UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADES DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS FABRICIO DOS SANTOS MOTA GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO: Identidades negras na música Reggae da Bahia (anos 80/90) Salvador-Ba 2008. Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. 1 FABRICIO DOS SANTOS MOTA GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO: Identidades negras na música Reggae da Bahia (anos 80/90) Dissertação apresentada ao Programa Multidisciplinar Pós-graduação em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Estudos Étnicos e Africanos. Orientadora: Profª. Drª. Ângela Lühning. Co-orientador: Prof. Dr. Lívio Sansone. Salvador-Ba 2008. 2 “Music is the weapon of the Future” (Fela kuti, anos 70) “... Luto apenas com a música” (Bob Marley, anos 80) “Surge mais um guerreiro do Terceiro Mundo. Levantando suas armas, com seu grito de alerta...” (Edson Gomes, anos 90) 3 RESUMO Este estudo analisa as manifestações étnico-identitárias de negritude a partir dos registros fonográficos da música Reggae produzidos na Bahia, entre os anos 80 e 90. A cultura musical Rasta-Reggae - uma das mais emblemáticas expressões da música negra no século XX – se constituiu em um forte referencial simbólico das políticas culturais no Atlântico Negro. A (re) criação do estilo afro-jamaicano no contexto em destaque foi registrada em um universo de canções que interagem com a construção/legitimação de sentidos de pertencimento negro e anti-racismo, a partir de temas como a África e o Caribe na Diáspora bem como a História e memória das populações negras no Brasil. Investigando a presença e cristalização do Reggae na cultura local - a partir dos discos e outras fontes impressas e iconográficas - pretende-se compreender a produção de novos referenciais identitários, a partir da produção e circulação de um estilo estético-musical de tendência transnacional. Refletir sobre a relevância da música negra no universo da contracultura contemporânea fortalece, portanto, um parâmetro de análise dos movimentos sociais e seus desdobramentos nas últimas décadas aproximando-se da experiência d@s sujeitos sociais e suas recriadas estratégias de mobilização e intervenção na vida pública. Palavras-chaves: Música Reggae, registro fonográfico, identidades negras, anti-racismo. 4 ABSTRACT This scientific study analyses ethno-identity manifestations of blackness from Reggae music on long-playing record made in Bahia between 80s and 90s. The Rastareggae musical culture- one of the most emblematic expressions of black music in 20th century- has established as a strong and symbolic yardstick of cultural policies in the Black Atlantic. The (re)creation of afro-Jamaican style on that context was represented in a great deal of songs which interact with the construction/legitimacy of a black sense of belonging and anti-racism, by raising themes as Africa and the Caribbean as well as History and memories of black people in Brazil. By researching the presence and crystallization of Reggae on the local culture-based on records and other printed and iconographic sources- is intended understanding the production of new identity yardsticks through the realization and circulation of a esthetic and musical style of transnational trend. Thus, to reflect on the relevance of the black music to contemporary contra-culture strengthens a parameter of analysis of social movements and their developments in the last decades. It is possible by approaching the social subjects’ background and their recreated strategies to mobilize and intervene on public life. Key-words: Reggae music, long-playing record, black identities, anti-racism 5 RESUMEN Este estudio analiza las manifestaciones étnico-identitaria de la negritud a partir de los registros fonográficos de la música Reggae producidos en Bahía, entre los años 80 y 90. La cultura musical Rasta-Reggae - una de las más emblemáticas expresiones de la música negra en el siglo XX – se constituyó en un fuerte referencial simbólico de las políticas culturales en el Atlántico Negro. La (re) creación del estilo afro-jamaicano en el contexto en destaque fue registrada en un universo de canciones que intercambian con la construcción/legitimación de sentidos de pertenecimiento negro y anti-racismo, a partir de temáticas como África y Caribe en la Diáspora como también la Historia y memoria de las poblaciones negras en Brasil. Investigando la presencia y cristalización del Reggae en la cultura local - a partir de los discos y otras fuentes impresas e iconográficas – se pretende comprender la producción de nuevos referenciales identitarios, a partir de la producción y circulación de un estilo estético-musical de tendencia transnacional. Reflexionar sobre la importancia de la música negra en el universo de la contracultura contemporánea fortalece, por lo tanto, un parámetro de análisis de los movimientos sociales y sus desdoblamientos en las últimas décadas acercándose de la experiencia d@s sujetos sociales y sus recreadas estrategias de movilización e intervención en la vida pública. Palavras-chaves: Música Reggae, registros fonográficos, identidads negras, antiracismo. 6 Banca examinadora: _____________________________________ Prof. Dr. Salloma Salomão Jovino da Silva – PUC-SP _____________________________________ Prof. Dr. Lívio Sansone (co-orientador) - UFBA _____________________________________ Profª. Drª. Ângela Lühning (orientadora) - UFBA 7 Dedico este trabalho, à vida, in memorian, dos mestres Jorge França (Camelo), Lino de Almeida, Hick Husband e Rogério Fátima dos Santos: Guerreiros do terceiro mundo! ao meu filho João Lucas de 4 anos que, assim como eu, também está aprendendo a escrever... sobre as coisas da vida. 8 SUMÁRIO Agradecimentos ........................................................................................................... 09 LADO A: P 2008 – 2006-1-570-3 FAIXA 1 – (INTRO) APRESENTAÇÃO................................................................... 14 FAIXA 2 – “SURGE MAIS UM GUERREIRO DO TERCEIRO MUNDO...” ............................................................................................ 16 “uma questão de identidade”: a música remodelando a pertença ............................ 25 Virando Jamaica ...................................................................................................... 30 A “Babilônia do Sertão” e suas chamas .................................................................. 48 “Nas margens do Paraguaçu...” .............................................................................. 52 FAIXA 3 – “ÁFRICA A LA JAMAICA, MÚSICA DA RAÇA” ............................. 53 “Os Guerrilheiros da Jamaica vão atacar...” ............................................................ 60 A África no atlântico Negro: outros diálogos ........................................................ 74 De beduínos a malês ................................................................................................ 84 _LADO B:_ P 2008 – 2006-1-570-3 FAIXA 4 – OS ANOS 90 E O VERÃO DO REGGAE BAIANO .......................... 106 1988, o ano que não terminou... ............................................................................ 108 Queimando tudo com a Folha do Reggae ............................................................. 126 “Porrada de Polícia” .............................................................................................. 129 FAIXA 5 “De Jesus à Jah” (interlude) ....................................................................... 137 FAIXA 6 (DUB VERSION) - “QUEM NÃO GOSTA DE REGGAE, BOM SUJEITO NÃO É” ..................................................................................................... 144 FICHA TÉCNICA ANEXO I (Discografia por ordem cronológica e alfabética) ................................ 151 o Sobre o CD(anexo digital) ........................................................................... 153 Referências ............................................................................................................ 154 Discografia ............................................................................................................ 162 9 AGRADECIMENTOS “Nunca se vence uma guerra lutando sozinho...” (Raul Seixas) O exercício de agradecer é tão gratificante quanto difícil, sobretudo quando se tem uma lista imensa pela frente. Por isso, antes de tudo, agradeço aos guias da alma que, movendo harmoniosamente o universo, me puseram aqui. Reconheço que a apresentação deste trabalho é, mais que um esforço acadêmico inacabado, o resultado da luta de algumas gerações pelo acesso à dignidade pela via da educação e por isso agradeço imensamente aos familiares, mestres e amigos pelo incentivo, apoio e orações que se somaram ao longo desta jornada. Aos familiares ‘de casa’, minha Mãe (Dionéia) e meu Pai (Francisco) agradeço pela vida em seu mais amplo significado. Tive, graças a vocês, a oportunidade de ver a escola como estrada para a dignidade e espaço de transformação e auto conhecimento. Ao meu irmão Leandro e sua família (Rebeca, D. Edivalda e Jonas), sou grato por toda a força e exemplo de perseverança e luta por dias melhores. A gratidão e amor que guardo por vocês jamais caberá nas dimensões da palavra escrita! À Tatiana, minha amada companheira, agradeço pela vida ao seu lado. Desde então pudemos compartilhar momentos decisivos e gratificantes como este. Seu apoio foi fundamental desde a digitalização dos acervos de Jornais em Feira de Santana, ao longo de sua pesquisa de mestrado, às leituras do texto em suas primeiras, intermediárias e últimas versões. Sua paciência e credibilidade para com este trabalho somam-se, acima de tudo, somam-se ao carinho edificante que sua presença me traz. E por falar em amor, não há como não registrar minha gratidão ao nosso lindo filho, João Lucas, que nunca me negou seu terno abraço, ainda que minha falta pudesse lhe sugerir motivo. É por ele que estou aqui também! À minha família ‘em Feira de Santana’, [Seu] Iélio (Digo!), [Dona] Anita e Andréia (tia Déa) – respectivamente sogro, sogra e cunhada – minha gratidão por todo apoio e incentivo fundamentais à concretização deste e outros sonhos. Fico muito feliz de ter vocês em meu destino. Agradeço também a meus primos Marcus e Ericson (Fão) pela convivência e solidaridariedade em momentos decisivos. Não esqueci que vocês me emprestaram o computador (naquela época difícil...) de onde saiu a versão do projeto aprovado para o 10 mestrado entre 2005-2006. Aproveitando agradeço aos meus numerosos Tios e Tias que desde sempre depositaram votos de carinho e confiança em minha opção pelos estudos. Aos amigos dos tempos da república universitária: Samuel Marques (este que além de compadre é amigo desde o ensino fundamental), Jefferson Sobrinho, Igor Santos, Igor Rocha (Godzigor), Felipe Costa, Nilton Araújo e Rogério. Sem Dúvidas, os cinco anos de fraterna e (in)tensa convivência e as doses diárias de Led Zeppelin, Jetrho Tull, Bob Marley and the Wailers, Novos Baianos, Gilberto Gil e tantos outros, me ajudaram a amadurecer algumas impressões sobre o universo dos sons. Às/aos Companheir@s da UEFS, dos bons tempos da militância estudantil nos grupos História para Todos (HPT) e Ousar, meu sincero abraço de agradecimento pelas noites (bem) perdidas! Pessoas como Luciana, Vladimir, Robério, Ana Clara, Reginilde, Paloma (que reencontrei no mestrado também), Neriane, Igor José, Íris, Hugo e toda uma lista numerosa da qual prefiro me esquivar para evitar injustiças. Entre representantes desta geração, agradeço em especial à amiga-comadre Edivânia Alexandre pela ajuda marcante desde a construção do projeto e pela amizade inestimável em todas as horas. Entre os docentes da UEFS, minha sincera gratidão pelas aulas de cidadania: posso citar entre estes/as: Elizete da Silva, Rogério Fátima (de quem sentirei saudades eternas!), João Rocha, André Uzêda, Acácia Batista, Eurelino Coelho, Marco Barzano e tant@s e tant@s outr@s... Para o amigo-mestre Antonio Godi agradecer é ainda pouco diante de todo aprendizado que a sua convivência me trouxe (desde os tempos da graduação, diga-se). Sua iniciativa de socializar comigo suas memórias e bibliografias, encorajou-me a mergulhar nos estudos sobre da música e transformou meu olhar e ouvir sobre o mundo. Espero que este estudo possa representar a primeira parcela de minha retribuição. Muit@s outr@s são os guerreir@s da música reggae co-responsáveis pelos méritos deste trabalho: Clóvis Rabelo, Jorge Papapá, Dionorina, Arygil, Geraldo Cristal, Sine Calmon, Marco Oliveira, Jorge de Angélica, Gilsam, Osvaldo Filho, Zavan Liv, Ras Sidney Rocha, Prof. Raimundo. Para Sérgio Cassiano, Marcos, Dino e a turma do Adão negro mando um abraço em agradecimento pela atenção com os materiais. Ao Sr. Carmelito Carvalho, exímio conhecedor da música Reggae no mundo, agradeço por toda a atenção e pelas boas conversas sobre ‘nosso’ tema de interesse. À amiga Valquiria Lima, cuja amizade sempre me trouxe as mais positivas vibrações um obrigado mais que especial. Foi graças ao seu convite pra o minicurso 11 “Memória musical Identidade negra” do projeto Reggae em Ação em Conceição do Coité (em 2005) que mergulhei de cabeça no “Atlântico negro” e outras leituras que fundamentaram o projeto que iniciou esta saga no curso de mestrado. Fico feliz em tê-la como companheira de luta nos movimentos sociais e agora (por um bom e longo tempo!) na vida profissional como docente lá no CEFET. Agradeço ainda a tod@s companheir@s da Associação Beneficente Revolution Reggae e Centro de produção da educação e cidadania (CEPECC) de Conceição do Coité-Ba pelo aprendizado de novos jeitos de caminhar. Se houverem méritos nesse trabalho, eles também são devidos a vocês, pela inspiração! Estamos firmes nessa Luta! Ao professor Salloma Salomão sou grato pela luz no início do túnel... Parte da inspiração para chegar até devo à sua digna atuação. Me lembro com alegria a ocasião em que assisti à sua conferência no Encontro Nacional de Estudantes de História (ENEH) na Unicamp em 2001, fato que marcou decisivamente meus interesses pelas memórias sonoras dos negr@s nesse país. Ao corpo docente do POSAFRO sou imensamente agradecido pelo valioso trabalho nas aulas que renderam parte considerável das inquietações que se enunciam neste trabalho. Foi uma experiência gratificante o convívio, as orientações e as conversas informais também. À professora Ângela Lühning sou profundamente grato, para além dos muitos conhecimentos novos, pela enriquecedora, compreensiva e paciente orientação. Reconheço que meus momentos de sumiço (necessários para ajustar as questões de sobrevivência) poderiam abalar nosso trabalho, não fosse a sua postura compreensiva. Por essas e outras, reforço minha gratidão pela atenção dispensada com as muitas inquietações que me ocorreram ao longo deste trabalho. Ao Prof. Lívio Sansone (Co-orientador) meus agradecimentos pelas boas oportunidades de aprendizado, leitura e contato com o universo da pesquisa acadêmica, além de todo incentivo desde as primeiras aulas. Ao professor Cláudio Pereira que no exame de qualificação trouxe sugestões e direções que se tornaram definitivas à elaboração da versão que se apresenta. Muitos foram também os momentos de descontração e profundo aprendizado nos intervalos em que ele se dispôs a falar sobre sua confessa paixão pelos discos e seus conteúdos estético-musicais. Aos/às colegas do POSAFRO meu fraterno agradecimento. Foi um prazer enorme compartilhar incertezas, angústias, anseios e outras experiências e projetos de vida com 12 Ana Rita, Juscélio, Carlos Fernandes (Lito, estás a ver!), Carlos Ailton, Sueli Conceição, Genivaldo, Pietro, Florismar Tatiane, Ecyla, Fábio, Valdélio, Rose, Bel (o Josivaldo), Marlon Marcos, Edmar, Liliam Aquino, Artemisa, Sueli Borges (da-lhe sambista!), Nadja, Fabiana e Bárbara - esta que é também parceira nos estudos sobre o Reggae na Bahia (te vejo aqui em breve...) Sem a atenção valiosa d@s funcionári@s que tem passado pela secretaria de nosso PPG, e do CEAO muitos encaminhamentos não teriam saído do papel. Neste quesito tenho muito a agradecer a Carlos Miranda (o co-fundador do POSAFRO!), Nadja e Lindinalva pelo trabalho competente e atencioso que dispensaram a mim em particular, assim como a todos os funcionários do CEAO que, em todas as áreas dão vida àquele espaço. Luís Brito e Carlos André (da gráfica rápida – xérox) me ajudavam, dentro do possível, a não ficar sem a cópia do texto pra ler e a eles também sou grato por este momento. Ter participado do curso avançado Fábrica de Idéias (2006) foi, sem dúvidas, uma das mais destacáveis experiências nesse trajeto. Devo muitos agradecimentos aos professores da X edição do evento, assim como aos colegas e demais partícipes das intensas semanas de confinamento acadêmico e divertida convivência em que aconteceu o evento. Aos/às Colegas do CEFET/Ba, unidade de Simões Filho, agradeço pela promissora amizade e pelas vibrações positivas nos momentos de tensão e cansaço provocados (dentre outras razões) pela elaboração deste trabalho. Entre @s quais estão: Bira, Ana Edna, Mide, Valquíria, Ana Maria, Núbia, Joelma, Fábio, Aron, Danielle, Alessandro, Azly, Itamar e Valdeluce. De Salvador (sede): Joilson, Sinval (de sociologia), Sinval (de Artes), Antonio Lima, Cely, Vânia (do CGRH) e tantas outras pessoas que, de maneira indireta também contribuíram para a concretização desta tarefa. Às colegas Joelma Santos e Cely Vianna adiciono mais um obrigado pela tradução, respectivamente para o Inglês e Espanhol, do resumo. Para @s querid@s estudantes do CEFET- Simões Filho (renderia uma enorme e bela “lista de presença” citá-l@s...) guardei também um enorme abraço de agradecimento. Com vocês tenho aprendido na prática que, de fato, a dúvida é a base para se construir conhecimento. Vocês nem imaginam o quanto são co-responsáveis pela minha formação também! 13 Ao professor Carlos Benedito Silva (Carlão) da UFMA e tod@s do centro de Cultura Negra do Maranhão meus agradecimentos pelo incentivo, pelo apoio quando da visita à São Luís. Além disso, tenho muito a agradecê-lo pela fonte de inspiração que suas pesquisas me trouxeram. Sinto-me feliz em contribuir, de alguma maneira, com o conjunto de estudos sobre música negra na diáspora cujo professor foi um dos pioneiros nesse país. Ao nobre amigo Matheus de Jesus, minha gratidão pela disposição e mediação com as muitas falas do universo. Sou ainda muito grato aos/às Companheiros de música que ao longo desta mais de uma década vem alimentando, através da arte dos sons, minhas utopias incendiárias! Especialmente a Marcus Zanomia, que tem acompanhado este trabalho desde sua gestação. Por fim, agradeço a CAPES/CNPQ pelo incentivo através da bolsa de estudos que literalmente alimentou este pesquisador e a realização de sua obra. E pra você que não esqueci, “aquele abraço”... 14 FAIXA 1 : (INTRO) APRESENTAÇÃO Sonhei e fui... Mar de cristal, sol água e sal, meu ancestral. E eu tão singular me vi plural (trecho da canção “ Sonhei” de Lenine, Bráulio Tavares e Ivan Santos) A história e prática da música negra apontam para outras possibilidades e geram outros modelos plausíveis(...) utilizo a analogia da música porque você pode viajar pelo mundo inteiro e ela ainda é negra (Tony Morrison, citado por Paul Gilroy em O Atlântico negro, 2001) 15 O presente trabalho é uma impressão sobre as andanças da música. Mais especialmente, sobre uma das trilhas sonora mais expressivas do século XX e sua reverberação no universo sócio-cultural baiano: O Reggae. Urdido nas favelas urbanas de Kingston (capital da Jamaica) nos anos 60, este foi um dos principais meios de denúncia e combate contra a exclusão social e a invisibilidade dos negros que se mundializou reassumindo nova leituras sonoras e referenciais de identidade. Visto aqui como uma contracultura musical, foi responsável por conectar diferentes grupos “nacionais” que engendraram, de maneiras singulares uma visão de mundo multicentrada do pertencimento negro representando um exemplo genuíno de “estilo étnico de status global” (Cf. Gilroy, 2001). Na Bahia das últimas décadas do século XX, compôs a cena plural dos movimentos políticos e culturais em consonância com o posicionamento das militâncias negras urbanas. Tornou-se imprescindível à compreensão da ressonância nacional e mundial da musicalidade1 Reggae - uma das mais emblemáticas expressões da música negra na Diáspora - investigar sua existência idiossincrática na Bahia. Convergindo para esta direção, analiso a presença estético-musical e sonora do Reggae e sua interface com os processos de construção/legitimação de sentidos identitários de negritude e anti-racismo em interação/integração com outros movimentos político-culturais ao longo dos anos 80 e 90. Por isso, adverto que as linhas que seguirão são um esforço acadêmico de um certo autor-sujeito, que vivenciou e se relacionou e relaciona com universo musical abordado. Acho importante salientar este dado, pois acredito que no debate sobre a questão das identidades nossos “lugares” são imprescindíveis à construção de nossas intervenções e discursos. Para tanto, Imagino que entrecruzar minha história de vida ao trabalho de pesquisa no texto que se apresenta pode ser uma forma de traduzir, inicialmente, minha relação com este terreno musical. Voltando no tempo identifico na minha experiência familiar pessoal uma influência decisiva na minha relação com a música. Minha genealogia, no pouco que a conheço, não inclui muitos músicos, ou agentes ligadoa à produção musical. Por outras vias, no entanto, a música quase sempre este presente no meu cotidiano familiar, definindo minhas memórias e demarcando momentos cruciais ao longo da vida. 1 O conceito de musicalidade quando utilizado aqui remete diretamente à formulação proposta por Salloma Silva (2000) como um conjunto de práticas musicais, e como tal, posições político-culturais. 16 Nas memórias mais marcantes de minha infância e adolescência figuram meus numerosos tios e tias com quem convivi e seus muitos sons e gostos musicais. Devo especialmente a Alberto Feitosa (tio Beto), um dos irmãos gêmeo-caçulas de minha mãe, o despertar para as nuances e informações contidas na construção de uma canção. Convivi muitos anos com suas “músicas” compostas pelos muitos cantos da rua ou de casa – o quintal, a varanda, a mesa do almoço – percutidas entre baldes, bacias e velhas panelas, cujos arranjos ele sempre tinha o cuidado de solfejar muito bem. Ainda tenho muito nítido em minha memória alguns solos de guitarra, trompete, órgão que ele solfejava de maneira onomatopéica. Seu repertório eclético soava para mim de modo muito particular, pois confesso que construí junto com ele, durante minha infância e adolescência, a atenção para o processo de construção e gravação musical. As informações das letras, os instrumentos utilizados, as diferentes “formas de fazer” uma idéia se transformar numa canção, enfim, tudo que levasse o som chegar até o Bolachão2, ao rádio, às fitas cassete. Imagino que surgia dali a minha compreensão de que arranjo e letra são conteúdos que podem se locupletar. Esta convicção óbvia fez e faz muito sentido à percepção da música como arte de produzir significados a partir do som. Por volta de 1988-89 ganhamos um aliado precioso: um aparelho rádio-gravador National – que foi adquirido com a intenção de registrar os shows do de um Festival de Rock que seria transmitido pela TV em rede nacional. O aparelho possuía um microfone embutido e registrava tudo na fita cassete. O ‘National’, como foi logo apelidado, era uma espécie de Estúdio de gravação portátil em que guardávamos as idéias imediatamente depois de concluídos os “ensaios” do quintal. Auxiliado algumas vezes por minha tia Lira ou minha Mãe, corríamos para registrar cada criação antes que a memória nos traísse. Meu tio insistia que o banheiro era o melhor lugar pra gravar as músicas devido ao eco provocado pelas paredes de azulejo, o que segundo ele dava uma sonoridade de disco ao vivo. Durante anos aquele divertimento musical me aproximava de modo singular do gosto pela música e, consequentemente do interesse por tocar um instrumento. De certo modo éramos, eu e meu irmão, bastante estimulados ao contato ainda que pouco sistemático com os brinquedos-instrumentos musicais desde a infância. Para mim em particular, foi também imprescindível a contribuição de meu tio (materno) 2 Termo coloquial usado para definir o Long Player, disco de Vinil, dada sua semelhança com um biscoito (ou bolacha). 17 Gileno com seus instrumentos artesanais de percussão em um determinado momento da adolescência. Sempre que viajava pra Valença no verão visitava sua pequena “oficina” em busca dos trabalhos artesanais com o côco seco, sua especialidade. 3 Para muitos da família as canções de meu tio Beto soavam como um devaneio4 para outros como um talento para as artes que só haveria de se concretizar pela sorte. Minha avó Eulina sempre dizia que ele tinha futuro, mas, que nós deveríamos procurar um caminho melhor pra nossas vidas através dos estudos. Ao escrever essas linhas, lembro-me com detalhe de suas palavras. A oportunidade de poder cruzar estes caminhos na pesquisa que se apresenta é, portanto, algo muito gratificante. Ainda na adolescência, tive entre meus familiares alguns ouvintes do Reggae. Nas muitas vezes que estive com Carlos Feitosa (ou simplesmente Tio Feitosa) em sua casa na cidade de Valença no baixo-sul da Bahia, terra natal da porção materna de minha família, ouvíamos muitos discos de Jimmy Cliff, Alpha Blondy e, sobretudo do Reggae Man Edson Gomes por quem ele e eu guardávamos uma admiração enorme, seja pela qualidade do seu trabalho, seja pelo fato de ser prata da casa, logo, trazer em suas canções os problemas de nosso tempo. Recordo-me ainda com humor meu Tio paterno Pascoal Mota que sempre me apresentava alguns cassetes com gravações de Edson Gomes. Nas palavras dele, o Reggae era a “música que fala a verdade!”, referindo-se ao conteúdo crítico-social abordado nas letras. Esta imagem me marcou profundamente, pois de fato as tais “verdades” também me causaram a inquietação necessária para estar aqui. Imagino que meu gosto pela música foi também fortemente influenciado pelo contato com o rádio, com os muitos discos de vinil que tínhamos em casa e com a imagem que dos músicos que apareciam na TV (e sempre vibrei com as aparições de Gilberto Gil!). Paralelo a isto, é importante destacar minha atenção aos grupos de percussão (Leia-se Samba-Reggae) que brotavam nos muitos bairros de Salvador5. A rigor me interessava bastante pela possibilidade de aprender a tocar um instrumento e compreender os princípios de organização que transformavam idéias, sensações, impressões sobre a sociedade em algo tão sinestésico como a canção. 3 Entre estes destaco os instrumentos de percussão confeccionados com pele de cobra. A sonoridade era muito parecida com um bongô. 4 Sendo mais preciso escutei eventualmente a expressão “coisa de maluco”, num tom sempre pejorativo. 5 Não poderia esquecer-me do Sementes do Reggae, grupo de percussão formado no bairro de Mussurunga. Alimentei por muito tempo a vontade de fazer parte da Percussão do Semente mas, a proibição meio-tácita da família frearam minha utopia. 18 Esta inquietude não me levaria a outro caminho senão o de buscar produzir meus próprios sons. E assim, entrei para o “ramo”, como muitos jovens da minha geração, pelas bandas de garagem, tentando tocar os chamados “covers” de clássicos da música rock de projeção transnacional e da música afro-pop em destaque naqueles anos 90 como. O Reggae, por conseguinte, foi um dos meus primeiros repertórios. Minha opção pelo baixo elétrico deveu-se ao interesse de ingressar nas bandas de Rock e Reggae fundadas entre 1996-97no bairro de Mussurunga em Salvador. Não por coincidência aquela era uma conjuntura de muita visibilidade para estes estilos transnacionais na Bahia. Do ponto de vista do Reggae baiano este intervalo de anos se constitui num momento crucial de afirmação destes estilos musicais no universo sócio-cultural de muitas cidades do Estado da Bahia, como será apresentado mais à frente. O convívio com a música, como entretenimento e mais tarde como opção profissional foi se tornado uma realidade pra mim desde então. Aos poucos o gosto pelo som foi sendo complementado pelo interesse nas trajetórias das bandas e artistas de minha preferência, em escutar os álbuns com maior atenção, em identificar a ficha técnica dos discos. Enfim, passei a enxergar a música como algo que tem uma conexão profunda com a realidade ao seu próprio redor. Em fins dos anos 90, paralelo com o meu ingresso na universidade, para o curso de Graduação em Historia, fui tendo acesso a novos olhares sobre a arte dos sons. O acesso à investigação científica nesta área específica não aconteceu propriamente na graduação. Encontrava ali alguns poucos canais de interlocução que me proporcionasse maiores vôos na área da pesquisa acadêmica sobre a música, dado que não inviabilizou que iniciasse algumas leituras que mais à frente seriam bastante produtivas ao estudo da ciência da História a partir da música. Minhas válvulas de escape, no entanto, eram as bandas alternativas e os eventos artístico-culturais promovidos pelo movimento estudantil. As muitas experiências que fizeram/fazem parte de minha formação no mundo da música me auxiliaram (e ainda auxiliam) na construção de um olhar e ouvir mais atento às dimensões sociais que estão impressas nos conteúdos e discursos musicais. Dos experimentos sonoros da infância à brincadeira com o baixo6 do presente tenho percebido que a produção de música é fundamental nos processos de autocompreensão dos sujeitos (e me incluo neste contingente). O presente trabalho é, 6 “Brincar com o baixo” é a forma como meu filho João Lucas descreve meus (poucos) momentos de estudo com o instrumento. 