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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADES DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
FABRICIO DOS SANTOS MOTA
GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO:
Identidades negras na música Reggae da Bahia (anos 80/90)
Salvador-Ba
2008.
Livros Grátis
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1
FABRICIO DOS SANTOS MOTA
GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO:
Identidades negras na música Reggae da Bahia (anos 80/90)
Dissertação
apresentada
ao
Programa
Multidisciplinar Pós-graduação em Estudos
Étnicos e Africanos da Universidade Federal da
Bahia como requisito parcial para obtenção do grau
de Mestre em Estudos Étnicos e Africanos.
Orientadora: Profª. Drª. Ângela Lühning.
Co-orientador: Prof. Dr. Lívio Sansone.
Salvador-Ba
2008.
2
“Music is the weapon of the Future”
(Fela kuti, anos 70)
“... Luto apenas com a música”
(Bob Marley, anos 80)
“Surge mais um guerreiro do Terceiro Mundo.
Levantando suas armas, com seu grito de alerta...”
(Edson Gomes, anos 90)
3
RESUMO
Este estudo analisa as manifestações étnico-identitárias de negritude a partir dos
registros fonográficos da música Reggae produzidos na Bahia, entre os anos 80 e 90. A
cultura musical Rasta-Reggae - uma das mais emblemáticas expressões da música negra
no século XX – se constituiu em um forte referencial simbólico das políticas culturais
no Atlântico Negro. A (re) criação do estilo afro-jamaicano no contexto em destaque foi
registrada em um universo de canções que interagem com a construção/legitimação de
sentidos de pertencimento negro e anti-racismo, a partir de temas como a África e o
Caribe na Diáspora bem como a História e memória das populações negras no Brasil.
Investigando a presença e cristalização do Reggae na cultura local - a partir dos discos e
outras fontes impressas e iconográficas - pretende-se compreender a produção de novos
referenciais identitários, a partir da produção e circulação de um estilo estético-musical
de tendência transnacional. Refletir sobre a relevância da música negra no universo da
contracultura contemporânea fortalece, portanto, um parâmetro de análise dos
movimentos sociais e seus desdobramentos nas últimas décadas aproximando-se da
experiência d@s sujeitos sociais e suas recriadas estratégias de mobilização e
intervenção na vida pública.
Palavras-chaves: Música Reggae, registro fonográfico, identidades negras, anti-racismo.
4
ABSTRACT
This scientific study analyses ethno-identity manifestations of blackness from
Reggae music on long-playing record made in Bahia between 80s and 90s. The Rastareggae musical culture- one of the most emblematic expressions of black music in 20th
century- has established as a strong and symbolic yardstick of cultural policies in the
Black Atlantic. The (re)creation of afro-Jamaican style on that context was represented
in a great deal of songs which interact with the construction/legitimacy of a black sense
of belonging and anti-racism, by raising themes as Africa and the Caribbean as well as
History and memories of black people in Brazil. By researching the presence and
crystallization of Reggae on the local culture-based on records and other printed and
iconographic sources- is intended understanding the production of new identity
yardsticks through the realization and circulation of a esthetic and musical style of
transnational trend. Thus, to reflect on the relevance of the black music to contemporary
contra-culture strengthens a parameter of analysis of social movements and their
developments in the last decades. It is possible by approaching the social subjects’
background and their recreated strategies to mobilize and intervene on public life.
Key-words: Reggae music, long-playing record, black identities, anti-racism
5
RESUMEN
Este estudio analiza las manifestaciones étnico-identitaria de la negritud a partir
de los registros fonográficos de la música Reggae producidos en Bahía, entre los años
80 y 90. La cultura musical Rasta-Reggae - una de las más emblemáticas expresiones de
la música negra en el siglo XX – se constituyó en un fuerte referencial simbólico de las
políticas culturales en el Atlántico Negro. La (re) creación del estilo afro-jamaicano en
el contexto en destaque fue registrada en un universo de canciones que intercambian
con la construcción/legitimación de sentidos de pertenecimiento negro y anti-racismo, a
partir de temáticas como África y Caribe en la Diáspora como también la Historia y
memoria de las poblaciones negras en Brasil. Investigando la presencia y cristalización
del Reggae en la cultura local - a partir de los discos y otras fuentes impresas e
iconográficas – se pretende comprender la producción de nuevos referenciales
identitarios, a partir de la producción y circulación de un estilo estético-musical de
tendencia transnacional. Reflexionar sobre la importancia de la música negra en el
universo de la contracultura contemporánea fortalece, por lo tanto, un parámetro de
análisis de los movimientos sociales y sus desdoblamientos en las últimas décadas
acercándose de la experiencia d@s sujetos sociales y sus recreadas estrategias de
movilización e intervención en la vida pública.
Palavras-chaves: Música Reggae, registros fonográficos, identidads negras, antiracismo.
6
Banca examinadora:
_____________________________________
Prof. Dr. Salloma Salomão Jovino da Silva – PUC-SP
_____________________________________
Prof. Dr. Lívio Sansone (co-orientador) - UFBA
_____________________________________
Profª. Drª. Ângela Lühning (orientadora) - UFBA
7
Dedico este trabalho,
à vida, in memorian, dos mestres Jorge França (Camelo), Lino de Almeida, Hick
Husband e Rogério Fátima dos Santos: Guerreiros do terceiro mundo!
ao meu filho João Lucas de 4 anos que, assim como eu, também está aprendendo a
escrever... sobre as coisas da vida.
8
SUMÁRIO
Agradecimentos ........................................................................................................... 09
LADO A:
P 2008 – 2006-1-570-3
FAIXA 1 – (INTRO) APRESENTAÇÃO................................................................... 14
FAIXA 2 – “SURGE MAIS UM GUERREIRO DO
TERCEIRO MUNDO...” ............................................................................................ 16
“uma questão de identidade”: a música remodelando a pertença ............................ 25
Virando Jamaica ...................................................................................................... 30
A “Babilônia do Sertão” e suas chamas .................................................................. 48
“Nas margens do Paraguaçu...” .............................................................................. 52
FAIXA 3 – “ÁFRICA A LA JAMAICA, MÚSICA DA RAÇA” ............................. 53
“Os Guerrilheiros da Jamaica vão atacar...” ............................................................ 60
A África no atlântico Negro: outros diálogos ........................................................ 74
De beduínos a malês ................................................................................................ 84
_LADO B:_
P 2008 – 2006-1-570-3
FAIXA 4 – OS ANOS 90 E O VERÃO DO REGGAE BAIANO .......................... 106
1988, o ano que não terminou... ............................................................................ 108
Queimando tudo com a Folha do Reggae ............................................................. 126
“Porrada de Polícia” .............................................................................................. 129
FAIXA 5 “De Jesus à Jah” (interlude) ....................................................................... 137
FAIXA 6 (DUB VERSION) - “QUEM NÃO GOSTA DE REGGAE, BOM
SUJEITO NÃO É” ..................................................................................................... 144
FICHA TÉCNICA
ANEXO I (Discografia por ordem cronológica e alfabética) ................................ 151
o Sobre o CD(anexo digital) ........................................................................... 153
Referências ............................................................................................................ 154
Discografia ............................................................................................................ 162
9
AGRADECIMENTOS
“Nunca se vence uma guerra lutando sozinho...”
(Raul Seixas)
O exercício de agradecer é tão gratificante quanto difícil, sobretudo quando se tem
uma lista imensa pela frente. Por isso, antes de tudo, agradeço aos guias da alma que,
movendo harmoniosamente o universo, me puseram aqui.
Reconheço que a apresentação deste trabalho é, mais que um esforço acadêmico
inacabado, o resultado da luta de algumas gerações pelo acesso à dignidade pela via da
educação e por isso agradeço imensamente aos familiares, mestres e amigos pelo
incentivo, apoio e orações que se somaram ao longo desta jornada.
Aos familiares ‘de casa’, minha Mãe (Dionéia) e meu Pai (Francisco) agradeço pela
vida em seu mais amplo significado. Tive, graças a vocês, a oportunidade de ver a
escola como estrada para a dignidade e espaço de transformação e auto conhecimento.
Ao meu irmão Leandro e sua família (Rebeca, D. Edivalda e Jonas), sou grato por toda
a força e exemplo de perseverança e luta por dias melhores. A gratidão e amor que
guardo por vocês jamais caberá nas dimensões da palavra escrita!
À Tatiana, minha amada companheira, agradeço pela vida ao seu lado. Desde então
pudemos compartilhar momentos decisivos e gratificantes como este. Seu apoio foi
fundamental desde a digitalização dos acervos de Jornais em Feira de Santana, ao longo
de sua pesquisa de mestrado, às leituras do texto em suas primeiras, intermediárias e
últimas versões. Sua paciência e credibilidade para com este trabalho somam-se, acima
de tudo, somam-se ao carinho edificante que sua presença me traz.
E por falar em amor, não há como não registrar minha gratidão ao nosso lindo filho,
João Lucas, que nunca me negou seu terno abraço, ainda que minha falta pudesse lhe
sugerir motivo. É por ele que estou aqui também!
À minha família ‘em Feira de Santana’, [Seu] Iélio (Digo!), [Dona] Anita e Andréia
(tia Déa) – respectivamente sogro, sogra e cunhada – minha gratidão por todo apoio e
incentivo fundamentais à concretização deste e outros sonhos. Fico muito feliz de ter
vocês em meu destino.
Agradeço também a meus primos Marcus e Ericson (Fão) pela convivência e
solidaridariedade em momentos decisivos. Não esqueci que vocês me emprestaram o
computador (naquela época difícil...) de onde saiu a versão do projeto aprovado para o
10
mestrado entre 2005-2006. Aproveitando agradeço aos meus numerosos Tios e Tias que
desde sempre depositaram votos de carinho e confiança em minha opção pelos estudos.
Aos amigos dos tempos da república universitária: Samuel Marques (este que além
de compadre é amigo desde o ensino fundamental), Jefferson Sobrinho, Igor Santos,
Igor Rocha (Godzigor), Felipe Costa, Nilton Araújo e Rogério. Sem Dúvidas, os cinco
anos de fraterna e (in)tensa convivência e as doses diárias de Led Zeppelin, Jetrho Tull,
Bob Marley and the Wailers, Novos Baianos, Gilberto Gil e tantos outros, me ajudaram
a amadurecer algumas impressões sobre o universo dos sons.
Às/aos Companheir@s da UEFS, dos bons tempos da militância estudantil nos
grupos História para Todos (HPT) e Ousar, meu sincero abraço de agradecimento pelas
noites (bem) perdidas! Pessoas como Luciana, Vladimir, Robério, Ana Clara, Reginilde,
Paloma (que reencontrei no mestrado também), Neriane, Igor José, Íris, Hugo e toda
uma lista numerosa da qual prefiro me esquivar para evitar injustiças.
Entre representantes desta geração, agradeço em especial à amiga-comadre Edivânia
Alexandre pela ajuda marcante desde a construção do projeto e pela amizade
inestimável em todas as horas.
Entre os docentes da UEFS, minha sincera gratidão pelas aulas de cidadania: posso
citar entre estes/as: Elizete da Silva, Rogério Fátima (de quem sentirei saudades
eternas!), João Rocha, André Uzêda, Acácia Batista, Eurelino Coelho, Marco Barzano e
tant@s e tant@s outr@s...
Para o amigo-mestre Antonio Godi agradecer é ainda pouco diante de todo
aprendizado que a sua convivência me trouxe (desde os tempos da graduação, diga-se).
Sua iniciativa de socializar comigo suas memórias e bibliografias, encorajou-me a
mergulhar nos estudos sobre da música e transformou meu olhar e ouvir sobre o mundo.
Espero que este estudo possa representar a primeira parcela de minha retribuição.
Muit@s outr@s são os guerreir@s da música reggae co-responsáveis pelos méritos
deste trabalho: Clóvis Rabelo, Jorge Papapá, Dionorina, Arygil, Geraldo Cristal, Sine
Calmon, Marco Oliveira, Jorge de Angélica, Gilsam, Osvaldo Filho, Zavan Liv, Ras
Sidney Rocha, Prof. Raimundo. Para Sérgio Cassiano, Marcos, Dino e a turma do Adão
negro mando um abraço em agradecimento pela atenção com os materiais.
Ao Sr. Carmelito Carvalho, exímio conhecedor da música Reggae no mundo,
agradeço por toda a atenção e pelas boas conversas sobre ‘nosso’ tema de interesse.
À amiga Valquiria Lima, cuja amizade sempre me trouxe as mais positivas
vibrações um obrigado mais que especial. Foi graças ao seu convite pra o minicurso
11
“Memória musical Identidade negra” do projeto Reggae em Ação em Conceição do
Coité (em 2005) que mergulhei de cabeça no “Atlântico negro” e outras leituras que
fundamentaram o projeto que iniciou esta saga no curso de mestrado. Fico feliz em tê-la
como companheira de luta nos movimentos sociais e agora (por um bom e longo
tempo!) na vida profissional como docente lá no CEFET.
Agradeço ainda a tod@s companheir@s da Associação Beneficente Revolution
Reggae e Centro de produção da educação e cidadania (CEPECC) de Conceição do
Coité-Ba pelo aprendizado de novos jeitos de caminhar. Se houverem méritos nesse
trabalho, eles também são devidos a vocês, pela inspiração! Estamos firmes nessa Luta!
Ao professor Salloma Salomão sou grato pela luz no início do túnel... Parte da
inspiração para chegar até devo à sua digna atuação. Me lembro com alegria a ocasião
em que assisti à sua conferência no Encontro Nacional de Estudantes de História
(ENEH) na Unicamp em 2001, fato que marcou decisivamente meus interesses pelas
memórias sonoras dos negr@s nesse país.
Ao corpo docente do POSAFRO sou imensamente agradecido pelo valioso trabalho
nas aulas que renderam parte considerável das inquietações que se enunciam neste
trabalho. Foi uma experiência gratificante o convívio, as orientações e as conversas
informais também.
À professora Ângela Lühning sou profundamente grato, para além dos muitos
conhecimentos novos, pela enriquecedora, compreensiva e paciente orientação.
Reconheço que meus momentos de sumiço (necessários para ajustar as questões de
sobrevivência) poderiam abalar nosso trabalho, não fosse a sua postura compreensiva.
Por essas e outras, reforço minha gratidão pela atenção dispensada com as muitas
inquietações que me ocorreram ao longo deste trabalho.
Ao Prof. Lívio Sansone (Co-orientador) meus agradecimentos pelas boas
oportunidades de aprendizado, leitura e contato com o universo da pesquisa acadêmica,
além de todo incentivo desde as primeiras aulas.
Ao professor Cláudio Pereira que no exame de qualificação trouxe sugestões e
direções que se tornaram definitivas à elaboração da versão que se apresenta. Muitos
foram também os momentos de descontração e profundo aprendizado nos intervalos em
que ele se dispôs a falar sobre sua confessa paixão pelos discos e seus conteúdos
estético-musicais.
Aos/às colegas do POSAFRO meu fraterno agradecimento. Foi um prazer enorme
compartilhar incertezas, angústias, anseios e outras experiências e projetos de vida com
12
Ana Rita, Juscélio, Carlos Fernandes (Lito, estás a ver!), Carlos Ailton, Sueli
Conceição, Genivaldo, Pietro, Florismar Tatiane, Ecyla, Fábio, Valdélio, Rose, Bel (o
Josivaldo), Marlon Marcos, Edmar, Liliam Aquino, Artemisa, Sueli Borges (da-lhe
sambista!), Nadja, Fabiana e Bárbara - esta que é também parceira nos estudos sobre o
Reggae na Bahia (te vejo aqui em breve...)
Sem a atenção valiosa d@s funcionári@s que tem passado pela secretaria de nosso
PPG, e do CEAO muitos encaminhamentos não teriam saído do papel. Neste quesito
tenho muito a agradecer a Carlos Miranda (o co-fundador do POSAFRO!), Nadja e
Lindinalva pelo trabalho competente e atencioso que dispensaram a mim em particular,
assim como a todos os funcionários do CEAO que, em todas as áreas dão vida àquele
espaço.
Luís Brito e Carlos André (da gráfica rápida – xérox) me ajudavam, dentro do
possível, a não ficar sem a cópia do texto pra ler e a eles também sou grato por este
momento.
Ter participado do curso avançado Fábrica de Idéias (2006) foi, sem dúvidas, uma
das mais destacáveis experiências nesse trajeto. Devo muitos agradecimentos aos
professores da X edição do evento, assim como aos colegas e demais partícipes das
intensas semanas de confinamento acadêmico e divertida convivência em que aconteceu
o evento.
Aos/às Colegas do CEFET/Ba, unidade de Simões Filho, agradeço pela promissora
amizade e pelas vibrações positivas nos momentos de tensão e cansaço provocados
(dentre outras razões) pela elaboração deste trabalho. Entre @s quais estão: Bira, Ana
Edna, Mide, Valquíria, Ana Maria, Núbia, Joelma, Fábio, Aron, Danielle, Alessandro,
Azly, Itamar e Valdeluce. De Salvador (sede): Joilson, Sinval (de sociologia), Sinval (de
Artes), Antonio Lima, Cely, Vânia (do CGRH) e tantas outras pessoas que, de maneira
indireta também contribuíram para a concretização desta tarefa. Às colegas Joelma
Santos e Cely Vianna adiciono mais um obrigado pela tradução, respectivamente para o
Inglês e Espanhol, do resumo.
Para @s querid@s estudantes do CEFET- Simões Filho (renderia uma enorme e
bela “lista de presença” citá-l@s...) guardei também um enorme abraço de
agradecimento. Com vocês tenho aprendido na prática que, de fato, a dúvida é a base
para se construir conhecimento. Vocês nem imaginam o quanto são co-responsáveis
pela minha formação também!
13
Ao professor Carlos Benedito Silva (Carlão) da UFMA e tod@s do centro de
Cultura Negra do Maranhão meus agradecimentos pelo incentivo, pelo apoio quando da
visita à São Luís. Além disso, tenho muito a agradecê-lo pela fonte de inspiração que
suas pesquisas me trouxeram. Sinto-me feliz em contribuir, de alguma maneira, com o
conjunto de estudos sobre música negra na diáspora cujo professor foi um dos pioneiros
nesse país.
Ao nobre amigo Matheus de Jesus, minha gratidão pela disposição e mediação com
as muitas falas do universo.
Sou ainda muito grato aos/às Companheiros de música que ao longo desta mais de
uma década vem alimentando, através da arte dos sons, minhas utopias incendiárias!
Especialmente a Marcus Zanomia, que tem acompanhado este trabalho desde sua
gestação.
Por fim, agradeço a CAPES/CNPQ pelo incentivo através da bolsa de estudos que
literalmente alimentou este pesquisador e a realização de sua obra.
E pra você que não esqueci, “aquele abraço”...
14
FAIXA 1 :
(INTRO) APRESENTAÇÃO
Sonhei e fui...
Mar de cristal,
sol água e sal,
meu ancestral.
E eu tão singular me vi plural
(trecho da canção “ Sonhei” de Lenine,
Bráulio Tavares e Ivan Santos)
A história e prática da música negra apontam para outras
possibilidades e geram outros modelos plausíveis(...) utilizo a
analogia da música porque você pode viajar
pelo mundo
inteiro e ela ainda é negra
(Tony Morrison, citado por Paul Gilroy em O Atlântico negro, 2001)
15
O presente trabalho é uma impressão sobre as andanças da música. Mais
especialmente, sobre uma das trilhas sonora mais expressivas do século XX e sua
reverberação no universo sócio-cultural baiano: O Reggae. Urdido nas favelas urbanas
de Kingston (capital da Jamaica) nos anos 60, este foi um dos principais meios de
denúncia e combate contra a exclusão social e a invisibilidade dos negros que se
mundializou reassumindo nova leituras sonoras e referenciais de identidade. Visto aqui
como uma contracultura musical, foi responsável por conectar diferentes grupos
“nacionais” que engendraram, de maneiras singulares uma visão de mundo
multicentrada do pertencimento negro representando um exemplo genuíno de “estilo
étnico de status global” (Cf. Gilroy, 2001). Na Bahia das últimas décadas do século XX,
compôs a cena plural dos movimentos políticos e culturais em consonância com o
posicionamento das militâncias negras urbanas.
Tornou-se imprescindível à compreensão da ressonância nacional e mundial da
musicalidade1 Reggae - uma das mais emblemáticas expressões da música negra na
Diáspora - investigar sua existência idiossincrática na Bahia. Convergindo para esta
direção, analiso a presença estético-musical e sonora do Reggae e sua interface com os
processos de construção/legitimação de sentidos identitários de negritude e anti-racismo
em interação/integração com outros movimentos político-culturais ao longo dos anos 80
e 90.
Por isso, adverto que as linhas que seguirão são um esforço acadêmico de um
certo autor-sujeito, que vivenciou e se relacionou e relaciona com universo musical
abordado. Acho importante salientar este dado, pois acredito que no debate sobre a
questão das identidades nossos “lugares” são imprescindíveis à construção de nossas
intervenções e discursos.
Para tanto, Imagino que entrecruzar minha história de vida ao trabalho de
pesquisa no texto que se apresenta pode ser uma forma de traduzir, inicialmente, minha
relação com este terreno musical.
Voltando no tempo identifico na minha experiência familiar pessoal uma
influência decisiva na minha relação com a música. Minha genealogia, no pouco que a
conheço, não inclui muitos músicos, ou agentes ligadoa à produção musical. Por outras
vias, no entanto, a música quase sempre este presente no meu cotidiano familiar,
definindo minhas memórias e demarcando momentos cruciais ao longo da vida.
1
O conceito de musicalidade quando utilizado aqui remete diretamente à formulação proposta por
Salloma Silva (2000) como um conjunto de práticas musicais, e como tal, posições político-culturais.
16
Nas memórias mais marcantes de minha infância e adolescência figuram meus
numerosos tios e tias com quem convivi e seus muitos sons e gostos musicais. Devo
especialmente a Alberto Feitosa (tio Beto), um dos irmãos gêmeo-caçulas de minha
mãe, o despertar para as nuances e informações contidas na construção de uma canção.
Convivi muitos anos com suas “músicas” compostas pelos muitos cantos da rua ou de
casa – o quintal, a varanda, a mesa do almoço – percutidas entre baldes, bacias e velhas
panelas, cujos arranjos ele sempre tinha o cuidado de solfejar muito bem. Ainda tenho
muito nítido em minha memória alguns solos de guitarra, trompete, órgão que ele
solfejava de maneira onomatopéica.
Seu repertório eclético soava para mim de modo muito particular, pois confesso
que construí junto com ele, durante minha infância e adolescência, a atenção para o
processo de construção e gravação musical. As informações das letras, os instrumentos
utilizados, as diferentes “formas de fazer” uma idéia se transformar numa canção,
enfim, tudo que levasse o som chegar até o Bolachão2, ao rádio, às fitas cassete.
Imagino que surgia dali a minha compreensão de que arranjo e letra são conteúdos que
podem se locupletar. Esta convicção óbvia fez e faz muito sentido à percepção da
música como arte de produzir significados a partir do som.
Por volta de 1988-89 ganhamos um aliado precioso: um aparelho rádio-gravador
National – que foi adquirido com a intenção de registrar os shows do de um Festival de
Rock que seria transmitido pela TV em rede nacional. O aparelho possuía um microfone
embutido e registrava tudo na fita cassete. O ‘National’, como foi logo apelidado, era
uma espécie de Estúdio de gravação portátil em que guardávamos as idéias
imediatamente depois de concluídos os “ensaios” do quintal. Auxiliado algumas vezes
por minha tia Lira ou minha Mãe, corríamos para registrar cada criação antes que a
memória nos traísse. Meu tio insistia que o banheiro era o melhor lugar pra gravar as
músicas devido ao eco provocado pelas paredes de azulejo, o que segundo ele dava uma
sonoridade de disco ao vivo. Durante anos aquele divertimento musical me aproximava
de modo singular do gosto pela música e, consequentemente do interesse por tocar um
instrumento.
De certo modo éramos, eu e meu irmão, bastante estimulados ao contato ainda
que pouco sistemático com os brinquedos-instrumentos musicais desde a infância. Para
mim em particular, foi também imprescindível a contribuição de meu tio (materno)
2
Termo coloquial usado para definir o Long Player, disco de Vinil, dada sua semelhança com um biscoito
(ou bolacha).
17
Gileno com seus instrumentos artesanais de percussão em um determinado momento da
adolescência. Sempre que viajava pra Valença no verão visitava sua pequena “oficina”
em busca dos trabalhos artesanais com o côco seco, sua especialidade. 3
Para muitos da família as canções de meu tio Beto soavam como um devaneio4
para outros como um talento para as artes que só haveria de se concretizar pela sorte.
Minha avó Eulina sempre dizia que ele tinha futuro, mas, que nós deveríamos procurar
um caminho melhor pra nossas vidas através dos estudos. Ao escrever essas linhas,
lembro-me com detalhe de suas palavras. A
oportunidade de poder cruzar estes
caminhos na pesquisa que se apresenta é, portanto, algo muito gratificante.
Ainda na adolescência, tive entre meus familiares alguns ouvintes do Reggae.
Nas muitas vezes que estive com Carlos Feitosa (ou simplesmente Tio Feitosa) em sua
casa na cidade de Valença no baixo-sul da Bahia, terra natal da porção materna de
minha família, ouvíamos muitos discos de Jimmy Cliff, Alpha Blondy e, sobretudo do
Reggae Man Edson Gomes por quem ele e eu guardávamos uma admiração enorme,
seja pela qualidade do seu trabalho, seja pelo fato de ser prata da casa, logo, trazer em
suas canções os problemas de nosso tempo. Recordo-me ainda com humor meu Tio
paterno Pascoal Mota que sempre me apresentava alguns cassetes com gravações de
Edson Gomes. Nas palavras dele, o Reggae era a “música que fala a verdade!”,
referindo-se ao conteúdo crítico-social abordado nas letras. Esta imagem me marcou
profundamente, pois de fato as tais “verdades” também me causaram a inquietação
necessária para estar aqui.
Imagino que meu gosto pela música foi também fortemente influenciado pelo
contato com o rádio, com os muitos discos de vinil que tínhamos em casa e com a
imagem que dos músicos que apareciam na TV (e sempre vibrei com as aparições de
Gilberto Gil!). Paralelo a isto, é importante destacar minha atenção aos grupos de
percussão (Leia-se Samba-Reggae) que brotavam nos muitos bairros de Salvador5. A
rigor me interessava bastante pela possibilidade de aprender a tocar um instrumento e
compreender os princípios de organização que transformavam idéias, sensações,
impressões sobre a sociedade em algo tão sinestésico como a canção.
3
Entre estes destaco os instrumentos de percussão confeccionados com pele de cobra. A sonoridade era
muito parecida com um bongô.
4
Sendo mais preciso escutei eventualmente a expressão “coisa de maluco”, num tom sempre pejorativo.
5
Não poderia esquecer-me do Sementes do Reggae, grupo de percussão formado no bairro de
Mussurunga. Alimentei por muito tempo a vontade de fazer parte da Percussão do Semente mas, a
proibição meio-tácita da família frearam minha utopia.
18
Esta inquietude não me levaria a outro caminho senão o de buscar produzir meus
próprios sons. E assim, entrei para o “ramo”, como muitos jovens da minha geração,
pelas bandas de garagem, tentando tocar os chamados “covers” de clássicos da música
rock de projeção transnacional e da música afro-pop em destaque naqueles anos 90
como. O Reggae, por conseguinte, foi um dos meus primeiros repertórios. Minha opção
pelo baixo elétrico deveu-se ao interesse de ingressar nas bandas de Rock e Reggae
fundadas entre 1996-97no bairro de Mussurunga em Salvador. Não por coincidência
aquela era uma conjuntura de muita visibilidade para estes estilos transnacionais na
Bahia. Do ponto de vista do Reggae baiano este intervalo de anos se constitui num
momento crucial de afirmação destes estilos musicais no universo sócio-cultural de
muitas cidades do Estado da Bahia, como será apresentado mais à frente.
O convívio com a música, como entretenimento e mais tarde como opção
profissional foi se tornado uma realidade pra mim desde então. Aos poucos o gosto pelo
som foi sendo complementado pelo interesse nas trajetórias das bandas e artistas de
minha preferência, em escutar os álbuns com maior atenção, em identificar a ficha
técnica dos discos. Enfim, passei a enxergar a música como algo que tem uma conexão
profunda com a realidade ao seu próprio redor. Em fins dos anos 90, paralelo com o
meu ingresso na universidade, para o curso de Graduação em Historia, fui tendo acesso
a novos olhares sobre a arte dos sons. O acesso à investigação científica nesta área
específica não aconteceu propriamente na graduação. Encontrava ali alguns poucos
canais de interlocução que me proporcionasse maiores vôos na área da pesquisa
acadêmica sobre a música, dado que não inviabilizou que iniciasse algumas leituras que
mais à frente seriam bastante produtivas ao estudo da ciência da História a partir da
música.
Minhas válvulas de escape, no entanto, eram as bandas alternativas e os eventos
artístico-culturais promovidos pelo movimento estudantil. As muitas experiências que
fizeram/fazem parte de minha formação no mundo da música me auxiliaram (e ainda
auxiliam) na construção de um olhar e ouvir mais atento às dimensões sociais que estão
impressas nos conteúdos e discursos musicais.
Dos experimentos sonoros da infância à brincadeira com o baixo6 do presente
tenho percebido que a produção de música é fundamental nos processos de autocompreensão dos sujeitos (e me incluo neste contingente). O presente trabalho é,
6
“Brincar com o baixo” é a forma como meu filho João Lucas descreve meus (poucos) momentos de
estudo com o instrumento.
19
portanto, uma interface acadêmico-investigativa desta interpretação e por isso trata-se
de uma visão particular e situada de um universo de fontes que foram escolhidas para
reflexão, haja vista que todo registro musical é passível das mais diversas leituras.
Entre a conclusão do Curso (2004.2) e o ingresso no Posafro (2006.1) atuava
como professor de História em escolas da rede pública e privada de Salvador além de
programas de “capacitação” (ainda não me conformo com esse rótulo...) de jovens e
adultos, educação não formal e outras experiências na área de educação. Paralelamente
aproveitava para alimentar algumas leituras sobre música, industria cultural, história da
África, bem como ocupar-me com o ofício de músico baixista (que felizmente não
abandonei!).
No início de 2005 cursei como aluno especial a disciplina
“trabalhadores,
formação de Classe e etnia” ministrada pela profª. Drª. Cecília Velasco e Cruz que
surtiu para mim, particularmente, um efeito de transição do universo da mão-de-obra
ferroviária (este era o interesse original) à leitura das relações sociais sobre o prisma de
questões como “racialização” “identidade étnica” e cultura. Foi naquela ocasião que li,
com “outros olhos” Kwame Appiah e Amy Guttman (Misunderstood conections!) e
ainda pude rever alguns clássicos da antropologia. Em suma, aquela experiência foi
interessante, pois saí da disciplina provocado a desenvolver uma temática que se
aproximasse de minha experiência de vida, além de estimulado à encarar as relações
raciais com mais profundidade.
Foi exatamente em 2005 que recebi a proposta que mudaria definitivamente
meus caminhos. À convite da amiga-professora Valquíria Lima e do Centro de
promoção da educação, cultura e Cidadania(CPECC) em parceria com a Associação
Cultural Beneficente Revolution Reggae, ambas entidades da cidade de Conceição do
Coité-Bahia, fui ministrar o módulo de abertura do Projeto de formação de lideranças
negras Reggae em Ação (realizado entre 2005 e 2007). Esta ação foi e tem sido
responsável pela descriminalização do Reggae (e seus protagonistas) naquela cidade,
haja vista a ameaça eminente das batidas policiais e dos grupos de extermínio que
faziam à época um número considerável de vítimas sob a alegação de serem
“confundidos” com marginais. Objetivamente o convite era direcionado ao mini-curso
intitulado “Memória Musical e Identidade Negra”, que deveria trazer um debate sobre a
importância da música na construção da identidade dos negr@s bem como da
sobrevivência de suas tradições. Aceitei com preocupação o convite dada a
responsabilidade delegada a mim. Para tanto mergulhei num volume de leituras
20
(algumas já acumuladas desde fins da graduação) e partir na busca de novas referências
para fundamentar a ementa do curso. Neste período contei com a valiosa contribuição
do amigo e professor Antonio Godi que atendia, sem rodeios, aos meus inconvenientes
telefonemas e visitas vespertinas inesperadas. Além dele coincidiu restabelecer o
contato via e-mail com o Professor “Salloma” Salomão Jovino da Silva que tive o
prazer de conhecer numa conferência na Unicamp (São Paulo) em 2001.
Atenciosamente prof. “Salloma” me enviou sua dissertação de mestrado e outras
referências interessantes que foram incorporadas aos poucos ao “mini-curso” bem como
à então incipiente proposta de pesquisa.
Meu envolvimento foi tamanho que o universo de leituras foi aproveitado para
amadurecer um projeto de pesquisa sobre o Reggae e suas influências no universo
Cultural baiano. Encarei o desafia do curso de mestrado com a esperança de ter no
programa um espaço de debate para amadurecer as reflexões sobre as relações raciais no
Brasil e a importância da música nesse contexto.
A rigor, o ingresso na pós-graduação também tem relação explícita com meu
ativismo anti-racista. A luta pela inclusão social das populações negras tem passado
pelo acesso à educação e ao protagonismo na produção do conhecimento científico.
Caminhando nessa direção, este estudo analisa as manifestações étnicoidentitárias de negritude presentes nos registros fonográficos da musicalidade Reggae,
produzidos na Bahia nas últimas décadas. O levantamento e análise da produção
fonográfica (incluindo Lp’s e Cd’s) ligada ao Reggae da Bahia entre os anos 19790 e
2003 constituem-se no material central desta pesquisa ao lado de entrevistas e outras
fontes impressas como o jornal Folha do Reggae publicado em 1997. Foram analisados
os elementos da linguagem musical utilizando fichas catalográficas contendo as
variantes: ano de lançamento, gravadora, nome do(s) artista(s), letras, observaçõescomentários, textos adicionais (encarte e/ou contracapa), músicos participantes,
arranjador e produtor e/ou diretor musical e artístico, observações, seguindo, portanto
um caminho apontado por estudos anteriores (Silva, 2000c; Moraes, 2000).
O produto fonográfico e suas partes integrantes (capa, encarte, artes gráficas,
textos adicionais) compõem/compuseram, um universo de livre e alternativo de
expressão dos artistas redimensionando o alcance do registro auditivo. Do ponto de
vista da discografia analisada, em especial, muitos significados de pertencimento e
negritude são construídos a partir das estratégias discursivas estético-musicais na
21
composição das canções (arranjos, instrumentação, letra etc.) e ou nos materiais
produzidos em associação ao registro sonoro (Silva, 2000c, Huss, 2000).
Moraes (2000) aponta que entre os obstáculos da investigação do “documento
musical” encontra-se o peso das tradições da metodologia clássica que de modo
reducionista desarticula os elementos estruturais da canção (melodia, ritmo,
andamentos) da “realidade que gira em torno dela” (2000, p. 215). Em outras palavras, o
registro final aparentemente ‘aprisionado’ no disco é o resultado da interação entre
variáveis internas (processo social de produção artística) e externas (relação com o
7
contexto de seus agentes realizadores). Na medida em que o Disco é resultante de
percepções do artista sobre o mundo, sua reprodutibilidade incorpora as condições
materiais e históricas de seu tempo e são continuamente (re) construídas impressas pelo
publico ouvinte.
8
Sugiro a partir deste trabalho, portanto, que a experiência da
produção (no sentido de fazer) musical seja tomada como referência na compreensão
dos discursos estético-musicais contidos no registro fonográfico. Em outras palavras, o
universo dos músicos e as estratégias intrínsecas na produção e reprodução do som
também representam experiências e perspectivas que devem ser visualizadas nos
estudos sobre a música como experiência social e política.
Para tanto, foi necessário arriscar uma orientação metodológica de cunho mais
dialógico e, por vezes, descritivo, acompanhando um caminho epistemológico definido
por Carvalho (1999) como “etnografia da sensibilidade musical”. Fujo de algumas
descrições mais densas em detrimento de analisar, a partir de algumas experiências
pessoais, os elementos discursivos que constituem a música. Destaco ainda que optei
também pela transcrição das letras ao longo do texto na íntegra, de modo a possibilitar
uma compreensão melhor do/a leitor/a, evitando anexos que poderiam por em risco a
fluência da leitura.
O fato de estar diante de uma gama de possibilidades de análise nos coloca sob a
responsabilidade de advertir a quem lê estas páginas sobre o terreno espinhoso do
estudo da música. Por isso não cabe fundar teses conclusivas sobre os discursos
musicais investigados, tampouco tratar com juízo de valor os registros que ora analiso.
7
Disco refere-se a toda e qualquer obra musical, composta de até 04 canções – singles – ou mais que
constam como registro no histórico de um artista ou um conjunto deles. Comumente associa-se
restritamente ao disco de vinil esta definição.
8
Sobre esse debate, o clássico artigo de Walter Benjamin sobre a arte e sua reprodução no mundo
capitalista (BENJAMIN, 1960) tem uma importância pontual para este debate. A rigor, outros autores já
têm produzido leituras sobre a obra de Benjamim que posteriormente nos servirão de suporte teóricometodológico.
22
Ainda que compreenda que o “gosto” é socialmente construído e pode ser encarado
como objeto de reflexão gostaria de salientar que tentei me distanciar no que pude de
inferir sobre a “qualidade” das letras ou arranjos na classificação dos registros
analisados.
