SOB O OLHAR DE UMA ESTRANGEIRA: GÊNERO E

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SOB O OLHAR DE UMA ESTRANGEIRA: GÊNERO E INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NO
DIÁRIO DE MARIA GRAHAM
Camila Assis Lemes (PIBIC, Fundação Araucária), UNESPAR/FAFIPA,
clemes25012hotmail.com
Isabela Candeloro Campoi (OR), UNESPAR/FAFIPA,
[email protected]
INTRODUÇÃO
Maria Graham (1785-1842) era casada com um oficial da Marinha Real inglesa e embarcou
como professora de literatura de uma turma de guardas-marinha rumo ao Novo Mundo. Em
decorrência da morte de seu marido, Thomas Graham, durante viagem ao Chile, a inglesa ficou sob a
proteção do capitão Thomas Cochrane, oficial escocês que comandou as forças navais pela
Independência do Brasil.
Para além de testemunhar nosso processo de Independência, essa inglesa letrada descreveu
paisagens, visitas a usinas de açúcar, mercados de escravos, aldeias indígenas e sua estadia em casa de
gente simples. Escreveu sobre seu círculo social, sobre as visitas e os bailes oferecidos pela elite
carioca. Além de relatar, desenhou e pintou paisagens. Bastante disciplinada ao seu diário, publicou
em Londres seus escritos sobre o Brasil e o Chile em 1824. Tal obra só foi publicada em língua
portuguesa no ano de 1956, em tradução de Américo Jacobina Lacombe.
Além de gênero literário, as narrativas de viagem servem como fonte para a história social,
pois são depoimentos a respeito de situações testemunhadas e vivenciadas. Da mesma forma que em
seus escritos, os autores informam, analisam e tecem juízos de valor a partir das suas experiências, do
seu ponto de vista histórico-cultural. As narrativas de viagem são reveladoras de impressões do
viajante/narrador das mais variadas ordens.
Escritores, consagrados ou não, valeram-se de suas experiências em terras estrangeiras e as
publicaram. No que diz respeito às viagens ao Brasil, entre estranhamento e deslumbramento, os
viajantes estrangeiros narraram o resultado de uma vivência direta com a fauna e a flora (mais
explícito no caso dos naturalistas) e com os homens e mulheres do Novo Mundo. Assim, os relatos de
viagem eram muito populares no século XIX.
A presença de estrangeiros no Brasil intensificou-se principalmente a partir de 1808, quando
também se iniciou o processo de modernização. Com escolta inglesa, a Corte portuguesa desembarcou
no Brasil em virtude dos conflitos causados pelas guerras napoleônicas que assolavam a Europa. A
abertura dos portos em 1808 e o tratado de comércio de 1810 foram “(...) o preço pago por Portugal à
Inglaterra pelo auxílio que dela recebera na Europa.” (BARRETO, 2003, p.93). Esses dois acordos
além de darem uma grande vantagem comercial para a Inglaterra, como taxas menores para seus
produtos em relação aos produtos portugueses, também deram certa liberdade política aos ingleses nos
territórios do império português.
Conforme afirma Marcello Basile, “o Brasil só passaria por mudanças substanciais na sua
condição de Colônia após a transmigração da Corte portuguesa.” (1990, p. 188). As primeiras
faculdades foram criadas, surgiram teatros e foi fundada a Biblioteca Real, que contava com um
grande acervo de obras trazidas na bagagem da Corte portuguesa. Foi criado o primeiro banco público
(o Banco do Brasil) e a estrutura, principalmente da cidade do Rio de Janeiro, foi modificada e
melhorada. Assim, aos poucos a elite local foi estabelecendo contato com ideias modernas e liberais,
desenvolvendo-se e se politizando.
O centro do governo português encontrava-se, a partir de então, no Brasil e as elites das
províncias de São Paulo e Rio de Janeiro, as mais atuantes, tornavam-se mais poderosas e influentes
junto ao governo português.