19 portanto, uma interface acadêmico-investigativa desta interpretação e por isso trata-se de uma visão particular e situada de um universo de fontes que foram escolhidas para reflexão, haja vista que todo registro musical é passível das mais diversas leituras. Entre a conclusão do Curso (2004.2) e o ingresso no Posafro (2006.1) atuava como professor de História em escolas da rede pública e privada de Salvador além de programas de “capacitação” (ainda não me conformo com esse rótulo...) de jovens e adultos, educação não formal e outras experiências na área de educação. Paralelamente aproveitava para alimentar algumas leituras sobre música, industria cultural, história da África, bem como ocupar-me com o ofício de músico baixista (que felizmente não abandonei!). No início de 2005 cursei como aluno especial a disciplina “trabalhadores, formação de Classe e etnia” ministrada pela profª. Drª. Cecília Velasco e Cruz que surtiu para mim, particularmente, um efeito de transição do universo da mão-de-obra ferroviária (este era o interesse original) à leitura das relações sociais sobre o prisma de questões como “racialização” “identidade étnica” e cultura. Foi naquela ocasião que li, com “outros olhos” Kwame Appiah e Amy Guttman (Misunderstood conections!) e ainda pude rever alguns clássicos da antropologia. Em suma, aquela experiência foi interessante, pois saí da disciplina provocado a desenvolver uma temática que se aproximasse de minha experiência de vida, além de estimulado à encarar as relações raciais com mais profundidade. Foi exatamente em 2005 que recebi a proposta que mudaria definitivamente meus caminhos. À convite da amiga-professora Valquíria Lima e do Centro de promoção da educação, cultura e Cidadania(CPECC) em parceria com a Associação Cultural Beneficente Revolution Reggae, ambas entidades da cidade de Conceição do Coité-Bahia, fui ministrar o módulo de abertura do Projeto de formação de lideranças negras Reggae em Ação (realizado entre 2005 e 2007). Esta ação foi e tem sido responsável pela descriminalização do Reggae (e seus protagonistas) naquela cidade, haja vista a ameaça eminente das batidas policiais e dos grupos de extermínio que faziam à época um número considerável de vítimas sob a alegação de serem “confundidos” com marginais. Objetivamente o convite era direcionado ao mini-curso intitulado “Memória Musical e Identidade Negra”, que deveria trazer um debate sobre a importância da música na construção da identidade dos negr@s bem como da sobrevivência de suas tradições. Aceitei com preocupação o convite dada a responsabilidade delegada a mim. Para tanto mergulhei num volume de leituras 20 (algumas já acumuladas desde fins da graduação) e partir na busca de novas referências para fundamentar a ementa do curso. Neste período contei com a valiosa contribuição do amigo e professor Antonio Godi que atendia, sem rodeios, aos meus inconvenientes telefonemas e visitas vespertinas inesperadas. Além dele coincidiu restabelecer o contato via e-mail com o Professor “Salloma” Salomão Jovino da Silva que tive o prazer de conhecer numa conferência na Unicamp (São Paulo) em 2001. Atenciosamente prof. “Salloma” me enviou sua dissertação de mestrado e outras referências interessantes que foram incorporadas aos poucos ao “mini-curso” bem como à então incipiente proposta de pesquisa. Meu envolvimento foi tamanho que o universo de leituras foi aproveitado para amadurecer um projeto de pesquisa sobre o Reggae e suas influências no universo Cultural baiano. Encarei o desafia do curso de mestrado com a esperança de ter no programa um espaço de debate para amadurecer as reflexões sobre as relações raciais no Brasil e a importância da música nesse contexto. A rigor, o ingresso na pós-graduação também tem relação explícita com meu ativismo anti-racista. A luta pela inclusão social das populações negras tem passado pelo acesso à educação e ao protagonismo na produção do conhecimento científico. Caminhando nessa direção, este estudo analisa as manifestações étnicoidentitárias de negritude presentes nos registros fonográficos da musicalidade Reggae, produzidos na Bahia nas últimas décadas. O levantamento e análise da produção fonográfica (incluindo Lp’s e Cd’s) ligada ao Reggae da Bahia entre os anos 19790 e 2003 constituem-se no material central desta pesquisa ao lado de entrevistas e outras fontes impressas como o jornal Folha do Reggae publicado em 1997. Foram analisados os elementos da linguagem musical utilizando fichas catalográficas contendo as variantes: ano de lançamento, gravadora, nome do(s) artista(s), letras, observaçõescomentários, textos adicionais (encarte e/ou contracapa), músicos participantes, arranjador e produtor e/ou diretor musical e artístico, observações, seguindo, portanto um caminho apontado por estudos anteriores (Silva, 2000c; Moraes, 2000). O produto fonográfico e suas partes integrantes (capa, encarte, artes gráficas, textos adicionais) compõem/compuseram, um universo de livre e alternativo de expressão dos artistas redimensionando o alcance do registro auditivo. Do ponto de vista da discografia analisada, em especial, muitos significados de pertencimento e negritude são construídos a partir das estratégias discursivas estético-musicais na 21 composição das canções (arranjos, instrumentação, letra etc.) e ou nos materiais produzidos em associação ao registro sonoro (Silva, 2000c, Huss, 2000). Moraes (2000) aponta que entre os obstáculos da investigação do “documento musical” encontra-se o peso das tradições da metodologia clássica que de modo reducionista desarticula os elementos estruturais da canção (melodia, ritmo, andamentos) da “realidade que gira em torno dela” (2000, p. 215). Em outras palavras, o registro final aparentemente ‘aprisionado’ no disco é o resultado da interação entre variáveis internas (processo social de produção artística) e externas (relação com o 7 contexto de seus agentes realizadores). Na medida em que o Disco é resultante de percepções do artista sobre o mundo, sua reprodutibilidade incorpora as condições materiais e históricas de seu tempo e são continuamente (re) construídas impressas pelo publico ouvinte. 8 Sugiro a partir deste trabalho, portanto, que a experiência da produção (no sentido de fazer) musical seja tomada como referência na compreensão dos discursos estético-musicais contidos no registro fonográfico. Em outras palavras, o universo dos músicos e as estratégias intrínsecas na produção e reprodução do som também representam experiências e perspectivas que devem ser visualizadas nos estudos sobre a música como experiência social e política. Para tanto, foi necessário arriscar uma orientação metodológica de cunho mais dialógico e, por vezes, descritivo, acompanhando um caminho epistemológico definido por Carvalho (1999) como “etnografia da sensibilidade musical”. Fujo de algumas descrições mais densas em detrimento de analisar, a partir de algumas experiências pessoais, os elementos discursivos que constituem a música. Destaco ainda que optei também pela transcrição das letras ao longo do texto na íntegra, de modo a possibilitar uma compreensão melhor do/a leitor/a, evitando anexos que poderiam por em risco a fluência da leitura. O fato de estar diante de uma gama de possibilidades de análise nos coloca sob a responsabilidade de advertir a quem lê estas páginas sobre o terreno espinhoso do estudo da música. Por isso não cabe fundar teses conclusivas sobre os discursos musicais investigados, tampouco tratar com juízo de valor os registros que ora analiso. 7 Disco refere-se a toda e qualquer obra musical, composta de até 04 canções – singles – ou mais que constam como registro no histórico de um artista ou um conjunto deles. Comumente associa-se restritamente ao disco de vinil esta definição. 8 Sobre esse debate, o clássico artigo de Walter Benjamin sobre a arte e sua reprodução no mundo capitalista (BENJAMIN, 1960) tem uma importância pontual para este debate. A rigor, outros autores já têm produzido leituras sobre a obra de Benjamim que posteriormente nos servirão de suporte teóricometodológico. 22 Ainda que compreenda que o “gosto” é socialmente construído e pode ser encarado como objeto de reflexão gostaria de salientar que tentei me distanciar no que pude de inferir sobre a “qualidade” das letras ou arranjos na classificação dos registros analisados. Para analisar a produção musical em torno do Reggae na Bahia, lancei mão, prioritariamente de um acervo discográfico que inclui artistas de cidades da Bahia como Cachoeira, Feira de Santana e Salvador - principais nichos da contracultura “RastaReggae”9 de onde surgiu grande parte dos grupos que definiram singularmente o estilo neste estado brasileiro. Este material constitui um rico universo de possibilidades de estudos. A grande diversidade de falas e abordagens representadas nos discos analisados exige um olhar e um “ouvir” mais interativo com as demais áreas disciplinares, algo que de partida nos coloca no olho do furacão (basta lembrar que mesmo a noção de multidisciplinaridade ainda vem sido amadurecida). A experiência do mestrado multidisciplinar tem sido enriquecedora neste sentido. Dialogar e aprender com áreas de conhecimento como a Etnomusicologia e a antropologia fortaleceu/fortalece, ao meu ver, novas perspectivas teórico-metodológicas de para uma História Social da Cultura, bem como ao estudo da Música e seus sujeitos com experiência humana. É fundamental, para tanto, que situemos esta diversidade de registros musicais na dimensão do tempo histórico. É preciso lembrar que esta é uma tarefa bastante complexa uma vez que as fontes em diálogo estão dispostas num intervalo de tempo de pouco mais de duas décadas. Escolhi sentido, dialogar com os muitos registros fonográficos produzidos em período de mais de duas décadas para tentar mensurar um conjunto o máximo representativo de artistas e discos responsáveis pela “invenção” da leitura/interpretação baiana da música Reggae. Os anos 80, que deste ponto de vista começam em 1979, dada a gravação de “No Woman no cry”, imortalizada por Bob Marley and the Wailers, compreendem a meu ver o momento crucial da emergência de novas alternativas e perspectivas de organização civil em ebulição no chamado “verão da abertura”. É um contexto de onde brotam legendas partidárias às dúzias e de onde floresce uma ambiência sócio-cultural fortemente mobilizada pela produção musical. Na Bahia, e em particular em Salvador, A “trama” musical que se anunciava, como sugeriu Goli Guerreiro (2000), era protagonizada por uma juventude negra re-encorajada pela invenção de novos ideais de 9 Esta definição foi tomada de empréstimo de Godi (1997), um dos primeiros pesquisadores envolvidos com esta temática no viés da sócio-antropologia da música na Bahia. 23 liberdade que os/as levariam a percorrer a África e o Caribe negros a bordo de uma criativa releitura destes territórios do Atlântico. A música Reggae foi uma das principais matérias-primas neste processo. Uma vez reterritorializada, esta musicalidade viveria novos tempos de ascensão à medida que corriam os anos 90. Inevitavelmente, Reggae e Samba-reggae implodiram o mercado fonográfico impondo-lhes novos agentes, sonoridades, estratégias de gravação e reprodução e, obviamente, novas contradições. Esta definitiva entrada em cena não ocorreu sem negociações e tensões e tampouco se deram de igual maneira em Salvador e nas cidades do interior da Bahia como Cachoeira e Feira de Santana – principais nichos desta contracultura no estado. Tamanha foi a ebulição do verão do Reggae baiano que os anos 90 para nós não caberia mesmo em uma década. O advento das tecnologias digitais de reprodução do som e a gradativa democratização (ou seria popularização?) das tecnologias de gravação tornou possível que até meados de 2002 e 2003 personagens importantes desta trajetória registrassem ainda que tardiamente suas memórias musicais em CDs independentes. A opção por este marco referencial-cronológico impôs desde o início do trabalho de pesquisa algumas questões e perigos. Em primeiro lugar, a necessidade de contemplar um recorte tão amplo num período de trabalho tão exíguo como o curso de mestrado impôs algumas escolhas no tocante ao objetivo final do trabalho de pesquisa. Sobre este aspecto, alerto que a análise das fontes discográficas exige maior ênfase no debate sobre as potencialidades do registro fonográfico como suporte da realidade que o cerca. Por isso, a intenção principal é colocar esta fonte no centro das atenções travando mais um debate sobre a importância deste ponto de vista à compreensão das relações sociais mediadas pela música. Para isso, é fundamental cruzar as impressões sobre as fontes bem como lançar mão da História oral como caminho alternativo para preencher possíveis lacunas e , potencialmente abrir novas trilhas para estudos futuros. Em segundo, pesava sobre meus ombros a responsabilidade de produzir um texto que contemplasse o universo de transformações compreendidas neste intervalo de décadas. Este período inclui diferentes conjunturas e mudanças consideráveis que colocaram em efervescência a sociedade baiana como: a ascensão dos blocos afro, a nova economia das relações políticas resultante do processo de “abertura” à “democratização civil, o que inclui, por exemplo a reestruturação dos veículos de comunicação no estado da Bahia e o poderio de velhos cães de guarda da Ditadura Militar sob a imprensa baiana; as intensas transformações e contradições sócio- 24 espaciais na capital e interior do estado; a emergência dos Blocos de Samba-Reggae e suas leituras de uma negritude multicentrada que seria a principal matéria-prima para o boom da chamada Axé music. Sobre este quesito, vale destacar que uma rigorosa classificação das fontes concorreu para evitar certas imprecisões (e dispensar o “fardo” do trabalho intelectual ideal). Analisando os discos percebemos que haviam diferenças visíveis quanto ao teor dos discursos identitários, às distintas categorias e perspectivas de negritude, além das diferentes posições ao longo das décadas. Para dimensionar estas transformações no tempo e espaço argumento em favor de uma periodização que sugere alguns momentos expressivos (e a transição entre eles) da inserção e consolidação do Reggae no ambiente sócio-cultural baiano. Reconheço e adverto de antemão que, se por um lado toda periodização é em si arbitrária com a dinâmica da experiência humana ao longo da História é, por outro, necessária quando se pretende, por vezes dimensionar os próprios caminhos desta mesma dinâmica. Sem mais, tentei situar minhas reflexões em torno de Três Períodos singulares que serão apresentados a seguir. O primeiro está compreendido entre os anos 1979/80 e 1988, contexto que pode ser pensado em dois momentos distintos: primeiramente até meados dos anos 80, onde aparecem as primeiras expressões de afinidade que registram a presença do Reggae na produção musical baiana; em seguida, fins da década de 80 onde relaciono a proliferação dos blocos afros de samba-reggae, e sua leitura musical transcontinental, à paulatina incorporação do Reggae como um referencial étnico identitário dos negros em algumas cidades da Bahia. Grande parte destas entidades investiam na pesquisa das culturas musicais negras do caribe e de alguns países do continente africano em busca de suas respectivas histórias e, obviamente, sonoridades o que trouxe fortes influências. Goli Guerreiro (2000) destaca uma predileção explícita pela música Cubana, Jamaicana e Senegalesa como parte da formação percussiva de algumas entidades afrocarnavalescas em Salvador. Acrescenta que o cruzamento com as sonoridades das tradições rítmicas locais de forte presença nos rituais do Candomblé, ao lado da crescente influência dos meios de comunicação, paradoxalmente um forte aliado para a inserção e ressignificação da “música mundializada”, como afirma Sansone (1997). Este momento de contato e inserção é o alvo dos primeiros capítulos desta dissertação. O segundo momento é o que entendo como a cristalização de uma cena Reggae na Bahia, compreendida entre os anos de 1988/89 até 1997/98. Neste intervalo de década cristaliza-se uma produção singular em torno dos estilos musicais transnacionais negros 25 como o Reggae e o Rap e se edificam trabalhos significativos de uma produção singular em torno do Reggae como em paralelo com as lutas anti-centenário-da-abolição. Identifico uma sintonia explícita entre estes estilos transnacionais da música negra na Bahia e a posição militante dos movimentos negros neste momento em especial. Em meados dos anos 90 se insinua um cenário musical integrado por inúmeros artistas identificados com o Reggae, além de um gradativo aparecimento de uma considerável produção de discos em formato CD, fenômeno que tem relação com os formatos digitais de gravação e reprodução da música. Em fins dos anos 90(que se estende até meados de 2002-2003) uma multiplicidade de grupos intérpretes e grupos musicais como Adão Negro, Sine Calmon e Morrão fumegante, Dionorina, Geraldo Cristal, Jorge de Angélica, Gilsam, Nengo Vieira, registram suas experiências musicais nos discos. Este intervalo de década é ainda o momento onde se assistiu ao que chamo de verão do Reggae Baiano, que se configurou em fins dos anos 90 com uma enorme proliferação do Reggae nos bairros, nas bandas alternativas, na agenda cultural das cidades e numa escalada que galgaria o primeiro degrau do Carnaval de Salvador com a Canção “Nayambing Blues” de Sine Calmon e Morrão Fumegante no carnaval de 1998. Paradoxalmente este é o contexto de onde emerge manifestações expressas de repressão à música (e seus protagonistas) por parte da Polícia e de segmentos da imprensa baiana. Registra-se ainda neste contexto a publicação do informativo Folha do Reggae, fonte imprescindível de onde tratar-se-á a respeito das estratégias de mobilização e respostas dos “Regueiros”10 na defesa do Reggae como um produto da cultura negra da Bahia. Para ilustrar melhor esta proposta de periodização foi inserido como anexo a discografia organizada por ordem cronológica. Diante, portanto, desta gama de possibilidades, o resultado apresentado nesta dissertação reflete escolhas que foram definidas sob pena de deixar novas lacunas. Após a devida catalogação do material colhido ao longo dos semestres de pesquisa, escolhi deliberadamente o conjunto de registros sonoros e plásticos que pudessem representar melhor minha argumentação. Ao longo dos capítulos a citação recorrente das letras, capas, encartes ou mesmo das estratégias discursivo-musicais não se propõe uma impressão conclusiva. Pelo contrário, espero estimular com este trabalho que um número maior de pessoas possa voltar as atenções para o universo musical que ora investiga-se para tirar suas próprias conclusões. 10 Termo comumente utilizado para identificar o ouvinte ou músico de Reggae. 26 O texto que se apresenta é, em linhas gerais, uma tentativa de compreender o processo de inserção e cristalização da música Reggae no cenário sócio-cultural baiano à luz de alguns registros de sua produção musical. Ao longo deste - mais precisamente ao final de cada capítulo - estão dispostas um conjunto de imagens organizadas de modo a tentar interagir com as idéias registradas na palavra escrita. Para tanto, os diferentes pontos de vistas sobre o universo das fontes estão evidenciados na organização dos capítulos que faz alusão à estrutura de um LP (não à toa uma das principais matériasprimas deste estudo). O Lado A contempla, além desta apresentação-introdução Faixa 1) o capítulo intitulado Faixa 2 – “surge mais um guerreiro do terceiro mundo”, onde se apresenta, em linhas gerais um balanço, da inserção e presença do Reggae no universo no eixo sul do atlântico negro dialogando com alguns documentos musicais importantes registrados no início dos anos 80. Os desdobramentos desta interação, foram dimensionados no terreno sóciocultural baiano ao longo dos anos 80, como pretende-se discutir na Faixa 3 intitulada África a la Jamaica, música da Raça. Neste, serão abordadas as ressignificações sobre a África a partir das construções musicais e dos registros fonográficos ligados à influência do Reggae na Bahia. Abordo a centralidade dos blocos afro neste processo bem como o conseqüente nascimento do Samba-Reggae como uma nova linguagem da música Baiana naquele. Além destas entidades, outros artistas em diferentes momentos também são co-responsáveis pela inclusão da temática da História da África e de uma leitura multicentrada deste continente que inclui o Caribe e os movimentos panafricanistas como referencial simbólico inaugurou uma nova tendência das e políticas culturais negras na Bahia (Pinho, 2004). ‘Virando o disco’ passamos ao Lado B que se inicia com a faixa 4 – Anos 90: o verão do reggae baiano. Nesta será abordada a relação entre as canções de Reggae e o surgimento de uma nova metafísica de negritude cujos discursos perpassam pelas canções e outros elementos que compõem os discos. Tratar-se-á de uma leitura das inúmeras auto-identidades negras presentes nos elementos estético-musicais do registro fonográfico e sua relação com as falas dos movimentos sociais no período, enfatizando a interação dos artistas de Reggae em sintonia com diversas posições públicas dos movimentos negros nas últimas décadas. (Interlude) “De Jesus à Jah” dialogo com as diferentes leituras de mundo sintonizadas com cosmovisões religiosas e suas confluência e/ou contraposição de idéias. Dissertar-se-á sobre o surgimento de novas 27 leituras híbridas da religiosidade professadas em muito dos álbuns sob os quais se edifica este trabalho de Pesquisa. Na faixa 6 - “quem não gosta de Reggae, bom sujeito não é” que traz as considerações finais, pretende-se entrecruzar as informações e problematizações dos capítulos anteriores (por isso o sentido Dub) apontando para futuros caminhos da investigação. Este será o espaço privilegiado para traçar algumas reflexões sobre o mercado fonográfico e os espaços alternativos de divulgação da Música Reggae em Salvador. Pretende-se, portanto, com este texto, levantar algumas reflexões sobre o papel da musicalidade Reggae como elemento articulador da luta anti-racista na Bahia Recente tomando por base, privilegiadamente, a produção fonográfica desta expressão. O discurso estético-musical “Rasta-Reggae” (Godi, 1997) tem alterado os sentidos do ser negro em Salvador e outros centros urbanos da Bahia, haja vista a gama de artistas erradicados das mais diferentes cidades do estado que buscam criar, ao gosto de suas experiências e interpretações das influências externas e internas e, lamentavelmente, pelo recrudescimento da marginalização social e nos meios de comunicação regionais e nacionais que sofrem os adeptos e admiradores do estilo.11 A produção ainda rarefeita de estudos que focalizem o Reggae como expressão fundamental desta “contracultura” plural de negros e negras no mundo contemporâneo e sua trajetória singular no Brasil constitui o leit motiv da elaboração deste trabalho. No que se refere ao universo baiano, o gradativo surgimento de estudos sobre a importância da musicalidade Reggae e suas contribuições ao universo plural da Diáspora negra justificam a necessidade de materializar estas problematizações através da pesquisa. Feitas estas ponderações estendo o convite para cairmos no Reggae... 11 Por exemplo, em Salvador há um processo contínuo de marginalização dos tradicionais radialistas de Reggae paralelo ao controle das bandas e shows pela grande indústria cultural da música baiana que organiza o carnaval. Atualmente são é exibido pela rede pública, através da Rádio Educadora FM (107,5) o programa no Balanço do Reggae além de alguns em rádios alternativas. No interior do estado, movimentos sociais como a Associação Cultural Beneficente Revolution Reggae, em Conceição do Coité-Ba, tem sido importante agente mobilizador contra a violência policial e dos grupos de extermínio contra jovens negros além de organizarem eventos de debate sobre racismo, cidadania e políticas públicas para saúde, educação no município. 28 FAIXA 2 : “SURGE MAIS UM GUERREIRO DO TERCEIRO MUNDO...” E grita Jamaica, povão: Ê Jamaica Impere entre todos os negros A crença no nosso poder de criar Um novo universo Um novo universo” ( trecho da Canção Rituais de Negros, de Mundão. Disco: Muzenza do Reggae, 1988) Estes repertórios de práticas são aqui entendidos como novas formas de organização e intervenção social, política e cultural dos grupos negros, gerando novos paradigmas de identificação e visibilidade das populações negras urbanas, num processo onde as práticas em torno da música são transpassadas pelas lutas sociais e políticas. (“Salloma” Salomão J. da Silva, 2000) 29 A luta pela visibilidade dos anseios e projetos das populações negras foi ponto alto nas décadas de 80 e 90 no país e de modo singular na Bahia. À revelia de todos os processos institucionais e sócio-culturais de segregação racial que se recompuseram ao longo da História, as experiências das populações negras - em contextos os mais diversos, leia-se - apresentam complexas estratégias e contra-discursos reveladores da não-sujeição e da produção alternativa de conhecimento(s) e visões de mundo na sociedade. Entre as muitas linguagens apropriadas neste processo tenso de afirmação de (nossas) auto-identidades, a música tem se destacado dada sua importância na construção das relações sociais, sobretudo no mundo contemporâneo onde este processo literalmente se amplifica12. A aceleração [e globalização!] dos padrões industriais de produção e consumo de mercadoria, em consonância com a presença definitiva dos meios de comunicação e outros artefatos tecnológicos ampliou o abismo entre as nações da Europa e EUA e países do chamado terceiro mundo. Paradoxalmente, este processo tornou possível novos canais globais de interlocução do protesto negro nos grandes centros urbanos (Silva, 2002). Sobre o contexto da globalização, Sansone(2004), aponta dois conjuntos de opiniões que já há muito tem sido debatidas: a primeira, indicando a popularização dos estilos cosmopolitas de vida e de uma suposta socialização dos bens de consumo outrora restritos às nações do “norte”; a segunda, que assinala os aspectos negativos do subjugo das nações mais poderosas econômica e politicamente que aniquila projetos e respostas locais. Entretanto, o autor sugere um terceiro caminho que tenta considerar um pouco de cada um desses aspectos apontando à “heterogeneização global” - um aumento indelével das trocas simbólicas que possibilita outras formas identitárias e outros canais de etnicidade, invertendo, de certo modo, o velho conceito centro-periferia. Alguns elementos conjunturais - como o impacto do mundo anglófono, o efeito bilateral da indústria fonográfica, o fim dos regimes militares, a ação dos movimentos sociais e a abertura ao turismo – ajudam a entender o surgimento de uma cultura negra “jovem” mais desligada da idéia convencionalmente chamada de “cultura negra”13 A confluência das contraculturas do Caribe e demais regiões da América Latina nos trânsitos “globais” de sons, sentidos identitários e experiências residuais do 12 O uso do termo “amplificar”, aqui na condição de verbo é livremente deliberado e faz referência aos amplificadores: aparelhos eletrônico de processamento e reprodução das freqüências sonoras, muito utilizado a partir da segunda metade do Século XX 13 Para Sansone este fenômeno implica um distanciamento da centralidade do candomblé como referencial éstinico-identitário (2004). 30 colonialismo - oriundas dos mais distantes espaços subalternizados – é um fenômeno nunca visto antes dos anos 50 do século XX. A cultura é potencialmente reveladora destes cadinhos no processo de Globalização e, portanto, um terreno de confronto, resistência (ou mesmo dominação), como nos lembra Milton Santos (2001). Argumenta o autor que a cultura ”popular” 14 além de revelar as “falas” do cotidiano, das minorias altera o sentido, ressalta a importância dos cenários locais e regionais à constituição da noção de valores ditos “globais”. Numa leitura menos diplomática, Milton Santos destaca a nova centralidade da “periferia” neste processo, descentrando velhos paradigmas e inserindo os agentes e narrativas outrora relegados. O terceiro mundo é visto menos como alvo das teorias do subdesenvolvimento – anos 50-60 – e mais como manifestação de desconforto às conseqüências do “novo imperialismo (Santos, 2001. p. 152). Este processo instala novas relações e tensões no plano da política e está manifesta nas expressões estético-musicais, corpóreas, étnico-identitárias etc. Do ponto de vista das relações raciais, as políticas culturais enunciam, a partir de expressões como a música, sentidos de pertencimento que nos obrigam estabelecer outras referências teórico-metodológicas para compreender estes movimentos sociais. A canção “Terceiro mundo” de Walmir Brito, gravada em 1988 no álbum Marley Vive da Banda Terceiro Mundo, é uma formulação sugestiva nesta direção pois remonta em grande parte ao cerne deste trabalho, uma vez que define este como um território de identificação étnica dos povos negros, tendo a Jamaica e a África como referenciais geopolíticos como se pode observar em trechos da letra: TERCEIRO MUNDO (Walmir Brito, 1988) Lembra-te Marley Céu azul reggae canção Influências evólicas Etílicas constelações Sentimento que vai à Jamaica 14 O termo Cultura popular (seus usos e abusos) vem sendo debatido com vigor por autores e autoras das ciências Humanas ao longo das últimas décadas. Não se pretende revisar esta temática no momento. De todo modo - sem mergulhar neste profundo debate(mas, molhando os pés!) - prefiro abreviar meus comentários partilhar da forma como é utilizado o termo por Milton Santos e autores como Mikhail Bakhtin e Carlo Ginzburg, E. P. Thompson: uma espécie de discurso “de baixo”(Santos, p.144). 