Para analisar a produção musical em torno do Reggae na Bahia, lancei mão,
prioritariamente de um acervo discográfico que inclui artistas de cidades da Bahia como
Cachoeira, Feira de Santana e Salvador - principais nichos da contracultura “RastaReggae”9 de onde surgiu grande parte dos grupos que definiram singularmente o estilo
neste estado brasileiro. Este material constitui um rico universo de possibilidades de
estudos. A grande diversidade de falas e abordagens representadas nos discos analisados
exige um olhar e um “ouvir” mais interativo com as demais áreas disciplinares, algo que
de partida nos coloca no olho do furacão (basta lembrar que mesmo a noção de
multidisciplinaridade ainda vem sido amadurecida). A experiência do mestrado
multidisciplinar tem sido enriquecedora neste sentido. Dialogar e aprender com áreas de
conhecimento como a Etnomusicologia e a antropologia fortaleceu/fortalece, ao meu
ver, novas perspectivas teórico-metodológicas de para uma História Social da Cultura,
bem como ao estudo da Música e seus sujeitos com experiência humana.
É fundamental, para tanto, que situemos esta diversidade de registros musicais na
dimensão do tempo histórico. É preciso lembrar que esta é uma tarefa bastante
complexa uma vez que as fontes em diálogo estão dispostas num intervalo de tempo de
pouco mais de duas décadas. Escolhi sentido, dialogar com os muitos registros
fonográficos produzidos em período de mais de duas décadas para tentar mensurar um
conjunto o máximo representativo de artistas e discos responsáveis pela “invenção” da
leitura/interpretação baiana da música Reggae.
Os anos 80, que deste ponto de vista começam em 1979, dada a gravação de “No
Woman no cry”, imortalizada por Bob Marley and the Wailers, compreendem a meu ver
o momento crucial da emergência de novas alternativas e perspectivas de organização
civil em ebulição no chamado “verão da abertura”. É um contexto de onde brotam
legendas partidárias às dúzias e de onde floresce uma ambiência sócio-cultural
fortemente mobilizada pela produção musical. Na Bahia, e em particular em Salvador,
A “trama” musical que se anunciava, como sugeriu Goli Guerreiro (2000), era
protagonizada por uma juventude negra re-encorajada pela invenção de novos ideais de
9
Esta definição foi tomada de empréstimo de Godi (1997), um dos primeiros pesquisadores envolvidos
com esta temática no viés da sócio-antropologia da música na Bahia.
23
liberdade que os/as levariam a percorrer a África e o Caribe negros a bordo de uma
criativa releitura destes territórios do Atlântico. A música Reggae foi uma das principais
matérias-primas neste processo.
Uma vez reterritorializada, esta musicalidade viveria novos tempos de ascensão à
medida que corriam os anos 90. Inevitavelmente, Reggae e Samba-reggae implodiram o
mercado fonográfico impondo-lhes novos agentes, sonoridades, estratégias de gravação
e reprodução e, obviamente, novas contradições. Esta definitiva entrada em cena não
ocorreu sem negociações e tensões e tampouco se deram de igual maneira em Salvador
e nas cidades do interior da Bahia como Cachoeira e Feira de Santana – principais
nichos desta contracultura no estado. Tamanha foi a ebulição do verão do Reggae
baiano que os anos 90 para nós não caberia mesmo em uma década. O advento das
tecnologias digitais de reprodução do som e a gradativa democratização (ou seria
popularização?) das tecnologias de gravação tornou possível que até meados de 2002 e
2003 personagens importantes desta trajetória registrassem ainda que tardiamente suas
memórias musicais em CDs independentes.
A opção por este marco referencial-cronológico impôs desde o início do trabalho de
pesquisa algumas questões e perigos. Em primeiro lugar, a necessidade de contemplar
um recorte tão amplo num período de trabalho tão exíguo como o curso de mestrado
impôs algumas escolhas no tocante ao objetivo final do trabalho de pesquisa. Sobre este
aspecto, alerto que a análise das fontes discográficas exige maior ênfase no debate sobre
as potencialidades do registro fonográfico como suporte da realidade que o cerca. Por
isso, a intenção principal é colocar esta fonte no centro das atenções travando mais um
debate sobre a importância deste ponto de vista à compreensão das relações sociais
mediadas pela música. Para isso, é fundamental cruzar as impressões sobre as fontes
bem como lançar mão da História oral como caminho alternativo para preencher
possíveis lacunas e , potencialmente abrir novas trilhas para estudos futuros.
Em segundo, pesava sobre meus ombros a responsabilidade de produzir um texto
que contemplasse o universo de transformações compreendidas neste intervalo de
décadas. Este período inclui diferentes conjunturas e mudanças consideráveis que
colocaram em efervescência a sociedade baiana como: a ascensão dos blocos afro, a
nova economia das relações políticas resultante do processo de “abertura”
à
“democratização civil, o que inclui, por exemplo a reestruturação dos veículos de
comunicação no estado da Bahia e o poderio de velhos cães de guarda da Ditadura
Militar sob a imprensa baiana; as intensas transformações e contradições
sócio-
24
espaciais na capital e interior do estado; a emergência dos Blocos de Samba-Reggae e
suas leituras de uma negritude multicentrada que seria a principal matéria-prima para o
boom da chamada Axé music. Sobre este quesito, vale destacar que uma rigorosa
classificação das fontes concorreu para evitar certas imprecisões (e dispensar o “fardo”
do trabalho intelectual ideal). Analisando os discos percebemos que haviam diferenças
visíveis quanto ao teor dos discursos identitários, às distintas categorias e perspectivas
de negritude, além das diferentes posições ao longo das décadas.
Para dimensionar estas transformações no tempo e espaço argumento em favor
de uma periodização que sugere alguns momentos expressivos (e a transição entre eles)
da inserção e consolidação do Reggae no ambiente sócio-cultural baiano. Reconheço e
adverto de antemão que, se por um lado toda periodização é em si arbitrária com a
dinâmica da experiência humana ao longo da História é, por outro, necessária quando se
pretende, por vezes dimensionar os próprios caminhos desta mesma dinâmica. Sem
mais, tentei situar minhas reflexões em torno de Três Períodos singulares que serão
apresentados a seguir.
O primeiro está compreendido entre os anos 1979/80 e 1988, contexto que pode
ser pensado em dois momentos distintos: primeiramente até meados dos anos 80, onde
aparecem as primeiras expressões de afinidade que registram a presença do Reggae na
produção musical baiana; em seguida, fins da década de 80 onde relaciono a
proliferação dos blocos afros de samba-reggae, e sua leitura musical transcontinental, à
paulatina incorporação do Reggae como um referencial étnico identitário dos negros em
algumas cidades da Bahia. Grande parte destas entidades investiam na pesquisa das
culturas musicais negras do caribe e de alguns países do continente africano em busca
de suas respectivas histórias e, obviamente, sonoridades o que trouxe fortes influências.
Goli Guerreiro (2000) destaca uma predileção explícita pela música Cubana, Jamaicana
e Senegalesa como parte da formação percussiva de algumas entidades afrocarnavalescas em Salvador. Acrescenta que o cruzamento com as sonoridades das
tradições rítmicas locais de forte presença nos rituais do Candomblé, ao lado da
crescente influência dos meios de comunicação, paradoxalmente um forte aliado para a
inserção e ressignificação da “música mundializada”, como afirma Sansone (1997). Este
momento de contato e inserção é o alvo dos primeiros capítulos desta dissertação.
O segundo momento é o que entendo como a cristalização de uma cena Reggae na
Bahia, compreendida entre os anos de 1988/89 até 1997/98. Neste intervalo de década
cristaliza-se uma produção singular em torno dos estilos musicais transnacionais negros
25
como o Reggae e o Rap e se edificam trabalhos significativos de uma produção singular
em torno do Reggae como em paralelo com as lutas anti-centenário-da-abolição.
Identifico uma sintonia explícita entre estes estilos transnacionais da música negra na
Bahia e a posição militante dos movimentos negros neste momento em especial. Em
meados dos anos 90 se insinua um cenário musical integrado por inúmeros artistas
identificados com o Reggae, além de um gradativo aparecimento de uma considerável
produção de discos em formato CD, fenômeno que tem relação com os formatos digitais
de gravação e reprodução da música. Em fins dos anos 90(que se estende até meados de
2002-2003) uma multiplicidade de grupos intérpretes e grupos musicais como Adão
Negro, Sine Calmon e Morrão fumegante, Dionorina, Geraldo Cristal, Jorge de
Angélica, Gilsam, Nengo Vieira, registram suas experiências musicais nos discos. Este
intervalo de década é ainda o momento onde se assistiu ao que chamo de verão do
Reggae Baiano, que se configurou em fins dos anos 90 com uma enorme proliferação
do Reggae nos bairros, nas bandas alternativas, na agenda cultural das cidades e numa
escalada que galgaria o primeiro degrau do Carnaval de Salvador com a Canção
“Nayambing Blues” de Sine Calmon e Morrão Fumegante no carnaval de 1998.
Paradoxalmente este é o contexto de onde emerge manifestações expressas de repressão
à música (e seus protagonistas) por parte da Polícia e de segmentos da imprensa baiana.
Registra-se ainda neste contexto a publicação do informativo Folha do Reggae, fonte
imprescindível de onde tratar-se-á a respeito das estratégias de mobilização e respostas
dos “Regueiros”10 na defesa do Reggae como um produto da cultura negra da Bahia.
Para ilustrar melhor esta proposta de periodização foi inserido como anexo a
discografia organizada por ordem cronológica.
Diante, portanto, desta gama de possibilidades, o resultado apresentado nesta
dissertação reflete escolhas que foram definidas sob pena de deixar novas lacunas. Após
a devida catalogação do material colhido ao longo dos semestres de pesquisa, escolhi
deliberadamente o conjunto de registros sonoros e plásticos que pudessem representar
melhor minha argumentação. Ao longo dos capítulos a citação recorrente das letras,
capas, encartes ou mesmo das estratégias discursivo-musicais não se propõe uma
impressão conclusiva. Pelo contrário, espero estimular com este trabalho que um
número maior de pessoas possa voltar as atenções para o universo musical que ora
investiga-se para tirar suas próprias conclusões.
10
Termo comumente utilizado para identificar o ouvinte ou músico de Reggae.
26
O texto que se apresenta é, em linhas gerais, uma tentativa de compreender o
processo de inserção e cristalização da música Reggae no cenário sócio-cultural baiano
à luz de alguns registros de sua produção musical. Ao longo deste - mais precisamente
ao final de cada capítulo - estão dispostas um conjunto de imagens organizadas de modo
a tentar interagir com as idéias registradas na palavra escrita. Para tanto, os diferentes
pontos de vistas sobre o universo das fontes estão evidenciados na organização dos
capítulos que faz alusão à estrutura de um LP (não à toa uma das principais matériasprimas deste estudo).
O Lado A contempla, além desta apresentação-introdução Faixa 1) o capítulo
intitulado Faixa 2 – “surge mais um guerreiro do terceiro mundo”, onde se apresenta,
em linhas gerais um balanço, da inserção e presença do Reggae no universo no eixo sul
do atlântico negro dialogando com alguns documentos musicais importantes registrados
no início dos anos 80.
Os desdobramentos desta interação, foram dimensionados no terreno sóciocultural baiano ao longo dos anos 80, como pretende-se discutir na Faixa 3 intitulada
África a la Jamaica, música da Raça. Neste, serão abordadas as ressignificações sobre a
África a partir das construções musicais e dos registros fonográficos ligados à influência
do Reggae na Bahia. Abordo a centralidade dos blocos afro neste processo bem como o
conseqüente nascimento do Samba-Reggae como uma nova linguagem da música
Baiana naquele. Além destas entidades, outros artistas em diferentes momentos também
são co-responsáveis pela inclusão da temática da História da África e de uma leitura
multicentrada deste continente que inclui o Caribe e os movimentos panafricanistas
como referencial simbólico inaugurou uma nova tendência das e políticas culturais
negras na Bahia (Pinho, 2004).
‘Virando o disco’ passamos ao Lado B que se inicia com a faixa 4 – Anos 90: o
verão do reggae baiano. Nesta será abordada a relação entre as canções de Reggae e o
surgimento de uma nova metafísica de negritude cujos discursos perpassam pelas
canções e outros elementos que compõem os discos. Tratar-se-á de uma leitura das
inúmeras auto-identidades negras presentes nos elementos estético-musicais do registro
fonográfico e sua relação com as falas dos movimentos sociais no período, enfatizando
a interação dos artistas de Reggae em sintonia com diversas posições públicas dos
movimentos negros nas últimas décadas. (Interlude) “De Jesus à Jah” dialogo com as
diferentes leituras de mundo sintonizadas com cosmovisões
religiosas e suas
confluência e/ou contraposição de idéias. Dissertar-se-á sobre o surgimento de novas
27
leituras híbridas da religiosidade professadas em muito dos álbuns sob os quais se
edifica este trabalho de Pesquisa.
Na faixa 6 - “quem não gosta de Reggae, bom sujeito não é” que traz as
considerações finais, pretende-se entrecruzar as informações e problematizações dos
capítulos anteriores (por isso o sentido Dub) apontando para futuros caminhos da
investigação. Este será o espaço privilegiado para traçar algumas reflexões sobre o
mercado fonográfico e os espaços alternativos de divulgação da Música Reggae em
Salvador.
Pretende-se, portanto, com este texto, levantar algumas reflexões sobre o papel
da musicalidade Reggae como elemento articulador da luta anti-racista na Bahia
Recente tomando por base, privilegiadamente, a produção fonográfica desta expressão.
O discurso estético-musical “Rasta-Reggae” (Godi, 1997) tem alterado os sentidos do
ser negro em Salvador e outros centros urbanos da Bahia, haja vista a gama de artistas
erradicados das mais diferentes cidades do estado que buscam criar, ao gosto de suas
experiências e interpretações das influências externas e internas e, lamentavelmente,
pelo recrudescimento da marginalização social e nos meios de comunicação regionais e
nacionais que sofrem os adeptos e admiradores do estilo.11
A produção ainda rarefeita de estudos que focalizem o Reggae como expressão
fundamental desta “contracultura” plural de negros e negras no mundo contemporâneo e
sua trajetória singular no Brasil constitui o leit motiv da elaboração deste trabalho. No
que se refere ao universo baiano, o gradativo surgimento de estudos sobre a importância
da musicalidade Reggae e suas contribuições ao universo plural da Diáspora negra
justificam a necessidade de materializar estas problematizações através da pesquisa.
Feitas estas ponderações estendo o convite para cairmos no Reggae...
11
Por exemplo, em Salvador há um processo contínuo de marginalização dos tradicionais radialistas de
Reggae paralelo ao controle das bandas e shows pela grande indústria cultural da música baiana que
organiza o carnaval. Atualmente são é exibido pela rede pública, através da Rádio Educadora FM (107,5)
o programa no Balanço do Reggae além de alguns em rádios alternativas. No interior do estado,
movimentos sociais como a Associação Cultural Beneficente Revolution Reggae, em Conceição do
Coité-Ba, tem sido importante agente mobilizador contra a violência policial e dos grupos de extermínio
contra jovens negros além de organizarem eventos de debate sobre racismo, cidadania e políticas públicas
para saúde, educação no município.
28
FAIXA 2 :
“SURGE MAIS UM GUERREIRO DO
TERCEIRO MUNDO...”
E grita Jamaica, povão:
Ê Jamaica
Impere entre todos os negros
A crença no nosso poder de criar
Um novo universo
Um novo universo”
( trecho da Canção Rituais de Negros, de Mundão.
Disco: Muzenza do Reggae, 1988)
Estes repertórios de práticas são aqui entendidos como novas
formas de organização e intervenção social, política e cultural
dos grupos negros, gerando novos paradigmas de identificação
e visibilidade das populações negras urbanas, num processo
onde as práticas em torno da música são transpassadas pelas
lutas sociais e políticas.
(“Salloma” Salomão J. da Silva, 2000)
29
A luta pela visibilidade dos anseios e projetos das populações negras foi ponto
alto nas décadas de 80 e 90 no país e de modo singular na Bahia. À revelia de todos os
processos institucionais e sócio-culturais de segregação racial que se recompuseram ao
longo da História, as experiências das populações negras - em contextos os mais
diversos, leia-se - apresentam complexas estratégias e contra-discursos reveladores da
não-sujeição e da produção alternativa de conhecimento(s) e visões de mundo na
sociedade. Entre as muitas linguagens apropriadas neste processo tenso de afirmação de
(nossas) auto-identidades, a música tem se destacado dada sua importância na
construção das relações sociais, sobretudo no mundo contemporâneo onde este processo
literalmente se amplifica12.
A aceleração [e globalização!] dos padrões industriais de produção e consumo
de mercadoria, em consonância com a presença definitiva dos meios de comunicação e
outros artefatos tecnológicos ampliou o abismo entre as nações da Europa e EUA e
países do chamado terceiro mundo. Paradoxalmente, este processo tornou possível
novos canais globais de interlocução do protesto negro nos grandes centros urbanos
(Silva, 2002). Sobre o contexto da globalização, Sansone(2004), aponta dois conjuntos
de opiniões que já há muito tem sido debatidas: a primeira, indicando a popularização
dos estilos cosmopolitas de vida e de uma suposta socialização dos bens de consumo
outrora restritos às nações do “norte”; a segunda, que assinala os aspectos negativos do
subjugo das nações mais poderosas econômica e politicamente que aniquila projetos e
respostas locais. Entretanto, o autor sugere um terceiro caminho que tenta considerar um
pouco de cada um desses aspectos apontando à “heterogeneização global” - um aumento
indelével das trocas simbólicas que possibilita outras formas identitárias e outros canais
de etnicidade, invertendo, de certo modo, o velho conceito centro-periferia. Alguns
elementos conjunturais - como o impacto do mundo anglófono, o efeito bilateral da
indústria fonográfica, o fim dos regimes militares, a ação dos movimentos sociais e a
abertura ao turismo – ajudam a entender o surgimento de uma cultura negra “jovem”
mais desligada da idéia convencionalmente chamada de “cultura negra”13
A confluência das contraculturas do Caribe e demais regiões da América Latina
nos trânsitos “globais” de sons, sentidos identitários e experiências residuais do
12
O uso do termo “amplificar”, aqui na condição de verbo é livremente deliberado e faz referência aos
amplificadores: aparelhos eletrônico de processamento e reprodução das freqüências sonoras, muito
utilizado a partir da segunda metade do Século XX
13
Para Sansone este fenômeno implica um distanciamento da centralidade do candomblé como
referencial éstinico-identitário (2004).
30
colonialismo - oriundas dos mais distantes espaços subalternizados – é um fenômeno
nunca visto antes dos anos 50 do século XX. A cultura é potencialmente reveladora
destes cadinhos no processo de Globalização e, portanto, um terreno de confronto,
resistência (ou mesmo dominação), como nos lembra Milton Santos (2001). Argumenta
o autor que a cultura ”popular”
14
além de revelar as “falas” do cotidiano, das minorias
altera o sentido, ressalta a importância dos cenários locais e regionais à constituição da
noção de valores ditos “globais”. Numa leitura menos diplomática, Milton Santos
destaca a nova centralidade da “periferia” neste processo, descentrando velhos
paradigmas e inserindo os agentes e narrativas outrora relegados. O terceiro mundo é
visto menos como alvo das teorias do subdesenvolvimento – anos 50-60 – e mais como
manifestação de desconforto às conseqüências do “novo imperialismo (Santos, 2001. p.
152).
Este processo instala novas relações e tensões no plano da política e está
manifesta nas expressões estético-musicais, corpóreas, étnico-identitárias etc. Do ponto
de vista das relações raciais, as políticas culturais enunciam, a partir de expressões
como a música, sentidos de pertencimento que nos obrigam estabelecer outras
referências teórico-metodológicas para compreender estes movimentos sociais. A
canção “Terceiro mundo” de Walmir Brito, gravada em 1988 no álbum Marley Vive da
Banda Terceiro Mundo, é uma formulação sugestiva nesta direção pois remonta em
grande parte ao cerne deste trabalho, uma vez que define este como um território de
identificação étnica dos povos negros, tendo a Jamaica e a África como referenciais
geopolíticos como se pode observar em trechos da letra:
TERCEIRO MUNDO
(Walmir Brito, 1988)
Lembra-te Marley
Céu azul reggae canção
Influências evólicas
Etílicas constelações
Sentimento que vai à Jamaica
14
O termo Cultura popular (seus usos e abusos) vem sendo debatido com vigor por autores e autoras das
ciências Humanas ao longo das últimas décadas. Não se pretende revisar esta temática no momento. De
todo modo - sem mergulhar neste profundo debate(mas, molhando os pés!) - prefiro abreviar meus
comentários partilhar da forma como é utilizado o termo por Milton Santos e autores como Mikhail
Bakhtin e Carlo Ginzburg, E. P. Thompson: uma espécie de discurso “de baixo”(Santos, p.144).
31
Um negro povo a clamar à
Mãe África
Terceiro mundo é um elo unificando as nossas raízes
Lapidação da pérola Negra
o brilho da paz
O elo negro mais profundo
Corretivo ao mundo
Eu grito não apartai os negros não jamais
O sentimento que vai
à à Jamaica
um negro povo à clamar
à mãe África.
Além disso, o “silêncio” em torno da presença negra nos processos políticos e
culturais da sociedade brasileira vem, ao longo dos anos, sendo preenchido por uma
crescente produção de diversos autores (as) com relativo engajamento nas lutas destas
populações, colocando novas perspectivas epistemológicas às áreas de conhecimento
científico, a exemplo das ciências humanas, alguns dos quais os trabalhos podem ser
citados como exemplo.
A existência de importantes estudos sobre música na Bahia – como a valiosa
publicação de 1997 do projeto S.A.M.BA.15 – aponta à preocupação dos antropólogos,
musicólogos e sociólogos baianos (raros os historiadores) em compreender este
universo temático trazendo novas contribuições que relacionem música, identidade
negra e cultura enquanto categorias dinâmicas e não-essenciais. Neste sentido tem sido
pertinente, estudar as ‘sonoridades’ na Diáspora negra dialogando e problematizando a
noção de Atlântico Negro (Gilroy, 1995) e suas reflexões sobre o repertório das práticas
musicais no âmbito das “tradições populares”.
Outro exemplo relevante é o trabalho de “Salloma” Salomão Silva(2000) intitulado A polifonia do protesto Negro: Movimentos culturais e musicalidades negras
urbanas - que trata das estratégias adotadas pelas populações negras urbanas utilizando
a música como veículo de protesto. Sugere uma concepção de estudo dos movimentos
sociais identificando o fenômeno singular configurado pelas práticas culturais negras, a
partir das canções gravadas entre os anos 70 e 80 nos espaços urbanos de Salvador, São
15
Sansone & Teles: 1997. Obra citada.
32
Paulo e Rio de Janeiro, e destaca outros parâmetros de análise para o processo político
de democratização do país. Artistas da música, outrora silenciados, tem seu olhar sobre
o mundo respeitados e seus cantos de protesto audíveis pelo autor, como ilustra a vasta
produção discográfica pesquisada. A partir dessa dissertação, muitas reflexões podem
ser articuladas sobre a música como mediadora das demandas e anseios das populações
negras na contemporaneidade. Por outro lado, a discografia analisada pelo autor não
insere, de modo sistemático, uma análise de presença de influências como o Reggae e o
Rap. Obviamente a grande contribuição do autor é possibilitar que novas análises sejam
produzidas tomando a música negra como experiência sócio-cultural e política na
História. Esta dissertação é em particular um passo na direção insinuada pelo autor.
Sinto, portanto, com a difícil tarefa de suprir algumas lacunas.
A reflexão sobre estes processos político-culturais nos impõe considerar o papel das
políticas negras na construção da modernidade. Em O Atlântico Negro, Paul Gilroy
(2001) traz uma instigante análise das peregrinações do pensamento negro, desde o
contexto da colonização, mapeando as histórias de (re) apropriação dos instrumentos
dos opressores, reconquistando uma humanidade outrora negrada.
A metáfora do “oceano”, ou mais exatamente dos “navios negreiros” na Middle
Passage16, além de amplamente influenciada pelas reflexões de W.E.B. Du Bois,
incorpora um espírito crítico para avaliar e dimensionar as muitas formas de
sobrevivência das culturas negras na diáspora, a partir das mais diversas produções.
Segundo Gilroy, estas metafísicas de negritude contrariam/contrariaram a lógica do
Racismo e sua perversa tendência à coisificação d@s negr@s, destituindo-lhes do status
de sujeito, humano, quiçá intelectual. O Atlântico Negro é um “campo” de tensão,
indeterminação e não-dualismo onde subjetividades e formações culturais se constituem
num trânsito constante, e subliminar em muitos casos, de noções de pertencimento e
negritude. O autor identifica as marcas deste protesto negro inventado como registros de
uma contracultura presentes nas expressões artísticas (principalmente na música), na
literatura, em suma, em constante subversão do lugar de mercadoria-objeto, através de
criativas maneiras de “automodelagem individual” e “libertação comunal” (Gilroy,
2001. p. 100).
Segundo Gilroy, o modo sugestivo pelo qual o mundo do Atlântico negro é situado a
partir de uma rede entrelaçada entre o local e o global que torna estreita as perspectivas
16
a “Passagem do meio” é uma expressão que designa o trecho ais longo e sofrido da travessia dos
navios negreiros no Atlântico.
33
nacionalistas e aponta para a “invocação espúria da particularidade étnica” (2001, p.
82). Este ponto em especial, reserva uma polêmica que atravessa toda sua obra: os
limites das identidades raciais e do absolutismo étnico nos discursos políticos negros.
Para o autor, esse legado condiciona a identidade à aspiração de suas raízes
(supostamente autênticas, naturais), o que reforça uma visão essencialista de base
ontológica. Nesse sentido, a idéia dos negros como “grupo protonacional” com sua
cultura enclausurada reforça a visão mistificante de um afrocentrismo que colabora, em
grande parte para silenciar a diversidade de expressões que a cultura negra assumiu no
mundo contemporâneo.
Em outro prisma do Debate, escritores como Aníbal Quijano tem articulado um
novo pilar crítico do pensamento ocidental ao fundar a noção de “colonialidade”. Ao
lado de Enrique Dussell, Walter Mignolo, Edgardo Lander, e Ramón Grosfoguel e
outros, ele integra o grupo de pensadores Latino Americanos críticos da colonialidad
del Poder (Lander(org.), 1998). De acordo com esta corrente a modernidade é, grosso
modo, um padrão eurocêntrico de poder que alicerçou/alicerça a dominação
colonial/capitalista cujo sistema de classificações sociais, sustentado prioritariamente na
idéia de Raça, se estendeu pelos séculos XVI ao XVIII-XIX e se transformou na
transição para o século XX traduzindo o que Immanuel Wallerstein chamou de Sistemamundo.17
Quijano afirma ser a América a primeira identidade da modernidade
inaugurando o espaço/tempo de um novo padrão mundial-colonial-capitalista. A
naturalização da categoria mental de “Raça” e da perspectiva eurocêntrica do
conhecimento foram constructos impostos pela dominação colonial. Concomitante à
este processo, constituíra-se uma nova estrutura global de controle das relações de
produção legitimando uma divisão social-racial do trabalho. A “colonialidad del poder”,
conceito inaugurado por este autor foi, portanto, uma das mais ativas determinações no
processo de re-identificaçión histórica uma vez que foram atribuídas às populações
subjugadas novas identidades Geoculturais, ressignificando as diferenças culturais,
histórias e epistemologias em prol da disputa dinâmica pelo controle do conhecimento..
Um olhar muito próximo das interpretações de Quijano tem sido desenvolvido por
Walter Mignolo (2003). Um desafio proposto em sua obra é compreender e analisar as
epistemologias alternativas que coexistiram ao longo do processo histórico de
17
Wallerstein, 1974 citado por Grosfoguel, 1992
34
construção da modernidade à revelia dos paradigmas do ocidente. Entretanto, não
sugere uma nova homogeneidade descolonial calcada no relativismo cultural, mas,
numa contaminação da mentalidade científica, da construção do objeto na ciência,
parafraseando Pierre Bourdieu, em suma numa perspectiva onde intercalamos teoria e
ação do sujeito.
Mignolo tem se preocupado em melhor compreender a “Geopolítica”18 do
conhecimento e a constituição de “un pensamiento otro” em oposição à Razão Moderna,
consequentemente ao racismo epistêmico. Trata-se de um projeto de ruptura
epistemológica deslocada do pensamento/espaço europeus, que se firma na busca da
“pluriversalidade” (outra concepção de mundo global) como protesto universal e na
descolonização do saber e do ser mediando a construção de um pensamento liminar19.
Trata-se de uma crítica à Genealogia do pensamento único produzida pelo ocidente
europeu, abandonando, portanto, a noção de modernidade – que, segundo Mignolo é um
relato triunfante dos europeus que enfatiza a superioridade, civilidade contra a barbárie
dos índios e negros, dos ‘outros’.
Relacionando estas perspectivas é possível inferir autores (as) destas correntes
Poscoloniais e Descoloniais - utilizam como elemento central para de suas reflexões,
qual seja, as experiências de insubordinação, sobrevivência, sedição e negociação dos
sujeitos marginalizados em diferentes contextos do mundo colonial e pós-colonial. Por
outro lado, o atlântico negro, se aproveitado como projeto teórico-metodológico, navega
numa direção diferente do pensamento descolonial. Isto não significa, a meu ver, que
estejamos diante de projetos antagônicos, mas de perspectivas diferentes (e divergentes
é claro) quanto à História da modernidade e sua superação. Na análise de Paul Gilroy,
as políticas culturais negras são, grosso modo, intervenções críticas e intrínsecas à
modernidade. Tomando algumas experiências negras no Reino Unido, Caribe, América
e África (Anglófonas), o autor se distancia de qualquer argumento que corrobore com a
idéia de que há um pensamento descolonial comum, inerente às rotas da escravidão.
Pelo contrário, está interessado em compreender como os negros na diáspora restituíram
suas humanidades e ressignificaram seus sentidos (re) utilizando os meios e ferramentas
do próprio colonizador.
18
Ver Dussel, 1977(Filosofia de la Liberación)
o autor usa a noção de “Pensamiento Fronteiriço”, na versão original em Espanhol. Na edição traduzida
para o português consta a idéia de pensamento “Liminar”. Durante sua participação no IX Fábrica de
idéias, curso avançado de Relações Raciais realizado pelo CEAO em Salvador e Cachoeira (julho/agosto
de 2006) mignolo aproveitou o ensejo para reforçar essa “errata”.
19
35
Conforme Paul Gilroy (2001) músicos e outros artistas podem ser entendidos como
intelectuais orgânicos20 das tradições alternativas ‘inventadas’ na Diáspora, onde as
expressões musicais constituem um veículo fundamental, de modo que a autenticidade
de seus discursos e ações não está restrita ao universo das normas da democracia
burguesa e do mundo da escrita. Seguindo nitidamente os caminhos dos estudos
culturais, bem representados por autores como Stuart Hall, Gilroy, tem enfatizado a
posição destes sujeitos na construção/legitimação dos repertórios da política cultural
negra à revelia dos resíduos do colonialismo das “dispersões irreversíveis da diáspora”
(Hall, 2003. p. 343); este processo tem na história musical um registro indelével, haja
vista o impacto de expressões sonoras e estéticas de alcance transnacionais, a exemplo
do Reggae e tantas outras como o Jazz, Blues, o Funk, o Rock e o Rap. Em outras
palavras, estes músicos são considerados, na definição de Gilroy - em acordo com a
perspectiva já apresentada por Hampatê-BÁ - como
“...guardiões temporários de uma sensibilidade cultural distinta e
entrincheirada que também tem operado como recurso político e filosófico.”
(Gilroy, 2001; p. 164).
Portanto, o autor endossa a sugestão de que os músicos e usuários de música, em sua
“práxis” subversiva representam um tipo particular de intelectual.
A difusão transcontinental da musicalidade Reggae, que desde os anos 60
compunha o Repertório das lutas contra a violência e a invisibilidade social, está
associada com outras sonoridades do protesto negro contemporâneo (Godi, 1997, 1998,
2001; Hall, 2003; Silva(a):1995; Silva(c), 2000). Isto implica que o discurso estéticomusical do Reggae registrado nas canções dos álbuns, afastam qualquer impressão de
que esta seja uma música pura!21 Trata-se, na verdade, de uma “mixagem” que
incorpora elementos do Rock, Rythm N’ Blues, e é incorporado na cena musical destes
outros estilos de matrizes negras (Cardoso, 1997; White, 1999; Davis & Simon, 1983).
No Brasil, mais precisamente no Maranhão, O trabalho produzido por Carlos
Benedito Silva observou a partir dos depoimentos orais e um rigoroso estudo
etnográfico, os espaços das “festas de Reggae” de São Luís-MA em meados dos anos
20
A acepção deste conceito é eminentemente gramsciana; Hall é o autor contemporâneo que percebeu a
contribuição deste pensador italiano aos estudos culturais na dimensão da presença negra na diáspora.(Cf.
HALL:2003)
21
Além disso, a propagação do reggae ilustra uma certa cissiparidade, haja vista as inúmeras variáveis
como o Ragga, Roots Reggae, Dub Poetry (Davis & Simon., 1983; Albuquerque, 1997).
36
90.
22
Tentando compreender as formas de sociabilidade mediadas e legitimação social
das populações negras e suas ações/respotas à marginalização, a partir destes territórios,
o autor ressalta ainda que este processo está inserido numa rede transnacional onde as
novas tecnologias de comunicação e reprodução do som desempenham papel de
amplificadoras dessas memórias musicais e aproximando, de modo singular na história
humana, as experiências de vida desses grupos sociais(Silva:1995, p. 129; ver também
Godi:1998). Violentamente excluídos da cidadania ao longo das
negros e negras
construíram sua história de modo diacrítico à revelia de modelos oficiais – resíduos do
colonialismo – e tiveram na música um conectivo passado-presente mediador de seus
anseios e visões de mundo. Trata-se de um “descentramento”, como propôs Stuart Hall
em seu clássico Da Diáspora, que abre caminho para importantes estratégias de
“intervenção no campo da cultura popular” (2003, p. 337).
Esta presença não se dá, como sabemos, sem confrontos e tensões. Muniz Sodré
(1988) aborda este universo e aponta à relevância do cotidiano nas ruas como terreno
(ou “terreiro”) dinâmico apropriado por negros e negras. mais precisamente no capítulo
“o jogo como libertação”, o autor tece uma crítica brilhantemente contundente ao uso de
categorias de análise que não dêem conta da diversidade dos espaços urbanos como
locus de afirmação dos grupos e de reinvenção de suas identidades raciais. Em outros
termos, Sodré descortina a dialética hegeliana (e sua referência dualista!), argumentando
serem as práticas musicais, o jogo, o comércio informal das ganhadeiras, em suma, o
convívio com a “rua”, elemento formador das “cidades” não podendo, portanto se
dissociar numa análise mais complexa dos processos de formação destes centros. Além
de literalmente “enxergar” a experiência negra, apresenta um olhar críticoepistemológico de fundamental importância à construção de um outro Cânone engajado
com a inclusão, no mundo acadêmico, da presença e sujeição dos(as) afrodescendentes
na construção das relações sociais.
Mas quais elementos estas trajetórias nos oferecem para refletirmos melhor
sobre a construção de identidades negras? Qual a relação dos processos identitários uma
vez que a música conecta universos culturalmente distintos? É o que vemos a seguir.
22
SILVA, Carlos B. R. Da Terra das primaveras à ilha do amor: Reggae, lazer e identidade cultural. São
Luís, EDUFMA, 1995
37
“Uma questão de identidade”: a música remodelando a pertença
Rituais de negros
Uma questão de identidade
Um momento negro
Uma nova negritude(...)
(“Mundão”, 1988. op. Cit)
O crescente interesse pelo estudo das identidades passoum a integrar a agenda
acadêmica dos últimos 30-40 anos, sobretudo pela intervenção gradual dos movimentos
sociais indígenas, negros e feministas nos anos 70. O próprio conceito de identidade tem
sofrido mudanças substanciais nestas últimas décadas. As imigrações transformaram
demográfica e culturalmente as populações da Europa, EUA e América trazendo à tona
contrastes que delineavam a crise do nacionalismo de Estado e suas ditas “fronteiras”
nacionais e suas arbitrariedades. O meio acadêmico passa a debruçar-se sobre novas
relações comunitárias, novos sentidos de identidade coletiva como fez Fredrik Barth
desde a década de 60 em suas reflexões sobre os Grupos étnicos, balizando o início de
uma longa jornada de debates que se mantêm pertinentes no presente momento. 23
O conceito de etnicidade emergiu no meio acadêmico de fins do século XX
como uma categoria que pudesse dar conta destas novas formas de sociabilidade
pautada numa dinâmica de exclusão e inclusão que impunha aos grupos sociais novas
fronteiras. Compreender estes novos sentidos de pertencimento e as implicações entre
ser “nós” e “outro” trouxe, além de um acirramento considerável das formas de
segregação social, um novo relevo à “pertença” como estratégia de sobrevivência e
interação social. O grande destaque de sua análise é considerar a identidade como
expressão dinâmica e situacional dos grupos sociais que, dadas as formas de
organização social, tende a se recriar e formar novos arranjos. Nessa abordagem a
identidade não é um conjunto de traços culturais herdados atemporalmente pelas
gerações ao longo do tempo mas, reside na renovação e atualização dos traços de auto
inscrição. Paralelamente, Manuela Cunha (1979), já provocava a antropologia brasileira
a questionar as indeterminações entre as formas de representação do lugar dos
indivíduos (suas identidades) e a cultura.
Sökefeld (1999) ressalta a diferença entre o debate antropológico deste conceito
e sua definição original da psicologia - onde o significado de “identidade” está
23
BARTH, F. “Grupos étnicos e suas fronteiras” In Poutignat & Streiff-Fenart, 1998
38
associado como característica da personalidade do indivíduo. Para ele o discurso
antropológico, foi o responsável por dimensionar a identidade como marcador do grupo,
entre si e em relação ao “outro”, apesar de quase completamente manter-se deslocada da
questão do self.
