mento, sabe explicar o desenvolvimento o pensamento teve
até ele e é capaz de re mar os problemas a partir do ponto em que encontram, depois de
terem sofrido as m variadas tentativas de solução.”
Segundo o professor Dermeval Savi a reflexão filosófica é radical, rigorosa e conjunto.
Interpretaremos esses tópicos:
Radical: a palavra latina radLr, rad significa “raiz”, e no sentido figurado, ‘1 damento,
base”. Portanto, a filosofia é rad não no sentido corriqueiro de ser inflex (nesse caso seria a
antífilosofia!), mas
2 A. Grarnsd, Obras e3ea/hida3. p. 44.
Derrneva Saviani, Educa çha brasileira: estrutura e si,stcn,a, p. 68.
quanto busca explicitar os conceitos funda mentais usados em todos os campos do pen sar e
do agir. Por exemplo, a filosofia das ciências examina os pressupostos do saber científico,
do mesmo modo que. diante da de cisão de um vereador em aprovar determina do projeto, a
filosofia política investiga as “raízes” (os princípios políticos) que orientam sua ação.
• Rigorosa: enquanto a “filosofia de vida” não leva as conclusões até as últimas
conseqüências, e nem sempre é capaz de exa minar os fundamentos delas, o filósofo deve
dispor de um método claramente explicitado a fim de proceder com rigor, garantindo a
coerência e o exercício da crítica. Mesmo por que o filósofo não faz afirmações apenas, pre
cisa justificá-las com argumentos. Para tanto usa de linguagem rigorosa, que evita as am
bigüidades das expressões cotidianas e lhe permite djscutir com outros filósofos a partir de
conceitos claramente definidos. E por isso que o filósofo sempre “inventa conceitos”, ou
cria expressões novas (quanto fizeram isto os gregos!) ou altera e especifica o sentido de pa
lavras usuais.
• De conjunto: enquanto as ciências são particulares, porque abordam “recortes” da
realidade e se distinguem de outras formas de conhecimento, e a ação humana se expressa
nas mais variadas formas (técnica, magia, arte, política etc.), a filosofia é globalizante,
porque examina os problemas sob a perspec tiva de conjunto, relacionando os diversos as
pectos entre si. Nesse sentido, além de consi derarmos que o objeto da filosofia é tudo (por
que nada escapa a seu interesse), completa mos que a filosofia visa ao todo, à totalidade.
Daí a função de interdisciplinaridade da filo sofia, estabelecendo o elo entre as diversas
formas de saber e agir humanos.
A maneira pela qual se faz rigorosamen te a reflexão filosófica varia conforme a orientação
do filósofo e as tendências históri cas decorrentes da situação vivida pelos ho mens em sua
ação sobre o mundo.
5. Qual é a “utilidade” da filosofia?
Para responder à questão, precisamos saber primeiro o que entendemos por utilida
de. Eis o primeiro impasse. Vivemos num mundo em que a visão das pessoas está marcada
pela busca dos resultados imediatos do conhecimento. Então, é considerada im portante a
pesquisa do biólogo na busca da cura do câncer; ou o estudo de matemática no 2 porque
“entra no vestibular”; e cons tantemente o estudante se pergunta: “Para que vou estudar
isto, se não usarei na minha pro fissão?”
Seguindo essa linha de pensamento, a filosofia seria realmente “inútil”: não serve para
nenhuma alteração imediata de ordem pragmática. Neste ponto, ela é semelhante à arte. Se
perguntarmos qual é a finalidade de uma obra de arte, veremos que ela tem um fim em si
mesma e, nesse sentido, é “inútil”.
Entretanto, não ter utilidade imediata não significa ser desnecessário. A filosofia é
necessária.
Onde está a necessidade da filosofia?
Está no fato de que, por meio da refle xão (aquele desdobrar-se, lembra-se?), a filo sofia
permite ao homem ter mais de uma di mensão, além da que é dada pelo agir imedia to no
qual o “homem prático” se encontra mergulhado.
É a filosofia que dá o distanciamento para a avaliação dos fundamentos dos atos hu manos
e dos fins a que eles se destinam; reúne o pensamento fragmentado da ciência e o re
constrói na sua unidade; retoma a ação pulve rizada no tempo e procura compreendê-la.
Portanto, a filosofia é a possibilidade da transcendência humana, ou seja, a capacida de que
só o homem tem de superar a situação dada e não-escolhida. Pela transcendência, o homem
surge como ser de projeto, capaz de liberdade e de construir o seu destino.
O distanciamento é justamente o que provoca a aproximação maior do homem com a vida.
Whitehead, lógico e matemático britânico contemporâneo, disse que “a fun ção da razão é
promover a arte da vida”. A filosofia recupera o processo perdido no imobilismo das coisas
feitas (mortas porque já ultrapassadas). A filosofia impede a es tagnação.