31 Um negro povo a clamar à Mãe África Terceiro mundo é um elo unificando as nossas raízes Lapidação da pérola Negra o brilho da paz O elo negro mais profundo Corretivo ao mundo Eu grito não apartai os negros não jamais O sentimento que vai à à Jamaica um negro povo à clamar à mãe África. Além disso, o “silêncio” em torno da presença negra nos processos políticos e culturais da sociedade brasileira vem, ao longo dos anos, sendo preenchido por uma crescente produção de diversos autores (as) com relativo engajamento nas lutas destas populações, colocando novas perspectivas epistemológicas às áreas de conhecimento científico, a exemplo das ciências humanas, alguns dos quais os trabalhos podem ser citados como exemplo. A existência de importantes estudos sobre música na Bahia – como a valiosa publicação de 1997 do projeto S.A.M.BA.15 – aponta à preocupação dos antropólogos, musicólogos e sociólogos baianos (raros os historiadores) em compreender este universo temático trazendo novas contribuições que relacionem música, identidade negra e cultura enquanto categorias dinâmicas e não-essenciais. Neste sentido tem sido pertinente, estudar as ‘sonoridades’ na Diáspora negra dialogando e problematizando a noção de Atlântico Negro (Gilroy, 1995) e suas reflexões sobre o repertório das práticas musicais no âmbito das “tradições populares”. Outro exemplo relevante é o trabalho de “Salloma” Salomão Silva(2000) intitulado A polifonia do protesto Negro: Movimentos culturais e musicalidades negras urbanas - que trata das estratégias adotadas pelas populações negras urbanas utilizando a música como veículo de protesto. Sugere uma concepção de estudo dos movimentos sociais identificando o fenômeno singular configurado pelas práticas culturais negras, a partir das canções gravadas entre os anos 70 e 80 nos espaços urbanos de Salvador, São 15 Sansone & Teles: 1997. Obra citada. 32 Paulo e Rio de Janeiro, e destaca outros parâmetros de análise para o processo político de democratização do país. Artistas da música, outrora silenciados, tem seu olhar sobre o mundo respeitados e seus cantos de protesto audíveis pelo autor, como ilustra a vasta produção discográfica pesquisada. A partir dessa dissertação, muitas reflexões podem ser articuladas sobre a música como mediadora das demandas e anseios das populações negras na contemporaneidade. Por outro lado, a discografia analisada pelo autor não insere, de modo sistemático, uma análise de presença de influências como o Reggae e o Rap. Obviamente a grande contribuição do autor é possibilitar que novas análises sejam produzidas tomando a música negra como experiência sócio-cultural e política na História. Esta dissertação é em particular um passo na direção insinuada pelo autor. Sinto, portanto, com a difícil tarefa de suprir algumas lacunas. A reflexão sobre estes processos político-culturais nos impõe considerar o papel das políticas negras na construção da modernidade. Em O Atlântico Negro, Paul Gilroy (2001) traz uma instigante análise das peregrinações do pensamento negro, desde o contexto da colonização, mapeando as histórias de (re) apropriação dos instrumentos dos opressores, reconquistando uma humanidade outrora negrada. A metáfora do “oceano”, ou mais exatamente dos “navios negreiros” na Middle Passage16, além de amplamente influenciada pelas reflexões de W.E.B. Du Bois, incorpora um espírito crítico para avaliar e dimensionar as muitas formas de sobrevivência das culturas negras na diáspora, a partir das mais diversas produções. Segundo Gilroy, estas metafísicas de negritude contrariam/contrariaram a lógica do Racismo e sua perversa tendência à coisificação d@s negr@s, destituindo-lhes do status de sujeito, humano, quiçá intelectual. O Atlântico Negro é um “campo” de tensão, indeterminação e não-dualismo onde subjetividades e formações culturais se constituem num trânsito constante, e subliminar em muitos casos, de noções de pertencimento e negritude. O autor identifica as marcas deste protesto negro inventado como registros de uma contracultura presentes nas expressões artísticas (principalmente na música), na literatura, em suma, em constante subversão do lugar de mercadoria-objeto, através de criativas maneiras de “automodelagem individual” e “libertação comunal” (Gilroy, 2001. p. 100). Segundo Gilroy, o modo sugestivo pelo qual o mundo do Atlântico negro é situado a partir de uma rede entrelaçada entre o local e o global que torna estreita as perspectivas 16 a “Passagem do meio” é uma expressão que designa o trecho ais longo e sofrido da travessia dos navios negreiros no Atlântico. 33 nacionalistas e aponta para a “invocação espúria da particularidade étnica” (2001, p. 82). Este ponto em especial, reserva uma polêmica que atravessa toda sua obra: os limites das identidades raciais e do absolutismo étnico nos discursos políticos negros. Para o autor, esse legado condiciona a identidade à aspiração de suas raízes (supostamente autênticas, naturais), o que reforça uma visão essencialista de base ontológica. Nesse sentido, a idéia dos negros como “grupo protonacional” com sua cultura enclausurada reforça a visão mistificante de um afrocentrismo que colabora, em grande parte para silenciar a diversidade de expressões que a cultura negra assumiu no mundo contemporâneo. Em outro prisma do Debate, escritores como Aníbal Quijano tem articulado um novo pilar crítico do pensamento ocidental ao fundar a noção de “colonialidade”. Ao lado de Enrique Dussell, Walter Mignolo, Edgardo Lander, e Ramón Grosfoguel e outros, ele integra o grupo de pensadores Latino Americanos críticos da colonialidad del Poder (Lander(org.), 1998). De acordo com esta corrente a modernidade é, grosso modo, um padrão eurocêntrico de poder que alicerçou/alicerça a dominação colonial/capitalista cujo sistema de classificações sociais, sustentado prioritariamente na idéia de Raça, se estendeu pelos séculos XVI ao XVIII-XIX e se transformou na transição para o século XX traduzindo o que Immanuel Wallerstein chamou de Sistemamundo.17 Quijano afirma ser a América a primeira identidade da modernidade inaugurando o espaço/tempo de um novo padrão mundial-colonial-capitalista. A naturalização da categoria mental de “Raça” e da perspectiva eurocêntrica do conhecimento foram constructos impostos pela dominação colonial. Concomitante à este processo, constituíra-se uma nova estrutura global de controle das relações de produção legitimando uma divisão social-racial do trabalho. A “colonialidad del poder”, conceito inaugurado por este autor foi, portanto, uma das mais ativas determinações no processo de re-identificaçión histórica uma vez que foram atribuídas às populações subjugadas novas identidades Geoculturais, ressignificando as diferenças culturais, histórias e epistemologias em prol da disputa dinâmica pelo controle do conhecimento.. Um olhar muito próximo das interpretações de Quijano tem sido desenvolvido por Walter Mignolo (2003). Um desafio proposto em sua obra é compreender e analisar as epistemologias alternativas que coexistiram ao longo do processo histórico de 17 Wallerstein, 1974 citado por Grosfoguel, 1992 34 construção da modernidade à revelia dos paradigmas do ocidente. Entretanto, não sugere uma nova homogeneidade descolonial calcada no relativismo cultural, mas, numa contaminação da mentalidade científica, da construção do objeto na ciência, parafraseando Pierre Bourdieu, em suma numa perspectiva onde intercalamos teoria e ação do sujeito. Mignolo tem se preocupado em melhor compreender a “Geopolítica”18 do conhecimento e a constituição de “un pensamiento otro” em oposição à Razão Moderna, consequentemente ao racismo epistêmico. Trata-se de um projeto de ruptura epistemológica deslocada do pensamento/espaço europeus, que se firma na busca da “pluriversalidade” (outra concepção de mundo global) como protesto universal e na descolonização do saber e do ser mediando a construção de um pensamento liminar19. Trata-se de uma crítica à Genealogia do pensamento único produzida pelo ocidente europeu, abandonando, portanto, a noção de modernidade – que, segundo Mignolo é um relato triunfante dos europeus que enfatiza a superioridade, civilidade contra a barbárie dos índios e negros, dos ‘outros’. Relacionando estas perspectivas é possível inferir autores (as) destas correntes Poscoloniais e Descoloniais - utilizam como elemento central para de suas reflexões, qual seja, as experiências de insubordinação, sobrevivência, sedição e negociação dos sujeitos marginalizados em diferentes contextos do mundo colonial e pós-colonial. Por outro lado, o atlântico negro, se aproveitado como projeto teórico-metodológico, navega numa direção diferente do pensamento descolonial. Isto não significa, a meu ver, que estejamos diante de projetos antagônicos, mas de perspectivas diferentes (e divergentes é claro) quanto à História da modernidade e sua superação. Na análise de Paul Gilroy, as políticas culturais negras são, grosso modo, intervenções críticas e intrínsecas à modernidade. Tomando algumas experiências negras no Reino Unido, Caribe, América e África (Anglófonas), o autor se distancia de qualquer argumento que corrobore com a idéia de que há um pensamento descolonial comum, inerente às rotas da escravidão. Pelo contrário, está interessado em compreender como os negros na diáspora restituíram suas humanidades e ressignificaram seus sentidos (re) utilizando os meios e ferramentas do próprio colonizador. 18 Ver Dussel, 1977(Filosofia de la Liberación) o autor usa a noção de “Pensamiento Fronteiriço”, na versão original em Espanhol. Na edição traduzida para o português consta a idéia de pensamento “Liminar”. Durante sua participação no IX Fábrica de idéias, curso avançado de Relações Raciais realizado pelo CEAO em Salvador e Cachoeira (julho/agosto de 2006) mignolo aproveitou o ensejo para reforçar essa “errata”. 19 35 Conforme Paul Gilroy (2001) músicos e outros artistas podem ser entendidos como intelectuais orgânicos20 das tradições alternativas ‘inventadas’ na Diáspora, onde as expressões musicais constituem um veículo fundamental, de modo que a autenticidade de seus discursos e ações não está restrita ao universo das normas da democracia burguesa e do mundo da escrita. Seguindo nitidamente os caminhos dos estudos culturais, bem representados por autores como Stuart Hall, Gilroy, tem enfatizado a posição destes sujeitos na construção/legitimação dos repertórios da política cultural negra à revelia dos resíduos do colonialismo das “dispersões irreversíveis da diáspora” (Hall, 2003. p. 343); este processo tem na história musical um registro indelével, haja vista o impacto de expressões sonoras e estéticas de alcance transnacionais, a exemplo do Reggae e tantas outras como o Jazz, Blues, o Funk, o Rock e o Rap. Em outras palavras, estes músicos são considerados, na definição de Gilroy - em acordo com a perspectiva já apresentada por Hampatê-BÁ - como “...guardiões temporários de uma sensibilidade cultural distinta e entrincheirada que também tem operado como recurso político e filosófico.” (Gilroy, 2001; p. 164). Portanto, o autor endossa a sugestão de que os músicos e usuários de música, em sua “práxis” subversiva representam um tipo particular de intelectual. A difusão transcontinental da musicalidade Reggae, que desde os anos 60 compunha o Repertório das lutas contra a violência e a invisibilidade social, está associada com outras sonoridades do protesto negro contemporâneo (Godi, 1997, 1998, 2001; Hall, 2003; Silva(a):1995; Silva(c), 2000). Isto implica que o discurso estéticomusical do Reggae registrado nas canções dos álbuns, afastam qualquer impressão de que esta seja uma música pura!21 Trata-se, na verdade, de uma “mixagem” que incorpora elementos do Rock, Rythm N’ Blues, e é incorporado na cena musical destes outros estilos de matrizes negras (Cardoso, 1997; White, 1999; Davis & Simon, 1983). No Brasil, mais precisamente no Maranhão, O trabalho produzido por Carlos Benedito Silva observou a partir dos depoimentos orais e um rigoroso estudo etnográfico, os espaços das “festas de Reggae” de São Luís-MA em meados dos anos 20 A acepção deste conceito é eminentemente gramsciana; Hall é o autor contemporâneo que percebeu a contribuição deste pensador italiano aos estudos culturais na dimensão da presença negra na diáspora.(Cf. HALL:2003) 21 Além disso, a propagação do reggae ilustra uma certa cissiparidade, haja vista as inúmeras variáveis como o Ragga, Roots Reggae, Dub Poetry (Davis & Simon., 1983; Albuquerque, 1997). 36 90. 22 Tentando compreender as formas de sociabilidade mediadas e legitimação social das populações negras e suas ações/respotas à marginalização, a partir destes territórios, o autor ressalta ainda que este processo está inserido numa rede transnacional onde as novas tecnologias de comunicação e reprodução do som desempenham papel de amplificadoras dessas memórias musicais e aproximando, de modo singular na história humana, as experiências de vida desses grupos sociais(Silva:1995, p. 129; ver também Godi:1998). Violentamente excluídos da cidadania ao longo das negros e negras construíram sua história de modo diacrítico à revelia de modelos oficiais – resíduos do colonialismo – e tiveram na música um conectivo passado-presente mediador de seus anseios e visões de mundo. Trata-se de um “descentramento”, como propôs Stuart Hall em seu clássico Da Diáspora, que abre caminho para importantes estratégias de “intervenção no campo da cultura popular” (2003, p. 337). Esta presença não se dá, como sabemos, sem confrontos e tensões. Muniz Sodré (1988) aborda este universo e aponta à relevância do cotidiano nas ruas como terreno (ou “terreiro”) dinâmico apropriado por negros e negras. mais precisamente no capítulo “o jogo como libertação”, o autor tece uma crítica brilhantemente contundente ao uso de categorias de análise que não dêem conta da diversidade dos espaços urbanos como locus de afirmação dos grupos e de reinvenção de suas identidades raciais. Em outros termos, Sodré descortina a dialética hegeliana (e sua referência dualista!), argumentando serem as práticas musicais, o jogo, o comércio informal das ganhadeiras, em suma, o convívio com a “rua”, elemento formador das “cidades” não podendo, portanto se dissociar numa análise mais complexa dos processos de formação destes centros. Além de literalmente “enxergar” a experiência negra, apresenta um olhar críticoepistemológico de fundamental importância à construção de um outro Cânone engajado com a inclusão, no mundo acadêmico, da presença e sujeição dos(as) afrodescendentes na construção das relações sociais. Mas quais elementos estas trajetórias nos oferecem para refletirmos melhor sobre a construção de identidades negras? Qual a relação dos processos identitários uma vez que a música conecta universos culturalmente distintos? É o que vemos a seguir. 22 SILVA, Carlos B. R. Da Terra das primaveras à ilha do amor: Reggae, lazer e identidade cultural. São Luís, EDUFMA, 1995 37 “Uma questão de identidade”: a música remodelando a pertença Rituais de negros Uma questão de identidade Um momento negro Uma nova negritude(...) (“Mundão”, 1988. op. Cit) O crescente interesse pelo estudo das identidades passoum a integrar a agenda acadêmica dos últimos 30-40 anos, sobretudo pela intervenção gradual dos movimentos sociais indígenas, negros e feministas nos anos 70. O próprio conceito de identidade tem sofrido mudanças substanciais nestas últimas décadas. As imigrações transformaram demográfica e culturalmente as populações da Europa, EUA e América trazendo à tona contrastes que delineavam a crise do nacionalismo de Estado e suas ditas “fronteiras” nacionais e suas arbitrariedades. O meio acadêmico passa a debruçar-se sobre novas relações comunitárias, novos sentidos de identidade coletiva como fez Fredrik Barth desde a década de 60 em suas reflexões sobre os Grupos étnicos, balizando o início de uma longa jornada de debates que se mantêm pertinentes no presente momento. 23 O conceito de etnicidade emergiu no meio acadêmico de fins do século XX como uma categoria que pudesse dar conta destas novas formas de sociabilidade pautada numa dinâmica de exclusão e inclusão que impunha aos grupos sociais novas fronteiras. Compreender estes novos sentidos de pertencimento e as implicações entre ser “nós” e “outro” trouxe, além de um acirramento considerável das formas de segregação social, um novo relevo à “pertença” como estratégia de sobrevivência e interação social. O grande destaque de sua análise é considerar a identidade como expressão dinâmica e situacional dos grupos sociais que, dadas as formas de organização social, tende a se recriar e formar novos arranjos. Nessa abordagem a identidade não é um conjunto de traços culturais herdados atemporalmente pelas gerações ao longo do tempo mas, reside na renovação e atualização dos traços de auto inscrição. Paralelamente, Manuela Cunha (1979), já provocava a antropologia brasileira a questionar as indeterminações entre as formas de representação do lugar dos indivíduos (suas identidades) e a cultura. Sökefeld (1999) ressalta a diferença entre o debate antropológico deste conceito e sua definição original da psicologia - onde o significado de “identidade” está 23 BARTH, F. “Grupos étnicos e suas fronteiras” In Poutignat & Streiff-Fenart, 1998 38 associado como característica da personalidade do indivíduo. Para ele o discurso antropológico, foi o responsável por dimensionar a identidade como marcador do grupo, entre si e em relação ao “outro”, apesar de quase completamente manter-se deslocada da questão do self. Entretanto, é a noção de diferença que impulsiona a desconstrução do conceito de identidade como fundamento - ou fim em si mesma - e amplia seu significado como processo de constante transformação. Em outras palavras, as pessoas transitam entre identidades antagônicas, portanto, é questionável haver ‘uma’ identidade isolada numa sociedade plural onde outras identidades coexistem e onde as “diferenças” são um obstáculo ao significado de “pureza” identitárias (Sökefeld, 1999; Silva (org.), 2000; Gilroy, 2001). Estas diferenças de identidades criam ambigüidades para os agentes, o que torna cada vez mais imprecisa a delimitação de categorias fixas de indivíduos como construídas pelas ciências humanas tradicionalmente. Diante disso, “ser” (pessoa, indivíduo) implica interação, num sistema complexo de relações de poder, entre indivíduos que lutam para manter ou melhorar as suas posições um em relação ao outro. O mais recente Livro do antropólogo Carlos Benedito Silva (2007) traz um debate Instigante sobre a questão das identidades locais no Maranhão e sua relação com as influências culturais-musicais consideradas “externas”, “estrangeiras”. Silva (2007) analisa as posições de alguns segmentos de São-Luís diante da influência da presença da música Reggae na cidade. A Jamaica brasileira, como é chamada a capital do estado do Maranhão, na verdade vive há algumas décadas uma disputa simbólica pelas identidades. Para o autor o Reggae representa para a elite dominante (literalmente falando) uma ameaça ao Status de Atenas “brasileira”. Ele apresenta um conjunto de argumento que ratificam o estranhamento sob a justificativa de ser este um Gênero da música internacional, logo, contrário às Raízes brasileiras. 24 Um ponto relevante de seu trabalho é analisar a relação Tradição-modernidade, como conflituoso “diálogo criador” onde o Global não substitui o Local. Para o autor ...tanto as rupturas da tradição quanto as contradições da modernidade permitem este diálogo, mostrando que mesmo nas culturas aparentemente “fechadas” à modernidade a pluralidade se insinua, determinando os ritmos da identidade. (2007, p. 42) 24 . Ver Ritmos da Identidade: mestiçagens e sincretismos na cultura do Maranhão ( SILVA, 2007) 39 Tomando como referência a noção de Diáspora negra como situação de rompimento-recriação de laços identitários das populações de matriz africanas o conceito de identidade apresenta-se do modo potencialmente criativo e sugestivo. Nas palavras Para Carlos B. Silva “ ...esses processos interativos possibilitam também aos diferentes grupos localizados que são atingidos pela dinâmica da mundialização da cultura, escolher, baseados em suas raízes étnico-culturais, novos elementos que, a partir de uma ressignificação, passam a ser retratados como expressão de sua identidade.” (2007, p. 45) Desse modo, a recusa às influências externas pode constituir-se num critério para marginalizar contraculturas da música negra na diáspora como é o caso do Reggae reduzido ao rótulo de música internacional. A presença recente deste estilo musical, tem fertilizado auto-identidades fundamentais à (re)inserção das demandas e perspectivas das populações negras, como destacamos, na Bahia. Visto aqui com uma das tradições inventadas de expressão musical dos negros na Diáspora, no contexto contemporâneo (Hall, 2003; Gilroy, 2001), o Reggae é uma contracultura musical (re) produzida no “Atlântico Negro”, portanto um gênero musical transnacional. É fundamental considerarmos que o uso de categorias como “raça” ou “cultura negra”, que tem sido ressignificadas, podem ser interpretadas como mais próximas da experiência concreta de auto-afirmação ou combate à invisibilidade. No Brasil, os mecanismos de segregação racial passam pelo apelo à negação racial do negro, por isso os movimentos sociais têm realçado a importância da auto-afirmação neste embate. Ainda nesse sentido, a noção de Cultura também pode ser entendida em sentido mais completo, dinâmico: um terreno igualmente ambíguo que ganha diferentes formas de definição de acordo com uma determinada realidade social figurada. É, portanto, no interior destes limites que me refiro à noção de “cultura negra”. As experiências (de nós) afrodescendentes tem redesenhado, definitivamente a concepção de cultura. Pode-se afirmar que os resultados musicais produzidos no universo das populações negras na Bahia sugerem uma reflexão mais plural da noção de cultura e do engendramento de novas identidades. A musicalidade Reggae, em especial, assinala para diversas alternativas à invisibilidade social de um ou mais grupos identificados por sentidos, valores e símbolos étnicos de negritude. Neste movimento, consituiu-se uma “cultura musical” de conteúdos críticos e estética contundente que tem afetado de 40 maneira especial as dimensões identitárias e do pertencimento constituindo uma lógica própria de representação pautada na inserção social do grupo étnico-racial. Portanto o que vem sendo chamado aqui de identidades negras não é um conjunto de características intrínsecas (ou naturais) aos negros e negras mas, engloba múltiplas noções de pertencimento construídas na tensão entre um processo histórico de marginalização do negro na sociedade brasileira e as inúmeras respostas, propostas e alternativas apresentadas por estas populações como as canções registradas nos discos que compõem os repertórios da música negra produzida em algumas cidades da Bahia. Em outras palavras, As identidades negras mediadas pela música Reggae, presente nas canções e no universo que as cerca se edificam numa dinâmica de alteridade. O impacto destas freqüências musicais deságuam na Bahia nos últimos 30 anos compondo a cena plural dos movimentos políticos e culturais em consonância com o posicionamento das militâncias negras urbanas. Repertório das lutas contra a exclusão e a invisibilidade social, as ondas de Kingston - capital jamaicana - reassumem novos caminhos, sonoridades, e referenciais de etnicidade, constituindo um resultado singular de afirmação dessa cultura conectiva que atraiu diferentes grupos “nacionais” e foi responsável por revisitar uma visão de mundo intercontinental, representando, logo, um exemplo genuíno de “estilo étnico de status global” (Cf. Gilroy, 2001). Neste sentido, é pertinente estudar as ‘sonoridades’ da vida cultural na Diáspora afro-latina problematizando a noção de Atlântico Negro (ibid.) e suas reflexões sobre o repertório das práticas musicais no âmbito das “tradições populares” negras, como o faremos mais à frente. Podemos afirmar ainda que, no bojo das expressões musicais de maior disseminação mundial a partir da segunda metade do século XX, o Reggae é um “estilo de Música negra que tem seu pertencimento em loci variados do planeta”(Godi:1998, p. 275) transcendendo as fronteiras lingüísticas e nacionais e encadeando outras laços de etnicidade sobre (e em torno da) produção artística e histórica do negro. Incorporando novos sentidos em sintonia com “aspectos tenazmente locais” (Sansone:1997, p.221) e para além do mundo anglófono, a disseminação da música Reggae em águas brasileiras representa mais uma das muitas confluências da Cultura negra na Diáspora. Portanto, tornou-se imprescindível à compreensão desta ressonância, investigar sua existência idiossincrática na Bahia. Nestes ritmos fundiu-se uma visão mítica sobre África ancestral e contemporânea que levam em consideração a Diáspora como produto e desdobramento da escravidão e posiciona-se, acima de tudo, 41 como laço transnacional entre sujeitos que tem em comum as mesmas raízes, diferentes origens e, um presente semelhante. Em outras palavras, “...deslocadas de suas condições originais de existência, as trilhas sonoras dessa irradiação cultural africano-americana alimentaram uma nova metafísica da negritude ‘elaborada e instituída na Europa e em outros lugares’[grifo meu] dentro dos espaços clandestinos, alternativos e público constituídos em torno de uma cultura expressiva que era dominada pela música”(Gilroy, 2001) Nesse ritmo, a irradiação do Reggae colocava a Jamaica em destaque como uma das importantes referências de sublevação do terceiro mundo alterando a Geopolítica da cultura. Virando Jamaica A década de 1980 chegava ao mundo com ar de novidade! Na música brasileira, diversos artistas que agitaram os palcos e outros meios de comunicação nos decênios anteriores se consagravam como referências da contracultura daquele momento no país. A cena sociocultural e política, vivenciada dentro e fora do Brasil ao longo da década de 70, era epílogo para aos conflitos sócias que marcaram os últimos suspiros do século XX. O esgotamento do Regime totalitário-militar brasileiro e a revoada de movimentos sociais civis de todas as ordens são parte de um contexto mais geral alterado: pelo impacto das lutas civis pela descolonização das mentes e dos povos no continente africano e na diáspora negra, do arcaico domínio europeu (Hall:2003; Silva: 2000); pela ascensão das ações do Movimento black-power norte-americano e pela visibilidade emergente de novas manifestações de pertencimento negro presentes na música, no cinema e na televisão25 cujas imagens ressignificadas foram transformadas em símbolos e sinais de identificação dos jovens afro-brasileiros26. As trilhas sonoras daquele período 25 O interessante documentário Wattsax : woodstock da música negra, registra o festival de música negra realizado na cidade de Watt nos Estados Unidos em 1972 com narração e entrevistas de Richard Prior. Retrata ainda o cotidiano dos jovens negros no país, da música à religiosidade. É um registro precioso dos anos 70! 26 (Cf. Silva, 2000 ) 42 foram sensivelmente percebidas nos repertórios de inúmeros artistas brasileiros, um resultado criativo que é hoje parte significativa de nossa memória musical27 A emergência de movimentos sociais que pautavam a inclusão social do negro marcaram definitivamente a história recente do Brasil. Na Bahia a fundação de diversas entidades político-culturais como os blocos afros Ilê Aiyê(1974), Olodum(1979), Male Debalê(1979), Muzenza (1981), assim como a fundação do Movimento Negro Unificado (1978) enunciava a mobilização de inúmeros agentes em torno do debate das desigualdades étnico-raciais propondo assim novas políticas à sociedade brasileira (Silva, 2000c, p. 54; Risério, 1981; Godi, 1997)28. Interagindo com renovadas estratégias de intervenção na vida pública, estes agentes propunham uma leitura para o país e seus desenhos futuros (leia-se democratização) que levava em conta a as desigualdades étnico-racial na história e na realidade brasileira. Os impactos destas agitações ecoaram nas décadas de 80 e 90, palco de contínuas movimentações de artistas negros que dedicaram suas temáticas e atividades (Música, Dança, Teatro, Artes Plásticas, literatura, poesia...) à pesquisa e resgate de um passado ancestral de matrizes africanas identificado com a luta contra a invisibilidade social de negros e negras construindo, assim, um novo paradigma de mobilização social. Em outras palavras, os anos 80 parecem menos uma “década perdida”29 se vistos à luz dos movimentos políticos e culturais da população negra. É nesse contexto que o compositor-músico-cantor baiano Gilberto Gil um dos personagens mais influentes e controversos da música popular brasileira no século XX, consolidava sua carreira pelo experimentalismo e pela sintonia com as influências e tendências sonoras de circulação no mundial. Sua trajetória musical iniciada os anos 60 se entende até os dias atuais incluindo no currículo uma intensa participação na vida política do Brasil pré e pós ditadura. Co-fundador do movimento da Tropicália, o artista é conhecido ativista político-cultural, inclinação que lê rendeu intensas perseguições e 27 O surgimento de novas variáveis do samba, como o samba rock, samba funk,e sua identificação com a juventude negra no período é um dado que atesta essa informação.(Silva, 1984, Silva, 2000). A dissertação de mestrado de Luciana Xavier (no prelo), recém defendida no programa de pós Graduação da FACOM/UFBA é uma das mais recentes produções sobre o tema. Veremos mais adiante que o sambareggae é um dos descendente destas hibridações musicais. 28 O proliferação dos blocos afro-carnavalescos remonta à criação dos blocos de índios, desdobramentos das escolas de Sambas dos anos 60, num contexto permeado por variáveis tecnológicas e midiáticas (cinema, televisão, gibis) e profundas modificações no território Urbano de Salvador (Godi, 1991). 