Entretanto, é a noção de diferença que impulsiona a desconstrução do conceito
de identidade como fundamento - ou fim em si mesma - e amplia seu significado como
processo de constante transformação. Em outras palavras, as pessoas transitam entre
identidades antagônicas, portanto, é questionável haver ‘uma’ identidade isolada numa
sociedade plural onde outras identidades coexistem e onde as “diferenças” são um
obstáculo ao significado de “pureza” identitárias (Sökefeld, 1999; Silva (org.), 2000;
Gilroy, 2001). Estas diferenças de identidades criam ambigüidades para os agentes, o
que torna cada vez mais imprecisa a delimitação de categorias fixas de indivíduos como
construídas pelas ciências humanas tradicionalmente. Diante disso, “ser” (pessoa,
indivíduo) implica interação, num sistema complexo de relações de poder, entre
indivíduos que lutam para manter ou melhorar as suas posições um em relação ao outro.
O mais recente Livro do antropólogo Carlos Benedito Silva (2007) traz um
debate Instigante sobre a questão das identidades locais no Maranhão e sua relação com
as influências culturais-musicais consideradas “externas”, “estrangeiras”. Silva (2007)
analisa as posições de alguns segmentos de São-Luís diante da influência da presença da
música Reggae na cidade. A Jamaica brasileira, como é chamada a capital do estado do
Maranhão, na verdade vive há algumas décadas uma disputa simbólica pelas
identidades. Para o autor o Reggae representa para a elite dominante (literalmente
falando) uma ameaça ao Status de Atenas “brasileira”. Ele apresenta um conjunto de
argumento que ratificam o estranhamento sob a justificativa de ser este um Gênero da
música internacional, logo, contrário às Raízes brasileiras. 24 Um ponto relevante de seu
trabalho é analisar a relação Tradição-modernidade, como
conflituoso “diálogo
criador” onde o Global não substitui o Local. Para o autor
...tanto as rupturas da tradição quanto as contradições da modernidade
permitem
este
diálogo,
mostrando
que
mesmo
nas
culturas
aparentemente “fechadas” à modernidade a pluralidade se insinua,
determinando os ritmos da identidade. (2007, p. 42)
24
. Ver Ritmos da Identidade: mestiçagens e sincretismos na cultura do Maranhão ( SILVA, 2007)
39
Tomando como referência a noção de Diáspora negra como situação de
rompimento-recriação de laços identitários das populações de matriz africanas
o
conceito de identidade apresenta-se do modo potencialmente criativo e sugestivo. Nas
palavras Para Carlos B. Silva
“ ...esses processos interativos possibilitam também aos diferentes
grupos localizados que são atingidos pela dinâmica da mundialização da
cultura, escolher, baseados em suas raízes étnico-culturais, novos
elementos que, a partir de uma ressignificação, passam a ser retratados
como expressão de sua identidade.” (2007, p. 45)
Desse modo, a recusa às influências externas pode constituir-se num critério para
marginalizar contraculturas da música negra na diáspora como é o caso do Reggae
reduzido ao rótulo de música internacional. A presença recente deste estilo musical, tem
fertilizado auto-identidades fundamentais à (re)inserção das demandas e perspectivas
das populações negras, como destacamos, na Bahia. Visto aqui com uma das tradições
inventadas de expressão musical dos negros na Diáspora, no contexto contemporâneo
(Hall, 2003; Gilroy, 2001), o Reggae é uma contracultura musical (re) produzida no
“Atlântico Negro”, portanto um gênero musical transnacional.
É fundamental considerarmos que o uso de categorias como “raça” ou “cultura
negra”, que tem sido ressignificadas, podem ser interpretadas como mais próximas da
experiência concreta de auto-afirmação ou combate à invisibilidade. No Brasil, os
mecanismos de segregação racial passam pelo apelo à negação racial do negro, por isso
os movimentos sociais têm realçado a importância da auto-afirmação neste embate.
Ainda nesse sentido, a noção de Cultura também pode ser entendida em sentido mais
completo, dinâmico: um terreno igualmente ambíguo que ganha diferentes formas de
definição de acordo com uma determinada realidade social figurada. É, portanto, no
interior destes limites que me refiro à noção de “cultura negra”. As experiências (de
nós) afrodescendentes tem redesenhado, definitivamente a concepção de cultura.
Pode-se afirmar que os resultados musicais produzidos no universo das
populações negras na Bahia sugerem uma reflexão mais plural da noção de cultura e do
engendramento de novas identidades. A musicalidade Reggae, em especial, assinala
para diversas alternativas à invisibilidade social de um ou mais grupos identificados por
sentidos, valores e símbolos étnicos de negritude. Neste movimento, consituiu-se uma
“cultura musical” de conteúdos críticos e estética contundente que tem afetado de
40
maneira especial as dimensões identitárias e do pertencimento constituindo uma lógica
própria de representação pautada na inserção social do grupo étnico-racial. Portanto o
que vem sendo chamado aqui de identidades negras não é um conjunto de
características intrínsecas (ou naturais) aos negros e negras mas, engloba múltiplas
noções de pertencimento construídas na tensão entre um processo histórico de
marginalização do negro na sociedade brasileira e as inúmeras respostas, propostas e
alternativas apresentadas por estas populações como as canções registradas nos discos
que compõem os repertórios da música negra produzida em algumas cidades da Bahia.
Em outras palavras, As identidades negras mediadas pela música Reggae,
presente nas canções e no universo que as cerca se edificam numa dinâmica de
alteridade. O impacto destas freqüências musicais deságuam na Bahia nos últimos 30
anos compondo a cena plural dos movimentos políticos e culturais em consonância com
o posicionamento das militâncias negras urbanas. Repertório das lutas contra a exclusão
e a invisibilidade social, as ondas de Kingston - capital jamaicana - reassumem novos
caminhos, sonoridades, e referenciais de etnicidade, constituindo um resultado singular
de afirmação dessa cultura conectiva que atraiu diferentes grupos “nacionais” e foi
responsável por revisitar uma visão de mundo intercontinental, representando, logo, um
exemplo genuíno de “estilo étnico de status global” (Cf. Gilroy, 2001).
Neste sentido, é pertinente estudar as ‘sonoridades’ da vida cultural na Diáspora
afro-latina problematizando a noção de Atlântico Negro (ibid.) e suas reflexões sobre o
repertório das práticas musicais no âmbito das “tradições populares” negras, como o
faremos mais à frente. Podemos afirmar ainda que, no bojo das expressões musicais de
maior disseminação mundial a partir da segunda metade do século XX, o Reggae é um
“estilo de Música negra que tem seu pertencimento em loci variados do
planeta”(Godi:1998, p. 275) transcendendo as fronteiras lingüísticas e nacionais e
encadeando outras laços de etnicidade sobre (e em torno da) produção artística e
histórica do negro. Incorporando novos sentidos em sintonia com “aspectos tenazmente
locais” (Sansone:1997, p.221) e para além do mundo anglófono, a disseminação da
música Reggae em águas brasileiras representa mais uma das muitas confluências da
Cultura negra na Diáspora. Portanto, tornou-se imprescindível à compreensão desta
ressonância, investigar sua existência idiossincrática na Bahia. Nestes ritmos fundiu-se
uma visão mítica sobre África ancestral e contemporânea que levam em consideração a
Diáspora como produto e desdobramento da escravidão e posiciona-se, acima de tudo,
41
como laço transnacional entre sujeitos que tem em comum as mesmas raízes, diferentes
origens e, um presente semelhante. Em outras palavras,
“...deslocadas de suas condições originais de existência, as trilhas
sonoras dessa irradiação cultural africano-americana alimentaram uma
nova metafísica da negritude ‘elaborada e instituída na Europa e em
outros lugares’[grifo meu] dentro dos espaços clandestinos, alternativos
e público constituídos em torno de uma cultura expressiva que era
dominada pela música”(Gilroy, 2001)
Nesse ritmo, a irradiação do Reggae colocava a Jamaica em destaque como uma
das importantes referências de sublevação do terceiro mundo alterando a Geopolítica da
cultura.
Virando Jamaica
A década de 1980 chegava ao mundo com ar de novidade! Na música brasileira,
diversos artistas que agitaram os palcos e outros meios de comunicação nos decênios
anteriores se consagravam como referências da contracultura daquele momento no país.
A cena sociocultural e política, vivenciada dentro e fora do Brasil ao longo da década de
70, era epílogo para aos conflitos sócias que marcaram os últimos suspiros do século
XX. O esgotamento do Regime totalitário-militar brasileiro e a revoada de movimentos
sociais civis de todas as ordens são parte de um contexto mais geral alterado: pelo
impacto das lutas civis pela descolonização das mentes e dos povos no continente
africano e na diáspora negra, do arcaico domínio europeu (Hall:2003; Silva: 2000); pela
ascensão das ações do Movimento black-power norte-americano e pela visibilidade
emergente de novas manifestações de pertencimento negro presentes na música, no
cinema e na televisão25 cujas imagens ressignificadas foram transformadas em símbolos
e sinais de identificação dos jovens afro-brasileiros26. As trilhas sonoras daquele período
25
O interessante documentário Wattsax : woodstock da música negra, registra o festival de música negra
realizado na cidade de Watt nos Estados Unidos em 1972 com narração e entrevistas de Richard Prior.
Retrata ainda o cotidiano dos jovens negros no país, da música à religiosidade. É um registro precioso dos
anos 70!
26
(Cf. Silva, 2000 )
42
foram sensivelmente percebidas nos repertórios de inúmeros artistas brasileiros, um
resultado criativo que é hoje parte significativa de nossa memória musical27
A emergência de movimentos sociais que pautavam a inclusão social do negro
marcaram definitivamente a história recente do Brasil. Na Bahia a fundação de diversas
entidades político-culturais como os blocos afros Ilê Aiyê(1974), Olodum(1979), Male
Debalê(1979), Muzenza (1981), assim como a fundação do Movimento Negro
Unificado (1978) enunciava a mobilização de inúmeros agentes em torno do debate das
desigualdades étnico-raciais propondo assim novas políticas à sociedade brasileira
(Silva,
2000c, p. 54; Risério, 1981; Godi, 1997)28. Interagindo com renovadas
estratégias de intervenção na vida pública, estes agentes propunham uma leitura para o
país e seus desenhos futuros (leia-se democratização) que levava em conta a as
desigualdades étnico-racial na história e na realidade brasileira.
Os impactos destas agitações ecoaram nas décadas de 80 e 90, palco de
contínuas movimentações de artistas negros que dedicaram suas temáticas e atividades
(Música, Dança, Teatro, Artes Plásticas, literatura, poesia...) à pesquisa e resgate de um
passado ancestral de matrizes africanas identificado com a luta contra a invisibilidade
social de negros e negras construindo, assim, um novo paradigma de mobilização social.
Em outras palavras, os anos 80 parecem menos uma “década perdida”29 se vistos à luz
dos movimentos políticos e culturais da população negra.
É nesse contexto que o compositor-músico-cantor baiano Gilberto Gil um dos
personagens mais influentes e controversos da música popular brasileira no século XX,
consolidava sua carreira pelo experimentalismo e pela sintonia com as influências e
tendências sonoras de circulação no mundial. Sua trajetória musical iniciada os anos 60
se entende até os dias atuais incluindo no currículo uma intensa participação na vida
política do Brasil pré e pós ditadura. Co-fundador do movimento da Tropicália, o artista
é conhecido ativista político-cultural, inclinação que lê rendeu intensas perseguições e
27
O surgimento de novas variáveis do samba, como o samba rock, samba funk,e sua identificação com a
juventude negra no período é um dado que atesta essa informação.(Silva, 1984, Silva, 2000). A
dissertação de mestrado de Luciana Xavier (no prelo), recém defendida no programa de pós Graduação da
FACOM/UFBA é uma das mais recentes produções sobre o tema. Veremos mais adiante que o sambareggae é um dos descendente destas hibridações musicais.
28
O proliferação dos blocos afro-carnavalescos remonta à criação dos blocos de índios, desdobramentos
das escolas de Sambas dos anos 60, num contexto permeado por variáveis tecnológicas e midiáticas
(cinema, televisão, gibis) e profundas modificações no território Urbano de Salvador (Godi, 1991).
29
sobre esse conceito Ver, GOHN, M. da Gloria. Movimentos sociais e educação. São Paulo, Cortez,
1994
43
alguns anos de exílio em Londres30 e uma vasta produção musical reconhecidamente
cosmopolita. Para além da imagem ora vanguardista, ou diplomática (Haja vista sua
participação, recentemente interrompida, como Ministro da cultura do Governo Lula
entre 2002-2008) Gilberto Gil é, sem dúvida, uma das importantes referencias na
inserção e diálogo com as principais tendência da musica negra de dentro e fora do
Brasil.
Para avaliar melhor as muitas motivações que o trazem para estas páginas,
gostaria de “abrir um parêntese” para ilustrar, com uma História particular, como a
música ganha significados os mais diversos no universo e cotidiano das pessoas, em
situações as mais inusitadas.
Literalmente nasci e tenho crescido sob influência do som de Gilberto Gil. Os
discos de Vinil, fitas K7 e outras referências do artista sempre tiveram presença nas
estantes de minha infância. Mais do que isso, escuto desde criança que minha chegada
ao mundo foi embalada por uma de suas músicas mais tocadas nos anos 80 e até s dias
atuais. Pelo menos anualmente, minha mãe, Dionéia Mota (e sei que não se importará
com a ausência do pronome “Dona”) e outros familiares me relatavam um episódio que
pode ilustrar bem esta relação: Era abril de 1980 quando, aos 09 meses de gestação do
seu primogênito ela esperava mais um tedioso domingo passar quando percebeu as
contrações que anunciavam o rebento. Atônita, ela e meu pai partiriam em busca de
ajuda na vizinhança para que às pressas pudesse ser acolhida na maternidade mais
próxima. Na rua deserta do Bairro de Mussurunga I (àquela época recém fundado pela
URBIS) em Salvador-Ba a oportunidade de “socorro” ficava à mercê da sorte ou de
algum dos poucos vizinhos que possuísse um automóvel e se dispusesse a atendê-la.
Pela lembrança de minha mãe, um senhor da vizinhança de nome “Pedro” apontou na
Rua com seu Volkswagem Variante carregado de instrumentos musicais que haviam
animado um evento dominical. Apesar da sobrecarga no veículo, ele se habilitou a
prestar solidariedade, desviando o caminho de casa e conduzindo a gestante e seu
marido, em meio aos muitos “tambores, repiques e atabaques” - assim lembra minha
mãe sempre aos risos – até a maternidade que ficava a cerca de 17 km.
Recorda ainda que, tendo desembarcando no hospital às contrações, foi
conduzida para o atendimento médico visivelmente intranqüila o que tornaria sua
30
Em muitas entrevistas Gil refere-se a alguns episódios de sua vida em Londres, como um tempo de
sentimentos ambíguos: por um lado, a angústia do exílio, por outro a convivência com a contracultura
musical de grande circulação na Europa (àquela época o epicentro da indústria fonográfica mundial).
44
“hora” um pouco mais difícil. O auxiliar medicoque conduziu os preparativos do parto
insistiu repetidas vezes por sua tranqüilidade, pedido que não contava com uma resposta
positiva. Pelo contrário, tomada pela dor, expectativa, ansiedade, perda de líquido – e
tantos outros sentimentos que sou incapaz de mensurar – ela se esvaiu em lágrimas... Já
na sala do parto, ouviu novos pedidos de calma e tranqüilidade. Todos em vão... Diante
da situação, um dos membros da equipe médica, começou a cantar para ela [e o bebê]
uma de suas melodias prediletas:
“não, não chore mais...
menina não chore assim.
não, não chore mais...”
A atitude a tocou com tamanha precisão que a tensão deu lugar à serenidade. A
melodia vocal lhes trouxe o conforto necessário para aquele ritual de vida se
concretizasse. Para ela [minha mãe], aquele refrão de Marley, revisitado por Gil é minha
canção de chegada neste mundo. Para mim, esta História que já ouvi repetidas vezes, é
hoje muito mais simbólica para minha auto compreensão e pode ajudar a entender
algumas questões ao ilustrar a relação-mediação da música no cotidiano das pessoas.
Durante muito tempo insisti em tratar esta narrativa de minha origem, como uma grande
coincidência e/ou gesto de carinho materno; nos últimos anos tenho repensado bastante
esta posição. Precisamente ela nos serve hoje como ponto de partida para uma reflexão
mais apurada sobre o impacto das musicalidades negras na Diáspora. O presente
trabalho é uma tentativa de compreender algumas dimensões desta relação. Além disso,
a alusão a um parto serve aqui como ilustração para evidenciar que a produção-gestação
deste material foi sem dúvida uma espécie de parto intelectual seja pela dor, seja pelo
rito de passagem, seja pela esperança no fruto que se anuncia.
Essa passagem tenta retratar, ainda que de modo pouco convencional, o impacto
e popularidade de versão em português gravada por Gilberto Gil de No Woman No Cry
(autoria de Vicent Ford), imortalizada por Bob Marley and the Wailers. A sintonia entre
do artista brasileiro com a música afro-jamaicana demonstrava uma posição em comum
com outros músicos e interpretes do período que identificavam nestas trilhas sonoras da
musica negra transnacional novos referenciais identitários para problematizar sua
própria História. Esta leitura musical, ainda que sublime, é um indício da posição de um
artista negro diante da possível (re)construção de um país recrudescido pelas
desigualdades sócio-raciais (Silva, 2000c).
45
Neste sentido, a postura do profissional médico, que cantou para tranqüilizar as
dores de um parto, reforça a presença da musica na tradução das relações e conflitos do
seu tempo. A releitura apropriada de Gil traduzia bem a angústia de um país que vivia
sob as dores de uma transição “lenta e gradual”31. Naquela conjuntura, chorar não era
mais preciso, pois a dor haveria de dar lugar há novos tempos, como ansiavam muitos
movimentos sociais.
Curiosamente, “Não Chore Mais (No Woman no Cry)”, trata de uma postura
otimista, da esperança em uma nova perspectiva de sociedade, de um novo tempo sem a
violência política que tanto marcou as sociedades do Terceiro Mundo nesta segunda
metade de Século XX, e contra o qual Gil e Marley foram alguns de seus combatentes
mais conhecidos. Esta era, a propósito, a intenção original de Gil, como se vê em seu
Relato:
“eu pensava na transposição de uma cena jamaicana para uma cena
brasileira o mais similar possível nos aspectos físico, urbano e cultural.
Emblemática do desejo de autonomia e originalidade das comunidades
alternativas, ‘No woman no Cry’ retratava o convívio diário de
rastafáris no government yard (área governamental) em Trenchtown, e a
perseguição policial, provavelmente ligada à questão da droga
(maconha) que eles sofriam. Essa situação eu quis transportar para o
parque do Aterro, no Rio de Janeiro, Também um parque, onde localizei
policiais em vigília e hippies em rodinhas tocando violão e passando
fumo, como eu costumava vê-los de noite na cidade. Coincidindo com o
momento e que a abertura política estava começando, ‘Não chore mais’,
acabou por se referir a todo período de repressão no Brasil”32
Observando a letra da canção temos:
NÃO CHORE MAIS
(Gilberto Gil, 1979)
Bem que eu me lembro
Da gente sentada ali
Na grama do Aterro, sob o sol
Ob-observando hipócritas
31
Esta foi a conhecida expressão mencionada pelo General Ernesto Geisel para se referir à postura dos
Militares diante do fim do regime. Em 1979 foi decretada também a lei da anistia que pôs, sob o manto
silencioso de uma mesma justiça os criminosos do Regime e exilados poíticos.(Ver mais em GASPARI,
Hélio,)
32
GIL, Gilberto. Todas as letras. RENNÓ, Carlos (org.). São Paulo, Cia das Letras, 1996.
46
Disfarçados, rondando ao redor
Amigos presos
Amigos sumindo assim
Pra nunca mais
Tais recordações
Retratos do mal em si
Melhor é deixar pra trás(...)
Não, Não Chore mais
Não, Não Chore mais
Menina, menina
Não chore assim33
A letra em português, com leves adaptações traduz o sentimento da versão original
gravada pelos Wailers:
(…)‘Cause I Remember when we used to sit
In the government yard in Trenchtown
Oba-observing the hypocrites
Mingle with the good people we meet
Some friends we have
Some friends we lost
Along the way
In this Future you can’t forget your past
So, dry your tears
And don’t shed no tears
No Woman no Cry
No Woman no Cry34
Há que ser considerado ainda que a metáfora da dor como transição, é um
conectivo comum entre as muitas Histórias de sobrevivência no Atlântico Negro e está
33
Vicent Ford/ Letra em Português: Gilberto Gil. In: Gilberto Gil, Disco: Realce, Gravadora: Elektra,
1979.
34
Ibid.
47
traduzida em muitos de seus repertórios. Esta analogia nos remete ainda ao que Gilroy
(2001) chamou conceitualmente de “sublime escravo” (slave sublime): um traço
característico das culturas construídas pelos escravos – e legadas a seus descendentes de combinar dor e prazer na construção de seus modos de comunicação.
No álbum Realce outras linguagens explícitas vão ilustrar esta interação com as
novas “metafísica de negritude” em trânsito naquele contexto. A capa traz uma foto de
rosto do autor que enfatiza, além de sua convidativa (e provocativa) descontração, o uso
de uma estética negra nos cabelos e adornos inspirada nos muitos penteados afrobrasileiros e, arrisco, nos dreadlocks afro-jamaicanos. A música Reggae trouxe, com
sua ampla bagagem de signos, o uso do cabelo como forte representação étnicoidentitária.35
Para, além disso, as canções que compõem este álbum abordam algumas
sonoridades e temáticas que fazem parte do universo de referências sócio-culturais
abertamente marginalizadas na sociedade e que estão associadas à História das
populações negras. Além da presença marcante do Ijexá, ritmo oriundo do candomblé
tocado no espaço da rua a temática dos candomblé é explícita em canções como
“Longunedé”, em que Gil canta a mitologia ancestral da divindade afro-brasileira,
marca registrada em outros discos anteriores e posteriores de sua carreira, dando
visibilidade a esta cosmovisão de matriz africana.
É uma opinião compartilhada por muitos que este é, do ponto de vista da
produção fonográfica, um dos marco principais marcos da chegada do Reggae no Brasil
(Godi, 2000; Silva, 2000a). Em entrevista com o radialista, produtor cultural e
colecionador Clóvis Rabelo, que trabalha há mais de duas décadas com a produção e
divulgação do Reggae na Bahia, ele cita um momento bastante ilustrativo desta História
quando perguntado sobre a primeira vez que teve contato com o Reggae. Nas Palavras
de Clóvis Rabelo:
“...em 1980, ou foi 79 que, eu não me lembro, quando eu fui assistir um
show de Gil na escola de Teatro[da Universidade Federal da Bahia, em
Salvador] ele falou, voz e violão, que ele ia cantar a música de um
35
Em uma das falas do Líder espitiritual rastafári Mortimo Planno, quando perguntado sobre a vida de
Bob Marley ele enfatiza a centralidade das tranças como representação de insurgência. Segundo ele para
conter o “açoite as tranças” de Marley era preciso cortar-lhes a cabeça Catch a Fire. Coleção Classic
Álbuns, Série 2. Eagle Rock entertainment, 1999. Agradeço aos amigos do Grupo cultural Revolution
Reggae (Conceição do Coité-Ba) pela sugestão e aos professores Paulo Neto e Pinzol da UNEB (Campus
Juazeiro) pela cópia deste material em DVD.
48
Jamaicano que era Sucesso e ele cantou “No Woman no Cry”. Foi a
primeira vez que eu ouvi... e daí pra cá começou...”36
Ainda diante destas evidências, não podemos deixar de considerar, como o fez Godi
(2001), que a presença do Calypso caribenho nos anos 60-70( forte estilo influenciador
do Reggae) foi um dos agentes fertilizadores da sonoridades afro-caribenhas no terreno
cultural e musical em muitas cidade brasileiras como Salvador e São Luís do Maranhão
(Silva, 1995). No meu entendimento é menos pontual demarcar a influência de uma
determinada cultura musical a partir de vestígios exatos. Basta lembrar que a análise
interpretativa dos registros fonográficos deve problematizar o contexto social de gira em
torno da obra, além do processo de produção anterior à publicação do resultado final e
que em geral leva certo tempo.
Considero, portanto, que a aproximação (inseparável) do Reggae no Brasil contou
com uma conjunção de fatores que dizem respeito o contexto político-cultural e étnicoidentitário que pairava sob a Bahia e outros territórios do atlântico em consonância com
a consolidação do Reggae na indústria fonográfica mundial na contracultura dos anos
70. Esta trajetória foi abordada pela bibliografia esporádica que vem sendo produzida
sobre o Reggae ao (Simon & Davis, 1983; White, 1999, Albuquerque) Em todos estes
trabalhos tem sido comum destacar que a aceitação pública do Reggae contou com um
certo trabalho de conversão do público tentando aproximar a mensagem do Roots
Reggae às influências da música negra de maior circulação no mercado internacional de
então, especialmente o Rock e o Rhythm & Blues. O vídeo-documentário Catch a Fire
(1999) é uma fonte valiosa para apreciar a questão pois apresenta a trajetória de
gravação do álbum dos Wailers lançado em Londres (1972) narrada por alguns dos
principais agentes envolvidos (músicos, engenheiros de som, produtores) além de
registros raros da realidade social de Kingston e Londres à época Este disco37 representa
um marco da indústria fonográfica mundial por inúmeras razões: O conteúdo fortemente
político e declaradamente étnico-identitário, são marcas indeléveis. paralelamente, o uso
de tecnológicas alternativas de gravação e mixagem, que tornaram possível produzir
uma musicalidade híbrida com forte apelo às populações do Atlântico negro anglófono
Além disso, a inserção em Londres de instrumentos e sonoridades mais conhecidas pelo
público colocava o Reggae jamaicano no centro da indústria fonográfica internacional
36
37
Entrevista com Clóvis Rabelo(14/11/2006)
The Wailers. Catch a Fire. Island records, 1972.
49
(através da Gravadora Island) fortalecendo, consequentemente as contraculturas negras
no contexto do capitalismo dos anos 70. Na opinião do produtor-tradutor dos Wailers
Cris Blackwell o grupo deveria atingir o mercado fonográfico da Inglaterra e EUA,
apresentando-se ao mundo como um “grupo negro de Rock”. A capa de Catch a Fire
com formato de isqueiro também representou uma forte estratégia para o mercado bem
como se consolidou como uma das obras-primas da história da indústria fonográfica.
Nas palavras dele: “Catch a Fire foi um acontecimento”.38 Bunny Livingston (um dos
fundadores dos Wailers) descreve no documentário estes episódios com as seguintes
palavras:
“Eu, Bob e Peter precisávamos encontrar uma forma que fosse
aceitável. Nós resolvemos fazer um ritmo bem marcado que sugerisse
os princípios básicos do Reggae e depois poríamos um pouco de cor
aqui e ali que não afetaria o princípio básico, mas que atrairia o
mercado internacional”39
Segundo o Baixista Aston ‘Family Man’ Barret, que teve papel crucial na formação
musical dos Waliers - ao lado do irmão baterista Carlton Barret - desde o início da
carreira:
“A música Reggae é a batida do coração do povo. É a linguagem
universal. E quando ele bate você não sente dor...estávamos tentando
nos expressar com as letras na melodia. Fazendo um Reggae Roots com
um sabor R&B´[rhythm n’blues] para que se espalhe.40
Carlos Albuquerque no livro o Eterno Verão do Reggae, acrescenta que o
sucesso da Canção “I Shot the Sherrif” teria alavancado novamente a carreira do
Guitarrista Eric Clapton, e em contrapartida provocado o maior interesse das gravadoras
na música jamaicana,que diga-se de passagem, já contava com um time considerável de
músicos, produtores, estúdios de gravação, rádios etc.41
É interessante considerar, com efeito, a grande inversão histórica que este
fenômeno provocou. A música Reggae foi o estilo de música que deu, além de divisas
38
Ibid. Este álbum não foi publicado no Brasil com estas características. Ao que parece também não o foi
na Jamaica como sugere a informação de Carlos Albuquerque sobre o Impacto de Catch a Fire no
mercado da música de Kingston. Ao referir-se ao disco ele menciona a capa em que aparece Bob numa
fotografia de rosto ostentando um longo “cigarro” de Ganja.
39
In Catch a Fire. Classic Álbuns, 1999 [tradução: legendas videolar]
40
Ibid.
41
Albuquerque, 1997; ver também White, 1999.
50
para a Jamaica e alguns de seus artistas, o primeiro astro pop do terceiro mundo, e uma
nova referência étnico-identitária que alteraria profundamente as políticas culturais
negras em todo o Atlântico Negro. Este fato está diretamente associado à centralidade
que a Jamaica, passa a assumir em outros países como o Brasil.
A presença inusitada da música afro-jamaicana dos Wailers seria percebida pelo
registro sensível de Caetano Veloso na faixa “Nine out of ten” de seu disco Transa
(1972) - contemporâneo ao Lançamento de Catch a Fire(dos Wailers) – como sugere a
letra da canção:
NINE OUT OF TEN
(Caetano Veloso, 1972)
Walk down Portobello road to the sound of reggae
I’m alive
The age of gold, yes the age of
The age of old, the age of gold
The age of music is past/
I hear them talk as I walk yes
I hear them talk
I hear they say
Expect the final blast
Walk down Portobello road to the sound of reggae
I’m alive(…)
Além da explícita referência, chamou-me especialmente a atenção as citações de
abertura e encerramento em que se apresenta uma vinheta que insinua uma tentativa de
reproduzir o som do Reggae jamaicano (o resultado é ainda muito próximo de um RockSteady) que se disseminava pelo mundo via Londres e muito mais timidamente os EUA.
Neste caso, a interação da sonoridade enunciando a mensagem que se complementa
pelas informações da letra é um indício é digno de referência pela percepção pioneira do
artista, apesar de menos indicativo de uma relação mais próxima com a divulgação do
reggae e sua inserção no mercado fonográfico brasileiro.
É precisamente na passagem para os anos 80 que o Reggae passa a ter maior
reverberação no Brasil. A sintomática gravação de Gilberto Gil abriu, em certo sentido,
as portas para o Reggae no mercado fonográfico brasileiro. Este era precisamente o
entendimento da gravadora alemã Ariola (associada da inglesa Island de Cris
Blackwell) que trouxe Bob Marley, acompanhado de Jacob Miller (Inner Circle), Junior
51
Marvin (The Wailers) e outros de músicos jamaicanos ao Rio de Janeiro em março de
1980 para um evento de divulgação do seu staff de artistas. Como afirma Leo Vidigal,
Bob Marley era a grande aposta internacional do selo no país, sobretudo depois da bem
recebida gravação de Gilberto Gil (“No Woman no Cry”) pelo público e do lançamento
do álbum Survival42, que “já estava girando no toca-discos de 10 mil brasileiros”43.
Apesar de tratada com pouca expresão pelos veículos de imprensa da época, a
passagem de curta duração do ídolo jamaicano deixou marcas em sua obra musical,
como atesta o som da cuíca presente na gravação de “Could You Be Loved”, composta
por Marley durante o vôo da viagem de volta, afirma Blackwell.44 Deixou também
memórias interessantes para alguns músicos baianos daquele período. Moraes Moreira,
um dos contratados da Ariola à época, esteve presente em muitos momentos da visita e
compôs, segundo o próprio, uma canção-homenagem ao músico45 Para o reggaeman
baiano tonho Dionorina, a passagem de Marley lhe renderia, por motivos adversos, uma
busca pela obra e música Reggae. Em sua entrevista ele comentou sobre sua impressão
do episódio relatou que entre suas idas e vindas para o Rio ao longo dos anos 70 teve a
oportunidade de ter os primeiros contatos com o Reggae. Nos anos 80 com a passagem
de Marley pela cidade, o músico comenta, com certo pesar, suas tentativas infelizmente
mal sucedidas de encontrar pessoalmente o artista jamaicano. Segundo Dionorina o fato
o estimulou a pesquisar a Música de Bob Marley. nas palavras dele “foi o desencontro
para o encontro...”46
O fato é que a presença de músicos reconhecidos do Reggae jamaicano, a partir
daí passava a fazer parte, ainda que esporadicamente da agenda cultural Brasileira e
Baiana. De acordo com o Sr. Carmelito Carvalho, colecionador de Reggae há mais de
três décadas e admirador confesso da vida e obra de Peter Tosh, o co-fundador dos
Wailers esteve no Brasil (em 1980) participando de em um capítulo da novela “Água
Viva”, exibida no turno da noite ao lado do intérprete (e então ator...) Fábio Júnior e da
42
Bob Marley & the Wailers. Disco: Survival. Gravadora: Island, distribuidora: Ariola, 1979
VIDIGAL, Leo. “O Rei no Rio: dreads no verão da abertura”. Revista Bizz, ed. 201, maio de 2006. ver
também Albuquerque, 1997, Pp 71-78. A visita incluiu compras de materiais esportivos, partida de
Futebol com artistas contratados da Ariola (dentre os quais, Chico Buarque, Toquinho e Moraes Moreira)
e, obviamente, participação na festa centenas de convidados no morro da urca além da hospedagem no
opulento Copacabana Palace, recepção digna de um dos maiores popstars da época
44
Vidigal, 2006. p. 78
45
Albuquerque, 1997. p.78
46
Dionorina. Entrevista concedida em 24/11/2007.
43
52
protagonista Tonia Carreiro. Além desta passagem, sabe-se que Tosh esteve no Brasil
em outra ocasião para uma apresentação musical no 2º festival de Jazz de São Paulo.47
Outra presença de destaque no país, e mais especialmente na Bahia o Cantor,
compositor e intérprete Jimmy Cliff. Pelas correntes sonoras do atlântico negro, Cliff, já
estabelecera uma relação com o Brasil que remonta a fins dos anos 60, quando de sua
participação no festival internacional da canção (Godi, 2001) e como aponta o raro LP
“Jimmy Cliff in Brazil” (Philips, 1968). O registro raro (não se trata de música Reggae,
diga-se) contém doze faixas, dentre as quais versões de canções da música popular
brasileira interpretadas pelo então jovem cantor Jamaicano como: “Serenou”, cantada
em português (pouco fluente, leia-se) e “Andança”, numa versão intitulada “The lonely
walker”.
Em fins dos anos 70 Jimmy Cliff apresentou ao público brasileiro o álbum
“Follow my Mind” (WEA, 1977), lançado inicialmente como compacto já contendo a
canção “No Woman no Cry”. O novo momento que vivia a música afro-jamaicana em
fins dos anos 70 e propriamente as mobilizações sociais de cunho étnico-identitário
protagonizadas pelos grupos negros citados trariam-no novamente ao Brasil, e mais
exatamente à Salvador no início dos anos 80 onde fixou residência, durante algum
período se apresentou com artistas como Gilberto Gil e Lazzo, este último que o
acompanhou em enorme turnê internacional.
Em suma, àquela altura o Reggae era, além de convidado vip do mainstream das
gravadoras, um estilo musical de forte conteúdo crítico-social e étnico-identitário
amplamente divulgado e “cultuado” em toda a América, como afirmou Carlos
Albuquerque(1997). A década que sucedeu 1980 foi arena política e cultural onde o
Reggae também se apresentou como alternativa musical. A (auto) afirmação desta
musicalidade em terreno baiano foi produto de uma série de episódios de ora aceitação
ora enfrentamento que, uma vez registrados “sob o signo do som”, para citar os
malungos do estado vizinho48, tornaram-se alvo deste trabalho de pesquisa.
47
S. Carmelito Carvalho. Entrevista concedida em 14/12/06. Estes fatos também ganharam os
comentários de Carlos Albuquerque quesão informações de Albuquerque que acrescenta alguns episódios
da polêmica passagem de Tosh pelo Brasil (1997, p. 103-104). Na visão do autor além dos inesquecíveis
e mântricos shows, as outras aparições de Tosh ‘deram o que falar”. No auge de sua militância pela
legalização da Maconha, o cantor e compositor jamaicano ganhou comentários pejorativos na imprensa.
No Jornal do Brasil: “agora eu tenho que acreditar na abertura. O Maluf pagando esse criolo pra vir aqui
dizer isso?, comentou um não identificado jornalista. (ibid.)
48
O termo Malungo significa companheiro e foi inspirado no Daruê Malungo , grupo afro-percussivo
sediado em Olinda-PE forte influenciador dos engenheiros musicais do movimento mangue beat em
Pernambuco. Atentos para as sonoridades afro-percussivas de Olinda-Recife e sintonizados nos ecos
53
Compreendo, portanto, que o Reggae se inscreve numa relação complexa de
intercâmbio e invenção de novas alternativas sociais e políticas mediadas pelo poder
expressivo da música. Nesse sentido, a interpretação que se propõe aqui tenta inserir
novas questões para a compreensão da sociedade baiana à luz, e ao som, destas
tradições inventadas no contexto recente49. Aponta exatamente para a história de
múltiplos enredos e novas tradições musicais, já há muito percebida pela sócioantropologia da música baiana e registrada de modo criterioso pela antropologia
episódica de Goli Guerreiro com uma ressalva básica: em tempos onde a disputa contra
o silêncio (racializado) foi demarcado pela polifonia de cantos e toques auto
identificados com a idéia de negritude é prudente analisar com suspeição a trama alegre
de seus tambores.50
Retomando a periodização sugerida lá atrás percebe-se que é propriamente a
partir deste contexto que se registram o conjunto de trabalhos mais emblemáticos da
influência do Reggae no Brasil. Um dos primeiros registros desta presença na Bahia é, o
raro álbum Bahia Jamaica de Chico Evangelista e Jorge Alfredo, que consagrou
canções como “Rasta Pé”, “Reggae da Independência” em festivais de música e nas
rádios. O título do álbum é singularmente sugestivo à época com seu o apelo à
identificação entre duas regiões do atlântico fundidas num mesmo substantivo composto
(Bahia Jamaica). A faixa homônima tem uma letra extremamente curiosa que tematiza
a sabedoria ancestral das “muitas canções que falam do mar” e o encontro dos países
pelo bater dos tambores:
BAHIA JAMAICA
(Chico Evangelista e Jorge Alfredo, 1979-80)
Quem falou
tem a cabeça branca
a pele morena
de muitas canções
que falam do mar
blocos afro e do samba-Raggae da Bahia, sem perder as antenas com o Dub Jamaicano e o afrobeat de
Lagos(Nigéria), deram vida, no ápice do anos 90, a um dos momentos mais expressivos da história
recente da música brasileira. Ver Queiróz, 2000. O fragmento foi extraído da canção “voyager”. Nação
Zumbi. Disco: Futura. Gravadora: Trama. Ano: 2005.