Por isso, o filosofar sempre se confronta com o poder, e sua investigação não fica alheia à
ética e à política. E o que afirma o historiador da filosofia François Châtelet:
“Desde que há Estado — da cidade grega às
burocracias contemporâneas a idéia de verdade sempre se voltou, finalmente, para o lado
dos poderes (ou foi recuperada por eles. como testemunha, por exemplo, a evolução do
pensamento francês do século XVIII ao sécu lo XIX). Por conseguinte, a contribuição es
pecífica da filosofia que se coloca ao serviço da liberdade, de todas as liberdades, é a de mi
nar, pelas análises que ela opera e pelas ações que desencadeia, as instituições repressivas e
simplificadoras: quer se trate da ciência, do en sino, da tradução, da pesquisa, da medicina,
da família, da polícia, do fato carcerário, dos sis temas burocráticos, o que importa é fazer
apa recer a máscara, deslocá-la, arrancá-la... “
A filosofia é, portanto, a crítica da ideo logia, enquanto forma ilusória de conhecimen to
que visa a manutenção de privilégios (ver Capítulo 5 — Ideologia). Atentando para a
etimologia do vocábulo grego correspondente à verdade (a-létheia, a-letheáein,
“desnudar”), vemos que a verdade é pôr a nu aquilo que es tava escondido, e aí reside a
vocação do filóso fo: o desvelamento do que está encoberto pelo costume, pelo
convencional, pelo poder.
Finalmente, a filosofia exige coragem. Filosofar não é um exercício puramente inte lectual.
Descobrir a verdade é ter a coragem de enfrentar as formas estagnadas do poder que tentam
manter o status quo, é aceitar o desafio da mudança. Saber para transformar.
Lembremos que Sócrates foi aquele que enfrentou com coragem o desafio máximo da
morte.
Vimos, no Capítulo 3 (O que é conhec mento), que o ceticismo é uma posição filost fica
que conclui pela impossibilidade do c nhecimento, quer na forma moderada de sm pensão
provisória do juízo, quer na radical r cusa em formular qualquer conclusão.
No outro extremo, existe o dogmatísm segundo o qual o filósofo se considera d posse de
certezas e de verdades absolutas indubitáveis.
Enquanto o dogmático se apega à certe de uma doutrina, o cético conclui pela imposs
bilidade de toda certeza e, nesse sentido, cons dera inútil a busca que não leva a lugar
nenhum.
Comparando as duas posições antagônicas, podemos perceber que elas têm em comum a
visão imobilista do mundo: o dogmático atinge uma certeza e nela permanece; cético anseia
pela certeza e decide que ela inalcançável.
Mas a filosofia é movimento, pois mundo é movimento. A certeza e sua negaç são apenas
dois momentos (a tese e a antíte que serão superados pela síntese, a qual, sua vez, será nova
tese, e assim por diante filosofia é a procura da verdade, não a posse, como disse Jaspers,
filósofo aleu contemporâneo, concluindo que “fazer filo fia é estar a caminho; as perguntas
em filo fia são mais essenciais que as respostas e e resposta transforma-se numa nova
pergunta.
Mas como se põe o mundo em relação com a filosofia? Há cátedras de filosofia nas
universida des, Atualmente, representam uma posição embaraçosa. Por força da tradição, a
filosofia é polida- mente respeitada, mas, no fundo, objeto de desprezo. A opinião corrente
é a de que a filosofia nada tem a dizer e carece de qualquer utilidade prática. E nomeada em
público, mas — existirá realmen te? Sua existência se prova, quando menos, pelas medidas
de defesa a que dá lugar.
A oposição se traduz em fórmulas como: a filosofia é demasiado complexa; não a
compreen do; está além de meu alcance; não tenho vocação para ela; e, portanto, não me
diz respeito. Ora, isso equivale a dizer: é inútil o interesse pelas questões fundamentais da
vida; cabe abster-se de pensar no plano geral para mergulhar, através de trabalho
consciencioso, num capítulo qualquer de atividade prática ou intelectual; quanto ao resto,
bastará ter “opiniões” e contentar-se com elas.
A polêmica torna-se encarniçada. Um instinto vital, ignorado de si mesmo, odeia a
filosofia. Ela é perigosa. Se eu a compreendesse, teria de alterar minha vida. Adquiriria
outro estado de espíri to, veria as coisas a uma claridade insólita, teria de rever meus juízos.
Melhor é não pensar filosofi camente.
E surgem os detratores, que desejam substituir a obsoleta filosofia por algo de novo e total
mente diverso. Ela é desprezada como produto final e mendaz de uma teologia falida. A
insensatez das proposições dos filósofos é ironizada. E a filosofia vê-se denunciada como
instrumento servil de poderes políticos e outros.
Muitos políticos vêem facilitado seu nefasto trabalho pela ausência da filosofia. Massas e
fun cionários são mais fáceis de manipular quando não pensam, mas tão-somente usam de
uma inteligência de rebanho. E preciso impedir que os homens se tornem sensatos. Mais
vale, portanto, que a filosofia seja vista como algo entediante. Oxalá desaparecessem as
cátedras de filosofia. Quanto mais vaidades se ensinem, menos estarão os homens
arriscados a se deixar tocar pela luz da filosofia.