Com a queda de Napoleão em 1815, os países invadidos pelos exércitos franceses tentavam se
reestruturar política e economicamente. Assim, em 1820, eclode a Revolução do Porto, que, entre
outras exigências, pedia o retorno da Coroa portuguesa e a instauração de uma assembleia constituinte.
Logo as notícias dos acontecimentos em Portugal chegaram ao Brasil, gerando uma grande
divergência de ideias a favor e contra as medidas pretendidas, pois “os brasileiros perceberam que o
movimento de 1820 não era só liberal, mas também ‘recolonizador.’” (BARRETO, 2003 p.176). Essa
situação chocava-se com os interesses principalmente das elites do Rio de Janeiro e de São Paulo, pois
havia se acostumado com as liberdades e os privilégios de ser a cede do Governo.
Os acontecimentos em Portugal iriam desencadear o processo de Independência do Brasil.
Conforme aponta Basile (1990, p. 192), “se um ideal de liberdade, ainda que difuso e regional, já se
desenvolvia em certas províncias brasileiras, foi, todavia, um movimento ocorrido em Portugal que
veio a precipitar os acontecimentos no sentido da potencialização deste ideal.”
Dada a gravidade da situação, Thomas Graham, oficial da Marinha Real britânica foi
designado para patrulhar os portos do Brasil. Assim, nessa circunstância, a letrada viajante Maria
Graham, chegou ao Novo Mundo. Assim, utilizamos como fonte de análise o Journal de Graham
escrito durante sua passagem pelos trópicos.
A fim de analisar e problematizar as observações feitas por Graham, consideramos
importantes as contribuições de Joan Scott (1996) uma das principais teóricas dos estudos de gênero.
Tal autora indica a importância do uso de elementos como classe social e etnia/raça nos estudos que se
valem do gênero como ferramenta de análise histórica. As concepções teóricas oferecidas por Scott
tornaram-se imperativas na nossa análise, afinal, o Brasil do século XIX era uma sociedade escravista
e fortemente patriarcal.
Michelle Perrot (2005, p.09) sugere que às mulheres foram impostas restrições das mais
diversas ordens, pelas religiões, pelos sistemas políticos, pelos manuais de comportamento, para que
se garantisse a ordem social. E no século XIX as divisões dos papéis sociais de gênero foram
aprofundadas. No decorrer desse período, conforme afirma Perrot a respeito do desenvolvimento da
teoria das esferas, definia-se a divisão sexual do mundo de modo a organizar racionalmente a
complementaridade dos papéis das mulheres e dos homens na sociedade, definindo a vocação
“natural” dos gêneros na ideia da utilidade social. Assim, houve o estreitamento do espaço feminino; o
discurso era de que a mulher deveria se restringir à esfera privada, às tarefas domésticas; ao homem
caberia o espaço público, o papel de provedor da família.
Portanto, pretendemos fazer uma discussão a respeito do século XIX e o papel reservado às
mulheres, para assim, termos bases teóricas mais concretas de análise.
RESULTADO DAS DISCUSSÕES
O século XIX representou um período de grandes mudanças e progressos na Europa em
decorrência das Revoluções Francesa e Industrial. No entanto, o século que fomentou grandes avanços
representou um retrocesso em relação aos direitos e à liberdade das mulheres. O pensamento
igualitário presente no seio da Revolução Francesa não se estendia ao gênero feminino, e de modo
geral, os homens da Revolução não se interessavam pela sorte de suas companheiras.
Assim, considerando esse pensamento “igualitário”, proferido durante a Revolução Francesa,
o livro Palavras de Homens (1790-1793) de Elisabeth Badinter é uma obra importante de referência
que traz trechos de discursos proferidos na assembleia, nas sociedades jacobinas, na imprensa, enfim,
nos diversos círculos onde se debatia politicamente a participação das mulheres na vida pública no
contexto da Revolução Francesa. Assim, a autora vale-se desses documentos (muitos deles escritos
anonimamente) que abordam o posicionamento de homens de vida pública ou ordinária, opinando em
relação à condição feminina. Banditer traz em sua obra discursos de homens que, de modo geral,
partilhavam uma mesma opinião sobre o papel social das mulheres.