49
Ver Hobsbawn, Eric. & Ranger, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997
50
Guerreiro, Goli. A trama dos tambores: a música afro-pop de Salvador. São Paulo. Editora 34,
2000(coleção todos os cantos). O aborda as trajetórias da música afro-percussiva da Bahia nas últimas
décadas do século XX e sua ascensão para um formato afro-pop-elétrico que provocou uma enorme
polarização da Bahia como centro produtor de música e culturas musicais no Brasil.
54
do mar a Bahia
tambor que bate aqui
tambor que bate lá
Bahia-Jamaica
Um ponto de encontro
Entre eu e você
À altura da estrofe: “tambor que bate aqui, tambor que bate lá” sobrepõe-se a
sonoridade de atabaques agogôs (em compasso 6/8) num traço característico de alguns
sons rituais do candomblé, que se associa ao argumento central da canção e que se
sintetiza no refrão: “Bahia Jamaica um ponto de encontro entre eu e você”. Esta citação
de sons do candomblé é sintomática de uma musicalidade identificada com a
valorização das expressões e manifestações negras. È presença marcante no Bahia
Jamaica a marcação peculiar e característica do Reggae (compasso 4/4 com o 2º e 4º
tempos fortes nos instrumentos de harmonia, em contraponto com a marcação pulsante
da bateria no 3º tempo) ao lado de linhas percussivas de ijexá, fazendo referência ao
ritmo tocado pelos afoxés de Salvador. A faixa “Reggae da independência” que trata do
2 de julho(marco da independência do Brasil na Bahia do Século XIX) é um outro
exemplo que atesta este argumento. Mais uma vez as sonoridades dos atabaques
xequerês e agogô estão presentes na narrativa musical do festivo histórico. O universo
percussivo está fundido com outros elementos elétricos além do híbrido violão ovation
marcando o Balanço (ou batida) Reggae.
È interessante como algumas imagens do disco ilustram este sentido de
pertencimento mediado pelo “mar”. A contracapa e encarte do álbum trazem fotografias
dentre as quais Chico Evangelista e Jorge Alfredo estão imersos nas águas do mar. Esta
representação é profundamente simbólica uma vez que reforça uma noção de identidade
a partir do atlântico, Este recurso, presente em outras registros fonográficos da década
de 80 ilustra uma posição compartilhada por outros artistas que fazem parte dos
repertórios do protesto negro na Bahia.
Entre estes, destaca-se o Cantor e compositor Lazzo Matumbi. Lazzo é uma das
mais emblemáticas referências da música baiana fora do Brasil. Durante os anos 70 foi
cantor do bloco Afro Ilê Aiyê e ativista da música negra. Sua contribuição à divulgação
das freqüências jamaicanas no Brasil é imprescindível. Profundamente influenciado
55
pelo Reggae, transitou por vários países do Mundo integrando a turnê do jamaicano
Jimmy Cliff.51
Lazzo entra para o mercado fonográfico com o raro Compacto Simples “Salve a
Jamaica” (1981)52 deixando muito explícito, sua aproximação com a tendência
Jamaicana e outras matrizes da música negra. No entanto, em 1983 ao lançar seu
primeiro LP Viver Sentir e amar53, o artista revela sua inclinação polifônica buscando
atingir um público bastante diversificado54. A faixa de abertura “do jeito que seu nego
gosta”, de Zelito Miranda e Lazzo, projetou-o a um reconhecimento maior, aliado ao
fato de ser o disco distribuído pela gravadora multinacional EMI-ODEON. Neste
álbum, O reggae é citado entre os muitos gêneros da música negra interpretados pelo
Cantor.
Um dado importante diz respeito à banda co-rsponsável pelos arranjos de base do
álbum: a Banda Estúdio 5. Em muitas conversas com músicos e produtores, bem como
nas entrevistas realizadas a “Estúdio 5” é citada como uma das primeiras bandas de
Reggae da Bahia. Não por coincidência muitos músicos da Estúdio 5 gravaram outros
álbuns importantes do Reggae baiano, a exemplo de Reggae Resistência de Edson
Gomes(1988) que será analisado mais adiante. Ao se referir à Estúdio 5, o Radialista
Clóvis Rabelo, bem como outros entrevistados, menciona a importância deste grupo
como um dos pioneiros a tocar Reggae na Bahia.
Na verdade há na fala dos entrevistados uma certa polarização em torno deste
dado. O interesse em datar o pioneirismo do “fazer” Reggae na Bahia é, de certo modo
alvo da maioria dos músicos e produtores culturais que pude dialogar. Na fala de Clóvis
Rabelo, que reforça a tese do pioneirismo soteropolitano, é possível perceber uma breve
tansão em torno do Termo Reggae. Em outras palavras, a maior visibilidade dos
músicos de Cachoeira (Edson Gomes, Sine Calmon, Nengo Vieira e outros, deve-se à
maior popularidade que estes ganharam no mercado da música no estado. Entretanto,
Rabelo faz uma ponderação em torno do termo Reggae que me parece plausível
Comentar. Ao referir-se à Estúdio 5 em comparação aos “Remanescentes” grupo de
músicos, compositores e intérpretes da cidade de Cachoeira, Rabelo pondera:
51
Fonte: www.lazzo.com.br . Site visitado em 21/12/07
Lazzo Matumbi. Disco: Salvea Jamaica. Fermata, 1981
53
Lazzo Matumbi. Disco: Viver Sentir e Amar. Pointer discos. 1983
54
No texto da contracapa tem-se: “ritmo, balanço, voz, aranjos e sentimento, tudo isso num fabuloso
disco, cheio de emoção e vontade de mostrar um trabalho capaz de agradar a todos. (...) Texto de José
Maurício Machine.
52
56
...o Studio Cinco era uma banda de reggae, mas ele não tinha aquela filosofia
reggae, prá mim mesmo a primeira a banda de reggae mesmo foi a
Remanescente, porque os caras eram reggae, os caras comia reggae, respirava
reggae.
A ênfase na Remanescentes como um grupo “legítimo” de Reggae pode estar associado
à maneira como os músicos interagiam se colocavam diante da sociedade. Segundo Bárbara
Falcón, os “Remanescentes” de Cachoeira se destacavam pelo estilo de vida coletiva que lhes
renderam além de um aprofundamento razoável nos “fundamentos” da Música Reggae, uma
intensa resignação cristã-religiosa. De todo modo, sabe-se que parte deste grupo de músicos
atuaram na Estúdio cinco e, em parte importante das gravações de Edson Gomes no início de
sua Carreira.55
Opinião diferente atesta o cantor e compositor Jorge de Angélica que registra
uma versão diferenciada e bem disposta do marco inaugural do Reggae baiano. Segundo
ele, a primeira expressão musical do Reggae feito na Bahia teria nascido em Feira de
Santana com a fundação da Banda Gana em início dos anos 80. Jorge de Angélica é
enfático ao situar sua militância no Reggae anos antes da aparição de Edson Gomes
como reconhecido representante do Reggae baiano. Sua fala, revela, como Rabelo um
interesse explícito na hegemonia da fundação do Reggae.
O interessante nestas posições é notar que a disputa pelo pioneirismo cita, como
marco cronológico exatamente a mesma época(início dos anos 80). Isto me leva a
considerar que, se por um lado há um interesse político na disputa pela hegemonia do
marco inaugural, há em comum um contexto que se apresentava favorável à incipiente
proilferação do Reggae como uma música executada por músicos baianos. Em suma, é
propriamente neste contexto que começam a brotar os grupos musicais identificados
com a proposta da musicalidade Reggae.56
Sintomaticamente, ainda nos anos 80, novamente Gilberto Gil, traria ao público
outra referência importante para a edificação da influência do Reggae na música
brasileira. O lançamento de “Raça Humana” (1984) tem forte influência das tecnologias
de gravação e sonoridades utilizadas pelos Jamaicanos. O Este disco, co-produzido por
55
FALCÓN, Maria Bárbara Vieira. O Reggae no Recôncavo Baiano. Remanescentes do Paraguaçu.
Música e Identidade Cultural em Cachoeira. Monografia de Conclusão de Curso. Salvador, UFBa,
Departamento de Antropologia, 2002.
56
É importante citar que neste período são lançados em outras regiões do Brasil trabalhos importantes
com os de Luís Vagner, também um dos pioneiros a gravar Reggae no Brasil.
57
Liminha, inclui uma faixa gravada com os Wailers nos estúdios Tuff Gong de Kingston.
“Vamos fugir”, é uma das canções de maior destaque na obra.
No entanto, outros elementos chamam a atenção neste registro. O primeiro deles
é o uso de timbres de guitarra e sintetizadores além de realçadas freqüências graves e
linhas sinuosas de contrabaixo, a exemplo da canção Homônima ao Álbum. Além
destes, relevantes à compreensão da gama de sentidos em diálogo na produção de um
produto fonográfico, Raça Humana traz uma canção muito ilustrativa da posição do
artista com as políticas culturais afrodescendentes:
A MÃO DA LIMPEZA
(Gilberto Gil, 1984)
O branco inventou que o negro
Quando não suja na entrada
Vai sujar na saída, ê
Imagina só
Vai sujar na saída, ê
Imagina só
Que mentira danada, ê
Na verdade a mão escrava
Passava a vida limpando
O que o branco sujava, ê
Imagina só
O que o branco sujava, ê
Imagina só
O que o negro penava, ê
Mesmo depois de abolida a escravidão
Negra é a mão
De quem faz a limpeza
Lavando a roupa encardida, esfregando o chão
Negra é a mão
É a mão da pureza
Esta leitura musical da História do Brasil, às avessas da historiografia oficial,
denuncia a segregação sócio-racial e aborda a participação d@s negr@s desde as
58
ocupações socialmente desprivilegiadas à edificação de uma sociedade “limpa” do
racismo.
Em linhas gerais, fica visível que a produção fonográfica deste primeiro período
dialogava com um sentido de anti-racismo que reivindicava o reconhecimento do
racismo pela sociedade como um problema histórico por ser reparado. As manifestações
nos discos são ecos de sucessivas movimentações sociais nos mais diversos contextos
urbanos do país.
A “babilônia do sertão” e suas chamas
O silêncio em torno dos movimentos sociais negros na cidade de Feira de Santana está
por ser preenchido57, dado que também se reflete na enorme lacuna de estudos que
tratem do universo sócio-cultural desta cidade (atualmente a segunda maior do estado da
Bahia e um dos maiores centros comerciais do nordeste do Brasil).
Paradoxalmente ao longo das décadas 80 e 90 esta cidade foi palco de intensas
mobilizações político-culturais emergentes em torno da “cultura popular” regional ao
lado de uma singular valorização da negritude e seus agentes como referencial
identitário, como atesta a proliferação de inúmeras entidades ligadas à militância antiracista em paralelo à crescente influência dos estilos musicais transnacionais na
produção cultural local, como indica o surgimento das primeiras bandas de Reggae
locais.
A completa escassez de materiais sobre esta temática é um dado mais do que
sugestivo da necessidade de se pensar sobre a mesma. Analisando panoramicamente
alguns jornais da cidade de meados dos anos 80 até meados dos 90 dei-me conta da
urgente necessidade de produzir um sistemático estudo sobre a produção cultural de
seus agentes nos conflitos sócio-raciais.58 Ainda que provisoriamente não me dedique a
suprir com riqueza de detalhes esta lacuna pretendo dialogar com alguns destes indícios
para compreender quais enredos estão por trás da presença singular do Reggae na
57
O trabalho de Igor Gomes Santos sobre a fundação do Partido dos trabalhadores de Feira de Santana
faz referência breve referência ao papel das entidades negras na economia das relações políticas na
cidade. Ver: SANTOS, Igor Gomes. Na contramão do sentido: origens e trajetória do PT de Feira de
Santana-Bahia(1979-2000). Dissertação de mestrado, Rio de Janeiro, UFF, 2007.
58
Agradeço imensamente a minha companheira Tatiana Farias pelo auxílio solidário na digitalização das
muitas dezenas de páginas e recortes de Jornal, quando de sua pesquisa no arquivo da Biblioteca
Municipal de Feira de Santana.
59
cidade, que é um dos nascedouros do estilo na Bahia, e sua relação com os movimentos
sociais negros no contexto em foco.
As inúmeras referências nos jornais impressos a respeito das manifestações da
cultura negra de Feira de Santana, entre as quais o Reggae é identificado59,
entrecruzadas com algumas informações oriundas de entrevistas60 permitem considerar
que a presença da musica afro-jamaicana naquele contexto urbano remonta, como em
outras regiões do país, a fins dos anos 70 e início dos 80. A influência e cristalização da
musicalidade Reggae naquele contexto, como em quase todos, não se deu sem fraturas e
enfrentamentos. Ao longo dos anos 80 a produção gradativa de Reggae em esteve lado a
lado com as movimentações dos afoxés e outras entidades ligadas à política-cultural
negra. Inúmeras canções gravadas por artistas de Reggae de Feira de Santana, são
oriundas dos repertórios destes. Para além disso, parte considerável, dos compositores e
intérpretes (como Gilsan, Jorge de Angélica, Dionorina, Nunes Natureza, Nilton Rasta
e outros) foram cantores dos afoxés além de co-responsáveis por estas entidades. Em
suma, ao longo das últimas décadas, a música Reggae um dos elos de uma rede de
musicalidades negras que vem compondo o ambiente sócio-cultural de Feira de Santana.
Em uma entrevista do compositor Carlos Pita ao Jornal Feira Hoje, é interessante
observar sua impressão e interpretação poética da influência do Reggae alterando cena
urbana do lugar.
Feira de Santana é a babilônia do Sertão, e o que lhe separa do mar são os
verdes canaviais do Recôncavo, onde muito da cana plantada nasceu da dor de
mais uma chicotada. É que a história se apaga na veloz, e pouco se falam dos
nossos ancestrais... Nessa cidade do reconsertão, nessa babylouca new caatinga
eu sinto a presença de reggae, eu vejo jubas de leão, eu vejo rastas...”61
As palavras do artista instigam um olhar mais amplo sobre as influências destas novas
sonoridades negras mundializadas em fruição com elementos de identificação (intra)
regional, como sugerem os interessantes encontros semânticos. Sua ênfase no amargo
passado da plantation “do recôncavo” está articulada à sua leitura do contemporâneo,
onde a presença da estética negra - nas “jubas de leão” e nos “rastas” – insinua a
“presença de Reggae”.
59
É recorrente nos jornais a associação entre o reggae como expressão “do gueto”, “da periferia”, “dos
negros do gueto”.
60
Entrevista com Dionorina. Concedida em novembro de 2007; entrevista com Jorge de Angélica.
Concedida em agosto de 2008.
61
Matéria: “Contrate da miséria e da beleza” Jornal Feira Hoje, 21/03/89
60
Para tentar reconstituir, no entanto, uma História do Reggae de Feira de Santana
é precípuo considerar o universo sócio-cultural-musical da cidade - as micaretas,
lavagens, festas de largo, Bandos anunciadores e mais especificamente, o surgimento
das escolas de Samba e posteriormente dos afoxés - e a relação/conflito que envolve a
presença dos afrodescendentes62. Para não cair em hipóteses imprecisas e “achismos”
desnecessários, evitarei uma genealogia detalhada destas entidades. Desse modo, atento
mais às descrições sobre a relação dos afoxés e o surgimento do Reggae na cidade,
como o farei didaticamente no capítulo posterior.
É importante levar em conta a relevância do rádio, no referido contexto, como
veículo de comunicação-aproximação com as muitas tendências musicais em trânsito no
atlântico negro, logo, como um dos ”meios” para aquele novo contato-interação
cultural-musical. Segundo Jorge de Angélica, por exemplo, foi o rádio que o colocou
pela primeira vez diante do som do reggae:
ouviu uma vez numa rádio AM de Feira, não lembro se foi na Rádio Carioca...
ouvi essa música e fiquei apaixonado pelo ritmo, mas não tive mais
possibilidade de ouvir.”
Por caminhos diferentes o rádio também foi o seu primeiro mediador com o mundo da
música (alguns de seus familiares foram cantores de rádio e o próprio também se
apresentava como cantor infantil), e efetivamente, com o Reggae:
A primeira vez que ouvi “Stir it Up” com the Wailers, bob Marley cantando,
assim... era uma música que me chamava a atenção e me prendia toda vez que
eu ouvia. Às vezes quando eu ouvia, ouvia sempre no programa de big Boy, que
era um programa que tinha de madrugada... de dez à meia noite na rádio
Mundial do Rio... eu ficava procurando pra ouvir por que nesse tempo só ouvia
e rádio... depois começou a aparecer aquelas radiolas de seis pilhas da Phillips
mas não era todo mundo que tinha. Uma vez nós nos juntamos, três amigos pra
comprar. Aí cada fim de semana ficava na mão de um. E durante a semana se
juntava tudo em um lugar pra ficar ouvindo (risos!). Era legal. 63
É plausível registrar que em Feira de Santana (e em outras cidades certamente) tinha-se
o hábito de ouvir, além dos programas de produção local, os programas de rádio de
inúmeras regiões do Brasil e outros países, a exemplo das locuções da BBC de Londres,
para sintonizar-se com as informações do mundo.
62
63
Cf. Angélica, Jorge de. 02/08/08 (entrevista).
Cf. Dionorina,. 02/08/08
61
Se o rádio, os discos, e em certo modo a TV, foram meios facilitadores da
inspiração, pela imagem e sons, com as referenciais transnacionais da culturas negras,
foi a vivência das contradições sociais que incendiaram os ideais destes artistas. Um dos
primeiros exemplos é a fundação das Bandas Gana e Esperança, que já durante a
década de 80, mostrava seus acordes na cidade. A “Gana”, fundada por J. de Angélica,
tinha em sua formação, além do parceiro Tonho Dionorina, um time de músicos que
foram co-responsáveis pela popularização do Reggae, sobretudo entre os bairros
populosos da cidade, o grande público alvo: Nunes natureza, Paulo Monge, Enfezado,
Nilton Rasta, Meire, Pi e outros. A banda Esperança, liderada por Gilsam, militante
negro também ligado aos afoxés da cidade (inclusive até o presente) é outro caso
exemplo da presença Reggae na produção musical de Feira de Santana.
É central também a visível interação de alguns representantes das religiões de
matriz africana na construção deste processo. Basta lembrar que o candomblé foi um
dos principais mananciais identitários para se construir os discursos estético-musicais
que são apresentados pelos blocos afro e afoxés e, neste caso, para a produção local do
Reggae em particular. Para além disso, a filiação direta e indireta desses artistas no culto
afro-brasileiro, marcaria singularmente suas leituras musicais.64
Nas margens do Paraguassú...
Um porto de considerável presença das sonoridades afro-jamaicanas foi, e é, sem
dúvida a cidade de Cachoeira. Situada no Recôncavo baiano, Cachoeira faz parte de um
conjunto de cidades interconectadas, no passado colonial pelas atividades produtivas
das plantagens de cana-de-açucar e Fumo. De todo modo, a paisagem urbana da cidade
tem sido profundamente alterada pelas novas influências e sonoridades das culturas de
massa que, nas últimas décadas do século XX, tem sido forte demarcador de identidades
entre os jovens.
A compreensão desta presença estético-musical vem sendo exaustivamente
analisada pelo trabalho de Bárbara Falcón que desde 2001
desenvolve pesquisas
sobre música e etnicidade entre os grupos da cidade e, mais especialmente, sobre o
Reggae de Cachoeira (Falcón, 2000). Basta citar que artistas como Edson Gomes, Tim
64
Jorge de Angélica registra que “uma mãe-de-Santo” teria financiado alguns instrumentos musicais para
incentivar a fomação da primeira banda de Reggae de Feira de Santana.
62
Tim Gomes, Sine Calmon, Nengo Vieira, Geraldo Cristal e outros são radicados nesta
cidade, são (auto) identificados pela autoria de um gênero Genuíno de “fazer” - no
sentido de tocar - Reggae: o chamado Reggae resistência.
Segundo Falcón, a inserção do ritmo jamaicano na cidade dá-se por influência de
uma conjunção de fatores que incluem: a nova inserção da industria fonográfica no
cotidiano, uma afinidade étnico-identitária, uma vez que a temática da valorização do
negro ganha reverberação numa sociedade marcada por formas veladas, e não menos
cruéis, de discriminação sócio-racial. Como desdobramento deste contato nasceu o
Remanesentes, experiência comunitária musical e religiosa que reunia musicistas
interessados em meditar sobre o evangelho bíblico Cristão, sob a mediação da música
Reggae. Como ponto de encontro e referência, a residência do Músico Nengo Vieira no
bairro da federação em Salvador, no alto das pombas, nº. 53, onde se reuniam outros
artistas à época. Este momento parece bastante emblemático para os caminhos do
Reggae baiano como evidencia a participação de músicos do Remanescente na Banda
Studio 5, uma das primeiras bandas cuja formação se voltava para o Reggae na Bahia.
Este grupo acompanhou artistas como lazzo, e Edson Gomes, com quem gravou os
primeiros álbuns de carreira.
A rigor, a música era um veículo de intermediação para a pregação evangélica à
qual se dedicava o grupo e em torno da qual se reuniam os músicos Sine Calmon,
Marcos Oliveira, Tin Tim gomes e Nengo Vieira, fundadores do Remanescentes. Nas
palavras de Vieira:
“Era tipo um albergue, onde as pessoas conviviam num ambiente sadio,
um ambiente de coletivo, solidário. Se tinha um prato de comida dividia
igualmente pra todo mundo, e isso a gente fazia na prática mesmo. E
essa praticidade foi que nos serviu de suporte não só pra hoje como para
o momento em que nós fundamos o grupo Remanescentes, com a
proposta de evangelizar as pessoas, pregar a palavra de Deus, na
verdade”65
Em uma das canções do Remanescentes, fica registrada a característica do Grupo e sua
inclinação comunitária, religiosa e musical:
65
Nengo Vieira entrevistado por Bárbara Falcón em 10/08/01. Apud Falcón, 2002, p. 29
63
REMANESCENTE
(Nengo Vieira & Tin Tim Gomes, 1992)
Das margens do Paraguaçu
em plena América do Sul
só remanescente ficará
só remanescente ficará
É a semente do amor
que brota nesta geração
buscando a luz, a paz, a vida e a união
E o Senhor já diz em sua palavra
e com sua autoridade
só remanescente ficará
só remanescente ficará
só remanescente ficará, meu Deus!
Paralelamente, emerge da mesma cidade o compositor e cantor Edson Gomes que ao
longo dos anos 80 despontou como grande aposta da música Reggae no Brasil, fato que
se consolidou com o lançamento de seu primeiro álbum em 1988. Um dos mais
conhecidos músicos do Reggae no Brasil, começou sua vida profissional, como auxiliar
de pedreiro na área da construção civil.66 O gosto pelo futebol o projetou para atuação
no time Cruzeiro (de cachoeira) pelo qual disputou campeonatos locais.67
A influência da música negra brasileira lhe rendeu no início de sua carreira o apelido
de Tim Maia, dadas canções deste que é uma de suas principais referências. Ao longo
dos anos 70 atuava como intérprete em conjuntos musicais da cidade de cachoeira onde
venceu algumas premiações em festivais estudantis.
Ao lado do parceiro Nengo Vieira foi aos poucos conhecendo a música afrojamaicana e arriscando as primeiras releituras do gênero. Em início dos anos 80 já se
66
67
Ibid.
“Perfil Edson Gomes” . Folha do Reggae, nº. 2, fevereiro de 1997
64
apresentava em alguns eventos do circuito artístico-cultural de Salvador onde foi aos
poucos ganhando visibilidade.68 Nas palavras do compositor:
“Em 1983 eu percebi que o reggae era o veiculo certo para levar
minhas idéias e convicções. Como um elemento negro, eu tinha a opção
do Samba, mas não achava esse gênero com tradição de luta pelos
direitos dos oprimidos. Então busquei um gênero musical que casa-se
com meu propósito de protestar contra todas as discriminações”.69
Em 1985, a premiação no festival “Canta Bahia” como melhor intérprete lhe
rendeu a gravação do primeiro Compacto com a canção “Rastafary”. Já neste período, a
rejeição de alguns segmentos da imprensa baiana, a exemplo da FM Itapoan, freava
saltos maiores do artista. Somente em 1987 com a premiação do Troféu Caimmy,
novamente como melhor intérprete, abriu-lhe as portas para a gravação do primeiro
disco lançado em 1988, o “Reggae Resistência” cujo título demonstra a completa
adoção do Reggae como estilo definidor da carreira de Edson Gomes.70
De todo modo, esta paulatina descoberta do “reggae” remonta a um conjunto de
processos que guardam relação com outros movimentos político-culturais negros da
Bahia. É o que será tratado a seguir.
68
A exemplo do projeto “bairro a bairro” com a banda Studio 5. In Folha do Reggae, ibid.
Revista On line. Agradeço a Bárbara Falcón pela atenção com este e tantos outros materiais de grande
utilidade para esta pesquisa.
70
Ibid. Nas entrevistas com Clóvis Rabelo(14/11/2006) e Jorge de Angélica (02/08/2008) e outras fontes
impressas, como o jornal citado acima, é freqüente a informação de que Edson Gomes vai paulatinamente
aderindo à música Reggae como estilo musical definitivo. O próprio compositor destaca os caminhos
dessa opção:
69
65
Localização das cidades conectadas pela produção da Música Reggae
(Cachoeira - São Félix, Feira de Santana e Salvador) na Bahia.
66
67
68
69
FAIXA 3 :
“AFRICA A LA JAMAICA
MÚSICA DA RAÇA”
Don't care where you come from
As long as you're a black man
You're an African
No mind your nationality
You have got the identity
of an African
(…)'Cause if you come Trinidad
And if you come from Nassau
And if you come from Cuba
You're an African
No mind your complexion
There is no rejection
You're an African
(trecho da canção “African” de Peter Tosh)
“... mesmo remetendo a fatores que teriam sido criados no
passado, o processo contínuo de (re)contrução das identidades
étnicas está em conexão com as idéias [e conflitos] da
Globalização e da fragmentação do mundo pós- moderno.
Portanto, embora o passado – e neste caso específico, o passado
africano – seja constantemente resgatado, é a experiência
comum dos atores no presente, na chamada ‘alta modernidade’,
que produz a matéria-prima para a construção das
identidades.”
(Patrícia Pinho, 2004. P. 67)
“Nasci no Brasil, mas me considero africano”.
(Edson Gomes, em 2006)
70
A (re)invenção da África e do ser negro na diáspora sob o ponto de vista da
Musica Reggae da Bahia constituem o ponto central deste capítulo. Dialogo com a
produção musical do Reggae e sua filiação com o Samba-Reggae na Bahia tentando
compreender a construção situada de imagens em torno de uma História da áfrica e seus
“descendentes” na diáspora negra, no contexto das décadas de 80 e 90 que foram
reaproveitadas como marco étnico-identitário pelos movimentos negros.
As muitas expressões de identidades negras auto-referenciadas insinuam que os
séculos de colonização e colonialismo não imputaram as permanências históricas,
epistemológicas e culturais das muitas populações subjugadas à escravidão, se bem que
lhes impôs cicatrizes marcantes. A busca pelos laços matriciais e ancestrais diacríticos
que “preservados”, de certo modo constituem o universo das culturas negras na
Diáspora, sempre inseriu a África como referencial político, geográfico, histórico,
simbólico. Cabe neste capítulo inferir sobre a (re) construção das identidades negras em
conexão com novos usos e sentidos políticos e simbólicos do termo “África” no
contexto da globalização, ou seja, representações singulares de um território
heterogêneo e multifacetado.
Para além de um tema acadêmico este é um processo que tem mobilizado
milhares de agentes, desde as multinacionais capitalistas aos movimentos sociais, em
prol da construção das tais novas perspectivas e contornos mundiais. De fato, não
podemos compreender a nova ordem global (ou “globalitarismo”) sem levar em conta
os séculos de colonização e subjugo das monarquias nacionais européias sob os as
Américas e o continente africano. Para além disso creio que tem se tornado cada vez
mais impreciso falar em globalização no singular, uma vez que crescentes estudos vem
apontando a relevância das conexões e trocas “sul-sul” problematizando, portanto, a
noção de centro-periferia como modelo explicativo único e as novas respostas a este
cenário multicentrado.
Autores com Sansone (2000) têm provocado outras hipóteses sobre a relação
Global-local enxergando o papel, ainda que incipiente, das “trocas horizontais”, nos
fluxos globais de símbolos e mercadoria na base da cultura negra. Para ele, as
interpretações em torno da “África” e dos símbolos de matriz africana tem papel central
na produção de uma nova geopolítica da cultura onde a Bahia é um centro referêncial.
Este fenômeno estaria ligado ao surgimento de uma série de “políticas de identidade”, o
que chama de “nova onda étnica”, que foi desdobramento do processo de
redemocratização do país a partir dos anos 80. Sansone aponta ainda que, parte desta
71
identificação com um tipo de “África” que se tem no Brasil e particularmente na Bahia
foi produzido sob influência dos muitos pesquisadores estrangeiros – Como Melville
Herskovits, Roger, Bastide e Pierre Verger - cujos olhares quase sempre atentavam
para os “traços culturais”, “hábitos sociais” e outras formas de “africanismos”.71
A respeito dos olhares sobre a cultura africana, que pode ser tranquilamente lida
como afro-americana também, Femi Ojo-Ade (1995) ressalta dois extremos
interpretativos: de um ponto de vista “escandalosamente falso e racista” inspirado nos
“conquistadores”, a visão reducionista de um “Ethos africano” primitivo, quintessencial
e selvagem; de outro lado os “defensores da áfrica” (de todas as partes do mundo,
inclusive alguns intelectuais africanos) que “acabaram proclamando-a como monólito
paradisíaco e idílico” o que “não é menos escandaloso por sua natureza simplista”
(1995, p. 37-38).
A avaliação descontente de Ojo-Ade é tão cabível quanto
questionável, pois instiga perguntamos sobre as relações sociais que são/foram pano de
fundo destas posições. A premissa do “conquistador, tão longamente ratificada,
dispensa maiores comentários uma vez que há, ainda, infelizmente, larga produção
bibliográfica e paradidática que lhes dá suporte72. Tentando entender o outro lado da
questão, acrescento que há, no interior de determinadas visões mais do que puro
simplismo. No terreno da cultura baiana dos anos 90, o esforço político-cultural de
valorização das imagens em torno da África na dimensão da produção musical projetou
em muitos casos uma visão largamente mitificada, mas não necessariamente estanque.
A predominante crença em uma “áfrica-fonte-de-todo-saber” presente nos discursos dos
Blocos afro-carnavalescos, como identificou Patrícia Pinho (2004) é um exemplo
concreto deste fenômeno. Analisando criticamente estas “falas” e sob a análise dos
documentos fonográfico-musicais mais adiante, sugiro que alguns discursos
“afrocentrados” são menos uma declaração simplista e mais uma resposta possível ao
mito sobrepairante da europa-fonte-de-todo-saber. Há muitos sentidos em jogo neste
novo olhar, para além da dualidade aparente, sobretudo se considerada a intensa
mobilização artística no enfrentamento das ostensivas imagens depreciativas do negro,
presente em grande parte das produções veiculadas pelos meios de comunicação da
71
Sansone, 2004, p. 100. ver também: Sansone, 2000(“os objetos da cultura negra. Consumo,
mercantilização, globalização e criação de culturas negras no Brasil”).
72
SILVA, Ana Célia da. Desconstruíndo a discriminação do negro no Livro Didático. Salvador,
EDUFBA, 2001. Não nos esqueçamos que a alteração na Lei de Diretrizes e Bases da Educação brasileira
provocada pela lei 10.639/1997 e novamente modificada em maio de 2008, resulta de intensas
mobilizações para reparar, a partir da educação e dos materiais didáticos, esta dívida histórica.
72
sociedade brasileira ao longo das últimas décadas do século passado.73 Este processo de
disputa no campo dos significados(e para alem dele) é compreendido aqui como
reafricanização que segundo Osmundo Pinho é
...a nova inflexão dada à agência (agency) social, política e cultural
afrodescendente em Salvador[e em outras cidades da Bahia como pude
observar, acrescento], marcada pelo uso de símbolos ligados à
africanidade e por uma interação determinada com a modernização
seletiva brasileira, caracterizada, ao mesmo tempo, pela conexão
desterritorializada com fluxos simbólicos mundiais e da diáspora (2005,
p. 127-128).
Identifico que a busca pela África como paradoxo e contracultura do extremo
ocidente, remonta também aos movimentos negros na virada dos séculos XIX para XX,
destacadamente com o surgimento e circulação das idéias pan-africanistas. Alguns
autores defendem que a América é o expoente do nascimento e divulgação das idéias de
retorno à África (Santos, 1968; Howe, 2000) como ilustra a gama de movimentos e
lideranças que recolocaram as demandas e questões das populações negras nos debates
internacionais de direitos humanos. A atuação e as produções de Intelectuais como
Marcus Garvey, Aimé Cesáire, W.E.B. Du Bois e tantos outros que investiram
profundamente em compreender os muitos legados herdados das sociedades africanas
pelos seus descendentes espalhados no Novo Mundo confirmam esta opinião. Neste
esforço, contribuíram para a constituição de novas tradições sedimentadas numa “África
imaginada”, vista do Caribe (e outras margens do atlântico) que agitaram os primeiros
tempos do século XX colocando “na mesa das novas sociabilidades uma compreensão
de alteridade marcada pela pluralidade étnica”.74 Estes movimentos ressignificaram a
noção pejorativa e essencialista construída (pelas muitas linhagens do pensamento
social europeu) em torno da História da África e de seus sujeitos de origem, destacando
as contribuições dos negros à construção da modernidade.
Autores como Eduardo Santos (1968), chegaram a afirmar que o panafricanismo, em alguns casos, constituiu-se num racismo às avessas assemelhando-se à
movimentos contemporâneos de ódio racial e à indubitável presença da noção de raça
73
Ver o interessante vídeo-documentário de Joel Zito de Araújo. A negação do Brasil: o negro na
teledramaturgia brasileira. Além da Publicação em formato de livro com título homônimo.
74
Como lembrou A. Godi em uma homenagem póstuma ao poeta e militante precursor do movimento
“negritud”, Aimé Cesáire : “Abril vai e Aimé fica”. Jornal A Tarde. Salvador, 24/05/08.
73
entrincheirada nos debates sobre direitos civis entre negros e brancos na América.
Analisando os movimentos de emigração de libertos para a colônia de Serra Leoa e
Libéria, o autor nota que a questão da criação destes “refúgios coloniais” ou “Estados
negros” em solo africano já anunciara as políticas de segregação no pós-abolição nas
metrópoles e colônias da Grã-Bretanha, bem como a presença dos interesses
propriamente negros na direção destes movimentos intercontinentais. Apesar das
informações relevantes para a compreensão do chamado sionismo negro, O autor
demonstra um recorrente determinismo racial -
inclusive ao relacionar os “traços
negróides” de Marcus Garvey à sua posição de maior auto-inferiorização e radicalismo
racial, além de reduzir o panafricanismo como uma “identidade completa da raça negra,
numa fraternidade de cor”. Deixa de considerar, portanto, o fato que Garvey esteve mais
próximo de um protonacionalismo negro de afinidades com a noção de raça própria do
seu contexto, em fins do século XIX.
Por tratar-se de uma análise evolucionista e parcial da História, Santos (1968)
encara o garveysmo como “fase” não-racional, onde as noções identitárias não
extrapolam a idéia de raça e menos ainda aponta para novas formulações (como
“negritude” de Sartre, Senghor e outros), em contraposição às teorias “racionais”,
político defendido por pensadores como W.E.B. Du Bois e seus seguintes. Entendo que
argumentos desta natureza que opõem razão-emoção, além de um grande reducionismo
de interpretação, reforçam uma certa trajetória do pensamento racial no período
colonial, onde era amplamente questionável a capacidade de pensar racionalmente do
negro africano(Desai, 2001, p. 20-21).
No Brasil esta ligação memorial com a África também foi tematizada por algumas
entidades carnavalescas e outras agremiações do gênero entre fins do Século XIX e
início do XX. Raphael Vieira Filho (1997) analisa entre os “folguedos negros” a
presença marcante de clubes como os Pândegos da África e do Clube da Embaixada
Africana. Este último, fundado em 1895, desfilou nos festivos do carnaval de 1897
homenageando Independência do Império da Etiópia, diante da notícia da vitória deste
sobre as tropas Italianas na luta contra o neocolonialismo europeu em 1896.
74
Mapa do continente
africano sob ofensiva
da
partilha
neocolonial européia .
Em
destaque
o
Império independente
da Etiópia.
Fonte: MACKENZIE, A
partilha da África (18801900) e o imperialismo
europeu no século XIX.
São Paulo, Ática,(Série
Princípios, 1994.