29 sobre esse conceito Ver, GOHN, M. da Gloria. Movimentos sociais e educação. São Paulo, Cortez, 1994 43 alguns anos de exílio em Londres30 e uma vasta produção musical reconhecidamente cosmopolita. Para além da imagem ora vanguardista, ou diplomática (Haja vista sua participação, recentemente interrompida, como Ministro da cultura do Governo Lula entre 2002-2008) Gilberto Gil é, sem dúvida, uma das importantes referencias na inserção e diálogo com as principais tendência da musica negra de dentro e fora do Brasil. Para avaliar melhor as muitas motivações que o trazem para estas páginas, gostaria de “abrir um parêntese” para ilustrar, com uma História particular, como a música ganha significados os mais diversos no universo e cotidiano das pessoas, em situações as mais inusitadas. Literalmente nasci e tenho crescido sob influência do som de Gilberto Gil. Os discos de Vinil, fitas K7 e outras referências do artista sempre tiveram presença nas estantes de minha infância. Mais do que isso, escuto desde criança que minha chegada ao mundo foi embalada por uma de suas músicas mais tocadas nos anos 80 e até s dias atuais. Pelo menos anualmente, minha mãe, Dionéia Mota (e sei que não se importará com a ausência do pronome “Dona”) e outros familiares me relatavam um episódio que pode ilustrar bem esta relação: Era abril de 1980 quando, aos 09 meses de gestação do seu primogênito ela esperava mais um tedioso domingo passar quando percebeu as contrações que anunciavam o rebento. Atônita, ela e meu pai partiriam em busca de ajuda na vizinhança para que às pressas pudesse ser acolhida na maternidade mais próxima. Na rua deserta do Bairro de Mussurunga I (àquela época recém fundado pela URBIS) em Salvador-Ba a oportunidade de “socorro” ficava à mercê da sorte ou de algum dos poucos vizinhos que possuísse um automóvel e se dispusesse a atendê-la. Pela lembrança de minha mãe, um senhor da vizinhança de nome “Pedro” apontou na Rua com seu Volkswagem Variante carregado de instrumentos musicais que haviam animado um evento dominical. Apesar da sobrecarga no veículo, ele se habilitou a prestar solidariedade, desviando o caminho de casa e conduzindo a gestante e seu marido, em meio aos muitos “tambores, repiques e atabaques” - assim lembra minha mãe sempre aos risos – até a maternidade que ficava a cerca de 17 km. Recorda ainda que, tendo desembarcando no hospital às contrações, foi conduzida para o atendimento médico visivelmente intranqüila o que tornaria sua 30 Em muitas entrevistas Gil refere-se a alguns episódios de sua vida em Londres, como um tempo de sentimentos ambíguos: por um lado, a angústia do exílio, por outro a convivência com a contracultura musical de grande circulação na Europa (àquela época o epicentro da indústria fonográfica mundial). 44 “hora” um pouco mais difícil. O auxiliar medicoque conduziu os preparativos do parto insistiu repetidas vezes por sua tranqüilidade, pedido que não contava com uma resposta positiva. Pelo contrário, tomada pela dor, expectativa, ansiedade, perda de líquido – e tantos outros sentimentos que sou incapaz de mensurar – ela se esvaiu em lágrimas... Já na sala do parto, ouviu novos pedidos de calma e tranqüilidade. Todos em vão... Diante da situação, um dos membros da equipe médica, começou a cantar para ela [e o bebê] uma de suas melodias prediletas: “não, não chore mais... menina não chore assim. não, não chore mais...” A atitude a tocou com tamanha precisão que a tensão deu lugar à serenidade. A melodia vocal lhes trouxe o conforto necessário para aquele ritual de vida se concretizasse. Para ela [minha mãe], aquele refrão de Marley, revisitado por Gil é minha canção de chegada neste mundo. Para mim, esta História que já ouvi repetidas vezes, é hoje muito mais simbólica para minha auto compreensão e pode ajudar a entender algumas questões ao ilustrar a relação-mediação da música no cotidiano das pessoas. Durante muito tempo insisti em tratar esta narrativa de minha origem, como uma grande coincidência e/ou gesto de carinho materno; nos últimos anos tenho repensado bastante esta posição. Precisamente ela nos serve hoje como ponto de partida para uma reflexão mais apurada sobre o impacto das musicalidades negras na Diáspora. O presente trabalho é uma tentativa de compreender algumas dimensões desta relação. Além disso, a alusão a um parto serve aqui como ilustração para evidenciar que a produção-gestação deste material foi sem dúvida uma espécie de parto intelectual seja pela dor, seja pelo rito de passagem, seja pela esperança no fruto que se anuncia. Essa passagem tenta retratar, ainda que de modo pouco convencional, o impacto e popularidade de versão em português gravada por Gilberto Gil de No Woman No Cry (autoria de Vicent Ford), imortalizada por Bob Marley and the Wailers. A sintonia entre do artista brasileiro com a música afro-jamaicana demonstrava uma posição em comum com outros músicos e interpretes do período que identificavam nestas trilhas sonoras da musica negra transnacional novos referenciais identitários para problematizar sua própria História. Esta leitura musical, ainda que sublime, é um indício da posição de um artista negro diante da possível (re)construção de um país recrudescido pelas desigualdades sócio-raciais (Silva, 2000c). 45 Neste sentido, a postura do profissional médico, que cantou para tranqüilizar as dores de um parto, reforça a presença da musica na tradução das relações e conflitos do seu tempo. A releitura apropriada de Gil traduzia bem a angústia de um país que vivia sob as dores de uma transição “lenta e gradual”31. Naquela conjuntura, chorar não era mais preciso, pois a dor haveria de dar lugar há novos tempos, como ansiavam muitos movimentos sociais. Curiosamente, “Não Chore Mais (No Woman no Cry)”, trata de uma postura otimista, da esperança em uma nova perspectiva de sociedade, de um novo tempo sem a violência política que tanto marcou as sociedades do Terceiro Mundo nesta segunda metade de Século XX, e contra o qual Gil e Marley foram alguns de seus combatentes mais conhecidos. Esta era, a propósito, a intenção original de Gil, como se vê em seu Relato: “eu pensava na transposição de uma cena jamaicana para uma cena brasileira o mais similar possível nos aspectos físico, urbano e cultural. Emblemática do desejo de autonomia e originalidade das comunidades alternativas, ‘No woman no Cry’ retratava o convívio diário de rastafáris no government yard (área governamental) em Trenchtown, e a perseguição policial, provavelmente ligada à questão da droga (maconha) que eles sofriam. Essa situação eu quis transportar para o parque do Aterro, no Rio de Janeiro, Também um parque, onde localizei policiais em vigília e hippies em rodinhas tocando violão e passando fumo, como eu costumava vê-los de noite na cidade. Coincidindo com o momento e que a abertura política estava começando, ‘Não chore mais’, acabou por se referir a todo período de repressão no Brasil”32 Observando a letra da canção temos: NÃO CHORE MAIS (Gilberto Gil, 1979) Bem que eu me lembro Da gente sentada ali Na grama do Aterro, sob o sol Ob-observando hipócritas 31 Esta foi a conhecida expressão mencionada pelo General Ernesto Geisel para se referir à postura dos Militares diante do fim do regime. Em 1979 foi decretada também a lei da anistia que pôs, sob o manto silencioso de uma mesma justiça os criminosos do Regime e exilados poíticos.(Ver mais em GASPARI, Hélio,) 32 GIL, Gilberto. Todas as letras. RENNÓ, Carlos (org.). São Paulo, Cia das Letras, 1996. 46 Disfarçados, rondando ao redor Amigos presos Amigos sumindo assim Pra nunca mais Tais recordações Retratos do mal em si Melhor é deixar pra trás(...) Não, Não Chore mais Não, Não Chore mais Menina, menina Não chore assim33 A letra em português, com leves adaptações traduz o sentimento da versão original gravada pelos Wailers: (…)‘Cause I Remember when we used to sit In the government yard in Trenchtown Oba-observing the hypocrites Mingle with the good people we meet Some friends we have Some friends we lost Along the way In this Future you can’t forget your past So, dry your tears And don’t shed no tears No Woman no Cry No Woman no Cry34 Há que ser considerado ainda que a metáfora da dor como transição, é um conectivo comum entre as muitas Histórias de sobrevivência no Atlântico Negro e está 33 Vicent Ford/ Letra em Português: Gilberto Gil. In: Gilberto Gil, Disco: Realce, Gravadora: Elektra, 1979. 34 Ibid. 47 traduzida em muitos de seus repertórios. Esta analogia nos remete ainda ao que Gilroy (2001) chamou conceitualmente de “sublime escravo” (slave sublime): um traço característico das culturas construídas pelos escravos – e legadas a seus descendentes de combinar dor e prazer na construção de seus modos de comunicação. No álbum Realce outras linguagens explícitas vão ilustrar esta interação com as novas “metafísica de negritude” em trânsito naquele contexto. A capa traz uma foto de rosto do autor que enfatiza, além de sua convidativa (e provocativa) descontração, o uso de uma estética negra nos cabelos e adornos inspirada nos muitos penteados afrobrasileiros e, arrisco, nos dreadlocks afro-jamaicanos. A música Reggae trouxe, com sua ampla bagagem de signos, o uso do cabelo como forte representação étnicoidentitária.35 Para, além disso, as canções que compõem este álbum abordam algumas sonoridades e temáticas que fazem parte do universo de referências sócio-culturais abertamente marginalizadas na sociedade e que estão associadas à História das populações negras. Além da presença marcante do Ijexá, ritmo oriundo do candomblé tocado no espaço da rua a temática dos candomblé é explícita em canções como “Longunedé”, em que Gil canta a mitologia ancestral da divindade afro-brasileira, marca registrada em outros discos anteriores e posteriores de sua carreira, dando visibilidade a esta cosmovisão de matriz africana. É uma opinião compartilhada por muitos que este é, do ponto de vista da produção fonográfica, um dos marco principais marcos da chegada do Reggae no Brasil (Godi, 2000; Silva, 2000a). Em entrevista com o radialista, produtor cultural e colecionador Clóvis Rabelo, que trabalha há mais de duas décadas com a produção e divulgação do Reggae na Bahia, ele cita um momento bastante ilustrativo desta História quando perguntado sobre a primeira vez que teve contato com o Reggae. Nas Palavras de Clóvis Rabelo: “...em 1980, ou foi 79 que, eu não me lembro, quando eu fui assistir um show de Gil na escola de Teatro[da Universidade Federal da Bahia, em Salvador] ele falou, voz e violão, que ele ia cantar a música de um 35 Em uma das falas do Líder espitiritual rastafári Mortimo Planno, quando perguntado sobre a vida de Bob Marley ele enfatiza a centralidade das tranças como representação de insurgência. Segundo ele para conter o “açoite as tranças” de Marley era preciso cortar-lhes a cabeça Catch a Fire. Coleção Classic Álbuns, Série 2. Eagle Rock entertainment, 1999. Agradeço aos amigos do Grupo cultural Revolution Reggae (Conceição do Coité-Ba) pela sugestão e aos professores Paulo Neto e Pinzol da UNEB (Campus Juazeiro) pela cópia deste material em DVD. 48 Jamaicano que era Sucesso e ele cantou “No Woman no Cry”. Foi a primeira vez que eu ouvi... e daí pra cá começou...”36 Ainda diante destas evidências, não podemos deixar de considerar, como o fez Godi (2001), que a presença do Calypso caribenho nos anos 60-70( forte estilo influenciador do Reggae) foi um dos agentes fertilizadores da sonoridades afro-caribenhas no terreno cultural e musical em muitas cidade brasileiras como Salvador e São Luís do Maranhão (Silva, 1995). No meu entendimento é menos pontual demarcar a influência de uma determinada cultura musical a partir de vestígios exatos. Basta lembrar que a análise interpretativa dos registros fonográficos deve problematizar o contexto social de gira em torno da obra, além do processo de produção anterior à publicação do resultado final e que em geral leva certo tempo. Considero, portanto, que a aproximação (inseparável) do Reggae no Brasil contou com uma conjunção de fatores que dizem respeito o contexto político-cultural e étnicoidentitário que pairava sob a Bahia e outros territórios do atlântico em consonância com a consolidação do Reggae na indústria fonográfica mundial na contracultura dos anos 70. Esta trajetória foi abordada pela bibliografia esporádica que vem sendo produzida sobre o Reggae ao (Simon & Davis, 1983; White, 1999, Albuquerque) Em todos estes trabalhos tem sido comum destacar que a aceitação pública do Reggae contou com um certo trabalho de conversão do público tentando aproximar a mensagem do Roots Reggae às influências da música negra de maior circulação no mercado internacional de então, especialmente o Rock e o Rhythm & Blues. O vídeo-documentário Catch a Fire (1999) é uma fonte valiosa para apreciar a questão pois apresenta a trajetória de gravação do álbum dos Wailers lançado em Londres (1972) narrada por alguns dos principais agentes envolvidos (músicos, engenheiros de som, produtores) além de registros raros da realidade social de Kingston e Londres à época Este disco37 representa um marco da indústria fonográfica mundial por inúmeras razões: O conteúdo fortemente político e declaradamente étnico-identitário, são marcas indeléveis. paralelamente, o uso de tecnológicas alternativas de gravação e mixagem, que tornaram possível produzir uma musicalidade híbrida com forte apelo às populações do Atlântico negro anglófono Além disso, a inserção em Londres de instrumentos e sonoridades mais conhecidas pelo público colocava o Reggae jamaicano no centro da indústria fonográfica internacional 36 37 Entrevista com Clóvis Rabelo(14/11/2006) The Wailers. Catch a Fire. Island records, 1972. 49 (através da Gravadora Island) fortalecendo, consequentemente as contraculturas negras no contexto do capitalismo dos anos 70. Na opinião do produtor-tradutor dos Wailers Cris Blackwell o grupo deveria atingir o mercado fonográfico da Inglaterra e EUA, apresentando-se ao mundo como um “grupo negro de Rock”. A capa de Catch a Fire com formato de isqueiro também representou uma forte estratégia para o mercado bem como se consolidou como uma das obras-primas da história da indústria fonográfica. Nas palavras dele: “Catch a Fire foi um acontecimento”.38 Bunny Livingston (um dos fundadores dos Wailers) descreve no documentário estes episódios com as seguintes palavras: “Eu, Bob e Peter precisávamos encontrar uma forma que fosse aceitável. Nós resolvemos fazer um ritmo bem marcado que sugerisse os princípios básicos do Reggae e depois poríamos um pouco de cor aqui e ali que não afetaria o princípio básico, mas que atrairia o mercado internacional”39 Segundo o Baixista Aston ‘Family Man’ Barret, que teve papel crucial na formação musical dos Waliers - ao lado do irmão baterista Carlton Barret - desde o início da carreira: “A música Reggae é a batida do coração do povo. É a linguagem universal. E quando ele bate você não sente dor...estávamos tentando nos expressar com as letras na melodia. Fazendo um Reggae Roots com um sabor R&B´[rhythm n’blues] para que se espalhe.40 Carlos Albuquerque no livro o Eterno Verão do Reggae, acrescenta que o sucesso da Canção “I Shot the Sherrif” teria alavancado novamente a carreira do Guitarrista Eric Clapton, e em contrapartida provocado o maior interesse das gravadoras na música jamaicana,que diga-se de passagem, já contava com um time considerável de músicos, produtores, estúdios de gravação, rádios etc.41 É interessante considerar, com efeito, a grande inversão histórica que este fenômeno provocou. A música Reggae foi o estilo de música que deu, além de divisas 38 Ibid. Este álbum não foi publicado no Brasil com estas características. Ao que parece também não o foi na Jamaica como sugere a informação de Carlos Albuquerque sobre o Impacto de Catch a Fire no mercado da música de Kingston. Ao referir-se ao disco ele menciona a capa em que aparece Bob numa fotografia de rosto ostentando um longo “cigarro” de Ganja. 39 In Catch a Fire. Classic Álbuns, 1999 [tradução: legendas videolar] 40 Ibid. 41 Albuquerque, 1997; ver também White, 1999. 50 para a Jamaica e alguns de seus artistas, o primeiro astro pop do terceiro mundo, e uma nova referência étnico-identitária que alteraria profundamente as políticas culturais negras em todo o Atlântico Negro. Este fato está diretamente associado à centralidade que a Jamaica, passa a assumir em outros países como o Brasil. A presença inusitada da música afro-jamaicana dos Wailers seria percebida pelo registro sensível de Caetano Veloso na faixa “Nine out of ten” de seu disco Transa (1972) - contemporâneo ao Lançamento de Catch a Fire(dos Wailers) – como sugere a letra da canção: NINE OUT OF TEN (Caetano Veloso, 1972) Walk down Portobello road to the sound of reggae I’m alive The age of gold, yes the age of The age of old, the age of gold The age of music is past/ I hear them talk as I walk yes I hear them talk I hear they say Expect the final blast Walk down Portobello road to the sound of reggae I’m alive(…) Além da explícita referência, chamou-me especialmente a atenção as citações de abertura e encerramento em que se apresenta uma vinheta que insinua uma tentativa de reproduzir o som do Reggae jamaicano (o resultado é ainda muito próximo de um RockSteady) que se disseminava pelo mundo via Londres e muito mais timidamente os EUA. Neste caso, a interação da sonoridade enunciando a mensagem que se complementa pelas informações da letra é um indício é digno de referência pela percepção pioneira do artista, apesar de menos indicativo de uma relação mais próxima com a divulgação do reggae e sua inserção no mercado fonográfico brasileiro. É precisamente na passagem para os anos 80 que o Reggae passa a ter maior reverberação no Brasil. A sintomática gravação de Gilberto Gil abriu, em certo sentido, as portas para o Reggae no mercado fonográfico brasileiro. Este era precisamente o entendimento da gravadora alemã Ariola (associada da inglesa Island de Cris Blackwell) que trouxe Bob Marley, acompanhado de Jacob Miller (Inner Circle), Junior 51 Marvin (The Wailers) e outros de músicos jamaicanos ao Rio de Janeiro em março de 1980 para um evento de divulgação do seu staff de artistas. Como afirma Leo Vidigal, Bob Marley era a grande aposta internacional do selo no país, sobretudo depois da bem recebida gravação de Gilberto Gil (“No Woman no Cry”) pelo público e do lançamento do álbum Survival42, que “já estava girando no toca-discos de 10 mil brasileiros”43. Apesar de tratada com pouca expresão pelos veículos de imprensa da época, a passagem de curta duração do ídolo jamaicano deixou marcas em sua obra musical, como atesta o som da cuíca presente na gravação de “Could You Be Loved”, composta por Marley durante o vôo da viagem de volta, afirma Blackwell.44 Deixou também memórias interessantes para alguns músicos baianos daquele período. Moraes Moreira, um dos contratados da Ariola à época, esteve presente em muitos momentos da visita e compôs, segundo o próprio, uma canção-homenagem ao músico45 Para o reggaeman baiano tonho Dionorina, a passagem de Marley lhe renderia, por motivos adversos, uma busca pela obra e música Reggae. Em sua entrevista ele comentou sobre sua impressão do episódio relatou que entre suas idas e vindas para o Rio ao longo dos anos 70 teve a oportunidade de ter os primeiros contatos com o Reggae. Nos anos 80 com a passagem de Marley pela cidade, o músico comenta, com certo pesar, suas tentativas infelizmente mal sucedidas de encontrar pessoalmente o artista jamaicano. Segundo Dionorina o fato o estimulou a pesquisar a Música de Bob Marley. nas palavras dele “foi o desencontro para o encontro...”46 O fato é que a presença de músicos reconhecidos do Reggae jamaicano, a partir daí passava a fazer parte, ainda que esporadicamente da agenda cultural Brasileira e Baiana. De acordo com o Sr. Carmelito Carvalho, colecionador de Reggae há mais de três décadas e admirador confesso da vida e obra de Peter Tosh, o co-fundador dos Wailers esteve no Brasil (em 1980) participando de em um capítulo da novela “Água Viva”, exibida no turno da noite ao lado do intérprete (e então ator...) Fábio Júnior e da 42 Bob Marley & the Wailers. Disco: Survival. Gravadora: Island, distribuidora: Ariola, 1979 VIDIGAL, Leo. “O Rei no Rio: dreads no verão da abertura”. Revista Bizz, ed. 201, maio de 2006. ver também Albuquerque, 1997, Pp 71-78. A visita incluiu compras de materiais esportivos, partida de Futebol com artistas contratados da Ariola (dentre os quais, Chico Buarque, Toquinho e Moraes Moreira) e, obviamente, participação na festa centenas de convidados no morro da urca além da hospedagem no opulento Copacabana Palace, recepção digna de um dos maiores popstars da época 44 Vidigal, 2006. p. 78 45 Albuquerque, 1997. p.78 46 Dionorina. Entrevista concedida em 24/11/2007. 43 52 protagonista Tonia Carreiro. Além desta passagem, sabe-se que Tosh esteve no Brasil em outra ocasião para uma apresentação musical no 2º festival de Jazz de São Paulo.47 Outra presença de destaque no país, e mais especialmente na Bahia o Cantor, compositor e intérprete Jimmy Cliff. Pelas correntes sonoras do atlântico negro, Cliff, já estabelecera uma relação com o Brasil que remonta a fins dos anos 60, quando de sua participação no festival internacional da canção (Godi, 2001) e como aponta o raro LP “Jimmy Cliff in Brazil” (Philips, 1968). O registro raro (não se trata de música Reggae, diga-se) contém doze faixas, dentre as quais versões de canções da música popular brasileira interpretadas pelo então jovem cantor Jamaicano como: “Serenou”, cantada em português (pouco fluente, leia-se) e “Andança”, numa versão intitulada “The lonely walker”. Em fins dos anos 70 Jimmy Cliff apresentou ao público brasileiro o álbum “Follow my Mind” (WEA, 1977), lançado inicialmente como compacto já contendo a canção “No Woman no Cry”. O novo momento que vivia a música afro-jamaicana em fins dos anos 70 e propriamente as mobilizações sociais de cunho étnico-identitário protagonizadas pelos grupos negros citados trariam-no novamente ao Brasil, e mais exatamente à Salvador no início dos anos 80 onde fixou residência, durante algum período se apresentou com artistas como Gilberto Gil e Lazzo, este último que o acompanhou em enorme turnê internacional. Em suma, àquela altura o Reggae era, além de convidado vip do mainstream das gravadoras, um estilo musical de forte conteúdo crítico-social e étnico-identitário amplamente divulgado e “cultuado” em toda a América, como afirmou Carlos Albuquerque(1997). A década que sucedeu 1980 foi arena política e cultural onde o Reggae também se apresentou como alternativa musical. A (auto) afirmação desta musicalidade em terreno baiano foi produto de uma série de episódios de ora aceitação ora enfrentamento que, uma vez registrados “sob o signo do som”, para citar os malungos do estado vizinho48, tornaram-se alvo deste trabalho de pesquisa. 47 S. Carmelito Carvalho. Entrevista concedida em 14/12/06. Estes fatos também ganharam os comentários de Carlos Albuquerque quesão informações de Albuquerque que acrescenta alguns episódios da polêmica passagem de Tosh pelo Brasil (1997, p. 103-104). Na visão do autor além dos inesquecíveis e mântricos shows, as outras aparições de Tosh ‘deram o que falar”. No auge de sua militância pela legalização da Maconha, o cantor e compositor jamaicano ganhou comentários pejorativos na imprensa. No Jornal do Brasil: “agora eu tenho que acreditar na abertura. O Maluf pagando esse criolo pra vir aqui dizer isso?, comentou um não identificado jornalista. (ibid.) 48 O termo Malungo significa companheiro e foi inspirado no Daruê Malungo , grupo afro-percussivo sediado em Olinda-PE forte influenciador dos engenheiros musicais do movimento mangue beat em Pernambuco. Atentos para as sonoridades afro-percussivas de Olinda-Recife e sintonizados nos ecos 53 Compreendo, portanto, que o Reggae se inscreve numa relação complexa de intercâmbio e invenção de novas alternativas sociais e políticas mediadas pelo poder expressivo da música. Nesse sentido, a interpretação que se propõe aqui tenta inserir novas questões para a compreensão da sociedade baiana à luz, e ao som, destas tradições inventadas no contexto recente49. Aponta exatamente para a história de múltiplos enredos e novas tradições musicais, já há muito percebida pela sócioantropologia da música baiana e registrada de modo criterioso pela antropologia episódica de Goli Guerreiro com uma ressalva básica: em tempos onde a disputa contra o silêncio (racializado) foi demarcado pela polifonia de cantos e toques auto identificados com a idéia de negritude é prudente analisar com suspeição a trama alegre de seus tambores.50 Retomando a periodização sugerida lá atrás percebe-se que é propriamente a partir deste contexto que se registram o conjunto de trabalhos mais emblemáticos da influência do Reggae no Brasil. Um dos primeiros registros desta presença na Bahia é, o raro álbum Bahia Jamaica de Chico Evangelista e Jorge Alfredo, que consagrou canções como “Rasta Pé”, “Reggae da Independência” em festivais de música e nas rádios. O título do álbum é singularmente sugestivo à época com seu o apelo à identificação entre duas regiões do atlântico fundidas num mesmo substantivo composto (Bahia Jamaica). A faixa homônima tem uma letra extremamente curiosa que tematiza a sabedoria ancestral das “muitas canções que falam do mar” e o encontro dos países pelo bater dos tambores: BAHIA JAMAICA (Chico Evangelista e Jorge Alfredo, 1979-80) Quem falou tem a cabeça branca a pele morena de muitas canções que falam do mar blocos afro e do samba-Raggae da Bahia, sem perder as antenas com o Dub Jamaicano e o afrobeat de Lagos(Nigéria), deram vida, no ápice do anos 90, a um dos momentos mais expressivos da história recente da música brasileira. Ver Queiróz, 2000. O fragmento foi extraído da canção “voyager”. Nação Zumbi. Disco: Futura. Gravadora: Trama. Ano: 2005. 49 Ver Hobsbawn, Eric. & Ranger, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997 50 Guerreiro, Goli. A trama dos tambores: a música afro-pop de Salvador. São Paulo. Editora 34, 2000(coleção todos os cantos). O aborda as trajetórias da música afro-percussiva da Bahia nas últimas décadas do século XX e sua ascensão para um formato afro-pop-elétrico que provocou uma enorme polarização da Bahia como centro produtor de música e culturas musicais no Brasil. 54 do mar a Bahia tambor que bate aqui tambor que bate lá Bahia-Jamaica Um ponto de encontro Entre eu e você À altura da estrofe: “tambor que bate aqui, tambor que bate lá” sobrepõe-se a sonoridade de atabaques agogôs (em compasso 6/8) num traço característico de alguns sons rituais do candomblé, que se associa ao argumento central da canção e que se sintetiza no refrão: “Bahia Jamaica um ponto de encontro entre eu e você”. Esta citação de sons do candomblé é sintomática de uma musicalidade identificada com a valorização das expressões e manifestações negras. È presença marcante no Bahia Jamaica a marcação peculiar e característica do Reggae (compasso 4/4 com o 2º e 4º tempos fortes nos instrumentos de harmonia, em contraponto com a marcação pulsante da bateria no 3º tempo) ao lado de linhas percussivas de ijexá, fazendo referência ao ritmo tocado pelos afoxés de Salvador. A faixa “Reggae da independência” que trata do 2 de julho(marco da independência do Brasil na Bahia do Século XIX) é um outro exemplo que atesta este argumento. Mais uma vez as sonoridades dos atabaques xequerês e agogô estão presentes na narrativa musical do festivo histórico. O universo percussivo está fundido com outros elementos elétricos além do híbrido violão ovation marcando o Balanço (ou batida) Reggae. È interessante como algumas imagens do disco ilustram este sentido de pertencimento mediado pelo “mar”. A contracapa e encarte do álbum trazem fotografias dentre as quais Chico Evangelista e Jorge Alfredo estão imersos nas águas do mar. Esta representação é profundamente simbólica uma vez que reforça uma noção de identidade a partir do atlântico, Este recurso, presente em outras registros fonográficos da década de 80 ilustra uma posição compartilhada por outros artistas que fazem parte dos repertórios do protesto negro na Bahia. Entre estes, destaca-se o Cantor e compositor Lazzo Matumbi. Lazzo é uma das mais emblemáticas referências da música baiana fora do Brasil. Durante os anos 70 foi cantor do bloco Afro Ilê Aiyê e ativista da música negra. Sua contribuição à divulgação das freqüências jamaicanas no Brasil é imprescindível. Profundamente influenciado 55 pelo Reggae, transitou por vários países do Mundo integrando a turnê do jamaicano Jimmy Cliff.51 Lazzo entra para o mercado fonográfico com o raro Compacto Simples “Salve a Jamaica” (1981)52 deixando muito explícito, sua aproximação com a tendência Jamaicana e outras matrizes da música negra. No entanto, em 1983 ao lançar seu primeiro LP Viver Sentir e amar53, o artista revela sua inclinação polifônica buscando atingir um público bastante diversificado54. A faixa de abertura “do jeito que seu nego gosta”, de Zelito Miranda e Lazzo, projetou-o a um reconhecimento maior, aliado ao fato de ser o disco distribuído pela gravadora multinacional EMI-ODEON. Neste álbum, O reggae é citado entre os muitos gêneros da música negra interpretados pelo Cantor. Um dado importante diz respeito à banda co-rsponsável pelos arranjos de base do álbum: a Banda Estúdio 5. Em muitas conversas com músicos e produtores, bem como nas entrevistas realizadas a “Estúdio 5” é citada como uma das primeiras bandas de Reggae da Bahia. Não por coincidência muitos músicos da Estúdio 5 gravaram outros álbuns importantes do Reggae baiano, a exemplo de Reggae Resistência de Edson Gomes(1988) que será analisado mais adiante. Ao se referir à Estúdio 5, o Radialista Clóvis Rabelo, bem como outros entrevistados, menciona a importância deste grupo como um dos pioneiros a tocar Reggae na Bahia. Na verdade há na fala dos entrevistados uma certa polarização em torno deste dado. O interesse em datar o pioneirismo do “fazer” Reggae na Bahia é, de certo modo alvo da maioria dos músicos e produtores culturais que pude dialogar. Na fala de Clóvis Rabelo, que reforça a tese do pioneirismo soteropolitano, é possível perceber uma breve tansão em torno do Termo Reggae. Em outras palavras, a maior visibilidade dos músicos de Cachoeira (Edson Gomes, Sine Calmon, Nengo Vieira e outros, deve-se à maior popularidade que estes ganharam no mercado da música no estado. Entretanto, Rabelo faz uma ponderação em torno do termo Reggae que me parece plausível Comentar. Ao referir-se à Estúdio 5 em comparação aos “Remanescentes” grupo de músicos, compositores e intérpretes da cidade de Cachoeira, Rabelo pondera: 51 Fonte: www.lazzo.com.br . Site visitado em 21/12/07 Lazzo Matumbi. Disco: Salvea Jamaica. Fermata, 1981 53 Lazzo Matumbi. Disco: Viver Sentir e Amar. Pointer discos. 1983 54 No texto da contracapa tem-se: “ritmo, balanço, voz, aranjos e sentimento, tudo isso num fabuloso disco, cheio de emoção e vontade de mostrar um trabalho capaz de agradar a todos. (...) Texto de José Maurício Machine. 