Um autor desconhecido declara que “a liberdade civil e política é, por assim dizer, inútil às
mulheres, e, por conseguinte deve ser-lhe estranha” (BADINTER, 1991 p.65), ou seja, os ideais de
liberdade, igualdade e fraternidade buscados pelos revolucionários franceses, como já foi dito, não se
estendiam ao gênero feminino. Poucos foram os revolucionários, os políticos que se manifestavam em
relação à condição feminina, menor ainda foi o número de homens que se mostraram à favor da
participação política das mulheres. Entre estes podemos destacar a figura de Marie Jean Antonie
Nicolas Carita, o marquês de Condorcet.
Condocert discursa sobre os direitos presentes na Declaração dos Direitos do Homem, essa
declaração defendia os direitos dos homens, no entanto, a que grupo ela seria aplicada? A mesma
emancipava os negros, os judeus, os trabalhadores dando-lhes o direito à cidadania, contudo
renunciava os mesmos privilégios às mulheres. Destarte, Condorcet expressa sua opinião em relação à
restrição presente nas entrelinhas da declaração:
Ora, os direitos dos homens resultam unicamente do fato de que são seres sensíveis,
susceptíveis de adquirir ideias morais, e de raciocinar sobre essas ideias. Assim,
tendo as mulheres essas mesmas qualidades, têm, necessariamente, direitos iguais.
Ou nenhum indivíduo da espécie humana tem verdadeiros direitos, ou todos têm o
os mesmos: e aquele que vota contra o direito do outro, seja qual for sua religião, cor
ou sexo, desde logo abjurou os seus. (BADINTER, 1991 p. 45-46)
Condorcet aparece, no contexto revolucionário, partidário da igualdade dos sexos no que diz
respeito aos direitos políticos. No entanto, mesmo gozando de sutileza e bom senso ao manifestar suas
ideias em relação à igualdade de gêneros, os ideais de Condorcet não alcançaram muitos adeptos na
França.
Mesmo não possuindo um espaço amplo, tendo variado sua participação no campo político
revolucionário, as mulheres também apresentavam suas reivindicações, que poderiam se resumir
basicamente em dois campos: direitos civis e cidadania política, direitos que não lhes foram garantidos
na Declaração dos Direitos do Homem, devido à justificativa de que as mulheres apresentavam uma
“inferioridade fisiológica, moral e intelectual.” (SOUZA, P.116) Baseados nesta dita superioridade
masculina, os filósofos iluministas concordavam que as mulheres deveriam ficar sob a tutela do seu
pai ou do marido.
Assim, observa-se a Teoria das Esferas discutida por Michelle Perrot em seu livro “As
mulheres ou o silêncio da história”. Essa teoria implica na divisão sexual do mundo de modo a
organizar racionalmente a complementaridade dos papéis das mulheres e dos homens na sociedade,
definindo a vocação “natural” dos gêneros na ideia da utilidade social. Assim, houve o estreitamento
do espaço feminino; o discurso era de que a mulher deveria se restringir à esfera privada, às tarefas
domésticas; ao homem caberia o espaço público, o papel de provedor da família. Partindo desse
pressuposto a educação feminina deveria ser voltada para o lar e para os valores da maternidade.