O manifesto da Embaixada publicado nos jornais Correio de Notícias (27/02/1897) e A
Bahia (28/02/1897) registra a posição política na homenagem da entidade a partir da
organização do cortejo:
...o préstito está assim organisado:
Seguir-se-há bem organisada banda de musica, preparada pela “digna
colônia africana desta cidade” para acompanhar a Embaixada. Trajará
notável costume algeriano, executando em seu trajecto os dobrados
Fortunato Santos, Menelik, Makonem, etc. (...) Dois Trombeiros
75
trajando costume abyssinio, anunciarão a passagem do victorioso
Menelik, negu dos negus, que por homenagem ao Rei da Zululandia
empunhará o glorioso estandarte da Embaixada Africana(...) O negus
dos negus será acompanhado por dois ministros, os quaes trajarão rico
vestuário de gala. ...seis Ras (chefes etíopes) empunhando espadas
formarão a guarda de honra Imperial.75
A homenagem a Menelik II, então imperador da Etiópia comprova a ligação dos
negros de Salvador com os acontecimentos do continente africano em fins do século
XIX, fenômeno que se revela também no relativo fluxo de africanos entre os portos de
Lagos (Nigéria) e Salvador.76 Cabe salientar ainda que a Embaixada e outros clubes
negros da época mostravam uma imagem da África que convergia estrategicamente
para os ideais de “civilização” da sociedade da época, e presentes dos desfiles no
“Carnaval Moderno da Bahia”. Esta estratégia representava uma contraposição sócioracial à hegemonia da elite dominante - representada pelos Clubes freqüentados
exclusivamente pelos “brancos”, como o Cruz Vermelha – uma vez que ganhava notória
aceitação pública como se registra nos veículos da imprensa local.77
Sabemos que este fato histórico trouxe incitou na América as idéias de “retorno”
mítico sobre a África (a começar pelo nascimento do Panafricanismo na Jamaica) que se
registraram, em grande parte da produção musical do Reggae. De todo modo, o olhar
para esse exemplo, deve guardar as devidas proporções que o distanciam, no tempo
histórico, do contexto que ora se apresentava em fins do Século XX, sob o qual venho
tecer as análises a seguir.
“...os Guerrilheiros da Jamaica vão atacar”
Na Bahia da segunda metade do século XX, as intensas mobilizações em torno de
novas identidades negras inspiradas numa concepção “africana” de mundo tem relação
com o contexto dos movimentos pela descolonização “das mentes e povos” do
75
In Vieira Filho, 1997. p. 45
Arquivo Público do Estado da Bahia. Livro de entrada e saída de passageiros do porto de Salvador
(1896-1897) v. Ibib. P. 47
77
Ver as análises de Raphael Viera Filho sobre os Jornais das época no artigo já citado (2007. pp. 48-49)
76
76
continente africano (Hall, 2000) – o que incluía guerras civis em quase todos os
territórios nacionais do continente – bem como pelas lutas em prol dos Direitos Civis
em toda a América, com maior visibilidade nos Estados Unidos, além das trilhas
sonoras consoantes com este fenômeno: o Funk e Soul music e o Reggae que ganhava
proeminência nos mercado fonográfico e programas de Rádio. O álbum Survival de Bob
Marley and the Wailers (Island, 1979) é um registro sintomático deste momento.
No Brasil, este processo contou com a movimentação de inúmeros ativistas negros
das mais diversas áreas e artes e foi amplamente marcado pelo registro musical, como
analisou “Salloma” Silva (2000). As muitas Áfricas reinventadas aqui, foram reveladas
ao longo de um processo onde parte da produção cultural, e portanto a música, se
erguiam contra a nova ofensiva do capitalismo pós-guerra sobre o continente africano e
tomando-o como referência contra toda a desigualdade sócio-racial da sociedade
brasileira. Em outras palavras, as canções, e seus sujeitos (protagonistas ou
coadjuvantes), se erguiam contra “a memória de uma certa ocidentalidade americana e
de uma nacionalidade brasileira embranquecida” fazendo reapropriações
da
historiografia e trazendo novas leituras fundamentadas num referencial sobre a África
que destoava do establishment e sintonizava-se com determinados seguimentos da
produção intelectual negra. 78
Para além destas novas tradições, a influência das sonoridades negras(e seus
conteúdos político-culturais) do Funk, Soul e do Reggae, alterariam substancialmente
este processo. Nas valiosas notas de Carnaval Ijexá, Antonio Risério(1981) registrou
este novo cenário-cadinho de africanidades, onde coexistiam as revisitadas tradições de
matriz africana em consonância com a circulação global de ritmos afro-americanos no
contexto da segunda metade da década de 70. Estas matrizes transnacionais em relação
ao enfrentamento da realidade local-nacional foram a matéria prima para o surgimento
dos blocos afro e mais especificamente do Ilê Aiyê. Esta leitura criativa foi
profundamente incômoda à sociedade dominante da época como fica evidenciado um
dos registros da imprensa local, veiculados no Jornal A tarde, sobre o desfile do Ilê
Aiyê em 1974:
Conduzindo cartazes onde se liam inscrições tais como: “Mundo Negro, “Black
Power”, “Negro para você”, etc. o bloco Ilê Aiyê, apelidado de “Bloco do
78
Salloma (2000. p. 80) destaca a interessante conexão as imagens sobre a áfrica (a partir do Egito)
presentes em inúmeras canções, com a conhecida tese (de doutoramento) de Cheik Anta Diop que
também “recupera” as relações do Egito com os povos africanos.
77
Racismo”, proporcionou um feio espetáculo neste carnaval. Além da imprópria
exploração do tema de imitação norte-americana, revelando uma enorme falta
de imaginação, uma vez que em nosso país existe uma infinidade de motivos a
serem explorados, os integrantes do Ilê Aiyê – todos de cor – chegaram até a
gozação dos brancos e demais pessoas que observavam o palanque oficial. (...)
Não temos, felizmente, problemas raciais. Esta é uma das grandes felicidades do
povo brasileiro. A harmonia que reina entre as parcelas provenientes das
diferentes etnias, constitui, está claro, um dos motivos de inconformidade dos
agentes de irritação que bem gostaria de somar aos propósitos da luta de Classes
o espetáculo da luta de raças. Mas isto no Brasil eles não conseguem. 79
A reação do Jornal (que traduz a impressão dos agentes e, de certo modo, de
parte do público leitor) revela a uma ideologia dominante calcada no “mito da
democracia Racial” que contestava o uso da temática norte-americana, no tocante à
questão das relações raciais. Este fenômeno dos movimentos negros, pôde ser registrado
em inúmeros outros estados brasileiros e foi percebido pelas atenções de alguns
intelectuais antenados com o novo quadro. Osmundo Pinho (2005) ressalta que,
contemporâneo à publicação de Risério, Carlos Benedito R. Silva apresentara
pioneiramente uma comunicação sobre o movimento Black Soul de Campinas no GT
“temas e problemas da população negra no Brasil”80, onde analisava que as formas
modernas
e
transnacionais
da
cultura
negra
passavam
a
operar
como
articuladoras/mediadoras da identidade negra, para além das formas “tradicionais” de
cultura negra entendidas como “de origem africana”. As formas modernas e
transnacionais de cultura negra passariam, a partir desse momento, a operar “como uma
manifestação cultural que os identificava de alguma forma (pelos tipos de roupa, dança
música, etc.)”81. impressão que é marca definitiva de sua produção intetectual. em
exemplos como o clássico estudo sobre o Reggae de São Luís do Maranhão.82
79
Citado por SOUZA JÚNIOR, Walter Altino, 2008, p. 21-22. Sobre o impacto deste primeiro desfile na
imprensa baiana ver SILVA, Jônatas C. da. “História de lutas negras: memória do surgimento do
Movimento Negro na Bahia”. In: REIS, João José (org.). A escravidão e invenção da liberdade. São
Paulo, Brasiliense, 1988 pp. 275-288.
80
Pinho, 2005, p. 133
81
Esta análise foi reforçada em artigo publicado posteriormente. Ver SILVA, Carlos Benedito Rodrigues.
“Black Soul: aglutinação espontânea e identidade étnica”. In: Encontro da Associação Nacional de PósGraduação e Pesquisa em Ciências Sociais(ANPOCS), 4, 1984, Caxambu, MG. Ciências Sociais:
compêndio de comunicações...
Caxambu, 1984. v. 2. 1984 citado por Pinho, 2005. p. 133
82
“Da terra das primaveras à ilha do Amor: Reggae, lazer e identidade cultural em São Luís-MA, 1995,
78
Não posso deixar de comentar o uso aparentemente polarizado de termos como
tradição e modernidade revela, a meu ver, menos uma hierarquia (e dicotomia) entre
eles e mais a tentativa de entender a dinâmica que girava no interior das transformações
socioculturais do período. Enxergando com os olhos de hoje, compreendo que utilização
do termo tradição já àquela época não implicava a manifestação estática expressões da
cultura, o que se revela na aplicação do termo moderno pode ser traduzida como
“invenção de novas tradições”, tendência que mais tarde seria amplamente debatida por
alguns teóricos83
E suma, esta tendência - sintomática de um novo olhar acadêmico sobre a
música - passou a fazer parte de inúmeros outros trabalhos das Ciências Humanas e
Sociais brasileiras (Godi, 1991 e 2001; Pinho, 1997; Lima, 1997; Veiga, 1998, Vianna,
1988 e 1995, Guerreiro, 2001, Sansone, 1997 e 2004 e muitos outros) que buscavam
compreender o processo de mundialização da música e suas singularidades e
reapropriações no terreno da cultura brasileira. Seguindo esta trilha, hoje é
profundamente frutífero, problematizar a relação entre as tais influências “modernas e
transnacionais” e o florescimento de novas metafísicas de negritude e seus muitos usos
simbólicos das imagens locais e globais sobre a África, e posteriormente sobre a
Jamaica registradas nas canções do Reggae produzido na Bahia.
Nesse sentido, a História do Reggae na Bahia confunde-se em grande parte com
os muitos capítulos da história do movimento negro84 baiano, registrados nas canções
dos blocos afros. Sua presença e cristalização como referência cultural-musical no
cenário Baiano na década de 80 remonta, portanto, aos movimentos culturais negros do
decênio anterior, onde os Blocos afro foram grandes agentes multiplicadores85. Se a
fundação do Ilê Aiyê apontava para um novo capítulo da participação negra na luta por
direitos civis e pelo fim das desigualdades raciais no Brasil, a fundação dos blocos
Olodum e Malê Debalê em 1979 e Muzenza em 1981, representam mais um passo nesta
direção com uma flagrante diferença: estes últimos são co-responsáveis pelo dialogo
ver também o recente Ritmos da identidade: Mestiçagens e sincretismos na cultura do maranhão(2007)
83
Ver Hobsbawn, Eric & Ranger, Terence, 1997
84
Volto a lembrar que o movimento negro é aqui compreendido como o conjunto de mobilizações
políticas, culturais, acadêmicas e artísticas que sedimentavam suas bandeiras de luta pela afirmação do
“ser” negro como catalizador da luta anti-racista no Brasil do século XX, o que insere toda sorte de
manifestações livres à fundação de entidades afro carnavalescas e do chamado Movimento Negro
Unificado(MNU) fundado em 1978. Sobre a história do MNU ver: MOVIMENTO NEGRO
UNIFICADO. MNU: 1978-1988: 10 anos de luta contra o racismo. São Paulo, Confraria do livro, 1988.
85
Sobre esta trajetória, o trabalho de Godi (2001) é, sem dúvida a melhor síntese que se tem. Cf.
“Reggae in Bahia: a case of long-distance belonging”. In Dunn & Perrone, 2001.
79
com a música Reggae e seu manancial simbólico e pela reinterpretação recorrente das
sonoridades da música no contexto da mundialização. Se nos anos 70 a influência das
musicalidades de tendência globalizante da diáspora negra estiveram mais ao alcance do
comportamento e menos interferindo nas formas musicais locais, ao anos 80 assistiram
às mesclas inusitadas das raízes do Samba com o Reggae (Godi, 2001).
No livro Reinvenções da África na Bahia Patrícia Pinho (2004) considera a
nova centralidade que os países do Caribe (Cuba e Jamaica mais especialmente) e EUA
como material-referencial simbólico para as canções e estéticas dos Blocos afro mais
precisamente em fins dos anos 80. Naquele contexto, algumas entidades começavam a
inserir em seus repertórios, canções que contemplavam e enalteciam “países
reconhecidamente marcados por uma forte cultura negra”, em especial do Caribe,
interagindo com uma noção de identidade com a África que incluía a própria Diáspora
africana como manancial simbólico (Pinho, 2004. p. 39). Nesse sentido, a Jamaica e
Cuba passam a ser um novo referencial na geopolítica da negritude que foi sendo
apropriado ao universo cultural baiano, trazendo por parte dos músicos uma busca pelas
sonoridades negras destes territórios do Atlântico.
Na produção musical deste período, vislumbrou-se uma multiplicidade de
apropriações da historiografia que, vista de ponta a cabeça, interagia com novas leituras
da África como “comunidade imaginada”86 no contexto da Diáspora. No carnaval de
1982, o Olodum nos dá um exemplo desta leitura desfilando com o Tema “Guiné Bissau
- Estrela da Revolução Africana” e entoando a canção “Reggae do Olodum” de Alírio
Tumbaê que menciona em um dos trechos:
Toda Negrada
Não vai sobrar nenhum
Dançando Reggae
Sexta-Feira no Olodum(...)87
A memória das lutas anti-colonialistas no continente africano aqui está fundida a
uma identidade negra que encontra no Reggae um elemento aglutinador. Cabe lembrar
que a esta altura o Reggae ainda não gozava de maior visibilidade nas rádios ou lojas de
86
Parafraseando o sugestivo trabalho de ANDERSON, Benedict. Nação e consciência Nacional. São
Paulo, Ática, 1989.
87
In: Olodum, Carnaval, cultura e negritude(1979-2005). RODRIGUES, João Jorge e MENDES, Nelson
(org.), 2005. p. 339. Agradeço imensamente à profª. e colega Joelma pela sugestão(e empréstimo!) deste
precioso material.
80
disco sendo executado “nas vitrolas de alguns negros antenados, e imersos na militância
étnica” ou girando nos prostíbulos e bares do antigo “Maciel-Pelourinho”, território de
Salvador onde nasce a entidade Carnavalesca e que se tornou, posteriormente um dos
cartões de visitas da cidade88. A sintonia com o universo afro-caribenho ficou registrada
também em canções entoadas no Carnaval de 1986 (com o tema Cuba) como “um povo
comum pensar” de Suka (1986) que evoca uma noção imaginada de identidade negra
latino-americana:
Olha esse som Latino
É de lá e Cuba
Onde pra ter direitos
Nada nos custa não
Latinamente um povo negro a cantar
Bate em minha mente
Um povo em comum pensar(...)89
Cuba é vista inusitadamente como referência política e étnico-identitária,. A canção traz
uma leitura do quadro da política internacional, em sintonia com a posição geopolítica
do país caribenho no contesto da guerra Fria – um estado Socialista, acossado pelo
embargo econômico dos EUA e visto, por outro lado por centenas de movimentos
sociais como experiência democrática a ser seguida. Em associação com estas questões,
a imagem construída em torno do canto latino de “um povo negro” “em comum
pensar”, sugere uma identificação polifônica, quando provoca o ouvinte a levar em
conta os traços de africanidade que une as duas realidades nacionais. Exemplo parecido
aparece em Sueños Lejos (1986), de Tosta Passarinho:
Canta Cuba Olodum
Cuba encanta
Espanta os males, pra beleza conquistar
Cuba te vejo daqui
Mesmo sem ter ido lá
Meu passaporte brasileiro carimbado
Me proibindo de em Cuba entrar
88
89
Godi, 2001. Os trechos citados são traduções livres do artigo publicado originalmente em Inglês.
Ibid. p. 320.
81
É uma ofensa a Cuba
Um desrespeito a mim
Vejo o projeto Mamnba90
Sou mais o projeto Mamnba
Mama Cuba
Mambo Cuba
No carnaval daqui e de lá
Mama Cuba
Mambo Cuba
Manda um fiel, Fidel
Voar pra cá
Pra essa zorra melhorar91
A celebração da Cuba Revolucionária presente nesta canção contracena com as
muitas chamadas identitárias a partir de expressões como “Mama Cuba”, que parece
parafrasear “mama áfrica”. Este dado me instiga considerar o caráter dinâmico e situado
do uso político dessas categorias identitárias de negritude reinventadas na Diáspora. O
argumento de Suka e tantos outros compositores, entoado pelo Olodum em praça
pública vai ao encontro de outras tentativas de mapear possíveis conexões (“comum
pensar”) afro-latino. Não é a toa que Lélia González(1988) tenha se preocupado em
compreender esta relação buscando uma categorias de análise que mensurasse a História
e vida das populações afrodescendentes no contexto (afro)latino-americano, tema até o
presente pouco abordado.
A categoria de “Amefricanidade” é a tentativa de propor uma síntese analítica
dos impactos do colonialismo europeu sobre os continentes africano e americano (e seus
agentes), e dos novos impactos da reestruturação social decorrente do processo de
emancipação política iniciado no século XIX que reificou uma “nova” hierarquia racial
baseada na ideologia da “superioridade branca” (Lander,2000; Quijano, 2000;
Hanchard, 2001). Gonzáles (1988), reconhece - e este é um ponto crucial do artigo – a
experiência histórica que envolve os continentes e problematiza a emergência de
90
Projeto Mamnba (Mapeamento de Sítios e Monumentos Religiosos Negros da Bahia) foi realizado
entre os anos de 1982 a 1987, sob a corrdenação dos antropólogos Ordep Serra(UFBA) e Olympio Serra.
A partir de um convênio entre a antiga Fundação Nacional Pró-Memória e a Prefeitura Municipal de
Salvador, o levantamento contabilizou cerca de duas mil sedes de cultos afro-brasileiros somente na
cidade de Salvador. Ver: SERRA, Ordep. Monumentos negros: uma experiência. Salvador, UFBA,
Revista afro-ásia, nº. 033, 2005, pp. 169-205
91
Ibid. p. 319
82
relações sociais(e identidades) fundidas neste “espaço” que tornaria plausível pensar em
laços comuns entre as populações negras da América latina. Arriscaria dizer que, por
caminhos diferentes e motivações próximas compositor-músico, está em jogo a
compreensão de nossas diferenças tomando por base o traço de africanidade como
similitude à realidade Caribenha. Imagino que este é um debate que ainda pode render
mais considerações.
Este tipo de referencial esteve presente em grande parte dos discursos estáticomusicais do Reggae produzida no Brasil (dadas as proporções na Jamaica também).
Nadando contra as correntes, a busca pela “áfrica mãe”, inseria a Jamaica como parada
obrigatória, e posteriormente como destino propriamente dito. Vista como terra do
Reggae e de ícones da música negra como Bob Marley, Peter Tosh e Jimmy Cliff,
Linton Kwesi Johnson, a Jamaica, e sua história moderna também foi alvo de inúmeras
canções dos blocos afro e de artistas ligados ao Reggae na Bahia situadas entre os anos
80 e 90.
Entre os blocos afro de Salvador, o Muzenza, fundado em 1981, tem uma
singular relação com a Musicalidade Reggae. Mais conhecido como Muzenza do
Reggae, ou “o mestre do Reggae”92, foi uma das entidades que se mobilizou em torno
da valorização da música e cultura afro-jamaicana como contracultura negra da
Diáspora, um sinal maior de afinidade estética, política e musical (Veiga, 1997). É o que
se verifica no LP intitulado “Muzenza do Reggae” gravado em 1988.93
O elenco de questões abordadas nas canções deste álbum sinalizam obviamente para
o contexto que se inseriu o mesmo. Não se pode esquecer que 1988 foi palco de tensões
das mais diversas ordens no Brasil e Na América Latina.
No quadro internacional, assistia-se, por um lado, à crescente e anunciada derrocada
do Leste (soviético) europeu, e por outro, aos muitos levantes guerrilheiros armados que
efervesciam a América latina em países como a Bolívia, Venezuela e Nicarágua, além
dos conflitos civis em países do Continente africano como Moçambique, Angola e
África do Sul. No Brasil, vivia-se sob a expectativa da promulgação de uma
constituição nacional, que foi produto de intensas movimentações civis com o fim do
Regime Militar e que renderia os princípios norteadores do tão esperado pleito eleitoral
presidencial, depois de décadas de violência política e social. Do ponto de Vista dos
movimentos negros este foi um momento crucial de disputa contra as comemorações do
92
93
Cf. ata de fundação. Ver, Veiga: 1997, p. 134..
Muzenza do Reggae. Disco: Muzenza do Reggae. Gravadora: Continental, 1988.
83
Centenário da publicação da Lei Áurea e seu silêncio à história do negro e,
consequentemente às políticas de reparação social e reconhecimento do Racismo com
um problema da sociedade brasileira.
É propriamente sob este prisma que as 10 faixas do álbum desenrolam suas
mensagens de protesto. O álbum apresenta uma leitura da África, mencionando o
quadro das guerras civis, em sintonia com a luta anti-racista na Bahia e sob a mediação
da Jamaica e da música Reggae como referenciais.
A auto denominação “Guerrilheiros da Jamaica” é um exemplo sugestivo desta
leitura multicentrada. O termo guerrilheiro, neste contexto, pode estar associado à
popularidade das guerrilhas armadas em todo o continente Americano. A conjunção
com o termo jamaicano, revela uma apropriação criativa de uma identidade nacional
que serve como recurso étnico-identitário.
É interessante notar, no entanto, que não está presente neste, em outros exemplos, a
busca por uma identidade supranacional latino-americana mas, étnico-referenciada com
a imagem da América central afro-jamaicana difundida pela musica Reggae. Na canção
“América Central” (composição e interpretação de Nego Tenga) esta conexão fica
bastante explícita:
América Central
América Nagô
América Jamaica
Onde o Rei Bob Marley descansou(...)94
Em canções como “guerrilheiros da Jamaica” (Ythamar Tropicália e Roque
Carvalho) e “sexta-feira” (Tatau) o uso desta deixa explícita a leitura de uma identidade
negra que tem na áfrica e na Jamaica fortes referências simbólicos para a edificação do
pertencimento negro. nesta última apresenta-se uma leitura interessante que insere os
Garis, categoria profissional que cuida dos serviços de Higiene sanitária da cidade,
como um segmento representativo desta nova metafísica de negritude:
SEXTA-FEIRA
(Tatau, 1988)
94
Ibid.
84
Sexta, sexta, sexta-feira
os Guerrilheiros da Jamaica vão atacar
Sexta, sexta, sexta-feira
de carnaval
eu vou, eu vou
de Muzenza
as tropas amarram os canhões
Muzenza traz a munição
Os Garis nos faz alertar
Que os guerrilheiros da Jamaica vão atacar.
Os Garis nos faz alertar
Que os guerrilheiros da Jamaica vão atacar95
A Jamaica retratada nas canções é um referencial de identificação étnica, musical e
geopolítica. Em quase todos os casos esta interrelação é representada através do ícone
do Reggae, o jamaicano mais conhecido em todo o mundo, Bob Marley que é motivo de
inúmeras citações musicais. Na canção “Brilho e Beleza” o intérprete faz uma
referência direta à imagem construída em torno do músico, visto como Rei pelos
agentes do bloco afro:
de Bob Marley o converteu num poderoso referencial de identificação com a
cultura negra local figurando ao lado de outros tantos “reis” negros e/ou africanos que
habitaram o universo polifônico do protesto Negro brasileiro. Godi (2001) argumenta
que a Morte de Bob Marley em 11 de maio de 1981 teve também enorme repercussão
no Calendário do movimento negro baiano. Desde então, o Mês de Maio deixa de
guardar exclusivamente a comemoração (e as reações contrárias também) da abolição, e
passa a ser identificado por uma tradição recente revigorada pelos tributos a Bob
Marley. Em Salvador o 11 de maio é o “dia do Reggae”, conforme decretado pela
Câmara Municipal da Cidade.
Entre representações míticas da áfrica e da Jamaica, e auto-narrativas
“apocalípticas”, como sugere Ericivaldo Veiga (1997) o Muzenza teceu, e ainda o faz,
parte considerável das redes que trouxeram o Reggae para o cenário cultural musical de
95
Ibid.
85
Salvador. Uma das canções mais conhecidas do Bloco traça uma imagem exuberante da
passagem do bloco:
...e a infinidade do seu canto trouxe vida
Pra essa raça tão sofrida
raça negra, raça Negra
criticada e oprimida
mas com fé com brilho o Muzenza desceu
e diga valeu
e no beco o menino gritou: Muzenza
é amor, é amor, é amor: Muzenza
e do céu bob Marley Cantou: Muzenza
iô, iô, iô, iô, iô, iô, iô, iô, iô: Muzenza
E a terra tremeu
e o céu mudou de cor
Mudou de cor
E o bloco do Reggae Chegou
Muzenza Jamaica-Salvador
Yes
Jamaica Salvador
O Bloco afro Olodum, como já citado, também tem sua parcela de contribuição
neste processo. Em inúmeras canções do carnaval de 1989(que tematizou a Etiópia)
estiveram presentes refrões e citações da História do Império Etíope em conexão com a
proliferação do panafricanismo e sua relação com a música Reggae96. Um dos exemplos
é a canção “Denúncia”, de Tita Lopes e Lazinho, cujo texto chama a atenção:
Simplesmente ensinando consciente
Abalando a estrutura mundial
96
Gostaria de lembrar, em tempo, que as canções que são apresentadas pelas entidades carnavalescas em
Salvador são apreciadas ao longo dos meses que antecedem a festa momesca nas “quadras” onde os
blocos ensaiam: o Male De Balê, sediado nas imediações do Parque Lagoa do Abaeté, no Bairro de
Itapuã, o Olodum na conhecida terça da Benção, no Pelourinho, o Ilê Aiyê no Curuzu, coração do imenso
bairro da Liberdade foi fundada nos últimos anos a “Senzala do Barro Preto” que comporta um complexo
de atividades sócio-educativas além do espaço destinado aos shows. A partir das primeiras Gravações em
LP das canções destes blocos o Rádio e o mercado de discos passa a ser mais um espaço de disputa pela
visibilidade (e auditibilidade) das canções, e obviamente da divulgação das entidades.
86
Núbia Axum a Etiópia resistente
União poderosa e Cultural
Olodum revela à comunidade
História que o opressor sempre ocultou
Menelik II venceu a batalha
Travada em árdua África Negra
Expulsando italianos de Axum
Livrando-a do colonizador
A sua Façanha logo se espalhou
Outro Rei importante se tornou
Haile Selassiê
É Rastafari
Reinou na Etiópia
Virou filosofia
A Jamaica acolhia
E o Reggae surgia
Impondo outra forma negra de lutar...97
A questão central desta canção é informar-denunciar o silenciamento da historiografia
ocidental (encarnada na expressão “colonizador”) diante da narrativa mítica e teórica
que dá conta do surgimento do Rastafarianismo na Jamaica. Remonta, para tanto, à
guerra travada pelo império da Etiópia - situado no nordeste do continente africano governado por Melenik II em fins do século XIX, que freou o avanço das tropas
Italianas e garantiu a independência, em plena ofensiva neocolonialista européia.
Este episódio foi profundamente resignificado pela vigorosa atuação dos
Missionários negros batistas da Jamaica que associavam o relato mítico e histórico de
personagens da cultura judaico-cristã (o Rei Salomão e da Rainha de Sabá) à terra
prometida e seus descendentes vivos na Etiópia. O tom profético do sionismo negro em
ascenção no mundo anglófono e seu ascetismo intramundano, conclamava os
afrodescendentes a “olhar para a África”, vista como “terra prometida” de onde “em
breve um Rei negro seria coroado” e traria a redenção.98 Alguns autores (Silva, 1995;
Albuquerque, 1997; White,1999) apontam que este argumento ganhou corpo e Alma
quando foi coroado Ras Tafari Makonnen, autoproclamado Imperador da Etiópia, e
97
In Rodrigues & Mendes, 2005 (org)
Palavras do Reverendo James Morris Webb, de Chicago proferidas por Marcus Garvey numa igreja de
Kingston em 1927 segundo White (1999). (Citado por Albuquerque, 1997)
98
87
(auto) intitulado “Rei dos Reis”, Leão conquistador da tribo de Judá” que adotaria em
seguida o Nome Hailé Selassiê (“o poder da Santíssima Trindade”) e cujo manancial
simbólico seria frequentemente utilizado pelos Rastafaris e Reggaemans de todo mundo
nas décadas que se seguiram.
Os desdobramentos deste processo fizeram parte dos conflitos internacionais
entre 1939-45, a chamada 2ª guerra mundial quando a Itália, sob então regime totalitário
nazi-fascista, invade novamente a Etiópia, fato retratado na Canção Etiópia de Edson
Gomes & Banda Cão de Raça, lançada em fins dos anos 90. A narrativa-denúncia do
massacre promovido pelo estado Facista Italiano é resgatada e associada com o
silenciamento da historiografia sobre a África:
ETIÓPIA
(Edson Gomes, 1997)
(...)
Lá na escola não contaram nada
Fizeram questão de esconder
Hoje eles passam como filhos do Deus bom
A gente vai pasando como filhos do mal
(...)
Quando Mussolini invadiu a Etiópia
Foi um rolo compressor esmagador
Com seu exército poderoso
Contra inofensivos guerreiros nativos
Nesta canção ainda prevalece, entretanto, uma imagem do africano “etíope” retratado
como vítima, um pouco diferente de outras retratadas pelo próprio autor ao longo de sua
carreira. Guardadas as devidas críticas, entendo que este registro é sintomático da
centralidade em torno da temática do continente africano, e sua ênfase na Etiópia e no
panafricanismo, para além da década de 80. No mesmo ano em que foi lançado
apocalipse, o Olodum teve como tema do carnaval “Roma Negra. Gladiadores da
negritude”.
Inúmeras canções revisitavam a História da África e a Historia Moderna da Jamaica
colocando o Reggae como “outra forma negra e Lutar” como conclui a canção citada
anteriormente99
99
Trecho da canção citada In: RODRIGUES & MENDES, Nelson (org.), 2005. p. 279.
88
Com exceção do Ilê Aiyê que, optou, inclusive até o presente, pela busca das
tradição mais ligadas ao continente africano, a fundação do Male Debalê (1979)
Muzenza (1981) e Olodum (1979) trouxeram novos capítulos de um pertencimentos à
distância (“long-distance belonging”100) com a áfrica e a Jamaica que fertilizariam a
consolidação do Reggae na Bahia. Não quero dizer, com isso, que a presença decisiva
do Reggae seja conseqüência direta do trabalho blocos Afros. Prefiro arriscar que foi
por interação que estes universos culturais-musicais afrodescendentes se entrelaçaram,
dentro de um contexto de produtivas reelaborações culturais mediadas pela música. Por
um lado, a crescente presença do Reggae no mercado fonográfico brasileiro alterou o
ambiente sócio-cultural na Bahia; por outro, num contexto fecundo de profundas
agitações em torno da valorização do negro sua história, o discurso-estético musical do
primo-afro-jamaicano trazia consigo uma leitura multicentrada da “África” que foi
profundamente reaproveitada. A teoria do Atlântico Negro é, bastante profícua para
analisar este fenômeno uma vez que revela que existem outros pólos de africanidade, ou
negritude “fora da áfrica Mãe ou para além da hegemonia do mundo anglófono”, como
assinala Pinho (2004, p. 56). Esta leitura pode ser percebida, de diferentes modos, como
alguns citados, em diversos registros do Reggae produzido no Brasil, em especial na
Bahia. Em “Dance Reggae” Edson Gomes se refere ao Reggae como “música da raça”
(negra), co-responsável por esta nova inflexão em torno da áfrica (vista da Bahia e)
inspirada na Jamaica. A “África a la Jamaica”, expressão que particularmente sintetiza
o espírito central deste capítulo, serve de parâmetro para compreendermos tantas outras
canções que trilharam o mesmo argumento.
A África no atlântico Negro: outros diálogos
Sem Dúvida, a presença da Musicalidade Reggae e seu universo estético-musical
panafricanista constituíram-se num poderoso referencial para a produção da música
baiana, no interior dos Blocos e, paulatinamente, no surgimento das primeiras
expressões sonoras de um Reggae in Bahia. É importante considerar que esta tendência
não esteve circunscrita aos limites territoriais da Bahia, ganhando eco em outros
100
Cf. Godi, 2001.
89
registros musicais do período, tampouco foi manifesta apenas no interior da produção
musical dos blocos afro.
Algumas leituras mais esporádicas acabaram por registrar este contexto. A
canção “Porto das raças”, composição de Djalma oliveira e Mariano Carvalho, gravada
por Egma na coletânea Reggae in Bahia (Brasildisc, s/d) é uma tentativa de retrarar esta
nova conjuntura sócio-cultural:
Parece que a Jamaica
Fez porto em Salvador
E toda negra baiana quer cantar
Iô iô
Do solo de Mãe África
Emana tanta dor
Pelos guetos, pelos becos
Pelourinho Salvador
Iô iô iô iô iô iô
De todo modo, há que se considerar que a História social do Reggae em terras (e águas)
brasileiras, influenciou e foi infuenciada pelas estas novas “leituras de mundo”
(literalmente falando!) que descolaram a visão idílica sobre o continente africano para
uma imagem diaspórica multicentrada que insere o Caribe e o sul dos EUA como elos
matricial de ancestralidade e identidade étnica, em consonância com os debates
incitados pelas militâncias negras urbanas dos principais centros urbanos ao longo de
toda a década de 80.
O Disco homônimo do grupo Obina Shok gravado em 1986 é um exemplo desta
relação referencial com a Diáspora. Amplamente conhecido e divulgado pelo público e
crítica pelo hit de sucesso “vida” (faixa 01) com participação dos baianos Gilberto Gil e
Gal Costa este produto fonográfico merece atenção pelos seus elementos estéticomusicais e pela sonoridade polirrítmica que o constituem. Lendo-o e ouvindo-o com
detalhe não resisti inseri-lo nesta hall de discussões, ainda que este não faça, a rigor,
parte do conjunto de registros fonográficos produzidos na, ou a partir, de musicistas
baianos. De todo modo, sua referência é aqui fundamental como argumento em seguida.
Ao analisar o encarte e capa deste trabalho, reforço o argumento de que a
afirmação étnico-identitária transcende o registro auditivo e se faz representar nas
muitas linguagens estético-discursivas do disco(Salloma, 2000).
90
Além da capa, composta pela foto-de-apresentação destacando três músicos
negros ostentando penteados e adereços “afro”, o que ao meu ver é assaz representativo,
o encarte é também uma fonte frutífera para compreendermos o uso das linguagens
visuais na produção de referenciais identitários de negritude. De um lado o conjunto de
letras e informações técnicas tendo como pano de fundo o desenho caricático de um
jovem negro portando à tira colo um instrumento elétrico de corda (aparentando ser uma
guitarra...). No lado posterior a imagem de toda a banda está em composição com ao
enorme fundo verde do oceano atlântico num mapa mundi em silueta onde se destacam
nitidamente a América do sul e central, incluindo o as ilhas do caribe, a costa atlântica
do continente africano. Curiosamente o “eixo norte” do mapa mundi está muito
brevemente representado pelo sul dos EUA e, do lado diametralmente oposto, segundo
esta “cartografia” as penísula ibérica e itálica.
A imagem, que sem dúvidas fala por si, é representação visual da tendência
polifônica presente nas muitas sonoridades negras que compõem a obra musical. No
universo de sete canções, 03 tem nítida influência e instrumentação Reggae ao lado de
outros exemplos inspirados na Rumba Cubana e no Zouk Antilhano.
A pulsação rítimica da bateria num casamento com linhas fortes de Contrabaixo
e marcação, em contratempo, dos sintetizadores anunciam a “pegada”101 Reggae à
brasileira da faixa 03 Africâner brother bound102. A letra sugere a solidariedade, ou
“irmandade”, com os sul africanos negros (africaneers) diante do apartheid à vista em
todos os meios e comunicação ao longo dos anos 70 e 80:
Africaner Brother Bound
Quanto tempo ainda mais
Já durou até demais
Que não devia ser jamais
Poeta calou por um dia ou dois
Bandeira arriada pra descansar
O batuque ficou pra depois
Que o coração desenfrear
Quem é que no mundo pode impedir
O sol de nascer e de brilhar
101
Esta expressão é comummente utilizada pelos músicos para definir um determinado estilo musical a
partir do arranjo
102
Canção de Jean Pierre, Henrique Hermeto e Gilberto Gil. In: Obina Shok, RCA, 1986
91
A palmeira de crescer, crescer
a noite na mata de clarear
do lado da gente, nós e nós e nós
Na luta feroz até o fim
A vitória deixará pra trás
Um tempo de Guerra, tempo Ruim
Os conflitos sociais da África do Sul e seu decretado apartheid103 passam a ser uma das
fortes referências apropriadas sobre as lutas no continente africano em fins dos anos 80
90. A palavra cantada que tematiza os terrores dos “irmãos” da África e relaciona à luta
feroz “do lado da gente”, a margem brasileira do atlântico, ganha novo sentido com o
arranjo contagiante do ritmo-afro jamaicano numa leitura multicentrada dos conflitos
raciais, numa dimensão transnacional e diaspórica.
A “experiência comum desses
atores no presente” fornece as questões para a construção de uma identidade negra que
se pretende transnacional. Imagem semelhante está presente em um conjunto de canções
que tematizam a luta anti-racista fazendo deferência aos conflitos raciais da África do
Sul. A canção “Lubambo” gravada na coletânea Reggae in Bahia (Brasidisc, s/d) pelo
autor e intérprete Fred Vieira, também toma partido do conflito sul-africano:
Ei homem branco de Joanesburgo
Você é quem tem que estender a mão
Eu não
Ah África
Ninguém vai tomar
Pois sua riqueza
É do povo do lugar
Em outro exemplo, o autor e intérprete Edson Gomes em conclama o ouvinte e o
“recôncavo”104 à luta pela “libertação” das desigualdades raciais, buscando sintonizar-se
com os movimentos internacionais pela liberdade do ativista Nelson Mandela:
103
regime de distinção racial pela exclusão-separação direta entre negros e brancos existente também em
algumas regiões dos EUA
104
O recôncavo é entendido em linhas gerais como a região predominante da sociedade açucareira, nos
primeiros séculos da colonização e que hoje compreende um conjunto de cidades (dentre as quais
Cachoeira, terra Natal de inúmeros artistas de Reggae como Edson Gomes) num perímetro de cerca de 80
quilômetros de Salvador. Em seu livro Segredos internos, Stuart Schwartz destaca, no entanto, que há
inúmeras opiniões e imprecisões para definir este termo (São Paulo, Cia das letras,1988).Sobre o Reggae
do Recôncavo ver Falcón, 2002.