52 56 ...o Studio Cinco era uma banda de reggae, mas ele não tinha aquela filosofia reggae, prá mim mesmo a primeira a banda de reggae mesmo foi a Remanescente, porque os caras eram reggae, os caras comia reggae, respirava reggae. A ênfase na Remanescentes como um grupo “legítimo” de Reggae pode estar associado à maneira como os músicos interagiam se colocavam diante da sociedade. Segundo Bárbara Falcón, os “Remanescentes” de Cachoeira se destacavam pelo estilo de vida coletiva que lhes renderam além de um aprofundamento razoável nos “fundamentos” da Música Reggae, uma intensa resignação cristã-religiosa. De todo modo, sabe-se que parte deste grupo de músicos atuaram na Estúdio cinco e, em parte importante das gravações de Edson Gomes no início de sua Carreira.55 Opinião diferente atesta o cantor e compositor Jorge de Angélica que registra uma versão diferenciada e bem disposta do marco inaugural do Reggae baiano. Segundo ele, a primeira expressão musical do Reggae feito na Bahia teria nascido em Feira de Santana com a fundação da Banda Gana em início dos anos 80. Jorge de Angélica é enfático ao situar sua militância no Reggae anos antes da aparição de Edson Gomes como reconhecido representante do Reggae baiano. Sua fala, revela, como Rabelo um interesse explícito na hegemonia da fundação do Reggae. O interessante nestas posições é notar que a disputa pelo pioneirismo cita, como marco cronológico exatamente a mesma época(início dos anos 80). Isto me leva a considerar que, se por um lado há um interesse político na disputa pela hegemonia do marco inaugural, há em comum um contexto que se apresentava favorável à incipiente proilferação do Reggae como uma música executada por músicos baianos. Em suma, é propriamente neste contexto que começam a brotar os grupos musicais identificados com a proposta da musicalidade Reggae.56 Sintomaticamente, ainda nos anos 80, novamente Gilberto Gil, traria ao público outra referência importante para a edificação da influência do Reggae na música brasileira. O lançamento de “Raça Humana” (1984) tem forte influência das tecnologias de gravação e sonoridades utilizadas pelos Jamaicanos. O Este disco, co-produzido por 55 FALCÓN, Maria Bárbara Vieira. O Reggae no Recôncavo Baiano. Remanescentes do Paraguaçu. Música e Identidade Cultural em Cachoeira. Monografia de Conclusão de Curso. Salvador, UFBa, Departamento de Antropologia, 2002. 56 É importante citar que neste período são lançados em outras regiões do Brasil trabalhos importantes com os de Luís Vagner, também um dos pioneiros a gravar Reggae no Brasil. 57 Liminha, inclui uma faixa gravada com os Wailers nos estúdios Tuff Gong de Kingston. “Vamos fugir”, é uma das canções de maior destaque na obra. No entanto, outros elementos chamam a atenção neste registro. O primeiro deles é o uso de timbres de guitarra e sintetizadores além de realçadas freqüências graves e linhas sinuosas de contrabaixo, a exemplo da canção Homônima ao Álbum. Além destes, relevantes à compreensão da gama de sentidos em diálogo na produção de um produto fonográfico, Raça Humana traz uma canção muito ilustrativa da posição do artista com as políticas culturais afrodescendentes: A MÃO DA LIMPEZA (Gilberto Gil, 1984) O branco inventou que o negro Quando não suja na entrada Vai sujar na saída, ê Imagina só Vai sujar na saída, ê Imagina só Que mentira danada, ê Na verdade a mão escrava Passava a vida limpando O que o branco sujava, ê Imagina só O que o branco sujava, ê Imagina só O que o negro penava, ê Mesmo depois de abolida a escravidão Negra é a mão De quem faz a limpeza Lavando a roupa encardida, esfregando o chão Negra é a mão É a mão da pureza Esta leitura musical da História do Brasil, às avessas da historiografia oficial, denuncia a segregação sócio-racial e aborda a participação d@s negr@s desde as 58 ocupações socialmente desprivilegiadas à edificação de uma sociedade “limpa” do racismo. Em linhas gerais, fica visível que a produção fonográfica deste primeiro período dialogava com um sentido de anti-racismo que reivindicava o reconhecimento do racismo pela sociedade como um problema histórico por ser reparado. As manifestações nos discos são ecos de sucessivas movimentações sociais nos mais diversos contextos urbanos do país. A “babilônia do sertão” e suas chamas O silêncio em torno dos movimentos sociais negros na cidade de Feira de Santana está por ser preenchido57, dado que também se reflete na enorme lacuna de estudos que tratem do universo sócio-cultural desta cidade (atualmente a segunda maior do estado da Bahia e um dos maiores centros comerciais do nordeste do Brasil). Paradoxalmente ao longo das décadas 80 e 90 esta cidade foi palco de intensas mobilizações político-culturais emergentes em torno da “cultura popular” regional ao lado de uma singular valorização da negritude e seus agentes como referencial identitário, como atesta a proliferação de inúmeras entidades ligadas à militância antiracista em paralelo à crescente influência dos estilos musicais transnacionais na produção cultural local, como indica o surgimento das primeiras bandas de Reggae locais. A completa escassez de materiais sobre esta temática é um dado mais do que sugestivo da necessidade de se pensar sobre a mesma. Analisando panoramicamente alguns jornais da cidade de meados dos anos 80 até meados dos 90 dei-me conta da urgente necessidade de produzir um sistemático estudo sobre a produção cultural de seus agentes nos conflitos sócio-raciais.58 Ainda que provisoriamente não me dedique a suprir com riqueza de detalhes esta lacuna pretendo dialogar com alguns destes indícios para compreender quais enredos estão por trás da presença singular do Reggae na 57 O trabalho de Igor Gomes Santos sobre a fundação do Partido dos trabalhadores de Feira de Santana faz referência breve referência ao papel das entidades negras na economia das relações políticas na cidade. Ver: SANTOS, Igor Gomes. Na contramão do sentido: origens e trajetória do PT de Feira de Santana-Bahia(1979-2000). Dissertação de mestrado, Rio de Janeiro, UFF, 2007. 58 Agradeço imensamente a minha companheira Tatiana Farias pelo auxílio solidário na digitalização das muitas dezenas de páginas e recortes de Jornal, quando de sua pesquisa no arquivo da Biblioteca Municipal de Feira de Santana. 59 cidade, que é um dos nascedouros do estilo na Bahia, e sua relação com os movimentos sociais negros no contexto em foco. As inúmeras referências nos jornais impressos a respeito das manifestações da cultura negra de Feira de Santana, entre as quais o Reggae é identificado59, entrecruzadas com algumas informações oriundas de entrevistas60 permitem considerar que a presença da musica afro-jamaicana naquele contexto urbano remonta, como em outras regiões do país, a fins dos anos 70 e início dos 80. A influência e cristalização da musicalidade Reggae naquele contexto, como em quase todos, não se deu sem fraturas e enfrentamentos. Ao longo dos anos 80 a produção gradativa de Reggae em esteve lado a lado com as movimentações dos afoxés e outras entidades ligadas à política-cultural negra. Inúmeras canções gravadas por artistas de Reggae de Feira de Santana, são oriundas dos repertórios destes. Para além disso, parte considerável, dos compositores e intérpretes (como Gilsan, Jorge de Angélica, Dionorina, Nunes Natureza, Nilton Rasta e outros) foram cantores dos afoxés além de co-responsáveis por estas entidades. Em suma, ao longo das últimas décadas, a música Reggae um dos elos de uma rede de musicalidades negras que vem compondo o ambiente sócio-cultural de Feira de Santana. Em uma entrevista do compositor Carlos Pita ao Jornal Feira Hoje, é interessante observar sua impressão e interpretação poética da influência do Reggae alterando cena urbana do lugar. Feira de Santana é a babilônia do Sertão, e o que lhe separa do mar são os verdes canaviais do Recôncavo, onde muito da cana plantada nasceu da dor de mais uma chicotada. É que a história se apaga na veloz, e pouco se falam dos nossos ancestrais... Nessa cidade do reconsertão, nessa babylouca new caatinga eu sinto a presença de reggae, eu vejo jubas de leão, eu vejo rastas...”61 As palavras do artista instigam um olhar mais amplo sobre as influências destas novas sonoridades negras mundializadas em fruição com elementos de identificação (intra) regional, como sugerem os interessantes encontros semânticos. Sua ênfase no amargo passado da plantation “do recôncavo” está articulada à sua leitura do contemporâneo, onde a presença da estética negra - nas “jubas de leão” e nos “rastas” – insinua a “presença de Reggae”. 59 É recorrente nos jornais a associação entre o reggae como expressão “do gueto”, “da periferia”, “dos negros do gueto”. 60 Entrevista com Dionorina. Concedida em novembro de 2007; entrevista com Jorge de Angélica. Concedida em agosto de 2008. 61 Matéria: “Contrate da miséria e da beleza” Jornal Feira Hoje, 21/03/89 60 Para tentar reconstituir, no entanto, uma História do Reggae de Feira de Santana é precípuo considerar o universo sócio-cultural-musical da cidade - as micaretas, lavagens, festas de largo, Bandos anunciadores e mais especificamente, o surgimento das escolas de Samba e posteriormente dos afoxés - e a relação/conflito que envolve a presença dos afrodescendentes62. Para não cair em hipóteses imprecisas e “achismos” desnecessários, evitarei uma genealogia detalhada destas entidades. Desse modo, atento mais às descrições sobre a relação dos afoxés e o surgimento do Reggae na cidade, como o farei didaticamente no capítulo posterior. É importante levar em conta a relevância do rádio, no referido contexto, como veículo de comunicação-aproximação com as muitas tendências musicais em trânsito no atlântico negro, logo, como um dos ”meios” para aquele novo contato-interação cultural-musical. Segundo Jorge de Angélica, por exemplo, foi o rádio que o colocou pela primeira vez diante do som do reggae: ouviu uma vez numa rádio AM de Feira, não lembro se foi na Rádio Carioca... ouvi essa música e fiquei apaixonado pelo ritmo, mas não tive mais possibilidade de ouvir.” Por caminhos diferentes o rádio também foi o seu primeiro mediador com o mundo da música (alguns de seus familiares foram cantores de rádio e o próprio também se apresentava como cantor infantil), e efetivamente, com o Reggae: A primeira vez que ouvi “Stir it Up” com the Wailers, bob Marley cantando, assim... era uma música que me chamava a atenção e me prendia toda vez que eu ouvia. Às vezes quando eu ouvia, ouvia sempre no programa de big Boy, que era um programa que tinha de madrugada... de dez à meia noite na rádio Mundial do Rio... eu ficava procurando pra ouvir por que nesse tempo só ouvia e rádio... depois começou a aparecer aquelas radiolas de seis pilhas da Phillips mas não era todo mundo que tinha. Uma vez nós nos juntamos, três amigos pra comprar. Aí cada fim de semana ficava na mão de um. E durante a semana se juntava tudo em um lugar pra ficar ouvindo (risos!). Era legal. 63 É plausível registrar que em Feira de Santana (e em outras cidades certamente) tinha-se o hábito de ouvir, além dos programas de produção local, os programas de rádio de inúmeras regiões do Brasil e outros países, a exemplo das locuções da BBC de Londres, para sintonizar-se com as informações do mundo. 62 63 Cf. Angélica, Jorge de. 02/08/08 (entrevista). Cf. Dionorina,. 02/08/08 61 Se o rádio, os discos, e em certo modo a TV, foram meios facilitadores da inspiração, pela imagem e sons, com as referenciais transnacionais da culturas negras, foi a vivência das contradições sociais que incendiaram os ideais destes artistas. Um dos primeiros exemplos é a fundação das Bandas Gana e Esperança, que já durante a década de 80, mostrava seus acordes na cidade. A “Gana”, fundada por J. de Angélica, tinha em sua formação, além do parceiro Tonho Dionorina, um time de músicos que foram co-responsáveis pela popularização do Reggae, sobretudo entre os bairros populosos da cidade, o grande público alvo: Nunes natureza, Paulo Monge, Enfezado, Nilton Rasta, Meire, Pi e outros. A banda Esperança, liderada por Gilsam, militante negro também ligado aos afoxés da cidade (inclusive até o presente) é outro caso exemplo da presença Reggae na produção musical de Feira de Santana. É central também a visível interação de alguns representantes das religiões de matriz africana na construção deste processo. Basta lembrar que o candomblé foi um dos principais mananciais identitários para se construir os discursos estético-musicais que são apresentados pelos blocos afro e afoxés e, neste caso, para a produção local do Reggae em particular. Para além disso, a filiação direta e indireta desses artistas no culto afro-brasileiro, marcaria singularmente suas leituras musicais.64 Nas margens do Paraguassú... Um porto de considerável presença das sonoridades afro-jamaicanas foi, e é, sem dúvida a cidade de Cachoeira. Situada no Recôncavo baiano, Cachoeira faz parte de um conjunto de cidades interconectadas, no passado colonial pelas atividades produtivas das plantagens de cana-de-açucar e Fumo. De todo modo, a paisagem urbana da cidade tem sido profundamente alterada pelas novas influências e sonoridades das culturas de massa que, nas últimas décadas do século XX, tem sido forte demarcador de identidades entre os jovens. A compreensão desta presença estético-musical vem sendo exaustivamente analisada pelo trabalho de Bárbara Falcón que desde 2001 desenvolve pesquisas sobre música e etnicidade entre os grupos da cidade e, mais especialmente, sobre o Reggae de Cachoeira (Falcón, 2000). Basta citar que artistas como Edson Gomes, Tim 64 Jorge de Angélica registra que “uma mãe-de-Santo” teria financiado alguns instrumentos musicais para incentivar a fomação da primeira banda de Reggae de Feira de Santana. 62 Tim Gomes, Sine Calmon, Nengo Vieira, Geraldo Cristal e outros são radicados nesta cidade, são (auto) identificados pela autoria de um gênero Genuíno de “fazer” - no sentido de tocar - Reggae: o chamado Reggae resistência. Segundo Falcón, a inserção do ritmo jamaicano na cidade dá-se por influência de uma conjunção de fatores que incluem: a nova inserção da industria fonográfica no cotidiano, uma afinidade étnico-identitária, uma vez que a temática da valorização do negro ganha reverberação numa sociedade marcada por formas veladas, e não menos cruéis, de discriminação sócio-racial. Como desdobramento deste contato nasceu o Remanesentes, experiência comunitária musical e religiosa que reunia musicistas interessados em meditar sobre o evangelho bíblico Cristão, sob a mediação da música Reggae. Como ponto de encontro e referência, a residência do Músico Nengo Vieira no bairro da federação em Salvador, no alto das pombas, nº. 53, onde se reuniam outros artistas à época. Este momento parece bastante emblemático para os caminhos do Reggae baiano como evidencia a participação de músicos do Remanescente na Banda Studio 5, uma das primeiras bandas cuja formação se voltava para o Reggae na Bahia. Este grupo acompanhou artistas como lazzo, e Edson Gomes, com quem gravou os primeiros álbuns de carreira. A rigor, a música era um veículo de intermediação para a pregação evangélica à qual se dedicava o grupo e em torno da qual se reuniam os músicos Sine Calmon, Marcos Oliveira, Tin Tim gomes e Nengo Vieira, fundadores do Remanescentes. Nas palavras de Vieira: “Era tipo um albergue, onde as pessoas conviviam num ambiente sadio, um ambiente de coletivo, solidário. Se tinha um prato de comida dividia igualmente pra todo mundo, e isso a gente fazia na prática mesmo. E essa praticidade foi que nos serviu de suporte não só pra hoje como para o momento em que nós fundamos o grupo Remanescentes, com a proposta de evangelizar as pessoas, pregar a palavra de Deus, na verdade”65 Em uma das canções do Remanescentes, fica registrada a característica do Grupo e sua inclinação comunitária, religiosa e musical: 65 Nengo Vieira entrevistado por Bárbara Falcón em 10/08/01. Apud Falcón, 2002, p. 29 63 REMANESCENTE (Nengo Vieira & Tin Tim Gomes, 1992) Das margens do Paraguaçu em plena América do Sul só remanescente ficará só remanescente ficará É a semente do amor que brota nesta geração buscando a luz, a paz, a vida e a união E o Senhor já diz em sua palavra e com sua autoridade só remanescente ficará só remanescente ficará só remanescente ficará, meu Deus! Paralelamente, emerge da mesma cidade o compositor e cantor Edson Gomes que ao longo dos anos 80 despontou como grande aposta da música Reggae no Brasil, fato que se consolidou com o lançamento de seu primeiro álbum em 1988. Um dos mais conhecidos músicos do Reggae no Brasil, começou sua vida profissional, como auxiliar de pedreiro na área da construção civil.66 O gosto pelo futebol o projetou para atuação no time Cruzeiro (de cachoeira) pelo qual disputou campeonatos locais.67 A influência da música negra brasileira lhe rendeu no início de sua carreira o apelido de Tim Maia, dadas canções deste que é uma de suas principais referências. Ao longo dos anos 70 atuava como intérprete em conjuntos musicais da cidade de cachoeira onde venceu algumas premiações em festivais estudantis. Ao lado do parceiro Nengo Vieira foi aos poucos conhecendo a música afrojamaicana e arriscando as primeiras releituras do gênero. Em início dos anos 80 já se 66 67 Ibid. “Perfil Edson Gomes” . Folha do Reggae, nº. 2, fevereiro de 1997 64 apresentava em alguns eventos do circuito artístico-cultural de Salvador onde foi aos poucos ganhando visibilidade.68 Nas palavras do compositor: “Em 1983 eu percebi que o reggae era o veiculo certo para levar minhas idéias e convicções. Como um elemento negro, eu tinha a opção do Samba, mas não achava esse gênero com tradição de luta pelos direitos dos oprimidos. Então busquei um gênero musical que casa-se com meu propósito de protestar contra todas as discriminações”.69 Em 1985, a premiação no festival “Canta Bahia” como melhor intérprete lhe rendeu a gravação do primeiro Compacto com a canção “Rastafary”. Já neste período, a rejeição de alguns segmentos da imprensa baiana, a exemplo da FM Itapoan, freava saltos maiores do artista. Somente em 1987 com a premiação do Troféu Caimmy, novamente como melhor intérprete, abriu-lhe as portas para a gravação do primeiro disco lançado em 1988, o “Reggae Resistência” cujo título demonstra a completa adoção do Reggae como estilo definidor da carreira de Edson Gomes.70 De todo modo, esta paulatina descoberta do “reggae” remonta a um conjunto de processos que guardam relação com outros movimentos político-culturais negros da Bahia. É o que será tratado a seguir. 68 A exemplo do projeto “bairro a bairro” com a banda Studio 5. In Folha do Reggae, ibid. Revista On line. Agradeço a Bárbara Falcón pela atenção com este e tantos outros materiais de grande utilidade para esta pesquisa. 70 Ibid. Nas entrevistas com Clóvis Rabelo(14/11/2006) e Jorge de Angélica (02/08/2008) e outras fontes impressas, como o jornal citado acima, é freqüente a informação de que Edson Gomes vai paulatinamente aderindo à música Reggae como estilo musical definitivo. O próprio compositor destaca os caminhos dessa opção: 69 65 Localização das cidades conectadas pela produção da Música Reggae (Cachoeira - São Félix, Feira de Santana e Salvador) na Bahia. 66 67 68 69 FAIXA 3 : “AFRICA A LA JAMAICA MÚSICA DA RAÇA” Don't care where you come from As long as you're a black man You're an African No mind your nationality You have got the identity of an African (…)'Cause if you come Trinidad And if you come from Nassau And if you come from Cuba You're an African No mind your complexion There is no rejection You're an African (trecho da canção “African” de Peter Tosh) “... mesmo remetendo a fatores que teriam sido criados no passado, o processo contínuo de (re)contrução das identidades étnicas está em conexão com as idéias [e conflitos] da Globalização e da fragmentação do mundo pós- moderno. Portanto, embora o passado – e neste caso específico, o passado africano – seja constantemente resgatado, é a experiência comum dos atores no presente, na chamada ‘alta modernidade’, que produz a matéria-prima para a construção das identidades.” (Patrícia Pinho, 2004. P. 67) “Nasci no Brasil, mas me considero africano”. (Edson Gomes, em 2006) 70 A (re)invenção da África e do ser negro na diáspora sob o ponto de vista da Musica Reggae da Bahia constituem o ponto central deste capítulo. Dialogo com a produção musical do Reggae e sua filiação com o Samba-Reggae na Bahia tentando compreender a construção situada de imagens em torno de uma História da áfrica e seus “descendentes” na diáspora negra, no contexto das décadas de 80 e 90 que foram reaproveitadas como marco étnico-identitário pelos movimentos negros. As muitas expressões de identidades negras auto-referenciadas insinuam que os séculos de colonização e colonialismo não imputaram as permanências históricas, epistemológicas e culturais das muitas populações subjugadas à escravidão, se bem que lhes impôs cicatrizes marcantes. A busca pelos laços matriciais e ancestrais diacríticos que “preservados”, de certo modo constituem o universo das culturas negras na Diáspora, sempre inseriu a África como referencial político, geográfico, histórico, simbólico. Cabe neste capítulo inferir sobre a (re) construção das identidades negras em conexão com novos usos e sentidos políticos e simbólicos do termo “África” no contexto da globalização, ou seja, representações singulares de um território heterogêneo e multifacetado. Para além de um tema acadêmico este é um processo que tem mobilizado milhares de agentes, desde as multinacionais capitalistas aos movimentos sociais, em prol da construção das tais novas perspectivas e contornos mundiais. De fato, não podemos compreender a nova ordem global (ou “globalitarismo”) sem levar em conta os séculos de colonização e subjugo das monarquias nacionais européias sob os as Américas e o continente africano. Para além disso creio que tem se tornado cada vez mais impreciso falar em globalização no singular, uma vez que crescentes estudos vem apontando a relevância das conexões e trocas “sul-sul” problematizando, portanto, a noção de centro-periferia como modelo explicativo único e as novas respostas a este cenário multicentrado. Autores com Sansone (2000) têm provocado outras hipóteses sobre a relação Global-local enxergando o papel, ainda que incipiente, das “trocas horizontais”, nos fluxos globais de símbolos e mercadoria na base da cultura negra. Para ele, as interpretações em torno da “África” e dos símbolos de matriz africana tem papel central na produção de uma nova geopolítica da cultura onde a Bahia é um centro referêncial. Este fenômeno estaria ligado ao surgimento de uma série de “políticas de identidade”, o que chama de “nova onda étnica”, que foi desdobramento do processo de redemocratização do país a partir dos anos 80. Sansone aponta ainda que, parte desta 71 identificação com um tipo de “África” que se tem no Brasil e particularmente na Bahia foi produzido sob influência dos muitos pesquisadores estrangeiros – Como Melville Herskovits, Roger, Bastide e Pierre Verger - cujos olhares quase sempre atentavam para os “traços culturais”, “hábitos sociais” e outras formas de “africanismos”.71 A respeito dos olhares sobre a cultura africana, que pode ser tranquilamente lida como afro-americana também, Femi Ojo-Ade (1995) ressalta dois extremos interpretativos: de um ponto de vista “escandalosamente falso e racista” inspirado nos “conquistadores”, a visão reducionista de um “Ethos africano” primitivo, quintessencial e selvagem; de outro lado os “defensores da áfrica” (de todas as partes do mundo, inclusive alguns intelectuais africanos) que “acabaram proclamando-a como monólito paradisíaco e idílico” o que “não é menos escandaloso por sua natureza simplista” (1995, p. 37-38). A avaliação descontente de Ojo-Ade é tão cabível quanto questionável, pois instiga perguntamos sobre as relações sociais que são/foram pano de fundo destas posições. A premissa do “conquistador, tão longamente ratificada, dispensa maiores comentários uma vez que há, ainda, infelizmente, larga produção bibliográfica e paradidática que lhes dá suporte72. Tentando entender o outro lado da questão, acrescento que há, no interior de determinadas visões mais do que puro simplismo. No terreno da cultura baiana dos anos 90, o esforço político-cultural de valorização das imagens em torno da África na dimensão da produção musical projetou em muitos casos uma visão largamente mitificada, mas não necessariamente estanque. A predominante crença em uma “áfrica-fonte-de-todo-saber” presente nos discursos dos Blocos afro-carnavalescos, como identificou Patrícia Pinho (2004) é um exemplo concreto deste fenômeno. Analisando criticamente estas “falas” e sob a análise dos documentos fonográfico-musicais mais adiante, sugiro que alguns discursos “afrocentrados” são menos uma declaração simplista e mais uma resposta possível ao mito sobrepairante da europa-fonte-de-todo-saber. Há muitos sentidos em jogo neste novo olhar, para além da dualidade aparente, sobretudo se considerada a intensa mobilização artística no enfrentamento das ostensivas imagens depreciativas do negro, presente em grande parte das produções veiculadas pelos meios de comunicação da 71 Sansone, 2004, p. 100. ver também: Sansone, 2000(“os objetos da cultura negra. Consumo, mercantilização, globalização e criação de culturas negras no Brasil”). 72 SILVA, Ana Célia da. Desconstruíndo a discriminação do negro no Livro Didático. Salvador, EDUFBA, 2001. Não nos esqueçamos que a alteração na Lei de Diretrizes e Bases da Educação brasileira provocada pela lei 10.639/1997 e novamente modificada em maio de 2008, resulta de intensas mobilizações para reparar, a partir da educação e dos materiais didáticos, esta dívida histórica. 72 sociedade brasileira ao longo das últimas décadas do século passado.73 Este processo de disputa no campo dos significados(e para alem dele) é compreendido aqui como reafricanização que segundo Osmundo Pinho é ...a nova inflexão dada à agência (agency) social, política e cultural afrodescendente em Salvador[e em outras cidades da Bahia como pude observar, acrescento], marcada pelo uso de símbolos ligados à africanidade e por uma interação determinada com a modernização seletiva brasileira, caracterizada, ao mesmo tempo, pela conexão desterritorializada com fluxos simbólicos mundiais e da diáspora (2005, p. 127-128). Identifico que a busca pela África como paradoxo e contracultura do extremo ocidente, remonta também aos movimentos negros na virada dos séculos XIX para XX, destacadamente com o surgimento e circulação das idéias pan-africanistas. Alguns autores defendem que a América é o expoente do nascimento e divulgação das idéias de retorno à África (Santos, 1968; Howe, 2000) como ilustra a gama de movimentos e lideranças que recolocaram as demandas e questões das populações negras nos debates internacionais de direitos humanos. A atuação e as produções de Intelectuais como Marcus Garvey, Aimé Cesáire, W.E.B. Du Bois e tantos outros que investiram profundamente em compreender os muitos legados herdados das sociedades africanas pelos seus descendentes espalhados no Novo Mundo confirmam esta opinião. Neste esforço, contribuíram para a constituição de novas tradições sedimentadas numa “África imaginada”, vista do Caribe (e outras margens do atlântico) que agitaram os primeiros tempos do século XX colocando “na mesa das novas sociabilidades uma compreensão de alteridade marcada pela pluralidade étnica”.74 Estes movimentos ressignificaram a noção pejorativa e essencialista construída (pelas muitas linhagens do pensamento social europeu) em torno da História da África e de seus sujeitos de origem, destacando as contribuições dos negros à construção da modernidade. Autores como Eduardo Santos (1968), chegaram a afirmar que o panafricanismo, em alguns casos, constituiu-se num racismo às avessas assemelhando-se à movimentos contemporâneos de ódio racial e à indubitável presença da noção de raça 73 Ver o interessante vídeo-documentário de Joel Zito de Araújo. A negação do Brasil: o negro na teledramaturgia brasileira. Além da Publicação em formato de livro com título homônimo. 74 Como lembrou A. Godi em uma homenagem póstuma ao poeta e militante precursor do movimento “negritud”, Aimé Cesáire : “Abril vai e Aimé fica”. Jornal A Tarde. Salvador, 24/05/08. 73 entrincheirada nos debates sobre direitos civis entre negros e brancos na América. Analisando os movimentos de emigração de libertos para a colônia de Serra Leoa e Libéria, o autor nota que a questão da criação destes “refúgios coloniais” ou “Estados negros” em solo africano já anunciara as políticas de segregação no pós-abolição nas metrópoles e colônias da Grã-Bretanha, bem como a presença dos interesses propriamente negros na direção destes movimentos intercontinentais. Apesar das informações relevantes para a compreensão do chamado sionismo negro, O autor demonstra um recorrente determinismo racial - inclusive ao relacionar os “traços negróides” de Marcus Garvey à sua posição de maior auto-inferiorização e radicalismo racial, além de reduzir o panafricanismo como uma “identidade completa da raça negra, numa fraternidade de cor”. Deixa de considerar, portanto, o fato que Garvey esteve mais próximo de um protonacionalismo negro de afinidades com a noção de raça própria do seu contexto, em fins do século XIX. Por tratar-se de uma análise evolucionista e parcial da História, Santos (1968) encara o garveysmo como “fase” não-racional, onde as noções identitárias não extrapolam a idéia de raça e menos ainda aponta para novas formulações (como “negritude” de Sartre, Senghor e outros), em contraposição às teorias “racionais”, político defendido por pensadores como W.E.B. Du Bois e seus seguintes. Entendo que argumentos desta natureza que opõem razão-emoção, além de um grande reducionismo de interpretação, reforçam uma certa trajetória do pensamento racial no período colonial, onde era amplamente questionável a capacidade de pensar racionalmente do negro africano(Desai, 2001, p. 20-21). No Brasil esta ligação memorial com a África também foi tematizada por algumas entidades carnavalescas e outras agremiações do gênero entre fins do Século XIX e início do XX. Raphael Vieira Filho (1997) analisa entre os “folguedos negros” a presença marcante de clubes como os Pândegos da África e do Clube da Embaixada Africana. Este último, fundado em 1895, desfilou nos festivos do carnaval de 1897 homenageando Independência do Império da Etiópia, diante da notícia da vitória deste sobre as tropas Italianas na luta contra o neocolonialismo europeu em 1896. 