Levando em consideração a concepção de Joan Scott , “o gênero é um elemento constitutivo
de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira
de significar as relações de poder.” (SCOTT, 1996, p. 11), observamos que a historiadora norteamericana estabelece noções que devem ser colocadas para o estudo de gênero. Considera, nestes
termos, a importância de elementos como classe social e etnia/raça para se compreender o papel social
das mulheres. As sugestões de Joan Scott no que tange à utilização do gênero como categoria de
análise são elementares:
Os (as) historiadores (as) devem, preferivelmente, examinar as maneiras como as
identidades de gênero são realmente construídas e relacionar seus achados com toda
uma série de atividades, organizações sociais e representações culturais
historicamente situadas. (SCOTT, 1996, p.12)
No que diz respeito ao Brasil do século XIX, ou seja, uma sociedade escravocrata, patriarcal,
uma sociedade onde o direito à cidadania era concedido a uma parcela ínfima da população e em
processo de descolonização, levando em consideração a transferência da corte portuguesa e a abertura
dos portos em 1808, o trânsito de estrangeiros tornou-se intenso: representantes governamentais,
comerciantes, artistas e naturalistas, proporcionavam uma aproximação mais efetiva com artigos,
modas e ideias europeias. Além de trazer em suas bagagens inovações e notícias vindas da Europa,
alguns estrangeiros escreveram acerca de suas experiências de viagem.
Assim, a literatura de viagem foi tratada pela historiografia de formas diferentes pelos
intelectuais brasileiros, ora ridicularizada, considerada inadequada à realidade, ora mal recebida por
conta da inclusão das camadas populares, uma visão identificada com a cultura européia, elitizada. A
esse respeito Miriam Moreira Leite escreve que:
Apesar dessas diferentes reações, os viajantes foram responsáveis por uma série de
representações, que se incorporaram à historiografia do século XIX, possivelmente
por reforçarem as representações nacionais. (LEITE, 1981, p.31)
Na obra A condição feminina no Rio de Janeiro, século XIX, Miriam Leite realiza um
levantamento de relatos de viajantes que passaram pelo Brasil no século XIX, entre eles o de Maria
Graham, e que testemunharam a condição da mulher em diferentes círculos sociais. Podemos destacar
aqui a noções de classe e raça/etnia que Joan Scott traz como sendo imprescindíveis para os estudos de
gênero. Ao organizar os relatos de diferentes viajantes em espaços distintos da sociedade brasileira
Miriam Leite atesta o que escreve Scott. Não se deve estudar o gênero de forma isolada, deve-se ter
em mente que as relações de gênero vêm acompanhadas dos conceitos já citados.
Assim, o diário de Maria Graham permite verificar e problematizar o Brasil do século XIX,
tendo como foco principal de analise a condição feminina desse período. Considerando, para tanto, as
noções estabelecidas por Joan Scott.
Graham desembarcou no Brasil, segundo Isadora Silva (2009) como escritora profissional e
consagrada, com experiência em literatura de viagem, visto que já havia publicado anteriormente na
Europa dois livros de viagens. Assim, ao escrever seu diário é perceptível que Graham possuía a
intenção de publicá-lo, conforme o trecho ilustrativo em que ela escreve: “Para melhor compreensão
dos acontecimentos políticos de que fui testemunha ocular, julguei necessário antepor o seguinte
esboço da História do Brasil ao meu diário viagem (GRAHAM, p.23)
Ou seja, no início de sua escrita Graham faz uma breve explanação acerca da História do
Brasil, grande parte extraída de Robert Southey, historiador britânico que publica entre 1810 e 1819 a
primeira história geral Brasil, pois a autora informa o leitor sobre a história do Brasil, contextualiza os
acontecimentos sobre o Brasil que encontrou em sua viagem. Também na segunda parte do diário ela
dá indícios da intenção em publicar seu Journal:
Trouxe este exemplar de meu diário com folhas em branco intercaladas, visando
dois objetivos: primeiro corrigir a obra fazendo-lhes modificações, e, depois usá-lo
como um jornal de minha segunda viagem ao Brasil (GRAHAM, 1990, p. 400)
Assim, Graham escreve um diário para os europeus; era o olhar de uma europeia acerca da
vida, costumes e peculiaridades encontrados no Novo Mundo. Dessa maneira, ela observa as
paisagens, os costumes, as formas de sociabilidades da população encontrada e remete juízos de valor
e opiniões peculiares e moldados pela visão de uma estrangeira.