Assim, a filosofia se vê rodeada de inimigos, a maioria dos quais não tem consciência dessa
condição. A autocomplacência burguesa, os convencionalismos, o hábito de considerar o
bem-estar material como razão suficiente de vida, o hábito de só apreciar a ciência em
função de sua utilidade técnica, o ilimitado desejo de poder, a bonomia dos políticos, o
fanatismo das ideologias, a aspiração a um nome literário — tudo isto proclama a
antifilosofia. E os homens não o percebem porque não se dão conta do que estão fazendo. E
permanecem inconscientes de que a antifilosofia é uma filoso fia, embora pervertida, que,
se aprofundada, engendraria sua própria aniquilação.
O problema crucial é o seguinte: a filosofia aspira à verdade total, que o mundo não quer. A
filosofia é, portanto, perturbadora da paz.
El
Textos complementares
1
A filosofia no mundo
E a verdade o que será? A filosofia busca a verdade nas múltiplas significações do serverda deiro segundo os modos do abrangente. Busca, mas não possui o significado e
substância da verdad única. Para nós, a verdade não é estática e definitiva, mas movimento
incessante, que penetra n infinito.
No mundo, a verdade está em conflito perpétuo. A filosofia leva esse conflito ao extremc
porém o despe de violência. Em suas relações com tudo quanto existe, o filósofo vê a
verdade rev lar-se a seus olhos, graças ao intercâmbio com outros pensadores e ao processo
que o torna transp rente a si mesmo.
Quem se dedica à filosofia põe-se à procura do homem, escuta o que ele diz, observa o que
ei
faz e se interessa por sua palavra e ação, desejoso de partilhar, com seus concidadãos, do
destin comum da humanidade.
Eis por que a filosofia não se transforma em credo. Está em contínua pugna consigo
mesma.
(Karl Jaspers, Introduçao ao pensamento fi/osofico, p. l 35
II
Ciência e missão de Sócrates
Ora, certa vez, indo a Delfos*, [ arriscou esta consulta ao oráculo repito, senh
res; não vos amotineis — ele perguntou se havia alguém mais sábio que eu; respondeu a
Pítia qi
não havia ninguém mais sábio. Para testemunhar isso, tendes aí o irmão dele, porque ele já
morre
Examinai por que vos conto eu esse fato; é para explicar a procedência da calúnia. Quam
soube daquele oráculo, pus-me a refletir assim: “Que quererá dizer o deus? Que sentido
oculto p na resposta? Eu cá não tenho consciência de ser nem muito sábio nem pouco; que
quererá ele, entí significar declarando-me o mais sábio? Naturalmente, não está mentindo,
porque isto lhe é impos vel”. Por longo tempo fiquei nessa incerteza sobre o sentido; por
fim, muito contra meu gosto, de di-me por uma investigação, que passo a expor. Fui ter
com um dos que passam por sábios, porqu to, se havia lugar, era ali que, para rebater o
oráculo, mostraria ao deus: “Eis aqui um mais sábio c eu, quando tu disseste que eu o era!”
Submeti a exame essa pessoa — é escusado dizer o seu nor era um dos políticos. Eis,
Atenienses, a impressão que me ficou do exame e da conversa que com ele; achei que ele
passava por sábio aos olhos de muita gente, principalmente aos seus própri mas não o era.
Meti-me, então, a explicar-lhe que supunha ser sábio, mas não o era. A conseqüên foi
tornar-me odiado dele e de muitos dos circunstantes.
Ao retirar-me, ia concluindo de mim para comigo: “Mais sábio do que esse homem eu sou,
é b provável que nenhum de nós saiba nada de bom, mas ele supõe saber alguma coisa e
não sabe, enqu to eu, se não sei, tampouco suponho saber. Parece que sou um nadinha mais
sábio que ele exatam em não supor que saiba o que não sei”. Daí fui ter com outro, um dos
que passam por ainda mais sál e tive a mesmíssima impressão; também ali me tornei odiado
dele e de muitos outros.
Depois disso, não parei, embora sentisse, com mágoa e apreensões, que me ia tornando odi
não obstante, parecia-me imperioso dar a máxima importância ao serviço do deus.
Cumpria- portanto, para averiguar o sentido do oráculo, ir ter com todos os que passavam
por senhore algum saber. (...)
Além disso, os moços que espontaneamente me acompanham — e são os que dispõem de
tempo, os das famílias mais ricas — sentem prazer em ouvir o exame dos homens; eles
próç imitam-me muitas vezes; nessas ocasiões, metem-se a interrogar os outros; suponho
que desco uma multidão de pessoas que supõem saber alguma coisa, mas pouco sabem,
quiçá nada. Em co qüência, os que eles examinam se exasperam contra mim e não contra si
mesmos e propalam existe um tal Sócrates, um grande miserável, que corrompe a
mocidade.
(Piatão. Defesa de Sócrates. Col. Os pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1972,
* Em Delfos, havia um templo onde Apoio dava oráculos. predizendo o futuro.
Assim se chamava a sacerdotisa do templo de Delfos, que formulava os oráculos (N.T.).
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