74 Mapa do continente africano sob ofensiva da partilha neocolonial européia . Em destaque o Império independente da Etiópia. Fonte: MACKENZIE, A partilha da África (18801900) e o imperialismo europeu no século XIX. São Paulo, Ática,(Série Princípios, 1994. O manifesto da Embaixada publicado nos jornais Correio de Notícias (27/02/1897) e A Bahia (28/02/1897) registra a posição política na homenagem da entidade a partir da organização do cortejo: ...o préstito está assim organisado: Seguir-se-há bem organisada banda de musica, preparada pela “digna colônia africana desta cidade” para acompanhar a Embaixada. Trajará notável costume algeriano, executando em seu trajecto os dobrados Fortunato Santos, Menelik, Makonem, etc. (...) Dois Trombeiros 75 trajando costume abyssinio, anunciarão a passagem do victorioso Menelik, negu dos negus, que por homenagem ao Rei da Zululandia empunhará o glorioso estandarte da Embaixada Africana(...) O negus dos negus será acompanhado por dois ministros, os quaes trajarão rico vestuário de gala. ...seis Ras (chefes etíopes) empunhando espadas formarão a guarda de honra Imperial.75 A homenagem a Menelik II, então imperador da Etiópia comprova a ligação dos negros de Salvador com os acontecimentos do continente africano em fins do século XIX, fenômeno que se revela também no relativo fluxo de africanos entre os portos de Lagos (Nigéria) e Salvador.76 Cabe salientar ainda que a Embaixada e outros clubes negros da época mostravam uma imagem da África que convergia estrategicamente para os ideais de “civilização” da sociedade da época, e presentes dos desfiles no “Carnaval Moderno da Bahia”. Esta estratégia representava uma contraposição sócioracial à hegemonia da elite dominante - representada pelos Clubes freqüentados exclusivamente pelos “brancos”, como o Cruz Vermelha – uma vez que ganhava notória aceitação pública como se registra nos veículos da imprensa local.77 Sabemos que este fato histórico trouxe incitou na América as idéias de “retorno” mítico sobre a África (a começar pelo nascimento do Panafricanismo na Jamaica) que se registraram, em grande parte da produção musical do Reggae. De todo modo, o olhar para esse exemplo, deve guardar as devidas proporções que o distanciam, no tempo histórico, do contexto que ora se apresentava em fins do Século XX, sob o qual venho tecer as análises a seguir. “...os Guerrilheiros da Jamaica vão atacar” Na Bahia da segunda metade do século XX, as intensas mobilizações em torno de novas identidades negras inspiradas numa concepção “africana” de mundo tem relação com o contexto dos movimentos pela descolonização “das mentes e povos” do 75 In Vieira Filho, 1997. p. 45 Arquivo Público do Estado da Bahia. Livro de entrada e saída de passageiros do porto de Salvador (1896-1897) v. Ibib. P. 47 77 Ver as análises de Raphael Viera Filho sobre os Jornais das época no artigo já citado (2007. pp. 48-49) 76 76 continente africano (Hall, 2000) – o que incluía guerras civis em quase todos os territórios nacionais do continente – bem como pelas lutas em prol dos Direitos Civis em toda a América, com maior visibilidade nos Estados Unidos, além das trilhas sonoras consoantes com este fenômeno: o Funk e Soul music e o Reggae que ganhava proeminência nos mercado fonográfico e programas de Rádio. O álbum Survival de Bob Marley and the Wailers (Island, 1979) é um registro sintomático deste momento. No Brasil, este processo contou com a movimentação de inúmeros ativistas negros das mais diversas áreas e artes e foi amplamente marcado pelo registro musical, como analisou “Salloma” Silva (2000). As muitas Áfricas reinventadas aqui, foram reveladas ao longo de um processo onde parte da produção cultural, e portanto a música, se erguiam contra a nova ofensiva do capitalismo pós-guerra sobre o continente africano e tomando-o como referência contra toda a desigualdade sócio-racial da sociedade brasileira. Em outras palavras, as canções, e seus sujeitos (protagonistas ou coadjuvantes), se erguiam contra “a memória de uma certa ocidentalidade americana e de uma nacionalidade brasileira embranquecida” fazendo reapropriações da historiografia e trazendo novas leituras fundamentadas num referencial sobre a África que destoava do establishment e sintonizava-se com determinados seguimentos da produção intelectual negra. 78 Para além destas novas tradições, a influência das sonoridades negras(e seus conteúdos político-culturais) do Funk, Soul e do Reggae, alterariam substancialmente este processo. Nas valiosas notas de Carnaval Ijexá, Antonio Risério(1981) registrou este novo cenário-cadinho de africanidades, onde coexistiam as revisitadas tradições de matriz africana em consonância com a circulação global de ritmos afro-americanos no contexto da segunda metade da década de 70. Estas matrizes transnacionais em relação ao enfrentamento da realidade local-nacional foram a matéria prima para o surgimento dos blocos afro e mais especificamente do Ilê Aiyê. Esta leitura criativa foi profundamente incômoda à sociedade dominante da época como fica evidenciado um dos registros da imprensa local, veiculados no Jornal A tarde, sobre o desfile do Ilê Aiyê em 1974: Conduzindo cartazes onde se liam inscrições tais como: “Mundo Negro, “Black Power”, “Negro para você”, etc. o bloco Ilê Aiyê, apelidado de “Bloco do 78 Salloma (2000. p. 80) destaca a interessante conexão as imagens sobre a áfrica (a partir do Egito) presentes em inúmeras canções, com a conhecida tese (de doutoramento) de Cheik Anta Diop que também “recupera” as relações do Egito com os povos africanos. 77 Racismo”, proporcionou um feio espetáculo neste carnaval. Além da imprópria exploração do tema de imitação norte-americana, revelando uma enorme falta de imaginação, uma vez que em nosso país existe uma infinidade de motivos a serem explorados, os integrantes do Ilê Aiyê – todos de cor – chegaram até a gozação dos brancos e demais pessoas que observavam o palanque oficial. (...) Não temos, felizmente, problemas raciais. Esta é uma das grandes felicidades do povo brasileiro. A harmonia que reina entre as parcelas provenientes das diferentes etnias, constitui, está claro, um dos motivos de inconformidade dos agentes de irritação que bem gostaria de somar aos propósitos da luta de Classes o espetáculo da luta de raças. Mas isto no Brasil eles não conseguem. 79 A reação do Jornal (que traduz a impressão dos agentes e, de certo modo, de parte do público leitor) revela a uma ideologia dominante calcada no “mito da democracia Racial” que contestava o uso da temática norte-americana, no tocante à questão das relações raciais. Este fenômeno dos movimentos negros, pôde ser registrado em inúmeros outros estados brasileiros e foi percebido pelas atenções de alguns intelectuais antenados com o novo quadro. Osmundo Pinho (2005) ressalta que, contemporâneo à publicação de Risério, Carlos Benedito R. Silva apresentara pioneiramente uma comunicação sobre o movimento Black Soul de Campinas no GT “temas e problemas da população negra no Brasil”80, onde analisava que as formas modernas e transnacionais da cultura negra passavam a operar como articuladoras/mediadoras da identidade negra, para além das formas “tradicionais” de cultura negra entendidas como “de origem africana”. As formas modernas e transnacionais de cultura negra passariam, a partir desse momento, a operar “como uma manifestação cultural que os identificava de alguma forma (pelos tipos de roupa, dança música, etc.)”81. impressão que é marca definitiva de sua produção intetectual. em exemplos como o clássico estudo sobre o Reggae de São Luís do Maranhão.82 79 Citado por SOUZA JÚNIOR, Walter Altino, 2008, p. 21-22. Sobre o impacto deste primeiro desfile na imprensa baiana ver SILVA, Jônatas C. da. “História de lutas negras: memória do surgimento do Movimento Negro na Bahia”. In: REIS, João José (org.). A escravidão e invenção da liberdade. São Paulo, Brasiliense, 1988 pp. 275-288. 80 Pinho, 2005, p. 133 81 Esta análise foi reforçada em artigo publicado posteriormente. Ver SILVA, Carlos Benedito Rodrigues. “Black Soul: aglutinação espontânea e identidade étnica”. In: Encontro da Associação Nacional de PósGraduação e Pesquisa em Ciências Sociais(ANPOCS), 4, 1984, Caxambu, MG. Ciências Sociais: compêndio de comunicações... Caxambu, 1984. v. 2. 1984 citado por Pinho, 2005. p. 133 82 “Da terra das primaveras à ilha do Amor: Reggae, lazer e identidade cultural em São Luís-MA, 1995, 78 Não posso deixar de comentar o uso aparentemente polarizado de termos como tradição e modernidade revela, a meu ver, menos uma hierarquia (e dicotomia) entre eles e mais a tentativa de entender a dinâmica que girava no interior das transformações socioculturais do período. Enxergando com os olhos de hoje, compreendo que utilização do termo tradição já àquela época não implicava a manifestação estática expressões da cultura, o que se revela na aplicação do termo moderno pode ser traduzida como “invenção de novas tradições”, tendência que mais tarde seria amplamente debatida por alguns teóricos83 E suma, esta tendência - sintomática de um novo olhar acadêmico sobre a música - passou a fazer parte de inúmeros outros trabalhos das Ciências Humanas e Sociais brasileiras (Godi, 1991 e 2001; Pinho, 1997; Lima, 1997; Veiga, 1998, Vianna, 1988 e 1995, Guerreiro, 2001, Sansone, 1997 e 2004 e muitos outros) que buscavam compreender o processo de mundialização da música e suas singularidades e reapropriações no terreno da cultura brasileira. Seguindo esta trilha, hoje é profundamente frutífero, problematizar a relação entre as tais influências “modernas e transnacionais” e o florescimento de novas metafísicas de negritude e seus muitos usos simbólicos das imagens locais e globais sobre a África, e posteriormente sobre a Jamaica registradas nas canções do Reggae produzido na Bahia. Nesse sentido, a História do Reggae na Bahia confunde-se em grande parte com os muitos capítulos da história do movimento negro84 baiano, registrados nas canções dos blocos afros. Sua presença e cristalização como referência cultural-musical no cenário Baiano na década de 80 remonta, portanto, aos movimentos culturais negros do decênio anterior, onde os Blocos afro foram grandes agentes multiplicadores85. Se a fundação do Ilê Aiyê apontava para um novo capítulo da participação negra na luta por direitos civis e pelo fim das desigualdades raciais no Brasil, a fundação dos blocos Olodum e Malê Debalê em 1979 e Muzenza em 1981, representam mais um passo nesta direção com uma flagrante diferença: estes últimos são co-responsáveis pelo dialogo ver também o recente Ritmos da identidade: Mestiçagens e sincretismos na cultura do maranhão(2007) 83 Ver Hobsbawn, Eric & Ranger, Terence, 1997 84 Volto a lembrar que o movimento negro é aqui compreendido como o conjunto de mobilizações políticas, culturais, acadêmicas e artísticas que sedimentavam suas bandeiras de luta pela afirmação do “ser” negro como catalizador da luta anti-racista no Brasil do século XX, o que insere toda sorte de manifestações livres à fundação de entidades afro carnavalescas e do chamado Movimento Negro Unificado(MNU) fundado em 1978. Sobre a história do MNU ver: MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO. MNU: 1978-1988: 10 anos de luta contra o racismo. São Paulo, Confraria do livro, 1988. 85 Sobre esta trajetória, o trabalho de Godi (2001) é, sem dúvida a melhor síntese que se tem. Cf. “Reggae in Bahia: a case of long-distance belonging”. In Dunn & Perrone, 2001. 79 com a música Reggae e seu manancial simbólico e pela reinterpretação recorrente das sonoridades da música no contexto da mundialização. Se nos anos 70 a influência das musicalidades de tendência globalizante da diáspora negra estiveram mais ao alcance do comportamento e menos interferindo nas formas musicais locais, ao anos 80 assistiram às mesclas inusitadas das raízes do Samba com o Reggae (Godi, 2001). No livro Reinvenções da África na Bahia Patrícia Pinho (2004) considera a nova centralidade que os países do Caribe (Cuba e Jamaica mais especialmente) e EUA como material-referencial simbólico para as canções e estéticas dos Blocos afro mais precisamente em fins dos anos 80. Naquele contexto, algumas entidades começavam a inserir em seus repertórios, canções que contemplavam e enalteciam “países reconhecidamente marcados por uma forte cultura negra”, em especial do Caribe, interagindo com uma noção de identidade com a África que incluía a própria Diáspora africana como manancial simbólico (Pinho, 2004. p. 39). Nesse sentido, a Jamaica e Cuba passam a ser um novo referencial na geopolítica da negritude que foi sendo apropriado ao universo cultural baiano, trazendo por parte dos músicos uma busca pelas sonoridades negras destes territórios do Atlântico. Na produção musical deste período, vislumbrou-se uma multiplicidade de apropriações da historiografia que, vista de ponta a cabeça, interagia com novas leituras da África como “comunidade imaginada”86 no contexto da Diáspora. No carnaval de 1982, o Olodum nos dá um exemplo desta leitura desfilando com o Tema “Guiné Bissau - Estrela da Revolução Africana” e entoando a canção “Reggae do Olodum” de Alírio Tumbaê que menciona em um dos trechos: Toda Negrada Não vai sobrar nenhum Dançando Reggae Sexta-Feira no Olodum(...)87 A memória das lutas anti-colonialistas no continente africano aqui está fundida a uma identidade negra que encontra no Reggae um elemento aglutinador. Cabe lembrar que a esta altura o Reggae ainda não gozava de maior visibilidade nas rádios ou lojas de 86 Parafraseando o sugestivo trabalho de ANDERSON, Benedict. Nação e consciência Nacional. São Paulo, Ática, 1989. 87 In: Olodum, Carnaval, cultura e negritude(1979-2005). RODRIGUES, João Jorge e MENDES, Nelson (org.), 2005. p. 339. Agradeço imensamente à profª. e colega Joelma pela sugestão(e empréstimo!) deste precioso material. 80 disco sendo executado “nas vitrolas de alguns negros antenados, e imersos na militância étnica” ou girando nos prostíbulos e bares do antigo “Maciel-Pelourinho”, território de Salvador onde nasce a entidade Carnavalesca e que se tornou, posteriormente um dos cartões de visitas da cidade88. A sintonia com o universo afro-caribenho ficou registrada também em canções entoadas no Carnaval de 1986 (com o tema Cuba) como “um povo comum pensar” de Suka (1986) que evoca uma noção imaginada de identidade negra latino-americana: Olha esse som Latino É de lá e Cuba Onde pra ter direitos Nada nos custa não Latinamente um povo negro a cantar Bate em minha mente Um povo em comum pensar(...)89 Cuba é vista inusitadamente como referência política e étnico-identitária,. A canção traz uma leitura do quadro da política internacional, em sintonia com a posição geopolítica do país caribenho no contesto da guerra Fria – um estado Socialista, acossado pelo embargo econômico dos EUA e visto, por outro lado por centenas de movimentos sociais como experiência democrática a ser seguida. Em associação com estas questões, a imagem construída em torno do canto latino de “um povo negro” “em comum pensar”, sugere uma identificação polifônica, quando provoca o ouvinte a levar em conta os traços de africanidade que une as duas realidades nacionais. Exemplo parecido aparece em Sueños Lejos (1986), de Tosta Passarinho: Canta Cuba Olodum Cuba encanta Espanta os males, pra beleza conquistar Cuba te vejo daqui Mesmo sem ter ido lá Meu passaporte brasileiro carimbado Me proibindo de em Cuba entrar 88 89 Godi, 2001. Os trechos citados são traduções livres do artigo publicado originalmente em Inglês. Ibid. p. 320. 81 É uma ofensa a Cuba Um desrespeito a mim Vejo o projeto Mamnba90 Sou mais o projeto Mamnba Mama Cuba Mambo Cuba No carnaval daqui e de lá Mama Cuba Mambo Cuba Manda um fiel, Fidel Voar pra cá Pra essa zorra melhorar91 A celebração da Cuba Revolucionária presente nesta canção contracena com as muitas chamadas identitárias a partir de expressões como “Mama Cuba”, que parece parafrasear “mama áfrica”. Este dado me instiga considerar o caráter dinâmico e situado do uso político dessas categorias identitárias de negritude reinventadas na Diáspora. O argumento de Suka e tantos outros compositores, entoado pelo Olodum em praça pública vai ao encontro de outras tentativas de mapear possíveis conexões (“comum pensar”) afro-latino. Não é a toa que Lélia González(1988) tenha se preocupado em compreender esta relação buscando uma categorias de análise que mensurasse a História e vida das populações afrodescendentes no contexto (afro)latino-americano, tema até o presente pouco abordado. A categoria de “Amefricanidade” é a tentativa de propor uma síntese analítica dos impactos do colonialismo europeu sobre os continentes africano e americano (e seus agentes), e dos novos impactos da reestruturação social decorrente do processo de emancipação política iniciado no século XIX que reificou uma “nova” hierarquia racial baseada na ideologia da “superioridade branca” (Lander,2000; Quijano, 2000; Hanchard, 2001). Gonzáles (1988), reconhece - e este é um ponto crucial do artigo – a experiência histórica que envolve os continentes e problematiza a emergência de 90 Projeto Mamnba (Mapeamento de Sítios e Monumentos Religiosos Negros da Bahia) foi realizado entre os anos de 1982 a 1987, sob a corrdenação dos antropólogos Ordep Serra(UFBA) e Olympio Serra. A partir de um convênio entre a antiga Fundação Nacional Pró-Memória e a Prefeitura Municipal de Salvador, o levantamento contabilizou cerca de duas mil sedes de cultos afro-brasileiros somente na cidade de Salvador. Ver: SERRA, Ordep. Monumentos negros: uma experiência. Salvador, UFBA, Revista afro-ásia, nº. 033, 2005, pp. 169-205 91 Ibid. p. 319 82 relações sociais(e identidades) fundidas neste “espaço” que tornaria plausível pensar em laços comuns entre as populações negras da América latina. Arriscaria dizer que, por caminhos diferentes e motivações próximas compositor-músico, está em jogo a compreensão de nossas diferenças tomando por base o traço de africanidade como similitude à realidade Caribenha. Imagino que este é um debate que ainda pode render mais considerações. Este tipo de referencial esteve presente em grande parte dos discursos estáticomusicais do Reggae produzida no Brasil (dadas as proporções na Jamaica também). Nadando contra as correntes, a busca pela “áfrica mãe”, inseria a Jamaica como parada obrigatória, e posteriormente como destino propriamente dito. Vista como terra do Reggae e de ícones da música negra como Bob Marley, Peter Tosh e Jimmy Cliff, Linton Kwesi Johnson, a Jamaica, e sua história moderna também foi alvo de inúmeras canções dos blocos afro e de artistas ligados ao Reggae na Bahia situadas entre os anos 80 e 90. Entre os blocos afro de Salvador, o Muzenza, fundado em 1981, tem uma singular relação com a Musicalidade Reggae. Mais conhecido como Muzenza do Reggae, ou “o mestre do Reggae”92, foi uma das entidades que se mobilizou em torno da valorização da música e cultura afro-jamaicana como contracultura negra da Diáspora, um sinal maior de afinidade estética, política e musical (Veiga, 1997). É o que se verifica no LP intitulado “Muzenza do Reggae” gravado em 1988.93 O elenco de questões abordadas nas canções deste álbum sinalizam obviamente para o contexto que se inseriu o mesmo. Não se pode esquecer que 1988 foi palco de tensões das mais diversas ordens no Brasil e Na América Latina. No quadro internacional, assistia-se, por um lado, à crescente e anunciada derrocada do Leste (soviético) europeu, e por outro, aos muitos levantes guerrilheiros armados que efervesciam a América latina em países como a Bolívia, Venezuela e Nicarágua, além dos conflitos civis em países do Continente africano como Moçambique, Angola e África do Sul. No Brasil, vivia-se sob a expectativa da promulgação de uma constituição nacional, que foi produto de intensas movimentações civis com o fim do Regime Militar e que renderia os princípios norteadores do tão esperado pleito eleitoral presidencial, depois de décadas de violência política e social. Do ponto de Vista dos movimentos negros este foi um momento crucial de disputa contra as comemorações do 92 93 Cf. ata de fundação. Ver, Veiga: 1997, p. 134.. Muzenza do Reggae. Disco: Muzenza do Reggae. Gravadora: Continental, 1988. 83 Centenário da publicação da Lei Áurea e seu silêncio à história do negro e, consequentemente às políticas de reparação social e reconhecimento do Racismo com um problema da sociedade brasileira. É propriamente sob este prisma que as 10 faixas do álbum desenrolam suas mensagens de protesto. O álbum apresenta uma leitura da África, mencionando o quadro das guerras civis, em sintonia com a luta anti-racista na Bahia e sob a mediação da Jamaica e da música Reggae como referenciais. A auto denominação “Guerrilheiros da Jamaica” é um exemplo sugestivo desta leitura multicentrada. O termo guerrilheiro, neste contexto, pode estar associado à popularidade das guerrilhas armadas em todo o continente Americano. A conjunção com o termo jamaicano, revela uma apropriação criativa de uma identidade nacional que serve como recurso étnico-identitário. É interessante notar, no entanto, que não está presente neste, em outros exemplos, a busca por uma identidade supranacional latino-americana mas, étnico-referenciada com a imagem da América central afro-jamaicana difundida pela musica Reggae. Na canção “América Central” (composição e interpretação de Nego Tenga) esta conexão fica bastante explícita: América Central América Nagô América Jamaica Onde o Rei Bob Marley descansou(...)94 Em canções como “guerrilheiros da Jamaica” (Ythamar Tropicália e Roque Carvalho) e “sexta-feira” (Tatau) o uso desta deixa explícita a leitura de uma identidade negra que tem na áfrica e na Jamaica fortes referências simbólicos para a edificação do pertencimento negro. nesta última apresenta-se uma leitura interessante que insere os Garis, categoria profissional que cuida dos serviços de Higiene sanitária da cidade, como um segmento representativo desta nova metafísica de negritude: SEXTA-FEIRA (Tatau, 1988) 94 Ibid. 84 Sexta, sexta, sexta-feira os Guerrilheiros da Jamaica vão atacar Sexta, sexta, sexta-feira de carnaval eu vou, eu vou de Muzenza as tropas amarram os canhões Muzenza traz a munição Os Garis nos faz alertar Que os guerrilheiros da Jamaica vão atacar. Os Garis nos faz alertar Que os guerrilheiros da Jamaica vão atacar95 A Jamaica retratada nas canções é um referencial de identificação étnica, musical e geopolítica. Em quase todos os casos esta interrelação é representada através do ícone do Reggae, o jamaicano mais conhecido em todo o mundo, Bob Marley que é motivo de inúmeras citações musicais. Na canção “Brilho e Beleza” o intérprete faz uma referência direta à imagem construída em torno do músico, visto como Rei pelos agentes do bloco afro: de Bob Marley o converteu num poderoso referencial de identificação com a cultura negra local figurando ao lado de outros tantos “reis” negros e/ou africanos que habitaram o universo polifônico do protesto Negro brasileiro. Godi (2001) argumenta que a Morte de Bob Marley em 11 de maio de 1981 teve também enorme repercussão no Calendário do movimento negro baiano. Desde então, o Mês de Maio deixa de guardar exclusivamente a comemoração (e as reações contrárias também) da abolição, e passa a ser identificado por uma tradição recente revigorada pelos tributos a Bob Marley. Em Salvador o 11 de maio é o “dia do Reggae”, conforme decretado pela Câmara Municipal da Cidade. Entre representações míticas da áfrica e da Jamaica, e auto-narrativas “apocalípticas”, como sugere Ericivaldo Veiga (1997) o Muzenza teceu, e ainda o faz, parte considerável das redes que trouxeram o Reggae para o cenário cultural musical de 95 Ibid. 85 Salvador. Uma das canções mais conhecidas do Bloco traça uma imagem exuberante da passagem do bloco: ...e a infinidade do seu canto trouxe vida Pra essa raça tão sofrida raça negra, raça Negra criticada e oprimida mas com fé com brilho o Muzenza desceu e diga valeu e no beco o menino gritou: Muzenza é amor, é amor, é amor: Muzenza e do céu bob Marley Cantou: Muzenza iô, iô, iô, iô, iô, iô, iô, iô, iô: Muzenza E a terra tremeu e o céu mudou de cor Mudou de cor E o bloco do Reggae Chegou Muzenza Jamaica-Salvador Yes Jamaica Salvador O Bloco afro Olodum, como já citado, também tem sua parcela de contribuição neste processo. Em inúmeras canções do carnaval de 1989(que tematizou a Etiópia) estiveram presentes refrões e citações da História do Império Etíope em conexão com a proliferação do panafricanismo e sua relação com a música Reggae96. Um dos exemplos é a canção “Denúncia”, de Tita Lopes e Lazinho, cujo texto chama a atenção: Simplesmente ensinando consciente Abalando a estrutura mundial 96 Gostaria de lembrar, em tempo, que as canções que são apresentadas pelas entidades carnavalescas em Salvador são apreciadas ao longo dos meses que antecedem a festa momesca nas “quadras” onde os blocos ensaiam: o Male De Balê, sediado nas imediações do Parque Lagoa do Abaeté, no Bairro de Itapuã, o Olodum na conhecida terça da Benção, no Pelourinho, o Ilê Aiyê no Curuzu, coração do imenso bairro da Liberdade foi fundada nos últimos anos a “Senzala do Barro Preto” que comporta um complexo de atividades sócio-educativas além do espaço destinado aos shows. A partir das primeiras Gravações em LP das canções destes blocos o Rádio e o mercado de discos passa a ser mais um espaço de disputa pela visibilidade (e auditibilidade) das canções, e obviamente da divulgação das entidades. 86 Núbia Axum a Etiópia resistente União poderosa e Cultural Olodum revela à comunidade História que o opressor sempre ocultou Menelik II venceu a batalha Travada em árdua África Negra Expulsando italianos de Axum Livrando-a do colonizador A sua Façanha logo se espalhou Outro Rei importante se tornou Haile Selassiê É Rastafari Reinou na Etiópia Virou filosofia A Jamaica acolhia E o Reggae surgia Impondo outra forma negra de lutar...97 A questão central desta canção é informar-denunciar o silenciamento da historiografia ocidental (encarnada na expressão “colonizador”) diante da narrativa mítica e teórica que dá conta do surgimento do Rastafarianismo na Jamaica. Remonta, para tanto, à guerra travada pelo império da Etiópia - situado no nordeste do continente africano governado por Melenik II em fins do século XIX, que freou o avanço das tropas Italianas e garantiu a independência, em plena ofensiva neocolonialista européia. Este episódio foi profundamente resignificado pela vigorosa atuação dos Missionários negros batistas da Jamaica que associavam o relato mítico e histórico de personagens da cultura judaico-cristã (o Rei Salomão e da Rainha de Sabá) à terra prometida e seus descendentes vivos na Etiópia. O tom profético do sionismo negro em ascenção no mundo anglófono e seu ascetismo intramundano, conclamava os afrodescendentes a “olhar para a África”, vista como “terra prometida” de onde “em breve um Rei negro seria coroado” e traria a redenção.98 Alguns autores (Silva, 1995; Albuquerque, 1997; White,1999) apontam que este argumento ganhou corpo e Alma quando foi coroado Ras Tafari Makonnen, autoproclamado Imperador da Etiópia, e 97 In Rodrigues & Mendes, 2005 (org) Palavras do Reverendo James Morris Webb, de Chicago proferidas por Marcus Garvey numa igreja de Kingston em 1927 segundo White (1999). (Citado por Albuquerque, 1997) 98 87 (auto) intitulado “Rei dos Reis”, Leão conquistador da tribo de Judá” que adotaria em seguida o Nome Hailé Selassiê (“o poder da Santíssima Trindade”) e cujo manancial simbólico seria frequentemente utilizado pelos Rastafaris e Reggaemans de todo mundo nas décadas que se seguiram. Os desdobramentos deste processo fizeram parte dos conflitos internacionais entre 1939-45, a chamada 2ª guerra mundial quando a Itália, sob então regime totalitário nazi-fascista, invade novamente a Etiópia, fato retratado na Canção Etiópia de Edson Gomes & Banda Cão de Raça, lançada em fins dos anos 90. A narrativa-denúncia do massacre promovido pelo estado Facista Italiano é resgatada e associada com o silenciamento da historiografia sobre a África: ETIÓPIA (Edson Gomes, 1997) (...) Lá na escola não contaram nada Fizeram questão de esconder Hoje eles passam como filhos do Deus bom A gente vai pasando como filhos do mal (...) Quando Mussolini invadiu a Etiópia Foi um rolo compressor esmagador Com seu exército poderoso Contra inofensivos guerreiros nativos Nesta canção ainda prevalece, entretanto, uma imagem do africano “etíope” retratado como vítima, um pouco diferente de outras retratadas pelo próprio autor ao longo de sua carreira. Guardadas as devidas críticas, entendo que este registro é sintomático da centralidade em torno da temática do continente africano, e sua ênfase na Etiópia e no panafricanismo, para além da década de 80. No mesmo ano em que foi lançado apocalipse, o Olodum teve como tema do carnaval “Roma Negra. Gladiadores da negritude”. Inúmeras canções revisitavam a História da África e a Historia Moderna da Jamaica colocando o Reggae como “outra forma negra e Lutar” como conclui a canção citada anteriormente99 99 Trecho da canção citada In: RODRIGUES & MENDES, Nelson (org.), 2005. p. 279. 88 Com exceção do Ilê Aiyê que, optou, inclusive até o presente, pela busca das tradição mais ligadas ao continente africano, a fundação do Male Debalê (1979) Muzenza (1981) e Olodum (1979) trouxeram novos capítulos de um pertencimentos à distância (“long-distance belonging”100) com a áfrica e a Jamaica que fertilizariam a consolidação do Reggae na Bahia. Não quero dizer, com isso, que a presença decisiva do Reggae seja conseqüência direta do trabalho blocos Afros. Prefiro arriscar que foi por interação que estes universos culturais-musicais afrodescendentes se entrelaçaram, dentro de um contexto de produtivas reelaborações culturais mediadas pela música. Por um lado, a crescente presença do Reggae no mercado fonográfico brasileiro alterou o ambiente sócio-cultural na Bahia; por outro, num contexto fecundo de profundas agitações em torno da valorização do negro sua história, o discurso-estético musical do primo-afro-jamaicano trazia consigo uma leitura multicentrada da “África” que foi profundamente reaproveitada. A teoria do Atlântico Negro é, bastante profícua para analisar este fenômeno uma vez que revela que existem outros pólos de africanidade, ou negritude “fora da áfrica Mãe ou para além da hegemonia do mundo anglófono”, como assinala Pinho (2004, p. 56). Esta leitura pode ser percebida, de diferentes modos, como alguns citados, em diversos registros do Reggae produzido no Brasil, em especial na Bahia. Em “Dance Reggae” Edson Gomes se refere ao Reggae como “música da raça” (negra), co-responsável por esta nova inflexão em torno da áfrica (vista da Bahia e) inspirada na Jamaica. A “África a la Jamaica”, expressão que particularmente sintetiza o espírito central deste capítulo, serve de parâmetro para compreendermos tantas outras canções que trilharam o mesmo argumento. A África no atlântico Negro: outros diálogos Sem Dúvida, a presença da Musicalidade Reggae e seu universo estético-musical panafricanista constituíram-se num poderoso referencial para a produção da música baiana, no interior dos Blocos e, paulatinamente, no surgimento das primeiras expressões sonoras de um Reggae in Bahia. É importante considerar que esta tendência não esteve circunscrita aos limites territoriais da Bahia, ganhando eco em outros 100 Cf. Godi, 2001. 