Maria Graham fez parte de um restrito grupo de mulheres estrangeiras que narraram suas
experiências em terras estranhas, tornado-se, assim, viajantes-autoras. Entretanto, a relação com a
família real portuguesa e os lugares por ela frequentados nos mostra que Graham não se apresentou
como uma mera viajante e gozava, assim, de privilégios que outros estrangeiros e, principalmente,
mulheres não possuíam:
[...] tanto ontem quando hoje, fui à biblioteca, onde um pequeno gabinete agradável
e fresco me foi me foi destinado, qualquer livro que peço me é trazido ali e tenho
pena, tinta e papel na mão para tomar notas. Isso é uma gentileza e uma atenção a
uma mulher e estrangeira para a qual não estava preparada. (GRAHAM, 1990,
p.359)
E assim, Graham não irá somente observar e relatar os acontecimentos do Brasil, mas se
tornaria, também, personagem da história do Brasil, como pode ser observado em sua relação com a
Imperatriz Leopoldina. Ao retornar ao Brasil, após uma estadia no Chile, Maria Graham, que então se
encontrava na condição de viúva, escreve à Imperatriz Leopoldina pedindo-lhe proteção, isso mostra a
relação de Graham com a elite local:
Quanto a mim, embarquei com meu marido em busca do Pacífico na fragata Dóris,
que ele tinha a honra de comandar. Tive a infelicidade de ficar viúva e sou hoje uma
estrangeira no Brasil, onde espero passar alguns meses antes de voltar à Europa. É,
pois, como estrangeira e como viúva que queria colocar-me especialmente sob a
proteção de sua Augusta e Amável Imperatriz. Tendo a honra de ser sua humilde e
obediente criada. (GRAHAM, 1990, p. 274)
Acerca dessa relação observamos ainda:
Agora, porém, como Lady Amherst requereu uma audiência a sua Majestade
Imperial, marcou-se para isso o dia depois de amanhã, e eu recebi uma comunicação
de que seria recebida no mesmo dia, já que a Imperatriz não deseja receber nenhuma
estrangeira antes de mim. (GRAHAM, 1990, p.300)
Maria Graham apresentava-se como uma mulher atípica ao modelo feminino idealizado no
século XIX às mulheres de elite, contudo, nota-se que ela assimilou tal ideia, ou seja, de que havia
espaços e papeis adequados ao gênero feminino. Como fica evidente neste trecho: (...) nem o meu
sexo, nem minha situação me permitiram informações especiais relativas aos acontecimentos políticos
de um país (GRAHAM, p.81) Ainda a esse respeito, Graham escreve sobre a impossibilidade das
mulheres assistirem às reuniões da Assembleia Constituinte, por esse ser considerado um espaço
exclusivamente masculino: “Acho muito aborrecido que as senhoras não possam assistir às reuniões
da Assembleia. Sei que não há qualquer proibição formal, mas a coisa é considerada tão inadmissível
que não posso ir.” (GRAHAM, p.320). Portanto, no nível dos costumes, para além de uma legislação
que formalizasse tal situação, não era adequado a uma mulher frequentar tal espaço.
Assim, observa-se que a abertura para o espaço público era maior para as mulheres negras,
escravas ou forras, do que para as mulheres da elite. Um bom exemplo pode ser localizado na
observação feita no contexto do primeiro desembarque no Brasil. A fragata Dóris encontrava-se desde
meados de setembro de 1821 na costa pernambucana e cerca de vinte dias depois Graham escreve: “A
festa de São Miguel fez sair as mulheres portuguesas, das quais não havíamos visto ainda uma só
passar pelas ruas. (GRAHAM, p. 141). Dessa forma, parece incomum o trânsito de mulheres da elite
no espaço público, e quando isso acontecia era em decorrência de eventos religiosos vinculados ao
catolicismo.