92
RECÔNCAVO
(Edson Gomes, 1990)
Recôncavo
Pela libertação do homem negro na América
E pelo repúdio do homem branco na África
Vamos lutar pela libertação
Vamos lutar
Avante irmão
Vamos lutar pela libertação
Por uma África livre
Por uma áfrica liberta
Por uma áfrica unida
E todo apoio a Nelson Mendela
Sistema nazista, sistema do diabo
Somos a voz da libertação
Vamos à luta avante
Somos a voz da libertação
Vamos à luta avante
Vale destacar que o termo “irmão” é um recurso político étnico-identitário para situar o
negro num quadro de desigualdades sócio-raciais que transcende o limite do local, e sob
as quais a canção se ergue contra. A temática do apartheid revela uma relativa sintonia
com as pautas dos movimentos negros que, espalhados pelo mundo, encontram no caso
sul-africano uma nova matéria prima para problematizar as desigualdades raciais de seu
lugar de origem.
Em um de seus comentários sobre as identidades negras na Diáspora, Paul
Gilroy parte do exemplo sugestivo da gravação da “Proud of Mandela” realizada em
Londres nos anos 1990105 que, em suas palavras, liga “em uma só música África,
América, Europa e Caribe” (2001. p. 197). Reconstruída a partir da matéria-prima de
chicago a canção, sensivelmente kingstoniana rende homenagens ao ícone Global da
Diáspora [Nelson Mandela]. Cabe destacar, como o faz o autor afro-britânico, que a luta
e libertação do líder sul-africano o tornou um ícone global da luta dos afrodescendentes
nas mais diversas regiões o mundo interconectadas pelo atlântico negro. É o que se
105
Gravada originalmente pelo trio vocal The Impressions de Chicago nos anos 1960 com o título I’m so
Proud [Eu sou tão orgulhoso]. O autor destaca ainda que este grupo inspirou grande parte dos artistas
jamaicanos daquela década, dentre os quais o mais conhecido, os Wailers.(Gilroy, 2001. p. 197).
93
confirma em algumas gravações do Reggae na Bahia, dentre as quais cito a faixa
“Bongô Man” registrada no segundo disco do compositor e intérprete Jorge de
Angélica106:
BONGÔ MAN
(Jorge de Angélica, 2002)
Toque o Bongô Man
Em homenagem ao Rei
Mandela, Mandela
Nelson Mandela
Semente jogada ao chão,
pouco a pouco germinou
fertilizada pelo sangue
que muitos negros homens
derramaram
batalhas foram travadas
com heroísmo e amor
se passaram 360 anos
de regime apartheid
vários anos de prisão
até que o Leão Sul africano de Pretória
se libertou
eu lhe peço por favor
olha me toque o Bongô
Toque o Bongô Man (...)
Levo em consideração, portanto que o uso do termo “apartheid”, encontrado nas
canções de Reggae (e samba-reggae) produzidas na Bahia deve ser encarado como
analogia às desigualdades sócio-raciais presentes na sociedade baiana. O que pode
parecer um anacronismo é, a rigor um uso deliberadamente ‘exagerado’ de um termo
que, pelo impacto provocava a sociedade a reconhecer o racismo como um problema.
106
Jorge de Angélica. Disco: Confiança em Deus. Independente, 2000
94
De outro modo, o exemplo da canção Brazilian Style toca mais especificamente
na questão da influência do Reggae como propulsor de novas narrativas sobre as
identidades. Curiosamente, esta canção opera um confronto que foi alvo das análises de
Carlos B. Silva, Ritmos de identidade (2007) sobre a questão das influências identitárias
“externas” e seus usos e rejeições pelos na sociedade maranhense. Em linhas gerais
canção provoca uma interpretação que coloca o Reggae como Style (estilo de vida,
comportamento, identidade de) brasileiro. No texto da letra proposta em Inglês tem-se:
Wherever you are going
Is still Obina Som
Everybody likes it
These musics blow you mind
We play tin “robado” style
Brazilian Style
Reggae music of the way
Put your troubles away
O uso do idioma inglês para descrever se referir a um “estilo” brasileiro pode ter muitas
conotações. Uma interpretação possível seria encarar como uma estratégia para atingir
um mercado externo ao Brasil – o que não se pode duvidar, haja vista o Reggae ser um
gênero matricialmente do mundo anglófono e o Inglês uma língua franca. Acrescente-se
o impacto do mercado fonográfico, controlado pelos EUA e Reino Unido e da
hegemonia cultural anglófona (Sansone, 2004) e esta tese torna-se ainda mais plausível.
Outra leitura considera, por outro lado, a circulação e cristalização do Reggae no Brasil
e o surgimento de novos canais de comunicação com o público (e os músicos,
acrescento) que transcende a barreira do idioma nacional e alteram o idioma Inglês (e os
elementos culturais que o cercam e constitui) a partir de releituras “glocais”107 das
influências “dominantes”. Por ambos os lados, é a busca por uma identidade que, por
mais que seja externa de origem é atualizada pelas experiências locais, e conta com
certa aceitação do público, como sugere a canção: “everybody likes it” [todo mundo
gosta]. Há que se considerar ainda que o apelo discursivo desta composição se aproxima
em muito do argumento musical de Peter Tosh (na epígrafe) quando sugere o termo
107
Sansone, 2004
95
“african” como identidade negra transnacional – em que toda pessoa negra,
independente da origem nacional é um africano (African):
Don't care where you come from
As long as you're a black man
You're an African
No mind your nationality
You have got the identity
of an African…108
Esta foi também a leitura registrada em algumas obras de Edson Gomes como atestam
as canções “estrangeiro” e “meus direitos”, respectivamente gravadas em 1990 e 1995.
A primeira reforça um pertencimento à distância, já mencionado, onde o narradorparticipante relata sua condição de estrangeiro em sua própria terra, num texto que se
direciona à um sujeito somento identificado ao final da canção. Atentando para o texto
da letra tem-se:
ESTRANGEIRO
(Edson Gomes, 1990)
Estou aqui
Estou bem distante do teu convívio
Eu estou aqui
Estou bem distante, mas estou sabendo
Que se passa contigo
É o Mesmo que se passa comigo
Eu ando aqui pela Baby(lônia)
Eles me chama de brasileiro
Porém eu me sinto um estrangeiro
Trabalho, trabalho e nada é nada não (2x)
Eu vivo aqui num submundo
Buracos, favelas, guetos imundos
Eles me chama de brasileiro
Porém eu me sinto um estrangeiro109
(...)
108
109
In Peter Tosh(VER ÁLBUM).
“Estrangeiro” In: Edson Gomes. Disco: Recôncavo. EMI, 1990.
96
A mensagem desta canção é completada pelo arranjo musical que a cerca. O andamento
marcadamente ralentado, suavizado pelos contrapontos de sopro ao lado de uma
performance vocal,dá à canção uma aura de lamento e contrariedade que reforça a idéia
expressa no texto. As sonoridades impressas pelos músicos e musicistas e aprimoradas
no processo de mixagem dão à canção um sentido que a rigor não está explícito na letra.
Nos trechos finais da canção, o momento de maior evolução vocal a palavra África é
repetida, numa evolução vocal que insinua um estado de êxtase, reforçado por um
acorde de guitarra “distorcida” (artificialmente):
África, África, África...
Iô, Iô, Iô, Iô, Iô,
África, África, África...
Em “Meus Direitos”, a ligação literalmente umbilical com a África (nas palavras do
autor-intérprete, “mamãe África”) é o ponto de partida para canção-denúncia sobre as
desigualdades a que são alvos os negros no Brasil ao longo da Historia.
(...)Quanto tempo que a gente ta aqui
No Brasil
Tanto tempo que a gente está assim
Sem ter educação
Sem ter oportunidade
Sem ter habitação
Sem ser membro da sociedade
Somos alvo da incoerência
Vítimas da prepotência
Dos racistas
Ainda que persistam expressões como “vítima” ou “somos alvo” o argumento central da
canção corrobora uma imagem de alteridade do negro diante de direitos que são seus e
pelos quais deve lutar. Arrisco esta interpretação acrescentando novamente, a
importância do arranjo na construção do discurso musical. O andamento mais acelerado
e as linhas de baixo mais rápidas acabam por dar à obra um tom mais vibrante, que
interagindo, com a palavra cantada, completam e alteram o sentido da mensagem escrita
na letra.
97
Quando perguntado, em 2007, sobre seu trabalho como baixista da banda Cão de raça,
o músico Osvaldo Filho - que acompanha Edson Gomes desde a gravação deste álbum –
enfatizou a busca por influências mais jazzísticas no uso do instrumento. De acordo com
ele, Edson buscava um som de Baixo acompanhasse as nuances do vocal, estando
menos focalizado (e não desligado, favor não confundir) da bateria, como é mais
convencionalmente conhecido110.
Fechando o parêntese do comentário sobre a forma musical, retomo à análise dos
imaginários sobre a áfrica presentes nas canções de Reggae na Bahia utilizando como
exemplo outro registro deste fenômeno.
No LP Música das Ruas111
Dionorina, artista radicado na cidade Feira e
Santana, apresenta duas canções que travam, mais explicitamente este debate.112 A faixa
de abertura do álbum, “Jamaica FM” (de Carlos Pita) aborda uma situação cotidiana de
maneira inusitada:
JAMAICA FM
(Carlos Pita/Dionorina, 1994)
Quando eu tava naquela
Naquela esquina
Ouvindo um Reggae
Num radinho de pilha
Quando eu tava naquela
Naquela esquina
Querendo ser feliz e beijar minha menina
Quando alguém cantou:
Africana sensação
O negro é bacana
A cor não engana
Aumenta este rádio
Que esse som tá em Luanda
De repente me senti
110
Uma audição da gravação de “Sociedade Falida” de Edson Gomes atesta esta impressão. Edson
Gomes. Disco: Resgate Fatal, 1995.
111
O Lp é produto da premiação do Troféu Caymmi, importante evento da música Baiana que deu
visibilidade a grande parte dos/as artistas baianos de projeção no cenário atual. Em 1986 Edson Gomes e
Nengo Vieira também foram vencedores deste festival. “Música das Ruas” foi o show que deu nome ao
disco, primeiro LP da carreira do artista.
112
Dionorina, Disco: Música das Ruas, Gravadora: Stalo Discos-BA,1994
98
Na terra das primaveras
Jamaica FM
Encontrei com Peter Tosh
Numa esquina, de bobeira
Aqui tem palmeira
No meu sonho flutuando
Sem perder a correnteza
Sunsplash
Pois existe a babilônia
Mas o negro tem beleza
Sob a ótica desta canção o “ouvinte” é retratado como sujeito na relação com os meios
de comunicação, destacadamente com o rádio, símbolo ontológico da propagação e
circulação da música no século XX. O Reggae tocado no Rádio desperta para uma
“africana sensação”: sentimento de orgulho negro (“o negro é cabaça, a cor não engana”
) que tem a diáspora como pano de fundo, haja vista sintonia com a África Atlântica
(tendo luanda, capital de Angola como referência) e a repentina impressão de se estar na
Terra das primaveras – leia-se São Luís do Maranhão, também conhecida como Jamaica
brasileira. A argumentação intrigante e complexa desta canção ilustra que um contradiscurso, a partir da canção que, obedecendo a lógica do conflito, opera com um sentido
de pertencimento negro que encurta distâncias. Segundo Osmundo Pinho (2005) esta
sintonia com a África, e outros referenciais geopolíticos da diáspora é uma perspectiva
dos afrodescendentes diante de um campo racializado, em parte pelos agentes negros,
que optam por se identificarem como africanos, mas, sobretudo
pelas instâncias da hegemonia política que se instalou como um poder
branco e como um representante local, colonial, do ‘branco universal’
sediado em uma Europa sobrepairante113
Neste confronto, a denúncia das muitas formas de silenciamento é uma alternativa
política central114 Há episódios destas lutas sobre os quais ainda paira um enorme
silêncio. No momento a seguir trago para o foco das lentes deste trabalho algumas
113
Pinho, 2005. p. 129
É o Caso da faixa “New York Time”: A bomba H já explodiu / Na África / New York times não deu
nada/ é tudo ilusão da raça humana/ new York Times não deu nada. Dionorina, Disco: Música das Ruas,
Gravadora: Stalo Discos-BA,1994
114
99
histórias dos movimentos negros na cidade de Feira de Santana, um dos nascedouros da
música Reggae na Bahia.
De Beduínos a Malês
Em linhas gerais, a afirmação das expressões da cultura negra em Feira de
Santana perpassa pela relação com o calendário festivo da cidade. A exemplo da
micareta da cidade, considerada a mais antiga do Brasil, o espaço das festas deve ser
considerado como palcos centrais de onde podem-se apreender valiosas interpretações
sobre a dinâmica da urbe. A festa, vista aqui como espaço de sociabilidade (Tinhorão,
1972; Jancsó/Kantor, 2001, Godi, 1997, Moura, 2001), é um terreno onde se
reproduzem e subvertem as hierarquias e distinções de raça, classe e gênero. A
participação efetiva ou segregada no(s) espaço(s) da festa incide(m) diretamente sob as
muitas formas de interação (e representação desta) de seus/suas agentes, o que implica
num quadro de permanente tensão, ora no plano dos elementos simbólicos, ora “às vias
de fato” que reflete e é ao mesmo tempo reflexo do quadro das relações social.
A disputa pela participação nos espaços lúdicos, cívicos, de celebração da
religiosidade e outros, revela outros focos do confronto pela visibilidade dos
afrodescendentes em outras tantas dimensões da sociedade em que está inserido, seja
através de entidades organizadas, seja através da “fantasia” (Moura, 2001) ou quaisquer
formas alternativas e inusitadas. No caso em questão, há uma relação direta entre a
produção musical sintonizada com elementos da cultura negra e a disputa pela presença
do negro na sociedade.
Estes episódios remontam às décadas anteriores em que os blocos e escolas de
115
Samba
eram uma das principais formas de participação nas festas contexto que já
anunciava os indícios da contradição que seria propulsora para o surgimento dos blocos
afro116 . Segundo Jorge de Angélica, os Afoxés surgem como resposta ao quadro de
explícita segregação dos negros na festa. Em suas palavras:
Até nos blocos de bacanas a negrada não podia participar, né. A gente
ficava de fora mesmo. Não tinha négócio de história não: ou ia puxar
115
Para citar algumas das principais agremiações: Cordão Império Feirense, Ali babá e os quarenta
ladrões, Tanque da nação, Escola de Samba Escravos do oriente, da rua nova, sob coordenação da
Ialorixá Mãe socorro, personagem importante da história recente de Feira de Santana, Escola de Samba
Padre Ovídio. Cf. ANGÉLICA, Jorge de. 02/08/08(entrevista).
116
Paa o caso de Feira de Santana o termo “afro” é sintomático de uma emergente auto-identificação
étnica destas entidades
100
corda como, na época chamavam os puxadores de corda... eram os
beduínos. Ou ia ser beduíno dos brancos, pra aproveitar, ou... A gente
não tinha oportunidade, ou ia puxar corda pra aproveitar uma
merrequinha e também brincar ali humilhadamente ou... A gente
procurou largar a corda dos caras lá, dos blocos de bacanas,
e
117
formamos o nosso bloco, os nosso afoxés .
Como parte de um processo mais amplo, a fundação do Afoxé Pomba de Malê e
de outras entidades com o mesmo perfil, é reveladora de uma nova leitura de negritude e
africanidade que pairava sob a Bahia dos anos 80, por razões conjunturais já abordadas.
Foi parte constitutiva deste fenômeno o fortalecimento dos laços com o candomblé, haja
vista a participação decisiva dos terreiros na fundação e articulação da entidades, bem
como a assunção de um “novo” discurso de auto-identificação étnica e orgulho negro.
Em paralelo a busca pela África e pelos novos referenciais de africanidade na Diáspora
que davam o ar inusitado e novo destas expressões político-culturais. Destarte, o Reggae
produzido pelos artistas radicados em Feira de Santana registrou algumas destas
leituras, que são aqui frutíferas para a análise que segue.
Se é válido considerar que “uma imagem vale mais que mil palavras” a capa do
LP “Música das ruas” de Dionorina (Stalo discos, 1994) endossa esta máxima, dada a
sua contextualidade. Para além do valor estético, a capa– cartão de visitas de uma obra
fonográfica – demonstra um uso político do produto fonográfico para expressar sua
leitura situada dos movimentos negros urbanos. Ao centro, repousa a imagem da face do
artista e suas longas (e conhecidas) dreadlocks118, num contraste de preto e branco (uma
espécie de fotolito) numa combinação estilizada com a imagem de uma cobra coral, em
cores vivas que é a própria extensão do seu cabelo. A leitura iconográfica de Pedro
Kraff, bem recebida pelo artista remonta à memória das lutas contra as desigualdades
sócio-raciais nas mais diversas instancias da sociedade feirense, mais notadamente na
micareta.
A música “cobra coral” composta originalmente para os desfiles do Afoxé
Pomba de Male explica melhor o sentido político deste uso:
COBRA CORAL
(Jorge de Angélica, 1998)
117
Ibid.
Termo que define as tranças que constiuiem um dos penteados que identifica o Reggae. Usa-se, de
modo mais genérico, termos como “cabelo rasta”, ou simplismente “rasta”.
118
101
O negro do Pomba quando sai da rua nova
Ele traz na cinta uma cobra coral
É uma cobra coral
É uma cobra coral119
A descreve o olhar de discriminação com que eram recebidos os integrantes dos
afoxés ao se aproximarem e apresentarem no circuito festivo da micareta de Feira – daí
o uso simbólico do animal peçonhento como metáfora. A rua nova é considerada por
muitos moradores e pelos meios da imprensa local como um “reduto” da cultura negra,
seja pelo perfil étnico-racial dos habitantes, seja pelo reconhecimento de elementos
representativos de uma cultura negra auto-identificada nos afoxés e terreiros de
Candomblé. Esta imagem do “Gueto”, guarda uma profunda ambivalência pois também
serviu para estigmatizar o bairro na opinião pública como um reduto de violência e
criminalidade, imagem que as agremiações comunitárias e entidades do movimento
negro vem desconstruíndo ao longo de mais de duas décadas.120 A cobra coral é,
portanto um símbolo-resposta à segregação racial, uma leitura política dos espaços de
sociabilidade festiva, e para além deles,
da cultura de Feira de Santana e suas
contradições.
Além de Cobra Coral outros registros cristalizados, sob o formato canção nos
discos de Reggae são oriundos do desfile dos afoxés, dentre as quais pode-se destacar
“Bahia Negra”, também de autoria de Jorge de Angélica, como se vê no trecho a seguir:
BAHIA NEGRA
(Jorge de Angélica)
Oh Oh Oh Bahia Negra
A luz da alvorada te deseja
Oh Bahia Mãe
Eu esse ano
vou mostrar como é que é
119
foi gravada posteriormente no Disco Sacasó (gravadora: Zero Bala, 1998)
Fica em suspenso a investigar a relação entre a popularização dos Afoxés e a produção de um olhar
criminalizador (sobretudo por parte da imprensa e dos órgãos públicos) à Rua nova. Não se pode
desconsiderar índices nítidos de violência urbana neste e outros bairros da cidade, tampouco atribuir-lhes
motivações estritamente intrínsecas às suas fronteiras internas. Para completar a provocação e endossar
minha preocupação com o tema, sugiro apreciar as reflexões de Wacquant sobre o crescimento de sistema
carcerário no e sua relação direta com o crescimento dos movimentos pelos Direitos civis dos negros nos
EUA (Wacquant, L. “crime e castigo de Nixon a Clinton”)
120
102
O afoxé
Essa dança tão linda
que vem do Papua
da Nova Guiné
África
Em conversa com a historiadora e pesquisadora Ana Rita Machado, radicada em Feira
de Santana, “Bahia Negra” é uma das canções de maior expressão entre os afoxés e que
ganhou mais expressão local com a gravação de “Jorge”.
Cabe mencionar ainda que, se há no imaginário social em Feira de Santana uma
presença muito marcante de símbolos do universo pan-árabe - muitos dos cordões
tinham nomes com essas características (Ali babá, escravos do oriente além da própria
expressão “beduíno” para identificar os ‘cordeiros’) a leitura do afoxé da Rua Nova está
situada com a África islâmica, dos Malês, escravos responsáveis por uma Rebelião
social que teve grande reverberação na sociedade baiana do século XIX bem como na
historiografia brasileira.121
Em linhas gerais, não quero aqui reduzir uma série de trajetórias de lutas ao
exemplo desta agremiação afro-carnavalesca. Pelo contrário, utilizo este exemplo dada a
conexão entre os exemplos encontrados e o envolvimento de um grupo de músicos
(alguns entrevistados) com esta entidade em especial. Insistir que um estudo mais
detalhado dos movimentos poítico-culturais negros de Feira de Santana nas últimas
décadas pode, com rigor preencher esta lacuna.
*
*
*
Por fim, observando as muitas leituras, tecidas nas canções de Reggae e sambaReggae em torno da África e a Jamaica na diáspora, percebe-se a importância destas
expressões musicais à busca pela construção de novos referenciais críticos da História
do negro, situada na desconstrução de certos estereótipos e estigmas e torno destas
“noções de lugar” que arbitrariamente incidiam sobre a sociedade como imagens
depreciativas da memória e história dos afrodescendentes. Apesar disso, não defendo
que as imagens construídas em torno destes referenciais geopolíticos são em si
121
REIS, João José. Rebelião Escrava na Bahia: o levante dos malês (1835). (edição revista e ampliada)
São Paulo, Cia das Letras, 1996.
103
suficientes. Deixo bem claro meu entendimento de que, à luz de uma determinada
época, a produção destas identidades imaginadas serviu de substrato para que novos
caminhos crítico-interpretativos sobre o passado ancestral do Negro, seus laços com o
continente africano e as muitas histórias da África pré-colonial e contemporânea
pudessem fazer parte da rede de temas e questões da sociedade brasileira.
Olhando para o presente, filio-me à causa de que é o acesso à educação e a
informação que pode preencher, estas lacunas e imprecisões que ainda deixam névoas
sobre nosso passado. Sem dúvida, os olhares sobre a “África” de dentro e fora do
continente, do mundo de hoje jamais seriam os mesmos sem a experiência inventiva que
nossa sociedade assistiu e que rendeu frutos (musicais) que carecem uma divisão mais
justa.
Este é ao meu ver, o grande mérito da Obra de Patrícia Pinho sobre as Reinvenções
da África na Bahia: mostrar o desequilíbrio entre
o alcance libertário das idéias
utópicas sobre a África e o processo de transformação da cultura em mercadoria.
104
105
106
FAIXA 4 :
OS ANOS 90 E O VERÃO DO
REGGAE BAIANO
Eu quero um Reggae
Que me leve ao paraíso, eu quero
Eu quero um Reggae
Que me traga uma nova ordem eu quero
Eu quero um Reggae
Como ponto de partida
Eu quero um Reggae
(trecho da canção “Novo Reggae” de
Paulinho Ganaê e J. Magalhães)
Se o lance ta na cor
A coisa é essa,
Sinta Reggae, Reggae, Reggae
Se o lance ta na cor
A coisa é essa, é essa, é essa:
Cantando e reggando
Pra quem quiser ver...
(Sinta e Kaya, Gravada por Sine Calmon
e Morrão Fumegante, 1997)
107
Se ao longo dos anos 80 a sociedade baiana, e brasileira, interagiu com a
presença gradativa da música Reggae, pelas rádios, TV, ou através dos discursos e
estética dos blocos afro, é sem dúvida no intervalo de década entre 1988 a 1998 que o
estilo ganha sua definitiva “consagração” no ambiente sócio-cultural e no mercado
fonográfico. Seja pelas novas técnicas que registrou, por exemplo o Muzenza em 1988 e
outros de gravações do samba-Reggae então “aprisionado” nos estúdios da WR em
Salvador seja pela proliferação de bandas que arriscavam seus próprios vôos no ritmo
afro-Jamaicano.
Do início a meados dos anos 90 podia-se ouvir, além da marcante batida e do
então consagrado Samba-Reggae, os acordes de outros grupos de artistas como Adão
Negro, Sine Calmon e Morrão fumegante, Dionorina, Geraldo Cristal que aos poucos
registravam cristalizam suas experiências musicais em registros fonográficos. O número
crescente de gravações está associado ao surgimento de novas possibilidades de
gravação (digital) bem como pela maior circulação de discos internacionais de Reggae
no Brasil como apontam alguns colecionadores.122
Esta sintomática mudança seria evidenciada também pelas lentes de
antropólogos e sociólogos, jornalistas e críticos de música que se voltavam sob alguns
aspectos deste fenômeno ‘novo’. Os principais trabalhos sobre Reggae emergem,
sintomaticamente ao longo deste período (Cunha, 1991; Godi, 1997, 1998, 2001;
Albuquerque, 1997; White, 1999; Pinho, 1997 e 2001.
No programa de Ciências Sociais da universidade Federal da Bahia dois trabalho
em especial discutem, com atenção, algumas nuances da presença Reggae na Bahia.
Marcos Rubens Santos(2001) analisa as respostas à discriminação sócio-racial dos
negros em Salvador, a partir da estética Reggae. Para além, disso, seu trabalho consegue
mapear os espaços de circulação e apreciação do público regueiro123 de Salvador, com
base em uma rigorosa pesquisa de campo. É importante destacar que o autor era(e ainda
é) um músico de relativa expressão no cenário Reggae na Bahia. Guitarrista da banda
Adão Negro, vivenciava, à época todo processo de transformação e cristalização do
122
Cf. entrevista de S. Carmelito (14/dez/2006)
Refiro-me a este termo, seguindo a classificação de Santos(2001) para quem há inúmeros
manifestações do ser regueiro em Salvador. Em linhas gerais pode-se considerar que tanto
freqüentador@s dos shows quanto o transeunte urbano que, deambula ostentando suas marcas de
identificação étnica - como as dradlocks e outros tantos sinais – eram, e ainda são alvo de discriminação
sócio-racial. Define assim portanto, além do ouvinte e admirador da música Reggae, o público que
freqüenta os shows, os músicos e mesmo os menos sintonizados com a mensagem Rastafaris. Sem
dúvida, esta é uma questão que desperta bastante polêmica entre os colecionadores, músicos ou ouvintes
mais ligados de maneira militante à circulação e divulgação do Reggae na Bahia.
123
108
Reggae numa cultura musical de presença definitiva na sociedade baiana, mais
destacadamente entre a juventude negra.
Para além deste dado, em cada esquina, beco ou bar das cidades na Bahia particularmente Salvador, Feira de Santana e Cachoeira - se podia escutar a qualquer
momento, a pulsação grave do som Jamaicano em coletâneas comercializadas pelos
camelôs contendo compilações dos principais representantes do Estilo. Em outros
cantos, os gritos de “fogo na Babilônia” entoados por homens e mulheres de todas as
idades impunham um novo sentido de territorialidade que, despertou o desagrado dos
segmentos mais conservadores da elite baiana. Entre processos e batidas policiais, o
Reggae se colocava como uma alternativa vivaz da música negra na Bahia como se
confirmou, entre outros elementos, pela explosão da Canção Nayambing Blues de Sine
Calmon e Morrão Fumegante no carnaval 1997.
A este momento de efervecência sócio-cultural-musical, chamo de verão do
Reggae baiano. Estes e outros enredos serão particularmente alvo deste capítulo.
1988: o ano que não terminou...
1988 inaugura precisamente os anos de cristalização de uma cena Reggae “feita
na Bahia” como enuncia a movimentação de artistas do Gênero em cidades do interior
(Feira de Santana e Cachoeira) e capital (Salvador). Havia nestes territórios uma
emergente produção local de música Reggae, que ganhava, aos poucos certa visibilidade
e popularidade na Bahia. Se a porta para Salvador era estreita para as bandas do
interior”, como enfatiza o cantor e compositor Jorge de Angélica, a música Reggae foi
um dos elementos propulsores de novos espaços de produção e organização
contracultural na atlântica “cidade mundial”124. A realização do I Reggae in Bahia
Festival em 1988 nos dá ainda a impressão de que o Reggae, à altura de 1988 e pelos
anos 90 afora, constituía-se em um dos principais porta-vozes da luta anti-racista dos
negros e negras na Bahia e no Brasil. Este momento decisivo, registrado por alguns
124
O excelente comentário de Patrícia Pinho sobre este conceito é digno de referência. Para esta autora, o
estudo das relações negras transnacionais deve considerar “os elementos de continuidade e ruptura em
relação às hierarquias modernas de poder, riqueza, valorização e reconhecimento”, o que torna possível
que cidades como Salvador emergirem como centros radiadores de elementos da cultura negra
“expandindo o mapa do atlântico negro” e perturbando a colonialidade do poder, traço que a confirma
como “cidade mundial”. (Pinho, 2004, p. 57)
109
segmentos nacionais da opinião pública125 explica, como desdobramento, a gravação
sintomática do àlbum “Reggae Resistência”, primeiro disco de Edson Gomes, gravado
nos estúdios da WR em Salvador por um time responsável pelo amadurecimento do
Reggae baiano ao longo dos anos 80. A assinatura da gravadora EMI-Odeon era
sintomática do interesse renovado na produção “glocais” de estilos transnacionais da
música Negra, como atesta o lançamento contemporâneo da Coletânea Hip Hop Cultura
de Rua, com Thayde e DJ Hum, Mc/Dj Jack, Código 13 e outros (gravadora: Eldorado,
1988).
A expressão “Reggae Resistência” é uma definição utilizada em Cachoeira na
Bahia para definir o Reggae Roots feito sob as medida da ‘tradição clássica’ do som
jamaicano legadas por seus representantes mais conhecidos(Peter Tosh, Bob Marley e
outros). Uma audição crítica deste álbum revela sua(do artista e demais envolvidos)
enorme consonância com as sucessivas mobilizações sociais negras em torno do ano de
1988. Além da explícita contraposição às comemorações do centenário da abolição
Brasil (que dividia opiniões no período126) o disco de Edson Gomes nos dá pistas em
torno da parmanência de um sentidos étnico-identitários de negritude na Diáspora. Na
letra de “Sistema do Vampiro”, faixa de abertura, travam-se algumas questões que
merecem atenção, como pode-se conferir:
Esse sistema é um vampiro
Ah ! O sistema é um vampiro
Esse sistema é um vampiro
Todo povo ficou aflito
Esse sistema é um vampiro
Ah ! O sistema é um vampiro
Vive sugando todo povo
Vem cá, meu Deus, desça de novo
Ouça meu grito de socorro
Pai, escuta a voz desse teu povo
Que clama
Um centenário de falsa libertação
125
Folha de São Paulo, Ilustrada, “a Bahia virou Jamaica”, 31/01/1988. citado por Guerreiro, 1997, p 97113
126
Jornal Feira Hoje, “Gilberto Gil: querem esvaziar os festejos do centenário da abolição”, 13/01/1988
110
Cativeiro mental
Estamos metidos nos buracos
Estamos jogados nas favelas da vida
Pendurados lá no morro
Velho pai, só nos resta teu socorro
Ah, sim!
Estamos largados nas calçadas
Nós não temos nem morada
Não temos nada!127
Ao referir-se ao “centenário de Falsa Libertação” (os 100 anos do decreto da Lei Áurea
e a extinção ‘formal’ do trabalho cativo) Edson Gomes utiliza uma categoria muito
emblemática para a análise das influências da Música Reggae na Bahia: a expressão
“Cativeiro Mental"128, apresentada por Bob Marley (basta lembrar da famosa
“Redeption song”: “Emancipate yourself from mental slavery...”). Este conceito
compreende a escravidão como processo de violência Cultural que transcendeu o status
da sociedade escravista e revela-se como permanência no mundo contemporâneo.
Através da musicalidade Reggae (que implica num conjunto de práticas e vivencias
mediadas pela música) a categoria definida pelo intelectual Negro jamaicano é
reapropriada
em um
contexto de profunda tensão social no Brasil sendo
traduzida/ressignificada pelo Reggaeman baiano em um marco crucial da indústria
fonográfica no País.
Edson Gomes & banda Cão de Raça, assim como tantos outros intelectuais da
época, assumiu uma posição explícita diante do contexto de 1988. Para além de ser o
ano das “comemorações” do centenário da abolição formal da escravidão no Brasil, foi
um momento de grandes debates sobre a organização do estado civil e seus
instrumentos de legais de garantia de Direitos. As militâncias negras urbanas, se
insurgiam levantando a necessidade de reconhecer a importância dos negros à
construção do país e a necessidade de reparar as dívidas históricas para com essas
populações bem como estimular novas produções historiográficas nessa direção (Silva,
127
Edson Gomes, Disco: Reggae Resistência, Gravadora: EMI-Odeon, 1988
A rigor, outros artistas também fizeram uso deste conceito produzido na diáspora: entre eles Paulinho
Ganaê em seu CD independente gravado em 1997 intitulado independência em Mente. No encarte as
palavras de Ganaê são: “da mesma forma que Zumbi é o eco de Ganga zumba na luta pela liberdade, nós
devemos ser o eco libertário de Zumbi na luta contra a escravidão mental, tendo sempre a independência
em mente”.
128
111
2000c). Na faixa “História do Brasil” constróe-se uma interpretação histórica crítica do
marco da colonização.
HISTÓRIA DO BRASIL
(Edson Gomes, 1988)
Eu vou contar pra vocês
Certa história do Brasil
Foi quando Cabral descobriu
Este país tropical
Um certo povo surgiu
Vindo de um certo lugar
Forçado a trabalhar neste imenso país
E era o chicote no ar
E era o chicote a estalar
E era o chicote a cortar
E era o chicote a sangrar
Um, dois, três, até hoje dói
Um, dois, três, bateu mais de uma vez
Por isso é que a gente não tem vez
Por isso é que a gente sempre está
Do lado de fora
Por isso é que a gente sempre está
Lá cozinha
Por isso é que a gente sempre está
Está fazendo
O papel menor
Ou o papel pior129
Ao contar uma “certa história do Brasil” Edson Gomes realça o trabalho
forçado(escravo) como elemento indelével deste processo cujas marcas persistem até o
presente (“era o chicote no ar, era o chicote a sangrar... um, dois três, até hoje dói/ um
dois três, bateu mais de uma vez”). Nesse sentido, a canção traça um panorama da
129
Ibid.
112
situação d@s negr@s ocupando posições marginais na sociedade, fazendo sempre “o
papel menor ou o papel pior”. Neste contexto, esta canção soa como contra-discurso à
historiografia conservadora que encarava o centenário da abolição como data
comemorativa do fim da escravidão, silenciando o papel de negros e negras à
construção deste processo. Os solos de guitarra (ao longo de toda a canção) dão ainda o
ar de contestação e ‘distorção’ de uma verdade velada(não é à toa o uso de pedais de
efeito overdrive para alterar a sonoridade harmônica, próprio dos grupos de Rock.
Posição muito próxima está registrada no álbum Atrás do Por-do-sol de Lazzo,
Lançado pela gravadora nosso som e Distribuído pela multinacional BMG-ARIOLA.
Este é sem dúvida um dos discos com a sonoridade mais próxima do Reggae já lançados
pelo artista. Curiosamente, é também um aálbum marcado por canções que explicitam
as desigualdades raciais e apontam na direção de perspectivas também insinuadas pelos
movimentos sociais da época. A primeira canção do álbum “Abolição” é também um
manifesto contra as comemorações “oficiais”. Nas palavras do artista:
ABOLIÇÃO
(Lazzo e Capinam, 1988)
Abolição!
Abolição, a lição do meu avô
Que casou com minha avó
e que pariu a minha mãe
e com meu pai
com meu pai fazendo amor
fez do prazer a flor da dor
a beleza negra que eu sou
acabar coma tristeza
com a pobreza e o apartheid
não fazer da humanidade, a metade da metade
parte branca e parte negra
Abolição!
Abolir essa careta
Que esconde a natureza
113
E que me faz ser teu irmão
E a lição, a lição do meu avô
Foi ser dono do meu ser
Foi saber o que eu sou
A lição da liberdade
Da verdade de zumbi (Zumbi meu pai!)
Lá da serra da barriga
Da barriga onde eu nasci
Abolindo a velha intriga
Guerreando pra sorrir.130
A canção problematiza a “abolição” sugerindo-a como lição-posição política igualitária
ensinada pelas gerações anteriores. O jogo de palavras e a inversão de sentidos edifica
um contradiscurso à leitura hegemônica do centenário da lei áurea, demarcando uma
posição comum a alguns segmentos das militâncias negras urbanas (Silva, 2000).
A importância da afirmação-valorização do ser negro é um argumento central do
artista. Ao entrecruzar a referência à sua genealogia com a será da Barriga, onde situouse o quilombo de Palmares, Lazzo estabelece uma referência explícita de ligação com
um passado de lutas anti-coloniais que deveria ser reinserido naquele contexto em que
ainda se fazia necessário “guerrear pra sorrir”.
A canção que encerra o disco também é um manifesto anti-racista. Em
“Lamento”, Gileno Félix e Lazzo abordam as formas de discriminação racial que
representam um obstáculo à igualdade de direitos na sociedade:
LAMENTO
(Lazzo e Gileno Félix)
“Meu Deus até quando a gente vai poder suportar
Uma falsa igualdade em que é sutil mentir
E não nos conceder o direito
Meu deus quanto tempo a gente vai ter que esperar
Uma longa avenida livre de todos preconceitos
Se em cada esquina há um estranho olhar
Discriminador acusando um suspeito
130
Lazzo. Atrás do pôr-do-sol. Nosso Som/BMG-ARIOLA, 1988
114
Eu não!