89 registros musicais do período, tampouco foi manifesta apenas no interior da produção musical dos blocos afro. Algumas leituras mais esporádicas acabaram por registrar este contexto. A canção “Porto das raças”, composição de Djalma oliveira e Mariano Carvalho, gravada por Egma na coletânea Reggae in Bahia (Brasildisc, s/d) é uma tentativa de retrarar esta nova conjuntura sócio-cultural: Parece que a Jamaica Fez porto em Salvador E toda negra baiana quer cantar Iô iô Do solo de Mãe África Emana tanta dor Pelos guetos, pelos becos Pelourinho Salvador Iô iô iô iô iô iô De todo modo, há que se considerar que a História social do Reggae em terras (e águas) brasileiras, influenciou e foi infuenciada pelas estas novas “leituras de mundo” (literalmente falando!) que descolaram a visão idílica sobre o continente africano para uma imagem diaspórica multicentrada que insere o Caribe e o sul dos EUA como elos matricial de ancestralidade e identidade étnica, em consonância com os debates incitados pelas militâncias negras urbanas dos principais centros urbanos ao longo de toda a década de 80. O Disco homônimo do grupo Obina Shok gravado em 1986 é um exemplo desta relação referencial com a Diáspora. Amplamente conhecido e divulgado pelo público e crítica pelo hit de sucesso “vida” (faixa 01) com participação dos baianos Gilberto Gil e Gal Costa este produto fonográfico merece atenção pelos seus elementos estéticomusicais e pela sonoridade polirrítmica que o constituem. Lendo-o e ouvindo-o com detalhe não resisti inseri-lo nesta hall de discussões, ainda que este não faça, a rigor, parte do conjunto de registros fonográficos produzidos na, ou a partir, de musicistas baianos. De todo modo, sua referência é aqui fundamental como argumento em seguida. Ao analisar o encarte e capa deste trabalho, reforço o argumento de que a afirmação étnico-identitária transcende o registro auditivo e se faz representar nas muitas linguagens estético-discursivas do disco(Salloma, 2000). 90 Além da capa, composta pela foto-de-apresentação destacando três músicos negros ostentando penteados e adereços “afro”, o que ao meu ver é assaz representativo, o encarte é também uma fonte frutífera para compreendermos o uso das linguagens visuais na produção de referenciais identitários de negritude. De um lado o conjunto de letras e informações técnicas tendo como pano de fundo o desenho caricático de um jovem negro portando à tira colo um instrumento elétrico de corda (aparentando ser uma guitarra...). No lado posterior a imagem de toda a banda está em composição com ao enorme fundo verde do oceano atlântico num mapa mundi em silueta onde se destacam nitidamente a América do sul e central, incluindo o as ilhas do caribe, a costa atlântica do continente africano. Curiosamente o “eixo norte” do mapa mundi está muito brevemente representado pelo sul dos EUA e, do lado diametralmente oposto, segundo esta “cartografia” as penísula ibérica e itálica. A imagem, que sem dúvidas fala por si, é representação visual da tendência polifônica presente nas muitas sonoridades negras que compõem a obra musical. No universo de sete canções, 03 tem nítida influência e instrumentação Reggae ao lado de outros exemplos inspirados na Rumba Cubana e no Zouk Antilhano. A pulsação rítimica da bateria num casamento com linhas fortes de Contrabaixo e marcação, em contratempo, dos sintetizadores anunciam a “pegada”101 Reggae à brasileira da faixa 03 Africâner brother bound102. A letra sugere a solidariedade, ou “irmandade”, com os sul africanos negros (africaneers) diante do apartheid à vista em todos os meios e comunicação ao longo dos anos 70 e 80: Africaner Brother Bound Quanto tempo ainda mais Já durou até demais Que não devia ser jamais Poeta calou por um dia ou dois Bandeira arriada pra descansar O batuque ficou pra depois Que o coração desenfrear Quem é que no mundo pode impedir O sol de nascer e de brilhar 101 Esta expressão é comummente utilizada pelos músicos para definir um determinado estilo musical a partir do arranjo 102 Canção de Jean Pierre, Henrique Hermeto e Gilberto Gil. In: Obina Shok, RCA, 1986 91 A palmeira de crescer, crescer a noite na mata de clarear do lado da gente, nós e nós e nós Na luta feroz até o fim A vitória deixará pra trás Um tempo de Guerra, tempo Ruim Os conflitos sociais da África do Sul e seu decretado apartheid103 passam a ser uma das fortes referências apropriadas sobre as lutas no continente africano em fins dos anos 80 90. A palavra cantada que tematiza os terrores dos “irmãos” da África e relaciona à luta feroz “do lado da gente”, a margem brasileira do atlântico, ganha novo sentido com o arranjo contagiante do ritmo-afro jamaicano numa leitura multicentrada dos conflitos raciais, numa dimensão transnacional e diaspórica. A “experiência comum desses atores no presente” fornece as questões para a construção de uma identidade negra que se pretende transnacional. Imagem semelhante está presente em um conjunto de canções que tematizam a luta anti-racista fazendo deferência aos conflitos raciais da África do Sul. A canção “Lubambo” gravada na coletânea Reggae in Bahia (Brasidisc, s/d) pelo autor e intérprete Fred Vieira, também toma partido do conflito sul-africano: Ei homem branco de Joanesburgo Você é quem tem que estender a mão Eu não Ah África Ninguém vai tomar Pois sua riqueza É do povo do lugar Em outro exemplo, o autor e intérprete Edson Gomes em conclama o ouvinte e o “recôncavo”104 à luta pela “libertação” das desigualdades raciais, buscando sintonizar-se com os movimentos internacionais pela liberdade do ativista Nelson Mandela: 103 regime de distinção racial pela exclusão-separação direta entre negros e brancos existente também em algumas regiões dos EUA 104 O recôncavo é entendido em linhas gerais como a região predominante da sociedade açucareira, nos primeiros séculos da colonização e que hoje compreende um conjunto de cidades (dentre as quais Cachoeira, terra Natal de inúmeros artistas de Reggae como Edson Gomes) num perímetro de cerca de 80 quilômetros de Salvador. Em seu livro Segredos internos, Stuart Schwartz destaca, no entanto, que há inúmeras opiniões e imprecisões para definir este termo (São Paulo, Cia das letras,1988).Sobre o Reggae do Recôncavo ver Falcón, 2002. 92 RECÔNCAVO (Edson Gomes, 1990) Recôncavo Pela libertação do homem negro na América E pelo repúdio do homem branco na África Vamos lutar pela libertação Vamos lutar Avante irmão Vamos lutar pela libertação Por uma África livre Por uma áfrica liberta Por uma áfrica unida E todo apoio a Nelson Mendela Sistema nazista, sistema do diabo Somos a voz da libertação Vamos à luta avante Somos a voz da libertação Vamos à luta avante Vale destacar que o termo “irmão” é um recurso político étnico-identitário para situar o negro num quadro de desigualdades sócio-raciais que transcende o limite do local, e sob as quais a canção se ergue contra. A temática do apartheid revela uma relativa sintonia com as pautas dos movimentos negros que, espalhados pelo mundo, encontram no caso sul-africano uma nova matéria prima para problematizar as desigualdades raciais de seu lugar de origem. Em um de seus comentários sobre as identidades negras na Diáspora, Paul Gilroy parte do exemplo sugestivo da gravação da “Proud of Mandela” realizada em Londres nos anos 1990105 que, em suas palavras, liga “em uma só música África, América, Europa e Caribe” (2001. p. 197). Reconstruída a partir da matéria-prima de chicago a canção, sensivelmente kingstoniana rende homenagens ao ícone Global da Diáspora [Nelson Mandela]. Cabe destacar, como o faz o autor afro-britânico, que a luta e libertação do líder sul-africano o tornou um ícone global da luta dos afrodescendentes nas mais diversas regiões o mundo interconectadas pelo atlântico negro. É o que se 105 Gravada originalmente pelo trio vocal The Impressions de Chicago nos anos 1960 com o título I’m so Proud [Eu sou tão orgulhoso]. O autor destaca ainda que este grupo inspirou grande parte dos artistas jamaicanos daquela década, dentre os quais o mais conhecido, os Wailers.(Gilroy, 2001. p. 197). 93 confirma em algumas gravações do Reggae na Bahia, dentre as quais cito a faixa “Bongô Man” registrada no segundo disco do compositor e intérprete Jorge de Angélica106: BONGÔ MAN (Jorge de Angélica, 2002) Toque o Bongô Man Em homenagem ao Rei Mandela, Mandela Nelson Mandela Semente jogada ao chão, pouco a pouco germinou fertilizada pelo sangue que muitos negros homens derramaram batalhas foram travadas com heroísmo e amor se passaram 360 anos de regime apartheid vários anos de prisão até que o Leão Sul africano de Pretória se libertou eu lhe peço por favor olha me toque o Bongô Toque o Bongô Man (...) Levo em consideração, portanto que o uso do termo “apartheid”, encontrado nas canções de Reggae (e samba-reggae) produzidas na Bahia deve ser encarado como analogia às desigualdades sócio-raciais presentes na sociedade baiana. O que pode parecer um anacronismo é, a rigor um uso deliberadamente ‘exagerado’ de um termo que, pelo impacto provocava a sociedade a reconhecer o racismo como um problema. 106 Jorge de Angélica. Disco: Confiança em Deus. Independente, 2000 94 De outro modo, o exemplo da canção Brazilian Style toca mais especificamente na questão da influência do Reggae como propulsor de novas narrativas sobre as identidades. Curiosamente, esta canção opera um confronto que foi alvo das análises de Carlos B. Silva, Ritmos de identidade (2007) sobre a questão das influências identitárias “externas” e seus usos e rejeições pelos na sociedade maranhense. Em linhas gerais canção provoca uma interpretação que coloca o Reggae como Style (estilo de vida, comportamento, identidade de) brasileiro. No texto da letra proposta em Inglês tem-se: Wherever you are going Is still Obina Som Everybody likes it These musics blow you mind We play tin “robado” style Brazilian Style Reggae music of the way Put your troubles away O uso do idioma inglês para descrever se referir a um “estilo” brasileiro pode ter muitas conotações. Uma interpretação possível seria encarar como uma estratégia para atingir um mercado externo ao Brasil – o que não se pode duvidar, haja vista o Reggae ser um gênero matricialmente do mundo anglófono e o Inglês uma língua franca. Acrescente-se o impacto do mercado fonográfico, controlado pelos EUA e Reino Unido e da hegemonia cultural anglófona (Sansone, 2004) e esta tese torna-se ainda mais plausível. Outra leitura considera, por outro lado, a circulação e cristalização do Reggae no Brasil e o surgimento de novos canais de comunicação com o público (e os músicos, acrescento) que transcende a barreira do idioma nacional e alteram o idioma Inglês (e os elementos culturais que o cercam e constitui) a partir de releituras “glocais”107 das influências “dominantes”. Por ambos os lados, é a busca por uma identidade que, por mais que seja externa de origem é atualizada pelas experiências locais, e conta com certa aceitação do público, como sugere a canção: “everybody likes it” [todo mundo gosta]. Há que se considerar ainda que o apelo discursivo desta composição se aproxima em muito do argumento musical de Peter Tosh (na epígrafe) quando sugere o termo 107 Sansone, 2004 95 “african” como identidade negra transnacional – em que toda pessoa negra, independente da origem nacional é um africano (African): Don't care where you come from As long as you're a black man You're an African No mind your nationality You have got the identity of an African…108 Esta foi também a leitura registrada em algumas obras de Edson Gomes como atestam as canções “estrangeiro” e “meus direitos”, respectivamente gravadas em 1990 e 1995. A primeira reforça um pertencimento à distância, já mencionado, onde o narradorparticipante relata sua condição de estrangeiro em sua própria terra, num texto que se direciona à um sujeito somento identificado ao final da canção. Atentando para o texto da letra tem-se: ESTRANGEIRO (Edson Gomes, 1990) Estou aqui Estou bem distante do teu convívio Eu estou aqui Estou bem distante, mas estou sabendo Que se passa contigo É o Mesmo que se passa comigo Eu ando aqui pela Baby(lônia) Eles me chama de brasileiro Porém eu me sinto um estrangeiro Trabalho, trabalho e nada é nada não (2x) Eu vivo aqui num submundo Buracos, favelas, guetos imundos Eles me chama de brasileiro Porém eu me sinto um estrangeiro109 (...) 108 109 In Peter Tosh(VER ÁLBUM). “Estrangeiro” In: Edson Gomes. Disco: Recôncavo. EMI, 1990. 96 A mensagem desta canção é completada pelo arranjo musical que a cerca. O andamento marcadamente ralentado, suavizado pelos contrapontos de sopro ao lado de uma performance vocal,dá à canção uma aura de lamento e contrariedade que reforça a idéia expressa no texto. As sonoridades impressas pelos músicos e musicistas e aprimoradas no processo de mixagem dão à canção um sentido que a rigor não está explícito na letra. Nos trechos finais da canção, o momento de maior evolução vocal a palavra África é repetida, numa evolução vocal que insinua um estado de êxtase, reforçado por um acorde de guitarra “distorcida” (artificialmente): África, África, África... Iô, Iô, Iô, Iô, Iô, África, África, África... Em “Meus Direitos”, a ligação literalmente umbilical com a África (nas palavras do autor-intérprete, “mamãe África”) é o ponto de partida para canção-denúncia sobre as desigualdades a que são alvos os negros no Brasil ao longo da Historia. (...)Quanto tempo que a gente ta aqui No Brasil Tanto tempo que a gente está assim Sem ter educação Sem ter oportunidade Sem ter habitação Sem ser membro da sociedade Somos alvo da incoerência Vítimas da prepotência Dos racistas Ainda que persistam expressões como “vítima” ou “somos alvo” o argumento central da canção corrobora uma imagem de alteridade do negro diante de direitos que são seus e pelos quais deve lutar. Arrisco esta interpretação acrescentando novamente, a importância do arranjo na construção do discurso musical. O andamento mais acelerado e as linhas de baixo mais rápidas acabam por dar à obra um tom mais vibrante, que interagindo, com a palavra cantada, completam e alteram o sentido da mensagem escrita na letra. 97 Quando perguntado, em 2007, sobre seu trabalho como baixista da banda Cão de raça, o músico Osvaldo Filho - que acompanha Edson Gomes desde a gravação deste álbum – enfatizou a busca por influências mais jazzísticas no uso do instrumento. De acordo com ele, Edson buscava um som de Baixo acompanhasse as nuances do vocal, estando menos focalizado (e não desligado, favor não confundir) da bateria, como é mais convencionalmente conhecido110. Fechando o parêntese do comentário sobre a forma musical, retomo à análise dos imaginários sobre a áfrica presentes nas canções de Reggae na Bahia utilizando como exemplo outro registro deste fenômeno. No LP Música das Ruas111 Dionorina, artista radicado na cidade Feira e Santana, apresenta duas canções que travam, mais explicitamente este debate.112 A faixa de abertura do álbum, “Jamaica FM” (de Carlos Pita) aborda uma situação cotidiana de maneira inusitada: JAMAICA FM (Carlos Pita/Dionorina, 1994) Quando eu tava naquela Naquela esquina Ouvindo um Reggae Num radinho de pilha Quando eu tava naquela Naquela esquina Querendo ser feliz e beijar minha menina Quando alguém cantou: Africana sensação O negro é bacana A cor não engana Aumenta este rádio Que esse som tá em Luanda De repente me senti 110 Uma audição da gravação de “Sociedade Falida” de Edson Gomes atesta esta impressão. Edson Gomes. Disco: Resgate Fatal, 1995. 111 O Lp é produto da premiação do Troféu Caymmi, importante evento da música Baiana que deu visibilidade a grande parte dos/as artistas baianos de projeção no cenário atual. Em 1986 Edson Gomes e Nengo Vieira também foram vencedores deste festival. “Música das Ruas” foi o show que deu nome ao disco, primeiro LP da carreira do artista. 112 Dionorina, Disco: Música das Ruas, Gravadora: Stalo Discos-BA,1994 98 Na terra das primaveras Jamaica FM Encontrei com Peter Tosh Numa esquina, de bobeira Aqui tem palmeira No meu sonho flutuando Sem perder a correnteza Sunsplash Pois existe a babilônia Mas o negro tem beleza Sob a ótica desta canção o “ouvinte” é retratado como sujeito na relação com os meios de comunicação, destacadamente com o rádio, símbolo ontológico da propagação e circulação da música no século XX. O Reggae tocado no Rádio desperta para uma “africana sensação”: sentimento de orgulho negro (“o negro é cabaça, a cor não engana” ) que tem a diáspora como pano de fundo, haja vista sintonia com a África Atlântica (tendo luanda, capital de Angola como referência) e a repentina impressão de se estar na Terra das primaveras – leia-se São Luís do Maranhão, também conhecida como Jamaica brasileira. A argumentação intrigante e complexa desta canção ilustra que um contradiscurso, a partir da canção que, obedecendo a lógica do conflito, opera com um sentido de pertencimento negro que encurta distâncias. Segundo Osmundo Pinho (2005) esta sintonia com a África, e outros referenciais geopolíticos da diáspora é uma perspectiva dos afrodescendentes diante de um campo racializado, em parte pelos agentes negros, que optam por se identificarem como africanos, mas, sobretudo pelas instâncias da hegemonia política que se instalou como um poder branco e como um representante local, colonial, do ‘branco universal’ sediado em uma Europa sobrepairante113 Neste confronto, a denúncia das muitas formas de silenciamento é uma alternativa política central114 Há episódios destas lutas sobre os quais ainda paira um enorme silêncio. No momento a seguir trago para o foco das lentes deste trabalho algumas 113 Pinho, 2005. p. 129 É o Caso da faixa “New York Time”: A bomba H já explodiu / Na África / New York times não deu nada/ é tudo ilusão da raça humana/ new York Times não deu nada. Dionorina, Disco: Música das Ruas, Gravadora: Stalo Discos-BA,1994 114 99 histórias dos movimentos negros na cidade de Feira de Santana, um dos nascedouros da música Reggae na Bahia. De Beduínos a Malês Em linhas gerais, a afirmação das expressões da cultura negra em Feira de Santana perpassa pela relação com o calendário festivo da cidade. A exemplo da micareta da cidade, considerada a mais antiga do Brasil, o espaço das festas deve ser considerado como palcos centrais de onde podem-se apreender valiosas interpretações sobre a dinâmica da urbe. A festa, vista aqui como espaço de sociabilidade (Tinhorão, 1972; Jancsó/Kantor, 2001, Godi, 1997, Moura, 2001), é um terreno onde se reproduzem e subvertem as hierarquias e distinções de raça, classe e gênero. A participação efetiva ou segregada no(s) espaço(s) da festa incide(m) diretamente sob as muitas formas de interação (e representação desta) de seus/suas agentes, o que implica num quadro de permanente tensão, ora no plano dos elementos simbólicos, ora “às vias de fato” que reflete e é ao mesmo tempo reflexo do quadro das relações social. A disputa pela participação nos espaços lúdicos, cívicos, de celebração da religiosidade e outros, revela outros focos do confronto pela visibilidade dos afrodescendentes em outras tantas dimensões da sociedade em que está inserido, seja através de entidades organizadas, seja através da “fantasia” (Moura, 2001) ou quaisquer formas alternativas e inusitadas. No caso em questão, há uma relação direta entre a produção musical sintonizada com elementos da cultura negra e a disputa pela presença do negro na sociedade. Estes episódios remontam às décadas anteriores em que os blocos e escolas de 115 Samba eram uma das principais formas de participação nas festas contexto que já anunciava os indícios da contradição que seria propulsora para o surgimento dos blocos afro116 . Segundo Jorge de Angélica, os Afoxés surgem como resposta ao quadro de explícita segregação dos negros na festa. Em suas palavras: Até nos blocos de bacanas a negrada não podia participar, né. A gente ficava de fora mesmo. Não tinha négócio de história não: ou ia puxar 115 Para citar algumas das principais agremiações: Cordão Império Feirense, Ali babá e os quarenta ladrões, Tanque da nação, Escola de Samba Escravos do oriente, da rua nova, sob coordenação da Ialorixá Mãe socorro, personagem importante da história recente de Feira de Santana, Escola de Samba Padre Ovídio. Cf. ANGÉLICA, Jorge de. 02/08/08(entrevista). 116 Paa o caso de Feira de Santana o termo “afro” é sintomático de uma emergente auto-identificação étnica destas entidades 100 corda como, na época chamavam os puxadores de corda... eram os beduínos. Ou ia ser beduíno dos brancos, pra aproveitar, ou... A gente não tinha oportunidade, ou ia puxar corda pra aproveitar uma merrequinha e também brincar ali humilhadamente ou... A gente procurou largar a corda dos caras lá, dos blocos de bacanas, e 117 formamos o nosso bloco, os nosso afoxés . Como parte de um processo mais amplo, a fundação do Afoxé Pomba de Malê e de outras entidades com o mesmo perfil, é reveladora de uma nova leitura de negritude e africanidade que pairava sob a Bahia dos anos 80, por razões conjunturais já abordadas. Foi parte constitutiva deste fenômeno o fortalecimento dos laços com o candomblé, haja vista a participação decisiva dos terreiros na fundação e articulação da entidades, bem como a assunção de um “novo” discurso de auto-identificação étnica e orgulho negro. Em paralelo a busca pela África e pelos novos referenciais de africanidade na Diáspora que davam o ar inusitado e novo destas expressões político-culturais. Destarte, o Reggae produzido pelos artistas radicados em Feira de Santana registrou algumas destas leituras, que são aqui frutíferas para a análise que segue. Se é válido considerar que “uma imagem vale mais que mil palavras” a capa do LP “Música das ruas” de Dionorina (Stalo discos, 1994) endossa esta máxima, dada a sua contextualidade. Para além do valor estético, a capa– cartão de visitas de uma obra fonográfica – demonstra um uso político do produto fonográfico para expressar sua leitura situada dos movimentos negros urbanos. Ao centro, repousa a imagem da face do artista e suas longas (e conhecidas) dreadlocks118, num contraste de preto e branco (uma espécie de fotolito) numa combinação estilizada com a imagem de uma cobra coral, em cores vivas que é a própria extensão do seu cabelo. A leitura iconográfica de Pedro Kraff, bem recebida pelo artista remonta à memória das lutas contra as desigualdades sócio-raciais nas mais diversas instancias da sociedade feirense, mais notadamente na micareta. A música “cobra coral” composta originalmente para os desfiles do Afoxé Pomba de Male explica melhor o sentido político deste uso: COBRA CORAL (Jorge de Angélica, 1998) 117 Ibid. Termo que define as tranças que constiuiem um dos penteados que identifica o Reggae. Usa-se, de modo mais genérico, termos como “cabelo rasta”, ou simplismente “rasta”. 118 101 O negro do Pomba quando sai da rua nova Ele traz na cinta uma cobra coral É uma cobra coral É uma cobra coral119 A descreve o olhar de discriminação com que eram recebidos os integrantes dos afoxés ao se aproximarem e apresentarem no circuito festivo da micareta de Feira – daí o uso simbólico do animal peçonhento como metáfora. A rua nova é considerada por muitos moradores e pelos meios da imprensa local como um “reduto” da cultura negra, seja pelo perfil étnico-racial dos habitantes, seja pelo reconhecimento de elementos representativos de uma cultura negra auto-identificada nos afoxés e terreiros de Candomblé. Esta imagem do “Gueto”, guarda uma profunda ambivalência pois também serviu para estigmatizar o bairro na opinião pública como um reduto de violência e criminalidade, imagem que as agremiações comunitárias e entidades do movimento negro vem desconstruíndo ao longo de mais de duas décadas.120 A cobra coral é, portanto um símbolo-resposta à segregação racial, uma leitura política dos espaços de sociabilidade festiva, e para além deles, da cultura de Feira de Santana e suas contradições. Além de Cobra Coral outros registros cristalizados, sob o formato canção nos discos de Reggae são oriundos do desfile dos afoxés, dentre as quais pode-se destacar “Bahia Negra”, também de autoria de Jorge de Angélica, como se vê no trecho a seguir: BAHIA NEGRA (Jorge de Angélica) Oh Oh Oh Bahia Negra A luz da alvorada te deseja Oh Bahia Mãe Eu esse ano vou mostrar como é que é 119 foi gravada posteriormente no Disco Sacasó (gravadora: Zero Bala, 1998) Fica em suspenso a investigar a relação entre a popularização dos Afoxés e a produção de um olhar criminalizador (sobretudo por parte da imprensa e dos órgãos públicos) à Rua nova. Não se pode desconsiderar índices nítidos de violência urbana neste e outros bairros da cidade, tampouco atribuir-lhes motivações estritamente intrínsecas às suas fronteiras internas. Para completar a provocação e endossar minha preocupação com o tema, sugiro apreciar as reflexões de Wacquant sobre o crescimento de sistema carcerário no e sua relação direta com o crescimento dos movimentos pelos Direitos civis dos negros nos EUA (Wacquant, L. “crime e castigo de Nixon a Clinton”) 120 102 O afoxé Essa dança tão linda que vem do Papua da Nova Guiné África Em conversa com a historiadora e pesquisadora Ana Rita Machado, radicada em Feira de Santana, “Bahia Negra” é uma das canções de maior expressão entre os afoxés e que ganhou mais expressão local com a gravação de “Jorge”. Cabe mencionar ainda que, se há no imaginário social em Feira de Santana uma presença muito marcante de símbolos do universo pan-árabe - muitos dos cordões tinham nomes com essas características (Ali babá, escravos do oriente além da própria expressão “beduíno” para identificar os ‘cordeiros’) a leitura do afoxé da Rua Nova está situada com a África islâmica, dos Malês, escravos responsáveis por uma Rebelião social que teve grande reverberação na sociedade baiana do século XIX bem como na historiografia brasileira.121 Em linhas gerais, não quero aqui reduzir uma série de trajetórias de lutas ao exemplo desta agremiação afro-carnavalesca. Pelo contrário, utilizo este exemplo dada a conexão entre os exemplos encontrados e o envolvimento de um grupo de músicos (alguns entrevistados) com esta entidade em especial. Insistir que um estudo mais detalhado dos movimentos poítico-culturais negros de Feira de Santana nas últimas décadas pode, com rigor preencher esta lacuna. * * * Por fim, observando as muitas leituras, tecidas nas canções de Reggae e sambaReggae em torno da África e a Jamaica na diáspora, percebe-se a importância destas expressões musicais à busca pela construção de novos referenciais críticos da História do negro, situada na desconstrução de certos estereótipos e estigmas e torno destas “noções de lugar” que arbitrariamente incidiam sobre a sociedade como imagens depreciativas da memória e história dos afrodescendentes. Apesar disso, não defendo que as imagens construídas em torno destes referenciais geopolíticos são em si 121 REIS, João José. Rebelião Escrava na Bahia: o levante dos malês (1835). (edição revista e ampliada) São Paulo, Cia das Letras, 1996. 103 suficientes. Deixo bem claro meu entendimento de que, à luz de uma determinada época, a produção destas identidades imaginadas serviu de substrato para que novos caminhos crítico-interpretativos sobre o passado ancestral do Negro, seus laços com o continente africano e as muitas histórias da África pré-colonial e contemporânea pudessem fazer parte da rede de temas e questões da sociedade brasileira. Olhando para o presente, filio-me à causa de que é o acesso à educação e a informação que pode preencher, estas lacunas e imprecisões que ainda deixam névoas sobre nosso passado. Sem dúvida, os olhares sobre a “África” de dentro e fora do continente, do mundo de hoje jamais seriam os mesmos sem a experiência inventiva que nossa sociedade assistiu e que rendeu frutos (musicais) que carecem uma divisão mais justa. Este é ao meu ver, o grande mérito da Obra de Patrícia Pinho sobre as Reinvenções da África na Bahia: mostrar o desequilíbrio entre o alcance libertário das idéias utópicas sobre a África e o processo de transformação da cultura em mercadoria. 