Ainda sobre as mulheres da elite, Graham tece comentários expressando ideias e juízos de
valor próprios. Como no trecho abaixo em que ela analisa a aparência e a indumentária das mulheres
portuguesas:
(...) dificilmente poder-se-ia acreditar que a metade delas eram senhoras de
sociedade. Como não usam nem coletes, nem espartilhos, o corpo torna-se quase
indecentemente desalinhado, logo após a primeira juventude; e isto é tanto mais
repugnante quanto elas se vestem de modo muito ligeiro, não usam lenços ao
pescoço e raramente os vestidos têm qualquer manga. Depois, neste clima quente, é
desagradável ver escuros algodões e outros tecidos, sem roupa branca, diretamente
sobre a pele, o cabelo preto mal penteado e desgrenhado, amarrado
inconvenientemente, ou, ainda pior, em papelotes, e a pessoa toda com a aparência
de não ter tomado banho. (GRAHAM,p. 168-169)
Maria Graham escreve ainda:
Essa tarde (22 de outubro) houve uma grande reunião social tanto de portugueses
quanto de ingleses na casa do cônsul. Nas mulheres bem vestidas que vi a noite tive
grande dificuldade de reconhecer as desmazeladas da manhã de outro dia. As
senhoras estavam todas vestidas á moda francesa: corpete, fichu, enfeites, tudo
estava bem, mesmo elegante, e havia uma grande exibição de joias. As inglesas,
porém, ainda que quase de segunda categoria, ou mesmo de nobreza colonial,
arrebentaram o prêmio de beleza e da graça, por que afinal os vestuários, ainda que
elegantes quando não são usados habitualmente, não fazem senão embaraçar e
estorvar os movimentos espontâneos e, como nota Mademoiselle Clarion “para
poder representar de fidalga em público, é preciso que a mulher o seja na vida
privada” (GRAHAM, p. 175-176)
Assim, dentro da sua concepção de civilidade, elegância e moda, as mulheres brasileiras
estavam deslocadas desse ideal do qual parte sua observação. Para além nossa personagem utiliza, ao
compor sua narrativa, a questão cultural, deste modo é e figura possível notar a diferença entre a
mulher da elite portuguesa e a mulher da elite inglesa. Assim, nota-se que as expectativas geradas por
Maria Graham em relação às mulheres da elite portuguesa não condiziam com as das mulheres
abastadas da Inglaterra.
Tomei a liberdade de observar a uma das senhoras a extrema juventude de alguma
das crianças que acompanhavam suas mães naquela noite, e disse-lhe que na
Inglaterra consideraríamos isso maléfico para elas, sob todos os pontos de vista.
(GRAHAM, p.328)
No que diz respeito aos personagens que se destacaram na luta pela Independência, o diário de
Graham é bastante citado por conta do encontro que teve com Maria Quitéria de Jesus, figura feminina
de destaque que recebeu uma condecoração das mãos de D. Pedro. Vestida de homem, essa baiana fez
parte das tropas brasileiras, destacando-se na guerra na Bahia:
Recebi hoje uma visita de D. Maria de Jesus, jovem que se distinguiu ultimamente
na guerra do Recôncavo. Sua vestimenta é a de um soldado de um dos batalhões do
Imperador, com a adição de um saiote escocês, que ela me disse ter adotado da
pintura de um escocês, como um uniforme militar mais feminino (GRAHAM,
p.349)
Dessa maneira, D. Maria Quitéria de Jesus irá se destacar na independência do Brasil,
aparecendo como uma heroína baiana que enfrentou as convenções da época, simulando ser um rapaz
para que fosse aceita nas fileiras de soldados recrutados pelos independentistas. Tal atitude deu
margem para que um discurso patriótico fosse construído em torno da sua figura.