Meu deus quanto tempo a gente vai ter que esperar
Pra doce raça humana ter iguais direitos?
Será que eles não sabem
Que a chuva que cai do céu
Não escolhe,
Vem e molha todos nós
E que o povo há de fazer
Seu próprio mandamento
E o tempo há de sentir
O que vem do firmamento
E a cada sol nascer
Nascerá sempre um novo movimento
Nascerá!”
Salve o deus da música
Forte pra lutar
Contra a opressão
Contra adiscriminação
Contra o aparttheid
E daí-nos a paz
(choro nas minhas cordas)”131
A partir destes registros podemos mensurar a importância da música na
mediação de sentidos identitários de negritude e antiracismo. A partir destes e outros
registros é possível sugerir que os discos de Reggae produzidos na Bahia representam
expressões do ativismo político dos negro entre os anos 80/90. Os anos que seguiram
também são protagonizados por inúmeros artistas que colocaram, através da produção
musical do Reggae temáticas relativas ao combate do racismo.
Um número considerável de artistas que, ao longo das décadas anteriores,
construíam a cena Reggae passavam a registrar suas canções em discos com selos
“independentes”, gravados a partir de tecnologias e softwares mais acessíveis. A
respeito deste conjunto de fontes é importante destacar que não tenho privilegiado as
131
Ibid.
115
informações sobre a circulação no grande mercado. é notório que estes registros
fonográficos atingem um grupo às vezes pequeno de consumidores, o que de inicio
parece inviabilizar maiores reflexões a cerca deste material. Por outro lado, as gravações
de artistas como Ras Ciro Lima, Ubaldo Warú, Geraldo Cristal, Zavan Liv, Gilsan,
Jorge de Angélica, guardam valiosas impressões sobre o contexto pelo qual nos
debruçamos e são, portanto, fontes primárias para compreender os enredos da versão
baiana do Reggae. Portanto, privilegio aqui, ouvir e ver os sujeitos para além do critério
quantitativo, ou de sua maior ou menor vendagem de discos.
Em outras palavras, “o que se vê”, ou o que é invisibilizado, ainda ganha muita
relevância no mundo contemporâneo, logo, o Racismo e a luta anti-racista se constituem
em torno, e em conflito com esses sentidos. Este exemplo faz relembrar ainda Maurice
Halbwachs, em suas considerações sobre o papel dos músicos na construção da
“Memória coletiva”. Ele argumenta que a “lembrança” dos músicos são as únicas
conservadas “numa memória coletiva que se estende, no espaço e no tempo, tão longe
quanto sua sociedade”(1990, p. 185). Entretanto, seu posicionamento representa, à luz
de novas reflexões, alguns limites de modo que considera todas as formas outras de
memória coletiva seccionadas do tempo histórico, logo, restringindo sua herança ao
tempo de vida dos indivíduos.
Segundo Ahmed Hampatê-Bá (1982) estas raízes podem ser ainda mais remotas,
como aponta seu valioso A tradição viva que trata das tradições e formas de organização
social persistentes em determinadas regiões do continente africano ancoradas na
oralidade. As tradições orais/musicais tem papel central na produção de conhecimentos,
na organização social e na legitimação das identidades e visões de mundo.
Acompanhando esta opinião destacamos que a oralidade aqui é compreendida em seu
amplo papel para o legado cultural e político de um ou mais grupos sociais. Portanto, os
discursos estético-musicais e “falas” compõem as memórias de uma inventada tradição
recente que serve como recurso político para legitimar os grupos e suas demandas
sociais. É como aponta o historiador e músico Salloma Salomão Silva:
“Os compositores retomaram as ligações com as práticas Griot ou
Doma... que são formas destinadas a preservação da memória na forma
de canções (...) O encontro dos compositores e militantes negros com a
história da África antiga e do Brasil colonial, gerou um estilo inédito de
canções urbanas, que se encontravam em sincronia com as proposições
de alguns grupos negros.” (2000, p. 80)
116
Em inúmeras canções (o que inclui as apresentadas até o momento neste
capítulo), este recurso é amplamente visível e merece ser considerado. É importante
considerar que a arena da chamada cultura baiana (que transcende sem dúvida o espaço
metropolitano de Salvador!) a musica incorporou novos sentidos de acordo com as
diferentes formas de reprodução em sintonia com “aspectos tenazmente locais” da
História tais como as experiências musicais do recôncavo, a presença da musicalidade
de matriz africana presente nos rituais de candomblé e a emergente e híbrida sonoridade
dos blocos afro e afoxés. Músicos e Musicistas são, no sentido amplo apontado por
Geertz, intérpretes das tendências da música mundializada e recriadores destes estilos à
luz das tensões e visões de mundo que lhes está ao alcance, ocupando, portanto, o lugar
de Pensadores (as), ativistas e sujeitos críticos que subverteram as hierarquias e ‘fazem
a cabeça’ (em diversos sentidos) de jovens e adultos que identificam nas canções,
abordagens em torno de seu próprio cotidiano.
É possível situar, acompanhando passos sugeridos por Silva (2000), um conjunto
de canções mais que tematizaram o “resgate do passado” como forma de enunciar uma
identidade de ser-estar negro na sociedade contemporânea, revisitando a historiografia e
inserindo outros personagens subversivos e episódios de sedição da luta antiracista/anti-escravista no passado colonial brasileiro. Zumbi, Palmares, Lucas da Feira,
foram os protagonistas destas novas narrativas musicais.
Talvez pela carreira ‘melhor sucedida’ o cantor e compositor Edson Gomes
apresente um número maior de exemplo espalhados entre seus 14 lançamentos
(incluindo as muitas coletâneas). Entre os existentes e mais elucidativos (“História do
Brasil”132 já foi devidamente mencionada), a canção “Capturados” cujo texto da letra
aborda o reconhecimento da identidade negra como estratégia de identificar a ideologia
da Democracia Racial:
CAPTURADOS
(Edson Gomes)
Somos filhos dos escravos
Não temos vergonha de assumir
Somos filhos dos capturados
Não temos vergonha de admitir
132
Edson Gomes. Disco: Reggae Resistência, EMI-Odeon, 1988
117
Somos filhos dos escravos
Estamos afins
De tirar essa máscara
Revelando a história
De um povo roubado, adulterado
E negado a ser feliz
Um povo castrado, lesionado
E negado a ser feliz
Somos filhos dos escravos
Estamos afins
De arrancar essa máscara
Revelando a história
De um povo que habita
Lá dentro do gueto
Capital da miséria
Crianças que vivem
Circulando os sinais
São aprendizes de Marginais
Somos filhos dos escravos
Somos filhos dos capturados
Somos, Somos, Somos e somos.133
O verbo ‘ser’ tão evidenciado pelo autor é sintoma de uma posição política que
visualiza no passado a figura do escravo como sujeito histórico - restituído de sua
humanidade – para a identificação com o ‘ser’(self) negro, no contexto contemporâneo.
Chama ainda mais a atenção a ênfase na filiação com o ancestral negro como estratégia
de “revelar” uma historiografia atenta para as desigualdades sócio-raciais que pesaram
sobre os afrodescendentes e, consequentemente, sob seus filhos do presente. Longe de
querer esvaziar ou esgotar as metáforas do artista, arrisco que a estrofe final, que se
refere às crianças, sugere uma estratégia poético-musical para evidenciar o argumento
central da canção.
Esta leitura do passado que estabelece de modo direto uma descendência entre os
negros de ontem e hoje, é profundamente reveladora de uma nova percepção sobre o
presente que evidenciava as hierarquias raciais como permanência histórica da realidade
133
Edson Gomes. Disco: Recôncavo. EMI, 1990.
118
brasileira e a auto-afirmação (“somos...”) como resposta ao mito da democracia racial e
da não violência (CHAUÍ, 1994), bem como às formas historicamente construídas do
racismo na Bahia que, segundo Agier (1992) opera em torno de um sistema complexo
que institui a inferiorização do negro e a exclusão das esferas do poder e, por
conseguinte, dos mecanismos de legitimação dessas esferas.
Além disso, o uso simbólico de elementos de circulação no imaginário social
também foi alvo da criativa obra musical em foco. Utilizando o disco(em sua dimensão
plástica) como espaço de interação, Recôncavo, ostenta um encarte que guarda, de um
lado as letras do álbum, e de outro uma imagem imponente de um time de futebol
formado, pelos músicos e outros agentes envolvidos na produção da obra. O futebol, um
dos esportes de maiores símbolos de mobilização nacional e identificação do Brasil no
exterior, é retratado de modo, se não transgressor, minimamente identificado com a
estética negra 134 .
Entre os muitos centenários celebrados na virada para a década de 90 - o da
abolição em 88, o da República e 89 - esteve em suspenso a questão dos ícones da
memória nacional e seu efêmero calendário. Silva (2000) destaca que a entrada no
cenário nacional de questões relativas às identidades negras naquele contexto foi
propulsor das mobilizações que culminaram ao redor do ano de 1995, contexto em se
destacava a disputa política pela afirmação do 20 de novembro como data
comemorativa do tricentenário da Morte de Zumbi (20 de novembro de1695). Ressalta
ainda que a movimentação político-cultutral nos anos que antecederam este episódio,
foram pauta da fala cantada dos grupos Negros de inúmeras cidade do Brasil, entre os
quais aqueles ligados ao movimento Hip Hop (destacadamente em São Paulo). Esta
nova presença afro-musical urbana teria sido - na leitura plausível de Silva (2000) –
sensivelmente percebida por Gil e Caetano Veloso que, na ocasião apresentaram a
canção “Haiti”, como música de Trabalho do recém lançado Tropicália 2135. Na Bahia,
este processo também marcou algumas faixas da discografia do Reggae. Em “Música
das Ruas”136 Dionorina canta sua percepção do “novo zumbi” na sinestésica “1695”:
134
O futebol é uma das paixões declaradas de Edson Gomes (e de astros como Bob Marley, por
coincidência). Anualmente ele realiza, nas comemorações de seu aniversário, uma partida protagonizada
pelos músicos e amigos, que nos últimos tempos tem contado com presenças ilustres como o jamaicano
Gregory Isaacs, em ocasião de sua turnê pelo Brasil. Este evento foi retratado no vídeo-documentário que
faz parte(nos extras) do primeiro DVD da carreira do artista. Edson Gomes. Ao Vivo em Salvador
(Duplo). Atração Fonográfica, 2005.
135
Caetano Veloso & Gilberto Gil. Tropicália 2. Poligram, 1993.
136
Dionorina. Op. Cit.
119
1695 (MEDO NUNCA)
(Dionorina, 1994)
Há algo no ar da praça
Um grito que pairou no tempo
Que a raça nos traz
Refletindo um navio negreiro
Com os olhos do tempo
Novo quilombo se formando
A resistência do som tropical
Somos negros mesmo
Somos nossos pais
Somos dentes tão claros
Somos de todo gás
Por traz dos canaviais
Um lamento batalhador
Oh não
Metáfora de escravidão
O desemprego e a corrupção no meu país,
Oh não oh não
Libertai a carne e o espírito
Mas preservem meu coração
Oh não
1695,
1695, louca diáspora universal
1695, banzos e malês retratam o que eu digo
1695: novo zumbi apostam na paz(mil...)
Chama que teima em luzir o seu brilho
Nossa esperança ilustrando um cartaz
Medo nunca
Medo nunca mais
Não, não, não
Medo nunca
Medo nunca mais
Não, não, não
120
Na leitura do compositor e intérprete, há em questão um sentimento de
pertencimento étnico que paira no ar e no tempo (como “um espectro que ronda...”) e
que remete ao passado do negro no Brasil, no que se refere à experiência dos
quilombos, entendidos como territórios de sedição e resistência. Esta análise do passado
nos remete às reflexões de Walter Benjamin, oportunamente lembrada nas epígrafes de
Gilroy (2001), a respeito da História e sua incursão sobre o tempo. Nos diz Benjamin
que:
“articular historicamente o passado não significa aceita-lo ‘do jeito que
ele realmente era’. Significa apropriar-se de uma memória quando ela eclode
em um momento de perigo.”
Esta ‘memória viva’ do quilombo e seu referencial-mor Zumbi, indica uma
contra-história que se sublevação contra uma historiografia neo-ocidental que, a rigor,
impunha contra parcela considerável da população brasileira (Negros e negras) a
sombra do silêncio. A posição deste e outros compositores, a partir de seus textos
musicais, revela-se em consonância com o contexto em que os (novos)movimentos
sociais negros no Brasil apostavam dentre outras bandeiras, na alteração do calendário
cívico, e com ele, da interpretação histórica que silenciava a importância de negros e
negras à edificação do Brasil e de uma história do Negro na diáspora.
Paralelamente, o arranjo da canção proporciona um ambiente de profundamente
melancólico (Blues), reforçado por incursões esporádicas de melodias de Guitarra em
escala pentatônica que respondem à cada avanço das estrofes. Esta impressão sonora
completa o texto musical, instaurando uma imagem singularmente ambivalente: por um
lado a memória de um passado (da plantation) marcado pela dor, como demarca a
postura vocal combinada com a vibrante resposta das estrofes finais: “Medo nunca
mais!”
Não se pode deixar de considerar a percepção implícita de uma crítica às
contradições da política nacional, na transição em marcha para uma processo de
alinhamento com as políticas do neoliberalismo, tendência que aparece em outros
autores do gênero no ano seguinte.137
Em 1995, com o lançamento de Resgate Fatal, Edson Gomes traz em “Zumbi
dos Palmares” uma homenagem ao tricentenário. Com diferente
137
Gentilli, P. & Sader, E. Pós-neoliberalismo. As políticas sociais e o estado democrático. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1995
121
ZUMBI DOS PALMARES
(Edson Gomes, 1995)
Zumbi,
Rei dos Palmares
Um grito de dor
Liberdade
Zumbi
Rei dos palmares
Um lutador
Líder de valor
Você, o nosso precursor
De lá para cá outro não se viu
De lá para cá ninguém assumiu
Você
Um grande lutador
A nossa luta não acabou
Eis aqui a retomada
Vamos então encher a praça
Gritar de novo
Gritar com raça
Deliberada
Sou zumbi dos Palmares
É o zumbi dos Palmares
Eu zumbi dos Palmares
Zumbi
Até mesmo o sol
Se eles pudessem
A gente pagaria
Zumbi
Até mesmo a chuva
Se eles pudessem
A gente pagaria
Não temos
Como estudar
E a cada dia se alimentar
Não temos
122
Onde trabalhar
E a cada dia mais difícil
Se alimentar
Você
Um grande lutador
A nossa luta não acabou
Eis aqui a retomada
Vamos então encher a praça
Gritar de novo
Gritar com raça
Deliberada
Sou Zumbi dos Palmares
É o Zumbi dos Palmares
Eu Zumbi dos Palmares
Ao longo desses anos todos que nós estamos no Brasil
Ainda não somos livres
A canção evidencia uma leitura de mundo que, voltando-se ao passado
identifica, por um lado, a permanência das desigualdades sócio-raciais, e por outro, a
identificação com zumbi (precursor, lutador, líder de valor...) como referencial histórico
e étnico-identitário de luta contra essa realidade. A canção sugere ainda um tom de
mobilização em torno do tema sinalizando para a opinião do Artista diante da bandeira
dos movimentos negros urbanos. Ainda neste álbum, o passado escravista serve de
referência à leitura das desigualdades do presente, como o exemplo da faixa “Fato
Consumado”:
Toda miséria que o povo passa
Quem vai pagar?
Toda essa fome que o povo passa
Quem vai pagar?
Por todo esse sangue derramado
Nas pedras do pelô
De cada homem chicoteado
Nas pedras do pelô (...)
123
A Referência aos levantes de escravos e outras formas de resistência à dominação
colonial fizeram/fazem parte das mensagens do Reggae baiano. Uma das leituras
curiosas deste processo é a canção “Lucas da Feira” de Gilsam, gravada (já tardiamente)
em 2002 em seu álbum independente “Reggae para todos”. Lucas da Feira é o nome
como ficou conhecido o liberto Lucas evangelista138, que nasceu em Feira de Santana na
primeira metade do século XIX e cuja História, rigorosamente silenciada pelos grupos
dominantes da cidade nos últimos séculos139, vem sendo retomada por alguns segmentos
dos movimentos negros há algumas décadas. A leitura do compositor e intérprete
Gilsam é uma delas:
LUCAS DA FEIRA
(Gilsam, 2002)
Que pode um homem e o sistema vil
Que pariu a besta e a opressão
Quem viu
A estrela da rendenção
Nos olhos da noite contra o açoite
Um homem vil
Quem viu
Como tantos outros homens
A estrada que se abriu
Para conduzir sua gente
Quem viu
Pelas veredas escandescentes
Lucas da Feira
Filho da Libertação
Cinturão do agreste
De tantos algozes semeiam vozes de resistência
Contra a opulência
138
LIMA, Zélia de Jesus. Lucas evangelista: o Lucas da Feira. Estudo sobre a rebeldia escrava em Feira
de Santana (1807-1849) Dissertação de mestrado, FFCH/UFBA, Salvador, 1990. Este estudo, único até o
presente que destaca a trajetória e as muitas imagens em torno deste personagem negro considerado um
bandido social, enforcado publicamente na primeira metade do século XIX em Feira de Santana.
139
Em nota, Igor Santos comenta sobre a resistência das famílias feirenses a batizar os filhos com o nome
Lucas: “O nome Lucas foi evitado no batismo das crianças e se construiu, através das classes dominantes,
uma memória de extremo negativismo [e racismo] em torno da memória deste ex-escravo” (Santos, 2007,
p. 28)
124
Do ditador comum
Lucas da Feira
Filho da libertação
Aos olhos do cantor, pedagogo e ativista negro, Lucas da Feira é um personagem cuja
história foi silenciada pois revela o protagonismo de um negro liberto que se levantou
contra o sistema colonial. Em muitas conversas com Gilsam ele enfatizou que há, na
verdade bastante resistência em produzir uma história do passado colonial que
problematize a condição do negro no contexto de Feira de Santana e do Sertão de um
modo Geral.140
Em suma, os exemplos apresentados de canções sinalizam para uma tendência
mais geral adotada por outros compositores e intérpretes que, ao longo dos anos 90
(que, a meu ver, se estende para além da década propriamente dita) tentaram dialogar e
propor novos parâmetros à historiografia que pudessem, a partir da análise do passado,
produzir uma leitura crítica da situação do negro na sociedade contemporânea.
Há, paralelamente, um universo de canções mais sintonizadas com a denúncia do
Racismo brasileiro e da Democracia Racial, como escreveu o compositor e músico
Artur Cardoso:
ADÂO NEGRO
(Arthur Cardoso, 1998)
Apartheid disfarçado todo dia
quando me olho não me vejo na TV
quando me vejo estou sempre na cozinha
ou na favela submissa ao poder
já fui mucama
mas agora sou neguinha
minha pretinha, nós gostamos de você
levante a saia e saia correndo pro quarto
na madrugada patrãozinho quer lhe vê
será que um dia eu serei a patroa?
Sonho que um dia isso possa acontecer
ficar na sala, não ir mais para a cozinha
140
Sobre a sociedade escravista-colonial no Sertão da Bahia ver o rico trabalho do prof. Erivaldo Neves.
NEVES, Erivaldo F. Das Sesmarias ao minifúndio: uma comunidade sertaneja. UEFS, 2000. Não me
custa advertir também sobre o Clássico POPINO, Rolie. Feira de Santana. Ed. Itapuã, 1968
125
agora digo o que vejo na TV:
um som negro,
um Deus negro,
um Adão negro,
o negro no poder...”
A ideologia da Democracia racial denunciada na expressão “apartheid disfarçado
todo dia” é associada pelos mecanismos de invisibilização social (como a TV) e ela
manutenção de espaços sócio-racialmente hieraquizados (como a representação da Sala
e da Cozinha). Alguns comentários já foram feitos sobre esta percepção, de inspiração
Freyreana que incide sob a idéia de que a cozinha esta para os escravos, negros,
mulheres, assim como a sala para os senhores, brancos, homens. Uma criativa leitura
desta relação dualista foi feita por Carlos Albuquerque que denomina de “racismo
sonoro” o hábito de considerar os instrumentos rítmicos como parte da ‘cozinha’ na
formação das bandas, em sua breve análise sobre o Dub (e a nova centralidade-liberdade
para o baixo e bateria) vertente mais psicodélica da música Jamaicana141.
Comentários à parte, Artur Cardoso, que é co-fundador da Banda Adão Negro
(que é um nome, de saída, sugestivo) propõe uma contra-narrativa de questões
estruturais e cotidianas da sociedade. Este recurso, visível em outras leituras musicais
do contexto, enuncia a presença de uma metafísica de negritude mais edificada em torno
do orgulho negro do que propriamente na imagem do negro como vítima, uma mudança
substancial, eu diria, do ponto de vista das estratégias discursivas e das perspectivas dos
grupos negros urbanos. Ainda que não faça mais parte do Adão Negro (dado que é no
mínimo intrigante e que não pode ser devidamente contemplado nesta pesquisa) esta é
uma das mais conhecidas canções do Reggae baiano desde fins dos anos 90.
Em outra canção, o Militante, compositor e baixista Jorge França realça, entre
outras questões que também mereceria destaque, a relevância da auto afirmação do
negro à constituição de uma “identidade” na luta contra o racismo:
IDENTIDADE
(Jorge França)
“Ei, meu irmão negro!
141
Nas palavras de Albuquerque: “Afinal, porque guitarra, teclados e vocais são ‘sala? E desde quando a
música é uma Kitchenette? Na Jamaica essa discussão não existe. Lá o ritmo é livre, sempre senhor
absoluto das suas ações.” (1997, p. 97).
126
Não tenha medo de ser você
não renegue a sua cor
ela te acompanhará onde você for
ela faz parte da sua identidade
assuma, enfrente a sua verdade(...)
Nunca acredite em que diz que você não é belo
mas pregue a paz entre o branco, o negro, o vermelho e o amarelo
e lute contra a discriminação
esse é o seu destino, vamos lá meu irmão...142
Este tipo de referência, presente em outras gravações, permite mensurar a relevância
da produção local da música Reggae à construção de novos sentidos de pertencimento
negro e repostas à desigualdade sócio-racial. Ésta manifestação esteve presente em
outros materiais como o exemplo que será tratado a seguir: o informativo “Folha do
Reggae”.
Queimando tudo com a Folha do Reggae
Completando esse quadro, a mobilização político-cultural em torno da
divulgação música Reggae também foi registrada em fontes como o informativo Folha
do Reggae publicado em Salvador no verão de 1997. Ainda que publicado em apenas
três edições, os exemplares do jornal são uma fonte de extrema importância, pois
apresentam uma agenda movimentada de eventos, lançamentos de discos, informações
sobre a presença dos blocos de Reggae e Samba-Reggae no Carnaval (representados em
blocos tais como Resistência Ativa, Ska Reggae, Amantes do Reggae e muzenza do
Reggae de Salvador) além de entrevistas com músicos como Nengo Vieira e Edson
Gomes e Sine Calmon.
No expediente do jornal entre editores e colabores, personagens da miltância
negra na Bahia com Raimundo Bujão, Samuel Vida, Antonio Godi, índio do Olodum e
outros. Além de artigos acadêmicos sobre música Rasta-Reggae e pertencimento negro,
142
França, Jorge. Canção “identidade”. Banda The Sheriff, disco: Velha Raiz, 2003
127
era publicado em cada edição a tradução para o português de canções de Bob Marley,
que contavam com a colaboração do Historiador João José Reis.143
Entre as matérias destaca-se a que trata da presença dos blocos de Reggae no
Carnaval (intitulada no periódico de “arrasta-reggae”) ocupando espaços outrora
negados no circuito da festa momesca, bem como trazendo para o enfrentamento,
questões de cunho étnico-identitário. É importante destacar que o Reggae chegava
naquele contexto instaurando um contraponto aos blocos de trio (da chamada axé
music) no que diz respeito à manifestações de racismo no interior do evento público,
como informa o Folha do Reggae , a partir de entrevista com Rosiel Santana, diretor do
Muzenza:
“O muzenza resgatou neste carnaval o direito de sair na rua durante o dia,
chegando no domingo e terça às 16:00 h na avenida... Para Rosiel Santana, a
importância do reggae é muito grande no carnaval, pois o ritmo é tocado até
pelos blocos de trio resgatando a auto estima do povo afro-baiano. Segundo ele,
a partir do momento que se mostra o que se tem de bom, a sociedade deixa de
resistir e passa a acreditar, “o que era coisa de preto se transforma em algo
valorizado pela sociedade”. (...) Rosiel acha que existe um cansaço com relação
axé music promovida pela falta de qualidade das músicas dos blocos de trio que,
com raras exceções, engloba conotações racistas, como na música da banda
Tiete Vips que diz: “a ti b aba, a ti be be, nego nagô fede mais do que sariguê”
No entanto o Reggae não vem pra competir mas para ocupar seu espaço no
carnaval de Salvador como forma de manifestação qualitativa do povo negro...”
Em linhas Gerais, pode-se considerar que a Folha do Reggae se propunha como
um veículo da mídia impressa alternativa com ênfase: na divulgação do cenário
artístico-musical do Reggae produzido dentro e fora da Bahia; na denúncia dos casos de
racismo e outras formas de segregação na sociedade que atingiam mais diretamente os
negr@s144. Como um manifesto político-cultural e étnico-identitário com atenção às
mobilizações do movimento negro baiano e outros campos dos movimentos sociais o
143
Fui informado que no início dos anos 80 foi produzido um pequeno livro contendo traduções (inglêsprotuguês) das canções de Bob Marley e outros artistas afro-jamaicanos produzidas pelo professor em
parceria de Antonio Godi, responsável pelas ilustrações.
144
Como exemplo a matéria “Demissões na prefeitura: o negão dança mais uma vez” que denunciava os
cortes de vagas de trabalho anunciados em 1997 pelo então prefeito de Salvador. Jornal Folha do Reggae,
Salvador, 1997, p. 3
128
informativo dialogava com a valorização da estética e cultura negras mediadas pela
música.
A existência desta fonte evidencia que a cristalização da música Reggae no
cenário sócio-cultural da Bahia não se deu sem enfrentamentos e toda sorte formas de
repressão e retaliação. Curiosamente, é no verão do Reggae baiano que se levantam, de
um lado artistas, profissionais liberais, pequenos empresários145 e de outro segmentos da
justiça e outros órgãos do Estado num enfrentamento simbólico e muitas vezes judicial
que envolveu casos polêmicos como o ocorrido com o Músico e compositor Sine
Calmon e a Banda Morrão Fumegante, noticiado por inúmeros veículos da imprensa
baiana e nacional e pelo informativo e foco.
A primeira edição do Jornal traz uma matéria sobre a controvérsia iniciada em
1996 pelo Delegado Itamir Casal da Delegacia de Tóxicos e intorpecentes e fomentada
pela Juíza Dayse Lago da 1º vara privativa de Tóxicos que condenou Sine Calmon a
cumprir pena em regime fechado por suposta apologia e uso de drogas, uma vez que, no
entendimento dos ditos defensores da “lei” o próprio nome da banda (Morrão
Fumegante) fazia alusão ao “baseado”146. Na versão do líder da Banda a expressão foi
inspirada nas escrituras bíblicas – não nos esqueçamos da ligação deste com os
Remanescentes nos anos 80, já comentado anteriormente – no Livro de Mateus,
Capítulo 12:
“Não esmagará a cana quebrada, nem apagará o morrão que fumega até
que se triunfe o Juízo”147
A rigor, o sentido da nomenclatura em questão despertava para uma série de posições
subversivas que, de certo modo afrontavam o poder local e reconfigurava as relações de
poder e segregação sob as quais se assentavam as desigualdades na Bahia, em como o
exemplo de Salvador. Osmundo Pinho(1997) percebeu este caráter contestatório
implícito na questão ao analisar os espaços de lazer e consumo de música no
Pelourinho, a exemplo do Bar do Reggae. Faço minhas suas considerações de que os
145
Só para citar, o periódico contava com apoio de pequenas e médias empresas do comércio, a exemplo
do Hotel Pelourinho, em Salvador – onde se realizavam muitas apresentações de Reggae nos anos 80-90 –
Loja Wave Beach – que comercializa produtos e roupas para a prática do surf, o que assinala uma parcela
importante do público regueiro da cidade, os surfistas (ver Santos, 2001) – Grão de Arroz, restaurante
macrobiótico e outros.
146
Denominação popular para designar o cigarro de maconha.
147
Seguramente, por força destes episódios, esta passagem está inscrita na capa do CD Fogo na Babilônia
de Sine Calmon e Morrão Fumegante (Atração Musical, 1997)
129
gritos de “Fogo na babilônia”, o consumo de Ganja, bem como a proliferação destes
espaços ligados ao Reggae se configuravam também como territórios de contestação
anti-racista, anti-repressão e anti-moralista, fundando uma alternativa que, pelo
desapego à ordem e apoio de uma parcela de jovens (inclusive não-negros e de classe
média) incomodava alguns segmentos mais conservadores de nossa sociedade.148
Paradoxalmente a ação destes magistrados surtia efeito reverso contribuindo
para a divulgação e maior popularidade do artista. É preciso destacar os sucessivos
episódios envolvendo a polícia e o artista baiano, acabaram por envolver inúmeros
agentes da militância negra na cidade, o que seguramente também contribuiu para a
popularização de seu trabalho. De todo modo, a abordagem coercitiva destes agentes é
ponto corrente na História do Reggae e foi frequentemente pontuado em um conjunto de
canções que serão comentadas a seguir
“Porrada de polícia”
“Todo camburão tem um pouco de Navio Negreiro”
(O Rappa, 1994)
As manifestações de racismo e outras desigualdades sociais associadas à
violência policial é um dos temas frequentemente encontrados no universo de canções
do Reggae baiano, sobretudo a partir de 1988, contexto de franco acirramento dos
movimentos negros urbanos na sociedade brasileira (prol e contra o centenário da
abolição e, para além deste), ocasião de amargas crises econômicas e políticas no
cenário nacional, como assinalam as intensas mobilizações sociais do período.
Wacquant (s/d) tem sugerido haver uma relação entre o aumento da repressão policial
em conformidade com a crescente presença da afirmação dos movimentos sociais
negros e suas estratégias poítico-culturais, no contexto dos EUA. Não acredito que seja
possível concluir que este fenômeno se evidencie em salvador e outras cidades da Bahia
por força das mesmas razões. Entretanto, partindo das evidências observadas a partir da
148
Ver mais em PINHO, Osmundo de A. “The Songs of Freedom: notas etnográficas sobre cultura
negra global e práticas contraculturais locais” In: SANSONE, Lívio/TELES, Jocelio(orgs.)., 1997 (obra
citada.)
130
análise dos registros muisicais em foco, sugiro que há pelo menos um indício a ser
seguido.
Na Bahia, Alguns episódios de discriminação envolvendo músicos, produtores e
em muitos casos o regueiro em geral também foram pauta das falas dos entrevistados o
que evidencia a tensão em torno da afirmação e cristalização do Reggae como estilo de
vida, subcultura. Tentando compreender os muitos “perfis” do regueiro soteropolitano,
Marcos R. Santos destaca que a experiência (profundamente desagradável, leia-se) de
passar pelo baculejo, o que, segundo o autor é interpretado pelos sujeitos como uma
“encenação de sua condição de excluído, de marginal, de oprimido pela Babilônia”. 149
Outras leituras musicais reforçaram esta impressão evidenciando uma postura de
afirmação de uma identidade que se afirma numa dinâmica de alteridade. Gravações
numerosas registraram situações de repressão direta e indireta, bem como a
marginalização ostensiva deste ‘aparelho’ de estado incidindo sobre a cena sóciocultural em que a musicalidade Reggae se inseria como contracultura musical
alternativa.
Edson Gomes é o autor com um número maior de canções registradas, fato que
se explica por ser este o músico com maior número de discos gravados. Analisando sua
obra musical, evidencio alguns exemplos que servem para ilustrar, com efeito, as
presentes reflexões. O disco Campo de Batalha (EMI-ODEON, 1992) é um exemplo
sugestivo desta leitura crítica. O título da obra já sugere uma interpretação das relações
sociais a partir de um conjunto de tensões em que se inscrevem as “posições dos
sujeitos”, como sugeria análogamente Foucault.
A faixa de abertura, a canção
“criminalidade” inaugura o disco ao som de uma sirene policial que demarca
nitidamente o tom de denúncia. A letra da canção destaca a criminalidade como situação
de violência urbana provocada por um conjunto de fatores dentre os quais se insere a
“falta de segurança” e a atuação do aparelho policial em conformidade com este quadro:
CRIMINALIDADE
(Edon Gomes, 1992)
É tanta violência na cidade
Brother tanta criminalidade
As pessoas se trancam em suas casa
Pois não há segurança nas vias públicas
149
baculejo é abordagem-revista indisfarcavelmente preconceituosa da polícia. Santos, 2001, p. 78.
131
E nem mesmo a polícia pode impedir
Às vezes a polícia entra no jogo
A gente precisa de um super-homem
Jah Jah Jah
Que faça a mudança imediata
Jah Jah Jah
Pois nem mesmo a polícia pode destruir
Certas manobras organizadas
Ah ah ah
É tanta violência na cidade
Brother tanta criminalidade
A lua não é mais dos namorados
Os velhos não curtem mais as praças
E quem se aventura
Pode ser a última
E quem se habilita
Pode ser o fim
A gente precisa de um super-homem
Jah Jah Jah
Que faça a mudança imediata
Jah Jah Jah
Pois nem mesmo a polícia pode destruir
Certas manobras organizadas
Não, tudo um dia vai passar
Sei que tudo um dia vai mudar
Seguramente por ser um dos músicos de Reggae de maior visibilidade no Brasil, Edson
Gomes foi alvo da abordagem policial em situações diversas. Em entrevista concedida
em 2006 para uma revista virtual, o músico relata dois episódios de constrangimento
ocorridos nos anos 90:
No CD [Apocalipse] abordei na música Fogo na Babilônia, uma situação que
ocorreu comigo. Em 1997 a policia civil forjou um mandato de busca e
132
apreensão. Invadiram minha casa em busca de droga e me mobilizaram e
reviraram a casa em busca de drogas. Outra situação que aconteceu foi quando
eu e meu irmão Bráu fomos a uma imobiliária alugar um apartamento. Então
quando saímos com o cara da imobiliária. No caminho fomos parados pela
polícia armados de metralhadoras e mandaram descer do carro alegando estarem
procurando um carro roubado que parecia com o que estávamos.
A canção-denúncia citada além de evidenciar estas informações reflete uma posição
discursiva onde o autor-sujeito se coloca como crítico destas relações e desigualdade.
Ainda no álbum Apocalipse Gomes gravou “Camelô”, uma das canções de trabalho150
que teve ampla repercussão na imprensa e outros espaços de divulgação. A canção
aborda a violência dos órgãos públicos contra os trabalhadores do mercado informal em meados dos anos 90 mais de 54% da população economicamente ativa de
Salvador151:
CAMELÔ
(Edson Gomes, 1997)
Sou camelô
Sou do mercado informal
Com minha guia sou
Profissional
Sou bom rapaz
Só não tenho tradição
Em contrapartida sou de boa família
Olha doutor
Podemos rever a situação
Pare a polícia
Ela não é a solução não
Não sou ninguém
Nem tenho pra quem apelar
Só tenho meu bem
150
Faixa do disco selecionada pelo produtor(em geral) e/ou músicista(s) para divulgação do disco. Em
geral é a faixa que deve ser incentivada nas rádios e outros meios de comunicação como portifólio do
disco lançado.
151
Sobre este tema ver a publicação organizada pelo Sindicato dos Bancários: GOMES, Álvaro (org.). O
trabalho no século XXI: Considerações para o futuro do trabalho. São Paulo: Ed. Anita Garibaldi; Bahia:
Sindicato dos Bancários da Bahia, 2001;
133
Que também
Não é ninguém
Quando a polícia cai em cima de mim
Até parece que sou fera
Até parece...
Naquele contexto, a gestão municipal do então prefeito Antônio Imbassahy,
representante da extrema direita baiana, promovia mais um projeto modernizante para a
cidade a partir d uma política de “limpeza” do centro urbano de Salvador. Além das
demissões em massa152 em nome do “enxugamento” da máquina administrativa, a
prefeitura intensificou os chamados “Rapas”, mutirões fiscais encarregados pela
manutenção do espaço urbano que, sob esta alegação, retiravam (com o uso da força)
centenas de trabalhadores autônomos da cidade, momento que foi devidamente
retratado pelo músico.
A canção neste contexto é uma fala situada, e como tal, se revela como contradiscurso à ordem hegemônica. Esta abordagem tem sido marca inconfundível do
trabalho de Edson Gomes ao longo de mais de 20 anos. Em muitas outras canções o
autor-intérprete tematiza a violência policial de maneira contundente, o suficiente para
lhe ter causado alguns episódios assaz desagradáveis, como citado acima.
Parece sintomático que este período em especial guarde um número considerável
que canções que abordem este problema haja vista o contexto de cristalização do
Reggae como estilo étnico-estético-musical redefinindo o panorama das identidades
sociais neste fim de século XX. Atesta, ao meu ver, o confronto em torno da
apropriação da música reggae (e sua bagagem cultural) pelos segmentos marginalizados
na sociedade baiana encorajados por estes novos ritmos e, de outro lado, os
representantes de uma “velha ordem” social que identificava nestas manifestações uma
certa ameaça ao status quo. Em outras palavras o conjunto de canções registradas ao
longo dos anos 90 são emblemáticas das contradições que giravam em torno da
afirmação do Reggae no cenário sócio-cultural baiano. Não a toa este foi tema da
segunda faixa do primeiro disco Dionorina de 1994 (o LP música das ruas). A canção
“porrada de polícia” é uma referência emblemática da percepção do artista sobre o
problema:
152
O Jornal Folha do Reggae publica breve matéria sobre as medidas autoritárias da Prefeitura
Municipalem 1997.