Para além de considerar os relatos de Maria Graham, levando em consideração sua origem
inglesa, nota-se que Graham aparece como voz do imperialismo inglês, defensora das ideia
abolicionistas, escrevendo, muitas vezes de forma emotiva: “[...] uma vez que se admite o tráfico, não
se admira que o coração se torne duro para os sofrimentos individuais dos escravos.” (GRAHAM,
p.186). Já no Rio de Janeiro, quando encontrava-se estabelecida na cidade, ela escreveu:
Graham ainda escreve:
Sai antes do almoço em companhia de um carpinteiro negro como guia. Este homem
mas também um razoável marceneiro. Em outros assuntos revela uma rapidez de
percepção que não dá fundamento à pretendida inferioridade da inteligência negra.
(GRAHAM, p.239)
Logo, é perceptível ao longo da escrita da inglesa a posição dela em relação à abolição da
escravatura. Dessa maneira, é notável que Graham se posicionasse contrária à escravidão, isso por que
Maria Graham era inglesa e a Inglaterra nesse período pleiteava a expansão comercial e, como
sabemos, escravo não possui poder aquisitivo.
Por fim, considerando os escritos de Graham, pudemos ampliar nosso rol de discussão e,
assim, entender as relações de gênero existentes no século XIX no processo de independência do
Brasil , bem como a visão de uma estrangeira intelectualizada sobre os acontecimentos anteriores à
Independência política, assim como os ocorridos após sua proclamação no ano de 1822, expondo que
não foi um processo fácil, e que gerou muitos conflitos e guerras para que pudesse acontecer.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Maria Graham foi parte de um reduzido grupo de mulheres viajantes que visitaram o Brasil na
primeira metade do século XIX; e ainda mais reduzido foi número de relatos publicados no mesmo
período.
Contudo, o diário original de Maria Graham foi publicado na Inglaterra em 1824 e sua
tradução para o português foi publicada apenas em 1956, ou seja, por mais de um século os escritos de
Maria Graham sobre o Brasil ficaram longe do grande público, exceto aos intelectuais e historiadores
que tinham acesso aos originais.
O Journal de Graham tornou-se importante fonte para a historiografia sobre o Brasil, tanto
para a compreensão do processo que culminou com a nossa independência política, quanto no que diz
respeito aos costumes da sociedade brasileira do período. No caso da nossa pesquisa, o diário de Maria
Graham serviu como fonte para a problematização da condição das mulheres brasileiras e para estudo
a respeito das relações de gênero no Brasil em processo de europeização.
Logo, a leitura Graham realiza acerca das mulheres nos leva a uma maior compreensão da
condição feminina no século XIX, assim a autora observa os comportamentos e os espaços permitidos
às mulheres, indicando que elas possuíam uma abertura pública ínfima.
REFERÊNCIAS
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1991.
BARRETO, Célia de Barros. A presença inglesa. In: HOLANDA, Sérgio Buarque (Org.) História
Geral da Civilização Brasileira: o Brasil monárquico e o processo de emancipação. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 75-114.
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_____________. A agitação republicana no nordeste. In: HOLANDA, Sérgio Buarque (Org.) História
Geral da Civilização Brasileira: o Brasil monárquico e o processo de emancipação. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2003p. 135-300.
BASILE, Marcello Otávio N. de C. O Império brasileiro: panorama político. In: LINHARES, Maria
Yeda (Org.) História Geral do Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1990, p. 188-245.
GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil. Trad. Américo Jacobina Lacombe. São Paulo:
Edusp, 1990.
LEITE, Miriam Moreira (org.) A condição feminina no Rio de Janeiro: século XIX. São Paulo:
Editora Hucitec, 1981.
PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. São Paulo: EDUSC,2005.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. In: SOS CORPO: gênero e
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SILVA, Isadora Eckardt. O viés político e histórico de Maria Graham em Diário de uma viagem
ao Brasil. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2009. 169 p. Tese (Mestrado) - Instituto de
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SOUZA, Itamar de. A mulher e a Revolução Francesa: participação e frustração. Revista da FARN,
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GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil. Trad. Américo Jacobina Lacombe. São Paulo:
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