134
PORRADA DE POLÍCIA
(Dionorina/Jorge Magalhães, 1994)
É no fundo da fome
Que a boca lambe a mesa farta de pavor
É na fome e na dor
Como porrada de polícia
Quem mora no morro
Tristes projetos de vida
Se corre pro osso
É presunto na pista
Se fica é pirão pra polícia
Ninguém quer polícia pra ordenar a fila
Representantes armados do sistema
É no fundo da fome
Que a boca lambe a mesa farta de pavor
É na fome e na dor
Como porrada de polícia
Não dá pra chorar
Quando mais forte é o desejo de comer
Guerreiros da redenção da raça humana
Detenham o trem da babilônia
Porque não param o trem
Da babilônia
O apelo-denúnciia à violência policial é ponto alvo desta canção. Cabe registrar que o
termo violência deve ser compreendido de maneira ampla, para além da moléstia física,
como qualquer manifestação de arbitrariedade do corpo policial diante da sociedade em
geral. Relaciona ainda, a crescente violência policial à miséria e outras mazelas velhas
conhecidas de nosso país. Posição semelhante, e muito mais explícita foi registrada por
outros artistas dentre os quais cabe o exemplo do Reggaeman Feirense Jorge de
Angélica que em seu primeiro disco gravado em 1998 (Sopa de Papelão) traz uma
135
análise pontua sobre o problema na canção “Gangue”, é uma análise pontual do
problema:
GUANGUE
Jorge de Angélica, 1998)
Guangue perseguindo Guangue...
Morros e favelas
Pega fogo, corre sangue
Com essa briga de guangue
Guangue perseguindo Guangue...
Inocentes não tem nada a ver
É quem vai pagar
É quem vai morrer
Com essa briga de guangue
Guangue perseguindo Guangue...
Confrontos
Em que se confundem
Pessoas de bem
Honesta e trabalhadora
Lhe dão tiro de 12
PT e metralhadora
Comentem muita injustiça
Tantos fora da lei
Como a própria polícia
quanta ignorância
os miseráveis matam as mulheres
também matam as crianças
é guangue de marginais
guangue de policiais
pois eles armados
são todos, são todos
todos iguais
136
e a gente nunca sabe
quem mata mais
são balas perdidas
Guangue perseguindo Guangue
Guangue perseguindo Guangue...
A violência no interior dos bairros periféricos nos centros urbanos do Brasil é
uma infeliz realidade. Não tem sido diferente na cidade de Feira de Santana, onde
vive o artista e de onde tirou inspiração para as questões identificadas na canção.
Em sua análise, a polícia é comparada às quadrilhas de criminosos que sitiam os
bairros periféricos da cidade e, deste modo, co-responsável pelos altíssimos
índices de mortalidade que atingem esta parcela da população urbana. Esta
posição redeu ao músico inúmeros casos de perseguição conforme o próprio
informou em sua entrevista:
Tivemos muitos problemas com a polícia. O pessoal do Reggae era oprimido.
Quando eu fiz a música Gangue perseguindo Gangue fui abordado por uma
patrulha de polícia no dia do show que queria que Jorge de Angélica descesse
do palco pra me espancar, me fazer covardia. Naquele dia Deus providenciou
anjos em forma de Sargento, de cabo que chamou a patrulha...
Pra ir embora do show a viatura teve que dar uma certa cobertura até próximo
de casa. O sargento Valdir chamou “eles” e explicou [ação que] abrandou os
ânimos e modificou o raciocínio dos policiais.
Este episódio demonstra que o enfrentamento com a polícia, se dava a partir de
uma dinâmica própria de relativa negociação e conflito. O Sargento Valdir citado foi,
segundo Jorge de Angélica um dos primeiros colecionadores de discos de Reggae na
cidade e co-fundador do fã clube Marcus Garvey, sediado no bairro da mangabeira.
Ainda segundo o músico, o referido policial contribuiu, ainda que de maneira indireta
para amenizar a perseguição aos “homens rastas” da cidade, alvo de rotineiras
abordagens públicas. Obviamente este dado não está dissociado da maior popularização
da música Reggae nos centros urbanos da Bahia.
Em suma, estas e outras vivências registradas e problematizadas nas faixas dos
discos de Reggae ora analisado faz refletir sobre a importância do Reggae como
137
discurso étnico-identitário de denúncia às manifestações de racismo e outras formas de
violência.
“De Jesus à Jah...” (Interlude)
Uma audição das fontes tem revelado a necessidade de compreender, de maneira
mais aprofundada, a relação entre Religiosidade e produção musical no contexto em
foco, uma vez que a experiência religiosa se nos apresenta de maneira bastante singular
nas canções, e mesmo declarações públicas dos artistas. É fundamental considerar que
não me proponho, pelo menos por hora, a analisar densamente os caminhos dessa
relação mas, apontar, a título de reconhecimento os campos religiosos se apresentam
nos materiais analisados.
Pensar a religião nesse contexto implica correr os riscos apontados no ao estudo
de Marco Davi Oliveira (2004) sobre a participação dos negros no universo religioso
pentecostal brasileiro. Segundo o autor, a enorme presença quantitativamente negra
entre os adeptos destas religiosidades
tem-se convertido num fenômeno merece
maiores estudos. Curiosamente na Bahia, parte considerável dos músicos e maior
projeção (comercial) da música Reggae são pentecostais ou tem alguma ligação com
este campo religioso. A rigor, esta relação já faz parte da história social do Reggae
desde suas origens jamaicanas.
A trajetória da música Reggae está desse modo, indissociada dos caminhos da
filosofia Rastafari. A história moderna da Jamaica tem entre suas páginas a presença dos
movimentos panafricanistas como uma das influências mais marcantes no universo
político e cultural da Ilha. De certo modo, a divulgação da música Reggae no mundo
proliferou a cultura Rasta pelos continentes. Através cultura Rasta, por sua vez a música
Reggae tornou-se um das principais trilhas sonoras do Atlântico Negro, definindo o
perfil de parcela considerável dos grupos sociais em centros urbanos de países do
chamado primeiro mundo, a exemplo de Londres, na Inglaterra (Sansone, 1988).
Na Bahia, se a música Reggae foi um dos mais emblemáticos elementos
articuladores de “estilos de vida diferenciados”, a presença da ideologia rastafári
também resultou em “uma gama de versões”, como sugeriu Cunha (1993). Em seu
estudo realizado no início dos anos 90, Cunha já observava que a influência da música
138
afro-jamaicana havia alterado profundamente o as formas de identificação étnica, de
modo que o uso do termo “Rasta” havia sido incorporado como auto-inscrição de
negritude e anti-racismo de cunho político ora laico, ora religioso.
Este tipo de impressão ficou em muitas gravações do período. Em 1990 quando
do lançamento do álbum Recôncavo, o cantor e compositor Edson Gomes se
posicionava nessa perspectiva, com a canção “Adultério”:
ADULTÉRIO
(Edson Gomes, 1990)
Rastafary
Se desligando desse sistema
E da coisa imunda que nos envenena
E que adultera a nossa sina
Rastafary
Cantando Reggae em cada esquina
A coisa linda que nos alucina
E que faz ficar tão boa a vida
Eles querendo mudar nossa sina
Nos injetando a inconsciência
Dizendo que é a democracia
Grande piada conto de fada (Rastafary)
Disso sabemos (Rastafary)
Por isso vivemos
A violência em toda cidade
Ninguém jamais viu a liberdade
A repressão em toda cidade
Ninguém jamais viu a liberdade
O termo Rastafary é encarado, neste caso, como sinônimo de auto-identificação étnica e
política não necessariamente ligada a um conteúdo religioso. De todo modo, a
existência de espaços alternativos como a “legião Rastafari” - uma primeira tentativa de
aglutinar interessados pelo rastafarianismo e a música Reggae no bairro da liberdade – e
posteriormente a busca por um contato maior com o conhecimento da Bíblia, trouxe
expressões idiossincráticas de uma religiosidade híbrida. Nesta busca, muitos jovens
139
passam a freqüentar igrejas pentecostais de Salvador e vivenciam uma série de conflitos
dada à postura (estética inclusive) diante do estudo da bíblia. Segundo Olívia G. da
Cunha (1993) citando Burdick (1989), trata-se de “ambivalências e contradições de uma
aparente igualdade racial”. Mesmo inseridos em igrejas - como a Igreja pentecostal
Jesus Nazareno - a convivência destes jovens foi sempre marcada por episódios de
discriminação. Entre os exemplos, o caso do conjunto “Estado de alerta” que fazia parte
do corpus da agremiação religiosa. Para muitos Jovens Rastas o acesso aos à música era
frequentemente vetado, seja na formação da banda, seja na escolha dos repertórios.
Ainda que o reggae fosse inserido como um dos “ritmos” no culto, a presença dos
“regueiros” ao uso da palavra foi quase sempre restrita.
Cunha (ibid.) aponta ainda que, entre muitos jovens Rastas de Salvador, a
interpretação a cerca destes processos revelava um tipo característico de acetismo
intramundano – para lembrar Weber (1905) - que encarava a igreja como “extensão do
Mundão”, logo, de seus vícios e contradições.
Para além da experiência da “Legião” é possível destacar ao longo dos anos 90
alguns exemplos desta concepção particular de rastafarianismo-pentecostalismo
registrados na produção fonográfica. É importante notar que há uma distinção central
entre esta vivência religiosa do rasta “convertido”, ou cristãos, e os chamados “crentes”:
ao defender o princípio da salvação pela fé – que remonta à gênese dos movimentos
reformistas na Europa do século XVI – num contexto onde o conflito religioso perpassa
a dimensão racial, emerge uma nova identidade étnico-religiosa que rejeita a submissão
ao pastor e as regras das igrejas em detrimento da busca estrita pela ligação espiritual
através do conhecimento bíblico e do culto à palavra.
É o que se apresenta no disco de Ras Ciro Lima (Hailé Sellasiê I , grav.:
independente, 2001). Os componentes gráficos do álbum, gravado em CD, remontam à
iconografia judaico-cristã que serve de referencial simbólico para o rastafarianismo.
Este material é um registro interessante para ilustrar o conjunto de trabalhos ligados à
filosofia Rastafari produzidos na Bahia. Entre as canções, pode-se destacar a faixa
“Naum Jah”:
NAUM JAH
(Ras ciro Lima)
Naum JAH
O Senhor nos consolou
140
Naum JAH
Na batida do Tambor
Foi o sangue de Jesús
Que lavou o meu tambor
Meu coração ele é um tambor
Que está batendo I
É um louvor
De Jesus à Jah
Rastafari I
Foi o Sangue de Jesús
Que lavou o meu tambor
Esta canção ilustra bem a aproximação entre o universo cristão-pentecostal e a matriz
panafricana do rastafarianismo. Com efeito, a alusão à figura de “Jesus” não se opõe à
referência à “Jah”, representação maior do sionismo negro, mas, se locupletam como
partes de uma mesma cosmovisão. A sonoridade tipicamente inspirada nos Burru
Drums153 jamaicanos sugerem a peculiar experiência de um rastafarianismo tenazmente
local.
Em outros casos, vê-se com maior expressividade uma musicalidade
fundamentalmente cristã, a exemplo dos trabalhos de Nengo vieira. Este que é um dos
fundadores dos “Remanescentes” de Cachoeira e um dos e arranjadores e/ou
compositores dos principais trabalhos de Edson Gomes e Sine Calmon, revela em seu
trabalho uma vertente fundamentelmente cristã.154 Atualmente, Vieira é uma das
lideranças religiosas da igreja Bola de Neve Church, de onde gravou ao vivo seu mais
recente trabalho “Avivamente”155
Em linhas gerais, pode-se considerar que há muito para ser investigado, no que
diz respeito às relações e tensões envolvendo a temática das religiões e a produção da
música Reggae na Bahia. Utilizo estes poucos exemplos para sugerir que este é um
caminho profícuo para análises futuras.
153
Tambores utilizados originalmente nas celebrações Rastafari. O tambor grave é o solista, enquanto os
demais são responsáveis pelo ciclo intermitente da batida que identifica a musicalidade Rasta.
154
No anexo digital ouvir a faixa “somos libertos” do álbum homônimo
155
Selo Bola de Neve, 2006.
141
142
143
144
FAIXA 5 (Dub Version) :
“QUEM NÃO GOSTA DE REGGAE,
BOM SUJEITO NÃO É...”
Manifestando e contaminando
pelos fones nunca surdos
microfones nunca mudos
através das entidades sampleadas
que dançam o absurdo
do canteiro da gláxia nervosa
falando para o ouvido do mundo:
plugue-se, ligue-se
vá longe... longe.
(trecho de“Voyager” Nação Zumbi (futura), 2005)
Vamos amigo, lute.
senão a gente acaba perdendo
o que já conquistou
(Trecho da canção “lili” de Edson Gomes, 1990)
145
Se a musica é repleta de sentidos que remetem ao contexto em que foi produzida,
sua reverberação também potencializa novas formas de leitura e apropriação. O debate
que se propôs nesta dissertação foi uma tentativa de compreender algumas dimensões
destas questões: mais especialmente a construção/legitimação das identidades negras
mediadas pela música. Ao analisarmos a presença e fruição de culturas afro-musicais
transnacionais como o Reggae, deparamo-nos com uma série de releituras que atualizam
os sentidos estéticos, étnicos e políticos ou mesmo os distorcem. Obviamente, os
caminhos e as lacunas apontadas por este estudo evidenciam seu caráter não conclusivo,
além de sugerir o quão bem vindas e necessárias são as novas contribuições sobre esta
área das reflexões sobre a música negra.
Esta situação remete analogamente à apreciação de uma obra fonográfica, quando da
audição de sua da ultima faixa. Com é sabido, a faixa de despedida não implica pôr fim
à viagem sinestésica que a música proporciona. Curiosamente, estas faixas têm sido
utilizadas em muitos discos (inclusive os de Reggae), para uma releitura da própria obra
ou parte dela, em um novo arranjo onde se (re) aproveitam fragmentos, e mesmo
sonoridades dispersas, numa edição não-linear dos sons, além de sugerir novas questões.
Esta faixa-capítulo se propõe nesta direção. Não Trato aqui de uma consideração finaldefinitiva sobre a temática, mesmo porque isso seria impossível. Apresento, no entanto,
algumas sugestões e futuros caminhos por onde, acredito, seja possível percorrer nos
estudos sobre as memórias sonoras negr@s na Bahia, em particular à música Reggae.
Há, interligado ao surgimento desta musicalidade afro-jamaicana, outras expressões
que ganharam destaque na produção musical das últimas décadas, ainda que se
desconheça a validade destas. Refiro-me a uma filosofia musical criada por músicoprodutores jamaicanos como King Tubby, Augustus Pablo, e Lee “scratch” Perry com
recursos tecnológicos ainda precários à altura dos anos 60: o Dub. Para além de novas
técnicas de gravação e edição, e mesmo reprodução ao vivo, o Dub é uma interface mais
psicodélica da Música Reggae, Reconhecido pela presença irrevogável do baixo aliado
ao ritmo da bateria - quase sempre “temperada” com efeitos de eco e reverb – e pelas
sinuosas e mântricas frases dos instrumentos harmônicos. Aparentemente, trata-se da
repetição linear de pequenas melodias, mas, observando com cuidado percebe-se estar
diante de uma montagem/edição de sons em que o engenheiro de som ganha liberdade
no processo de criação. É portanto uma nova forma de conceber a música onde os
146
elementos sonoros podem ser combinados de muitas formas diferentes sem que haja,
portanto uma relação estrita com a versão original.156
Em um ensaio jornalístico publicado em 2003, Hermano Vianna analisa a
importância do Dub na produção contemporânea da música, defnindo-o como um
procedimento filosófico, ou seja, mais que um estilo ou forma musical, um “modo de
agenciamento de formas”, citando Jean Laude. Na análise de Vianna (2003):
...Segundo Laude, o que interessava a Picasso na “arte negra” não era o
exotismo ou o primitivismo, mas sim a maneira mais-que-moderna que as
máscaras e as estatuetas africanas propunham para pensar o mundo visual, onde
a combinação, as redes de sentido e a “montagem” têm mais importância que a
organização via linearidade da lei da perspectiva.
Peço perdão por mais uma longa citação mas, não resisti reproduzi-la uma vez que
entendo ser esta uma definição no mínimo coerente sobre a importância da produção
musical jamaicana e sua propagação no terceiro mundo na segunda metade do Século
XX, alterando a geopolítica da cultura. Mais que isso, sugere uma leitura da história da
arte que situa a inventividade da arte africana, e dos seus descendentes na Diáspora,
como paradigma alternativo à modernidade. Identifico-me ainda com a percepção do(s)
autor (es) quanto à importância do músico como artesão dos conceitos e sujeito
proeminente nas novas sociabilidades produzidas, dentre outras questões, pela relação
como o universo da música. Para Vianna, os produtores do Dub são Filósofos, no
sentido sugerido por Deleuze e Guatarri: sintetizadores de pensamentos (ibid.).
Não pretendo me alongar nesse debate apesar de achar frutífero que novos trabalhos
sobre a temática que hora me dedico levem em conta esta interface. Na última década
esta é uma das influências marcantes entre muitos dos registros do Reggae gravado na
Bahia. De certo modo, a música brasileira recente, tem forte infuência desta “filosofia
dub” ou “cultura do Baixo” (no sentido sugerido por Linthon Kwesi Johnson em seu
álbum Bass Culture), como insinua a crescente onda do Rap no Brasil que já duram
mais de 20 anos. Em salvador, mais recentemente, há um incipiente e produtivo cenário
inspirado nos clássicos do Dub, protagonizado por bandas como Ministério Público,
Dubstereo que merecem atenção das lentes das ciências Humanas.
156
Ver alguns exemplos (Anexo digital, faixa 5) : Augustus Pablo (as canções “East of River Nile”
gravadas em três versões por no álbum homônimo), King Tubby (as canções “King Tubby’s Dub” e
“Turnable Dub”, gravadas no álbum Bring the dub come),
147
È central que levemos em consideração que há uma dimensão sensorial fundamental
na música Reggae que também merece ser analisada com maiores detalhes nos estudos
posteriores. Para José J. de Carvalho (1999), cabe aos estudos musicológicos inserir a
interpretação das mudanças na percepção do ouvinte à gama de questões que tornam
possível compreender a produção e circulação da música popular no contexto paradoxal
da globalização. Segundo o autor, este quesito, remonta diretamente às transformações
nos processos de gravação e na relação dos músicos com o produto final. Para Carvalho
(1999) o princípio geral do equilíbrio sonoro definido pelos produtores e empresários
das gravadoras, remonta ao famoso “Panopticum” de Bentham, discutido por Foucault,
onde o músico, em Geral esta alijado do produto final, inclusive no que tange aos
benefícios financeiros de seu trabalho. Tem se produzido um senso “padronizado” do
fazer musical, seja pela duração da canção – que deve se adequar às regras do mercado
fonográfico ou do tempo (exíguo) do rádio – seja pelas concepções das diferentes
sonoridades.
Ao meu ver, a presença da música Reggae no mercado fonográfico mundial, e mais
especificamente na Bahia, minimamente instabilizou estas relações trazendo uma nova
sensibilidade que opera como recurso político e filosófico e se apresenta em novas
metafísicas do corpo. Seguramente, esta dimensão da sensibilidade musical é um dos
elementos que explica o conhecido estado de êxtase em que se envolve o público dos
shows de Reggae – entre os quais os inúmeros a que assisti neste intervalo de pouco
mais de 02 anos em Salvador e Feira de Santana. Acho um reducionismo gritante (para
não falar no preconceito) atribuir restritamente ao consumo de Cannabis, esta relação.
Para muitos ouvintes de Reggae a “batida” – que entendo como interação ritmo-melodia
– é um dos elementos mais significativos de identificação com o Reggae. Voltando à
história do Reggae, fica muito nítido que a produção de novas sensibilidades sempre foi
um tema presente na concepção dos músicos. A citação de Aston “Family Man” Barret
sob o significado da música Reggae parece sugerir um sentido mais político, ainda que
nas entrelinhas, que meramente se apresenta157
Em sua entrevista à esta pesquisa o produtor e radialista Clóvis Rabelo destaca,
entre as experiências difíceis no processo de gravação do álbum Reggae’essência de
Geraldo Cristal, a resistência dos técnicos de gravação em valorizar as freqüências
157
“a música Reggae é o batimento cardíaco do povo. E tem uma coisa boa: quando ela bate você não
sente dor”. In Catch a fire, 1999(Vídeo). Obra citada.
148
graves em detrimento de um modelo de equalização mais aceito pelo mercado. Nos
contou Clóvis Rabelo:
-Teve técnico que disse: não bota meu nome aí no encarte. Desse jeito eu não assino
a mixagem, por que senão eu posso me queimar”158
Entendo, portanto, que a questão da sensibilidade musical na produção musical da
Reggae é mais uma das janelas deixadas por este trabalho para refexões mais apuradas
no futuro.
Analisando as fontes ficou evidente a relação entre o Reggae e as relações no mundo
do trabalho e suas contradições. Entre o universo de temas versados pelas canções se
inserem muitas leituras que situam a exploração, as sedições e metamorfoses das
relações de trabalho no espaço urbano. É fundamental que se possa refletir melhor do
que se fez aqui sobre as diferentes representações dos compositores e interpretes sobre
as relações de trabalho e suas desigualdades.
Há, entre as canções, discursos-posições críticos à babilônia (leia-se capitalismo
contemporâneo) que não dissociam o fim da exploração de Classe da problemática em
torno da superação do racismo na sociedade brasileira. Estas leituras são primordiais à
compreensão tanto dos mecanismos de exclusão quanto acesso ao universo das relações
de produção, bem como as estratégias de sobrevivência dos sujeitos. Como apontado em
estudos como os de Silva (2001), o forte apelo político da musicalidade Reggae presente
nas letras e toda sorte de símbolos de identificação acabam por interferir em outras
identidades sociais como as identidades profissionais. Segundo Sansone (1988) as
subculturas musicais vêm operando de maneira singular na formação dos
comportamentos entre os grupos jovens nos centros urbanos de diversos países como
Inglaterra e Brasil e alterando, inclusive, suas relações com o mundo do trabalho.
Portanto, um olhar e ouvir mais interessado nestas questões pode render um estudo
sugestivo.
Outro caminho possível, diz respeito às relações de Gênero no universo da música e
sua produção. O silêncio em torno da presença das mulheres na produção musical do
Reggae baiano se constitui em uma lacuna por ser preenchida. Ainda que a profissão de
músico tenha maior presença masculina, há que se perguntar sobre a atuação das
mulheres. Em geral compondo as bandas como Backing Vocals ou atuando como
produtoras culturais (como Jussara Santana e Cristiane Calmon) de algumas bandas a
158
Entrevista com Clóvis Rabelo,
149
presença feminina pode/deve ser alvo de um estudo mais detalhado. Entre a discografia
analisada, o trabalho de Zavan Liv, o disco “Mil olhos”, é um registro sintomático de
que esta temática pode ser produtivamente desenvolvida.
Como foi apontado no capítulo 03 o enorme silêncio do mundo acadêmico diante
dos movimentos sociais negros na cidade de Feira de Santana deve ser urgentemente
quebrado. O diálogo com alguns/as de seus/suas protagonistas nestas últimas décadas,
tem revelado inúmeras agitações sociais em combate à violência contra @s negr@s na
cidade. Aliado a este dado cruel a farta documentação que se apresenta a partir dos
jornais, além do acervo de História Oral sob tutela do CEDOC/UEFS, são motivos de
sobra para referendar novas e mais ricas análises.
Além disso, admito que muito sobre o reggae e seus sujeitos no contexto da cidade
de cachoeira poderia ser abordado. Poupei energias sobre esta temática uma vez que o
trabalho em curso de Bárbara Falcón neste programa de pós-graduação vem
problematizando estas questões. Assim como esta temática, poderia também abordar
com maior rigor a importância dos meios de comunicação, mais especialmente o rádio à
afirmação da música Reggae no cenário sócio-cultural baiano. O trabalho de Clóvis
Rabelo, Ray Company, Lino de Almeida e tantos outros foram e ainda são parte
decisiva desta História. Guardo, portanto, minhas expectativas para as pesquisas de
Antônio Godi (FACOM-UFBA), também em curso, sobre esta interface das novas
sociabilidades mediadas pela música.
Como foi apresentado aqui a discografia em torno da música Reggae é um forte
enunciado da presença desta cultura musical no interior das relações sociais e suas
contradições. Estou certo que, o estudo da relação identidade-música pode ser
desenvolvido à luz que questões outras que não foram abordadas aqui. Não acredito que
todo o sentido da música Reggae esteja restritamente vinculado ao universo das
manifestações de anti-racismo e negritude. Minha preocupação no entanto é no
gradativo esvaziamento da perspectiva do pertencimento negro que ao longo das últimas
décadas edificou este e tantos outros estilos musicais.
O ano de 2008 é ainda um momento sugestivo para se pensar sobre a história recente
da música na Bahia, e como tal da música brasileira. Em artigo recente publicado no
Jornal A Tarde, Antonio Godi comentou a falta de apoio das políticas públicas aos
músicos e associações culturais ligadas à música Reggae em Salvador, no momento em
que se comemoram 08 anos da aprovação do decreto municipal que transformou o 11 de
150
maio no dia do Reggae.159 Não nos esqueçamos que há 20 anos do lançamento de obras
importantes como Reggae Resistência de Edson Gomes, ou Marley Vive da Banda
Terceiro Mundo, bem como há 30 anos de fundação do Movimento Negro unificado, há
muitas batalhas nessa “guerra cultural contemporânea” por serem travadas.
Coincidências
à
parte,
música
Reggae
continua
definindo
comportamentos,
subjetividades, sonoridades e sem dúvida novas identidades.
Foi seguramente embalado por estas influências que o compositor pernambucano
Jorge Du Peixe lançou a provocação que intitula esta faixa-capítulo de considerações
finais, à platéia de um show da Nação Zumbi neste ano em Salvador: “quem não gosta
de Reggae, bom sujeito não é”. Faço minhas as palavras dele.
159
Decreto Municipal 5.817/2000. Ver Godi, A.J.V.S. “O Reggae ralando nos oito”. Jornal A tarde, maio
de 2008.
151
ANEXO
ANEXO I
Discografia (por ordem cronológica)
(1979/80 – 1987):
1. Gilberto Gil, Disco: Realce, Gravadora: Elektra, 1979.
2. Chico Evangelista & Jorge Alfredo, Disco: Bahia Jamaica, Gravadora:
Copacabana, ano: 1980
3. Lazzo Matumbi, Disco (compacto): Salve a Jamaica, Grav.: Fermata, 1981
4. Gilberto Gil, Disco: Luar, Gravadora: WEA, 1981.
5. ________, Disco: Um Banda Um, Gravadora: WEA, 1982.
6. ________, Disco: Extra, Gravadora:WEA,1983.
7. ________, Disco: Raça Humana, Gravadora; WEA, 1984.
8. Lazzo. Disco: Viver, Sentir e Amar, Pointer Discos, 1983
9. ________, Filho da Terra - Pointer Discos, 1985
10. Luís Wagner. Disco: Ao vivo. Gravadora: Copacabada, 1986
11. Obina Shok. Disco: Obina Shok. Gravadora:RCA, 1986
(1988 – 1997):
12. Banda Terceiro Mundo, Disco: Marley Vive. Gravadora: EMI-Odeon, 1988
13. Celso Bahia, Disco: 2 Neguinhos, Gravadora: Continental, 1988.
14. Edson Gomes, Disco: Reggae Resistência, Gravadora: EMI-Odeon, 1988
15. ________,Disco: Recôncavo (identificado), Gravadora: EMI-Odeon, 1990
16. ________, Disco: Campo de Batalha, Gravadora: EMI-Odeon, 1992
17. ________, Disco: Resgate Fatal, Gravadora: EMI-Odeon, 1995
18. Gilberto Gil. Disco: O Eterno deus Mudança, Gravadora: WEA, 1989.
19. Lazzo. Disco: Atrás do Pôr do Sol. Gravadora: Nosso Som, 1988
20. Luís Wagner Disco: Conscientização, Copacabana, 1988
21. Muzenza, Disco: Muzenza do Reggae. Continental, Ed. Latino, 1988.
22. ________, Disco: Som Luxuoso. Continental, Ed. Latino, 1988.
23. Paul Simon, Disco: The Rhythm of The Saints, Gravadora: WBR, Editora: WBR,
ano: 1990.
24. Dionorina, Disco: Música das Ruas, Gravadora: Stalo Discos-BA,1994
25. ________, Disco: SACASÓ, Gravadora: Zero Bala-BA, 1998
26. Paulinho Ganaê. Disco: Independência em Mente. Independente, 1997
27. Reggae Vibrações, Disco: Reggae Vibrações - Vários artistas, Kansas, 1991.
152
28. Renato Matos e banda Acarajazz. Disco: Reggadô. Mel/disoteca 2001, 1993
29. Sine Calmon e Banda Morrão Fumegante, Disco: Fogo na Babilônia. Gravadora:
Atração Musical, 1997
(1998 – 2003):
30. Adão Negro, Disco: Adão Negro, 1998
31. ________, Disco: Só Diretoria, Gravadora: independente, 1999
32. ________, Disco: Vence Tudo: Gravadora: Atração Musical, 2003
33. ________, Disco: Vence Tudo Ao Vivo. Gravadora: Atração Musical, 2005
34. Diamba, Disco: Ninguém está a salvo, gravadora:independene, 2000?
35. Edson Gomes, Disco: Apocalipse, Gravadora: EMI-Odeon, 1998
36. Geraldo Cristal, Disco: Reggaessência, Gravadora: Independente, 2002
37. Gilberto Gil, Disco: Kaya N’ Gan Daya Gravadora: WEA, 2002.
38. Gilsam e Banda Airiyê, Disco: Reggae para Todos. Independente, 2002
39. Jorge de Angélica, Disco: Sopa de Papelão, Independente, 1998
40. ________, Disco: Confiança em Deus. Independente, 2002
41. Kamaphew Tawá e Aspiral do Reggae, Disco: Fonte do Saber. Independente,
1998.
42. Kebra Nagast. Disco: Desmistificação, Independente, ano:
43. Lazzo. Disco: Arte de viver, Gravadora: Eldorado, 1995
44. ________, Disco: Nada de Graça, LZZ, 1998
45. ________, Disco: Lazzo Matumbi 25 Anos ao Vivo, 2005
46. Nengo Vieira e tribo D’Abraão, Disco: Somos Libertos, atração Fonográfica, 1998
47. ________, Disco: Mata Atlântica, Idependente, 2003
48. ________, Disco: Chama, independente, 2006
49. Nilton Abisay e Banda Zorat, Disco: um dia pra sorrir, Gravadora: Independente,
ano:
50. Ras Ciro Lima. Disco: Haile Selassiê I. Independente, 2001.
51. Sine Calmon e Banda Morrão Fumegante. Disco: Rosa de Saron. Gravadora:
Atração Musical, 1999
52. ________,Disco: Eu vejo. Gravadora: Atração Musical, 2000
53. The Sheriff. Disco: Velha Raiz, figura 8 studio(independente), 2004.
54. Tin Tim Gomes. Pedra sobre Pedras. Independente, 1999.
55. Ubaldo Warú, Disco: Reggae Man. Gravadora: Musicart(independente), ano:?
56. Zavan Liv, Disco: Mil Olhos, Gravadora: Independente,
153
Sobre o CD anexo(digital):
Acompanhando o formato impresso desta dissertação segue um CD contendo
algumas das canções analisadas ao longo do texto. Para ouvi-las utilize um programa
para reprodução de áudio do Windows, ou qualquer outro sistema operacional, com
habilitação para arquivos no formato wave (.wav) ou
extensão MP3 (.mp3) esta
recomendação se extende aos aparelhos de som compatíveis para a leitura destes
arquivos.
O autor.
154
REFERÊNCIAS
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ENTREVISTAS:
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Edson Gomes. Entrevista concedida à revista musical on-line. 2006
2.
Clóvis Rabelo. Entrevista concedida em Salvador-Ba, 14/nov/2006
3.
S. Carmelito. Entrevista concedida em Salvador-Ba, 14/dez/2007
4.
Dionorina. Entrevista concedida em Feira de Santana-Ba, 24/nov/2007
5.
Jorge de Angélica. Entrevista concedida em Feira de Santana, 02/08/2008
VÍDEOS
A negação do Brazil. Dir. Joel Zito de Araújo, 2000
Catch a fire. Rock entertainment (colação Classic Álbuns), 1999.
Cérebros e mãos negras. Direção: Daniel Caetano, 2000
O estado da arte da Fuleragem (Vídeo-debate). Dir.: Pinzol. Juazeiro, UNEB, 2008.
Wattstax. Dir. Mel Stuart, EUA, 1972.
DVD’s:
Adão Negro. Ao vivo na República do Reggae. Salvador, Atração Musical, 2006
Edson Gomes. Ao vivo em Salvador-Bahia. Salvador, Atração Musical, 2006
The Best of Jorge de Angélica. Dir. Ricardo Roots. Feira de Santana, 2006
162
DISCOGRAFIA
Adão Negro, Disco: Adão Negro, 1998-2000
________, Disco: Só Diretoria, Gravadora: independente, 1999
________, Disco: Vence Tudo: Gravadora: Atração Musical, 2003
________, Disco: Vence Tudo Ao Vivo. Gravadora: Atração Musical, 2005
Banda Terceiro Mundo, Disco: Marley Vive. Gravadora: EMI-Odeon, 1988
Celso Bahia, Disco: 2 Neguinhos, Gravadora: Continental, 1988.
Chico Evangelista & Jorge Alfredo, Disco: Bahia Jamaica, Gravadora:
Copacabana, 1980
Diamba, Disco: Ninguém está a salvo, gravadora:independene, 2000?
Dionorina, Disco: Música das Ruas, Gravadora: Stalo Discos-BA,1994
________, Disco: Sacasó, Gravadora: Zero Bala-BA, 1998
Edson Gomes, Disco: Reggae Resistência, Gravadora: EMI-Odeon, 1988
________, Disco: Recôncavo, Gravadora: EMI-Odeon, 1990
________, Disco: Campo de Batalha, Gravadora: EMI-Odeon, 1992
________, Disco: Resgate Fatal, Gravadora: EMI-Odeon, 1995
________, Disco: Apocalipse, Gravadora: EMI-Odeon, 1998
________, Meus Momentos 1. EMI Odeon, 1994.
________, Meus Momentos 2. EMI Odeon, 1994.
________, Série Identidade (Coletânea). EMI, 2002
Gilberto Gil. Disco: O Eterno deus Mudança, Gravadora: WEA, 1989. Gilberto
________, Disco: Realce, Gravadora: Elektra, 1979.
________, Disco: Luar, Gravadora: WEA, 1981.
________, Disco: Um Banda Um, Gravadora: WEA, 1982.
________, Disco: Extra, Gravadora:WEA,1983.
________, Disco: Raça Humana, Gravadora; WEA, 1984.
________, Disco: Kaya N’ Gan Daya Gravadora: WEA, 2002
Gilsam e Banda Airiyê, Disco: Reggae para Todos. Independente, 2002
Geraldo Cristal, Disco: Reggaessência, Gravadora: Independente, 2002
Jorge de Angélica, Disco: Sopa de Papelão, Independente, 1998
Kamaphew Tawá e Aspiral do Reggae, Disco: Fonte do Saber. Independente,
1998.
Kebra Nagast. Disco: Desmistificação, Independente, ano: 2006
163
Lazzo, Disco (compacto): Salve a Jamaica, Grav.: Fermata, 1981
________, Viver, Sentir e Amar, Pointer Discos, 1983
________, Filho da Terra - Pointer Discos, 1985
Lazzo. Disco: Arte de viver, Gravadora: Eldorado, 1995
________, Disco: Nada de Graça, LZZ, 1998
________, Disco: Lazzo Matumbi 25 Anos ao Vivo, 2005
Luís Wagner. Disco: Ao vivo. Gravadora: Copacabada, 1986
________, Disco: Conscientização, Copacabana, 1988
Muzenza, Disco: Muzenza do Reggae. Continental, Ed. Latino, 1988.
Nengo Vieira e tribo D’Abraão, Disco: Somos Libertos, atração Fonográfica, 1998
________, Disco: Mata Atlântica, Idependente, 2003
________, Disco: Chama, independente, 2006
Nilton Abisay e Banda Zorat, Disco: um dia pra sorrir, Gravadora: Independente,
Obina Shok. Disco: Obina Shok. Gravadora:RCA, 1986
Paul Simon, Disco: The Rhythm of The Saints, Gravadora/editora: WBR, 1990.
Paulinho Ganaê. Disco: Independência em Mente. Independente, 1997
Ras Ciro Lima. Disco: Haile Selassiê I. Independente, 2001.
Reggae Vibrações, Disco: Reggae Vibrações - Vários artistas, Kansas, 1991.
Renato Matos e banda Acarajazz. Disco: Reggadô. Mel/disoteca 2001, 1993
Sine Calmon e Banda Morrão Fumegante, Disco: Fogo na Babilônia. Gravadora:
Atração Musical, 1997
________, Disco: Rosa de Saron. Gravadora: Atração Musical, 1999
________,Disco: Eu vejo. Gravadora: Atração Musical, 2000
The Sheriff. Disco: Velha Raiz, figura 8 studio(independente), 2004.
Tin Tim Gomes. Pedra sobre Pedras. Independente, 1999.
Ubaldo Warú, Disco: Reggae Man. Gravadora: Musicart (independente), ano:
Zavan Liv, Disco: Mil Olhos, Gravadora: Independente, 2002
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