104 105 106 FAIXA 4 : OS ANOS 90 E O VERÃO DO REGGAE BAIANO Eu quero um Reggae Que me leve ao paraíso, eu quero Eu quero um Reggae Que me traga uma nova ordem eu quero Eu quero um Reggae Como ponto de partida Eu quero um Reggae (trecho da canção “Novo Reggae” de Paulinho Ganaê e J. Magalhães) Se o lance ta na cor A coisa é essa, Sinta Reggae, Reggae, Reggae Se o lance ta na cor A coisa é essa, é essa, é essa: Cantando e reggando Pra quem quiser ver... (Sinta e Kaya, Gravada por Sine Calmon e Morrão Fumegante, 1997) 107 Se ao longo dos anos 80 a sociedade baiana, e brasileira, interagiu com a presença gradativa da música Reggae, pelas rádios, TV, ou através dos discursos e estética dos blocos afro, é sem dúvida no intervalo de década entre 1988 a 1998 que o estilo ganha sua definitiva “consagração” no ambiente sócio-cultural e no mercado fonográfico. Seja pelas novas técnicas que registrou, por exemplo o Muzenza em 1988 e outros de gravações do samba-Reggae então “aprisionado” nos estúdios da WR em Salvador seja pela proliferação de bandas que arriscavam seus próprios vôos no ritmo afro-Jamaicano. Do início a meados dos anos 90 podia-se ouvir, além da marcante batida e do então consagrado Samba-Reggae, os acordes de outros grupos de artistas como Adão Negro, Sine Calmon e Morrão fumegante, Dionorina, Geraldo Cristal que aos poucos registravam cristalizam suas experiências musicais em registros fonográficos. O número crescente de gravações está associado ao surgimento de novas possibilidades de gravação (digital) bem como pela maior circulação de discos internacionais de Reggae no Brasil como apontam alguns colecionadores.122 Esta sintomática mudança seria evidenciada também pelas lentes de antropólogos e sociólogos, jornalistas e críticos de música que se voltavam sob alguns aspectos deste fenômeno ‘novo’. Os principais trabalhos sobre Reggae emergem, sintomaticamente ao longo deste período (Cunha, 1991; Godi, 1997, 1998, 2001; Albuquerque, 1997; White, 1999; Pinho, 1997 e 2001. No programa de Ciências Sociais da universidade Federal da Bahia dois trabalho em especial discutem, com atenção, algumas nuances da presença Reggae na Bahia. Marcos Rubens Santos(2001) analisa as respostas à discriminação sócio-racial dos negros em Salvador, a partir da estética Reggae. Para além, disso, seu trabalho consegue mapear os espaços de circulação e apreciação do público regueiro123 de Salvador, com base em uma rigorosa pesquisa de campo. É importante destacar que o autor era(e ainda é) um músico de relativa expressão no cenário Reggae na Bahia. Guitarrista da banda Adão Negro, vivenciava, à época todo processo de transformação e cristalização do 122 Cf. entrevista de S. Carmelito (14/dez/2006) Refiro-me a este termo, seguindo a classificação de Santos(2001) para quem há inúmeros manifestações do ser regueiro em Salvador. Em linhas gerais pode-se considerar que tanto freqüentador@s dos shows quanto o transeunte urbano que, deambula ostentando suas marcas de identificação étnica - como as dradlocks e outros tantos sinais – eram, e ainda são alvo de discriminação sócio-racial. Define assim portanto, além do ouvinte e admirador da música Reggae, o público que freqüenta os shows, os músicos e mesmo os menos sintonizados com a mensagem Rastafaris. Sem dúvida, esta é uma questão que desperta bastante polêmica entre os colecionadores, músicos ou ouvintes mais ligados de maneira militante à circulação e divulgação do Reggae na Bahia. 123 108 Reggae numa cultura musical de presença definitiva na sociedade baiana, mais destacadamente entre a juventude negra. Para além deste dado, em cada esquina, beco ou bar das cidades na Bahia particularmente Salvador, Feira de Santana e Cachoeira - se podia escutar a qualquer momento, a pulsação grave do som Jamaicano em coletâneas comercializadas pelos camelôs contendo compilações dos principais representantes do Estilo. Em outros cantos, os gritos de “fogo na Babilônia” entoados por homens e mulheres de todas as idades impunham um novo sentido de territorialidade que, despertou o desagrado dos segmentos mais conservadores da elite baiana. Entre processos e batidas policiais, o Reggae se colocava como uma alternativa vivaz da música negra na Bahia como se confirmou, entre outros elementos, pela explosão da Canção Nayambing Blues de Sine Calmon e Morrão Fumegante no carnaval 1997. A este momento de efervecência sócio-cultural-musical, chamo de verão do Reggae baiano. Estes e outros enredos serão particularmente alvo deste capítulo. 1988: o ano que não terminou... 1988 inaugura precisamente os anos de cristalização de uma cena Reggae “feita na Bahia” como enuncia a movimentação de artistas do Gênero em cidades do interior (Feira de Santana e Cachoeira) e capital (Salvador). Havia nestes territórios uma emergente produção local de música Reggae, que ganhava, aos poucos certa visibilidade e popularidade na Bahia. Se a porta para Salvador era estreita para as bandas do interior”, como enfatiza o cantor e compositor Jorge de Angélica, a música Reggae foi um dos elementos propulsores de novos espaços de produção e organização contracultural na atlântica “cidade mundial”124. A realização do I Reggae in Bahia Festival em 1988 nos dá ainda a impressão de que o Reggae, à altura de 1988 e pelos anos 90 afora, constituía-se em um dos principais porta-vozes da luta anti-racista dos negros e negras na Bahia e no Brasil. Este momento decisivo, registrado por alguns 124 O excelente comentário de Patrícia Pinho sobre este conceito é digno de referência. Para esta autora, o estudo das relações negras transnacionais deve considerar “os elementos de continuidade e ruptura em relação às hierarquias modernas de poder, riqueza, valorização e reconhecimento”, o que torna possível que cidades como Salvador emergirem como centros radiadores de elementos da cultura negra “expandindo o mapa do atlântico negro” e perturbando a colonialidade do poder, traço que a confirma como “cidade mundial”. (Pinho, 2004, p. 57) 109 segmentos nacionais da opinião pública125 explica, como desdobramento, a gravação sintomática do àlbum “Reggae Resistência”, primeiro disco de Edson Gomes, gravado nos estúdios da WR em Salvador por um time responsável pelo amadurecimento do Reggae baiano ao longo dos anos 80. A assinatura da gravadora EMI-Odeon era sintomática do interesse renovado na produção “glocais” de estilos transnacionais da música Negra, como atesta o lançamento contemporâneo da Coletânea Hip Hop Cultura de Rua, com Thayde e DJ Hum, Mc/Dj Jack, Código 13 e outros (gravadora: Eldorado, 1988). A expressão “Reggae Resistência” é uma definição utilizada em Cachoeira na Bahia para definir o Reggae Roots feito sob as medida da ‘tradição clássica’ do som jamaicano legadas por seus representantes mais conhecidos(Peter Tosh, Bob Marley e outros). Uma audição crítica deste álbum revela sua(do artista e demais envolvidos) enorme consonância com as sucessivas mobilizações sociais negras em torno do ano de 1988. Além da explícita contraposição às comemorações do centenário da abolição Brasil (que dividia opiniões no período126) o disco de Edson Gomes nos dá pistas em torno da parmanência de um sentidos étnico-identitários de negritude na Diáspora. Na letra de “Sistema do Vampiro”, faixa de abertura, travam-se algumas questões que merecem atenção, como pode-se conferir: Esse sistema é um vampiro Ah ! O sistema é um vampiro Esse sistema é um vampiro Todo povo ficou aflito Esse sistema é um vampiro Ah ! O sistema é um vampiro Vive sugando todo povo Vem cá, meu Deus, desça de novo Ouça meu grito de socorro Pai, escuta a voz desse teu povo Que clama Um centenário de falsa libertação 125 Folha de São Paulo, Ilustrada, “a Bahia virou Jamaica”, 31/01/1988. citado por Guerreiro, 1997, p 97113 126 Jornal Feira Hoje, “Gilberto Gil: querem esvaziar os festejos do centenário da abolição”, 13/01/1988 110 Cativeiro mental Estamos metidos nos buracos Estamos jogados nas favelas da vida Pendurados lá no morro Velho pai, só nos resta teu socorro Ah, sim! Estamos largados nas calçadas Nós não temos nem morada Não temos nada!127 Ao referir-se ao “centenário de Falsa Libertação” (os 100 anos do decreto da Lei Áurea e a extinção ‘formal’ do trabalho cativo) Edson Gomes utiliza uma categoria muito emblemática para a análise das influências da Música Reggae na Bahia: a expressão “Cativeiro Mental"128, apresentada por Bob Marley (basta lembrar da famosa “Redeption song”: “Emancipate yourself from mental slavery...”). Este conceito compreende a escravidão como processo de violência Cultural que transcendeu o status da sociedade escravista e revela-se como permanência no mundo contemporâneo. Através da musicalidade Reggae (que implica num conjunto de práticas e vivencias mediadas pela música) a categoria definida pelo intelectual Negro jamaicano é reapropriada em um contexto de profunda tensão social no Brasil sendo traduzida/ressignificada pelo Reggaeman baiano em um marco crucial da indústria fonográfica no País. Edson Gomes & banda Cão de Raça, assim como tantos outros intelectuais da época, assumiu uma posição explícita diante do contexto de 1988. Para além de ser o ano das “comemorações” do centenário da abolição formal da escravidão no Brasil, foi um momento de grandes debates sobre a organização do estado civil e seus instrumentos de legais de garantia de Direitos. As militâncias negras urbanas, se insurgiam levantando a necessidade de reconhecer a importância dos negros à construção do país e a necessidade de reparar as dívidas históricas para com essas populações bem como estimular novas produções historiográficas nessa direção (Silva, 127 Edson Gomes, Disco: Reggae Resistência, Gravadora: EMI-Odeon, 1988 A rigor, outros artistas também fizeram uso deste conceito produzido na diáspora: entre eles Paulinho Ganaê em seu CD independente gravado em 1997 intitulado independência em Mente. No encarte as palavras de Ganaê são: “da mesma forma que Zumbi é o eco de Ganga zumba na luta pela liberdade, nós devemos ser o eco libertário de Zumbi na luta contra a escravidão mental, tendo sempre a independência em mente”. 128 111 2000c). Na faixa “História do Brasil” constróe-se uma interpretação histórica crítica do marco da colonização. HISTÓRIA DO BRASIL (Edson Gomes, 1988) Eu vou contar pra vocês Certa história do Brasil Foi quando Cabral descobriu Este país tropical Um certo povo surgiu Vindo de um certo lugar Forçado a trabalhar neste imenso país E era o chicote no ar E era o chicote a estalar E era o chicote a cortar E era o chicote a sangrar Um, dois, três, até hoje dói Um, dois, três, bateu mais de uma vez Por isso é que a gente não tem vez Por isso é que a gente sempre está Do lado de fora Por isso é que a gente sempre está Lá cozinha Por isso é que a gente sempre está Está fazendo O papel menor Ou o papel pior129 Ao contar uma “certa história do Brasil” Edson Gomes realça o trabalho forçado(escravo) como elemento indelével deste processo cujas marcas persistem até o presente (“era o chicote no ar, era o chicote a sangrar... um, dois três, até hoje dói/ um dois três, bateu mais de uma vez”). Nesse sentido, a canção traça um panorama da 129 Ibid. 112 situação d@s negr@s ocupando posições marginais na sociedade, fazendo sempre “o papel menor ou o papel pior”. Neste contexto, esta canção soa como contra-discurso à historiografia conservadora que encarava o centenário da abolição como data comemorativa do fim da escravidão, silenciando o papel de negros e negras à construção deste processo. Os solos de guitarra (ao longo de toda a canção) dão ainda o ar de contestação e ‘distorção’ de uma verdade velada(não é à toa o uso de pedais de efeito overdrive para alterar a sonoridade harmônica, próprio dos grupos de Rock. Posição muito próxima está registrada no álbum Atrás do Por-do-sol de Lazzo, Lançado pela gravadora nosso som e Distribuído pela multinacional BMG-ARIOLA. Este é sem dúvida um dos discos com a sonoridade mais próxima do Reggae já lançados pelo artista. Curiosamente, é também um aálbum marcado por canções que explicitam as desigualdades raciais e apontam na direção de perspectivas também insinuadas pelos movimentos sociais da época. A primeira canção do álbum “Abolição” é também um manifesto contra as comemorações “oficiais”. Nas palavras do artista: ABOLIÇÃO (Lazzo e Capinam, 1988) Abolição! Abolição, a lição do meu avô Que casou com minha avó e que pariu a minha mãe e com meu pai com meu pai fazendo amor fez do prazer a flor da dor a beleza negra que eu sou acabar coma tristeza com a pobreza e o apartheid não fazer da humanidade, a metade da metade parte branca e parte negra Abolição! Abolir essa careta Que esconde a natureza 113 E que me faz ser teu irmão E a lição, a lição do meu avô Foi ser dono do meu ser Foi saber o que eu sou A lição da liberdade Da verdade de zumbi (Zumbi meu pai!) Lá da serra da barriga Da barriga onde eu nasci Abolindo a velha intriga Guerreando pra sorrir.130 A canção problematiza a “abolição” sugerindo-a como lição-posição política igualitária ensinada pelas gerações anteriores. O jogo de palavras e a inversão de sentidos edifica um contradiscurso à leitura hegemônica do centenário da lei áurea, demarcando uma posição comum a alguns segmentos das militâncias negras urbanas (Silva, 2000). A importância da afirmação-valorização do ser negro é um argumento central do artista. Ao entrecruzar a referência à sua genealogia com a será da Barriga, onde situouse o quilombo de Palmares, Lazzo estabelece uma referência explícita de ligação com um passado de lutas anti-coloniais que deveria ser reinserido naquele contexto em que ainda se fazia necessário “guerrear pra sorrir”. A canção que encerra o disco também é um manifesto anti-racista. Em “Lamento”, Gileno Félix e Lazzo abordam as formas de discriminação racial que representam um obstáculo à igualdade de direitos na sociedade: LAMENTO (Lazzo e Gileno Félix) “Meu Deus até quando a gente vai poder suportar Uma falsa igualdade em que é sutil mentir E não nos conceder o direito Meu deus quanto tempo a gente vai ter que esperar Uma longa avenida livre de todos preconceitos Se em cada esquina há um estranho olhar Discriminador acusando um suspeito 130 Lazzo. Atrás do pôr-do-sol. Nosso Som/BMG-ARIOLA, 1988 114 Eu não! Meu deus quanto tempo a gente vai ter que esperar Pra doce raça humana ter iguais direitos? Será que eles não sabem Que a chuva que cai do céu Não escolhe, Vem e molha todos nós E que o povo há de fazer Seu próprio mandamento E o tempo há de sentir O que vem do firmamento E a cada sol nascer Nascerá sempre um novo movimento Nascerá!” Salve o deus da música Forte pra lutar Contra a opressão Contra adiscriminação Contra o aparttheid E daí-nos a paz (choro nas minhas cordas)”131 A partir destes registros podemos mensurar a importância da música na mediação de sentidos identitários de negritude e antiracismo. A partir destes e outros registros é possível sugerir que os discos de Reggae produzidos na Bahia representam expressões do ativismo político dos negro entre os anos 80/90. Os anos que seguiram também são protagonizados por inúmeros artistas que colocaram, através da produção musical do Reggae temáticas relativas ao combate do racismo. Um número considerável de artistas que, ao longo das décadas anteriores, construíam a cena Reggae passavam a registrar suas canções em discos com selos “independentes”, gravados a partir de tecnologias e softwares mais acessíveis. A respeito deste conjunto de fontes é importante destacar que não tenho privilegiado as 131 Ibid. 115 informações sobre a circulação no grande mercado. é notório que estes registros fonográficos atingem um grupo às vezes pequeno de consumidores, o que de inicio parece inviabilizar maiores reflexões a cerca deste material. Por outro lado, as gravações de artistas como Ras Ciro Lima, Ubaldo Warú, Geraldo Cristal, Zavan Liv, Gilsan, Jorge de Angélica, guardam valiosas impressões sobre o contexto pelo qual nos debruçamos e são, portanto, fontes primárias para compreender os enredos da versão baiana do Reggae. Portanto, privilegio aqui, ouvir e ver os sujeitos para além do critério quantitativo, ou de sua maior ou menor vendagem de discos. Em outras palavras, “o que se vê”, ou o que é invisibilizado, ainda ganha muita relevância no mundo contemporâneo, logo, o Racismo e a luta anti-racista se constituem em torno, e em conflito com esses sentidos. Este exemplo faz relembrar ainda Maurice Halbwachs, em suas considerações sobre o papel dos músicos na construção da “Memória coletiva”. Ele argumenta que a “lembrança” dos músicos são as únicas conservadas “numa memória coletiva que se estende, no espaço e no tempo, tão longe quanto sua sociedade”(1990, p. 185). Entretanto, seu posicionamento representa, à luz de novas reflexões, alguns limites de modo que considera todas as formas outras de memória coletiva seccionadas do tempo histórico, logo, restringindo sua herança ao tempo de vida dos indivíduos. Segundo Ahmed Hampatê-Bá (1982) estas raízes podem ser ainda mais remotas, como aponta seu valioso A tradição viva que trata das tradições e formas de organização social persistentes em determinadas regiões do continente africano ancoradas na oralidade. As tradições orais/musicais tem papel central na produção de conhecimentos, na organização social e na legitimação das identidades e visões de mundo. Acompanhando esta opinião destacamos que a oralidade aqui é compreendida em seu amplo papel para o legado cultural e político de um ou mais grupos sociais. Portanto, os discursos estético-musicais e “falas” compõem as memórias de uma inventada tradição recente que serve como recurso político para legitimar os grupos e suas demandas sociais. É como aponta o historiador e músico Salloma Salomão Silva: “Os compositores retomaram as ligações com as práticas Griot ou Doma... que são formas destinadas a preservação da memória na forma de canções (...) O encontro dos compositores e militantes negros com a história da África antiga e do Brasil colonial, gerou um estilo inédito de canções urbanas, que se encontravam em sincronia com as proposições de alguns grupos negros.” (2000, p. 80) 116 Em inúmeras canções (o que inclui as apresentadas até o momento neste capítulo), este recurso é amplamente visível e merece ser considerado. É importante considerar que a arena da chamada cultura baiana (que transcende sem dúvida o espaço metropolitano de Salvador!) a musica incorporou novos sentidos de acordo com as diferentes formas de reprodução em sintonia com “aspectos tenazmente locais” da História tais como as experiências musicais do recôncavo, a presença da musicalidade de matriz africana presente nos rituais de candomblé e a emergente e híbrida sonoridade dos blocos afro e afoxés. Músicos e Musicistas são, no sentido amplo apontado por Geertz, intérpretes das tendências da música mundializada e recriadores destes estilos à luz das tensões e visões de mundo que lhes está ao alcance, ocupando, portanto, o lugar de Pensadores (as), ativistas e sujeitos críticos que subverteram as hierarquias e ‘fazem a cabeça’ (em diversos sentidos) de jovens e adultos que identificam nas canções, abordagens em torno de seu próprio cotidiano. É possível situar, acompanhando passos sugeridos por Silva (2000), um conjunto de canções mais que tematizaram o “resgate do passado” como forma de enunciar uma identidade de ser-estar negro na sociedade contemporânea, revisitando a historiografia e inserindo outros personagens subversivos e episódios de sedição da luta antiracista/anti-escravista no passado colonial brasileiro. Zumbi, Palmares, Lucas da Feira, foram os protagonistas destas novas narrativas musicais. Talvez pela carreira ‘melhor sucedida’ o cantor e compositor Edson Gomes apresente um número maior de exemplo espalhados entre seus 14 lançamentos (incluindo as muitas coletâneas). Entre os existentes e mais elucidativos (“História do Brasil”132 já foi devidamente mencionada), a canção “Capturados” cujo texto da letra aborda o reconhecimento da identidade negra como estratégia de identificar a ideologia da Democracia Racial: CAPTURADOS (Edson Gomes) Somos filhos dos escravos Não temos vergonha de assumir Somos filhos dos capturados Não temos vergonha de admitir 132 Edson Gomes. Disco: Reggae Resistência, EMI-Odeon, 1988 117 Somos filhos dos escravos Estamos afins De tirar essa máscara Revelando a história De um povo roubado, adulterado E negado a ser feliz Um povo castrado, lesionado E negado a ser feliz Somos filhos dos escravos Estamos afins De arrancar essa máscara Revelando a história De um povo que habita Lá dentro do gueto Capital da miséria Crianças que vivem Circulando os sinais São aprendizes de Marginais Somos filhos dos escravos Somos filhos dos capturados Somos, Somos, Somos e somos.133 O verbo ‘ser’ tão evidenciado pelo autor é sintoma de uma posição política que visualiza no passado a figura do escravo como sujeito histórico - restituído de sua humanidade – para a identificação com o ‘ser’(self) negro, no contexto contemporâneo. Chama ainda mais a atenção a ênfase na filiação com o ancestral negro como estratégia de “revelar” uma historiografia atenta para as desigualdades sócio-raciais que pesaram sobre os afrodescendentes e, consequentemente, sob seus filhos do presente. Longe de querer esvaziar ou esgotar as metáforas do artista, arrisco que a estrofe final, que se refere às crianças, sugere uma estratégia poético-musical para evidenciar o argumento central da canção. Esta leitura do passado que estabelece de modo direto uma descendência entre os negros de ontem e hoje, é profundamente reveladora de uma nova percepção sobre o presente que evidenciava as hierarquias raciais como permanência histórica da realidade 133 Edson Gomes. Disco: Recôncavo. EMI, 1990. 118 brasileira e a auto-afirmação (“somos...”) como resposta ao mito da democracia racial e da não violência (CHAUÍ, 1994), bem como às formas historicamente construídas do racismo na Bahia que, segundo Agier (1992) opera em torno de um sistema complexo que institui a inferiorização do negro e a exclusão das esferas do poder e, por conseguinte, dos mecanismos de legitimação dessas esferas. Além disso, o uso simbólico de elementos de circulação no imaginário social também foi alvo da criativa obra musical em foco. Utilizando o disco(em sua dimensão plástica) como espaço de interação, Recôncavo, ostenta um encarte que guarda, de um lado as letras do álbum, e de outro uma imagem imponente de um time de futebol formado, pelos músicos e outros agentes envolvidos na produção da obra. O futebol, um dos esportes de maiores símbolos de mobilização nacional e identificação do Brasil no exterior, é retratado de modo, se não transgressor, minimamente identificado com a estética negra 134 . Entre os muitos centenários celebrados na virada para a década de 90 - o da abolição em 88, o da República e 89 - esteve em suspenso a questão dos ícones da memória nacional e seu efêmero calendário. Silva (2000) destaca que a entrada no cenário nacional de questões relativas às identidades negras naquele contexto foi propulsor das mobilizações que culminaram ao redor do ano de 1995, contexto em se destacava a disputa política pela afirmação do 20 de novembro como data comemorativa do tricentenário da Morte de Zumbi (20 de novembro de1695). Ressalta ainda que a movimentação político-cultutral nos anos que antecederam este episódio, foram pauta da fala cantada dos grupos Negros de inúmeras cidade do Brasil, entre os quais aqueles ligados ao movimento Hip Hop (destacadamente em São Paulo). Esta nova presença afro-musical urbana teria sido - na leitura plausível de Silva (2000) – sensivelmente percebida por Gil e Caetano Veloso que, na ocasião apresentaram a canção “Haiti”, como música de Trabalho do recém lançado Tropicália 2135. Na Bahia, este processo também marcou algumas faixas da discografia do Reggae. Em “Música das Ruas”136 Dionorina canta sua percepção do “novo zumbi” na sinestésica “1695”: 134 O futebol é uma das paixões declaradas de Edson Gomes (e de astros como Bob Marley, por coincidência). Anualmente ele realiza, nas comemorações de seu aniversário, uma partida protagonizada pelos músicos e amigos, que nos últimos tempos tem contado com presenças ilustres como o jamaicano Gregory Isaacs, em ocasião de sua turnê pelo Brasil. Este evento foi retratado no vídeo-documentário que faz parte(nos extras) do primeiro DVD da carreira do artista. Edson Gomes. Ao Vivo em Salvador (Duplo). Atração Fonográfica, 2005. 135 Caetano Veloso & Gilberto Gil. Tropicália 2. Poligram, 1993. 136 Dionorina. Op. Cit. 119 1695 (MEDO NUNCA) (Dionorina, 1994) Há algo no ar da praça Um grito que pairou no tempo Que a raça nos traz Refletindo um navio negreiro Com os olhos do tempo Novo quilombo se formando A resistência do som tropical Somos negros mesmo Somos nossos pais Somos dentes tão claros Somos de todo gás Por traz dos canaviais Um lamento batalhador Oh não Metáfora de escravidão O desemprego e a corrupção no meu país, Oh não oh não Libertai a carne e o espírito Mas preservem meu coração Oh não 1695, 1695, louca diáspora universal 1695, banzos e malês retratam o que eu digo 1695: novo zumbi apostam na paz(mil...) Chama que teima em luzir o seu brilho Nossa esperança ilustrando um cartaz Medo nunca Medo nunca mais Não, não, não Medo nunca Medo nunca mais Não, não, não 120 Na leitura do compositor e intérprete, há em questão um sentimento de pertencimento étnico que paira no ar e no tempo (como “um espectro que ronda...”) e que remete ao passado do negro no Brasil, no que se refere à experiência dos quilombos, entendidos como territórios de sedição e resistência. Esta análise do passado nos remete às reflexões de Walter Benjamin, oportunamente lembrada nas epígrafes de Gilroy (2001), a respeito da História e sua incursão sobre o tempo. Nos diz Benjamin que: “articular historicamente o passado não significa aceita-lo ‘do jeito que ele realmente era’. Significa apropriar-se de uma memória quando ela eclode em um momento de perigo.” Esta ‘memória viva’ do quilombo e seu referencial-mor Zumbi, indica uma contra-história que se sublevação contra uma historiografia neo-ocidental que, a rigor, impunha contra parcela considerável da população brasileira (Negros e negras) a sombra do silêncio. A posição deste e outros compositores, a partir de seus textos musicais, revela-se em consonância com o contexto em que os (novos)movimentos sociais negros no Brasil apostavam dentre outras bandeiras, na alteração do calendário cívico, e com ele, da interpretação histórica que silenciava a importância de negros e negras à edificação do Brasil e de uma história do Negro na diáspora. Paralelamente, o arranjo da canção proporciona um ambiente de profundamente melancólico (Blues), reforçado por incursões esporádicas de melodias de Guitarra em escala pentatônica que respondem à cada avanço das estrofes. Esta impressão sonora completa o texto musical, instaurando uma imagem singularmente ambivalente: por um lado a memória de um passado (da plantation) marcado pela dor, como demarca a postura vocal combinada com a vibrante resposta das estrofes finais: “Medo nunca mais!” Não se pode deixar de considerar a percepção implícita de uma crítica às contradições da política nacional, na transição em marcha para uma processo de alinhamento com as políticas do neoliberalismo, tendência que aparece em outros autores do gênero no ano seguinte.137 Em 1995, com o lançamento de Resgate Fatal, Edson Gomes traz em “Zumbi dos Palmares” uma homenagem ao tricentenário. Com diferente 137 Gentilli, P. & Sader, E. Pós-neoliberalismo. As políticas sociais e o estado democrático. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1995 121 ZUMBI DOS PALMARES (Edson Gomes, 1995) Zumbi, Rei dos Palmares Um grito de dor Liberdade Zumbi Rei dos palmares Um lutador Líder de valor Você, o nosso precursor De lá para cá outro não se viu De lá para cá ninguém assumiu Você Um grande lutador A nossa luta não acabou Eis aqui a retomada Vamos então encher a praça Gritar de novo Gritar com raça Deliberada Sou zumbi dos Palmares É o zumbi dos Palmares Eu zumbi dos Palmares Zumbi Até mesmo o sol Se eles pudessem A gente pagaria Zumbi Até mesmo a chuva Se eles pudessem A gente pagaria Não temos Como estudar E a cada dia se alimentar Não temos 122 Onde trabalhar E a cada dia mais difícil Se alimentar Você Um grande lutador A nossa luta não acabou Eis aqui a retomada Vamos então encher a praça Gritar de novo Gritar com raça Deliberada Sou Zumbi dos Palmares É o Zumbi dos Palmares Eu Zumbi dos Palmares Ao longo desses anos todos que nós estamos no Brasil Ainda não somos livres A canção evidencia uma leitura de mundo que, voltando-se ao passado identifica, por um lado, a permanência das desigualdades sócio-raciais, e por outro, a identificação com zumbi (precursor, lutador, líder de valor...) como referencial histórico e étnico-identitário de luta contra essa realidade. A canção sugere ainda um tom de mobilização em torno do tema sinalizando para a opinião do Artista diante da bandeira dos movimentos negros urbanos. Ainda neste álbum, o passado escravista serve de referência à leitura das desigualdades do presente, como o exemplo da faixa “Fato Consumado”: Toda miséria que o povo passa Quem vai pagar? Toda essa fome que o povo passa Quem vai pagar? Por todo esse sangue derramado Nas pedras do pelô De cada homem chicoteado Nas pedras do pelô (...) 123 A Referência aos levantes de escravos e outras formas de resistência à dominação colonial fizeram/fazem parte das mensagens do Reggae baiano. Uma das leituras curiosas deste processo é a canção “Lucas da Feira” de Gilsam, gravada (já tardiamente) em 2002 em seu álbum independente “Reggae para todos”. Lucas da Feira é o nome como ficou conhecido o liberto Lucas evangelista138, que nasceu em Feira de Santana na primeira metade do século XIX e cuja História, rigorosamente silenciada pelos grupos dominantes da cidade nos últimos séculos139, vem sendo retomada por alguns segmentos dos movimentos negros há algumas décadas. A leitura do compositor e intérprete Gilsam é uma delas: LUCAS DA FEIRA (Gilsam, 2002) Que pode um homem e o sistema vil Que pariu a besta e a opressão Quem viu A estrela da rendenção Nos olhos da noite contra o açoite Um homem vil Quem viu Como tantos outros homens A estrada que se abriu Para conduzir sua gente Quem viu Pelas veredas escandescentes Lucas da Feira Filho da Libertação Cinturão do agreste De tantos algozes semeiam vozes de resistência Contra a opulência 138 LIMA, Zélia de Jesus. Lucas evangelista: o Lucas da Feira. Estudo sobre a rebeldia escrava em Feira de Santana (1807-1849) Dissertação de mestrado, FFCH/UFBA, Salvador, 1990. Este estudo, único até o presente que destaca a trajetória e as muitas imagens em torno deste personagem negro considerado um bandido social, enforcado publicamente na primeira metade do século XIX em Feira de Santana. 139 Em nota, Igor Santos comenta sobre a resistência das famílias feirenses a batizar os filhos com o nome Lucas: “O nome Lucas foi evitado no batismo das crianças e se construiu, através das classes dominantes, uma memória de extremo negativismo [e racismo] em torno da memória deste ex-escravo” (Santos, 2007, p. 28) 124 Do ditador comum Lucas da Feira Filho da libertação Aos olhos do cantor, pedagogo e ativista negro, Lucas da Feira é um personagem cuja história foi silenciada pois revela o protagonismo de um negro liberto que se levantou contra o sistema colonial. Em muitas conversas com Gilsam ele enfatizou que há, na verdade bastante resistência em produzir uma história do passado colonial que problematize a condição do negro no contexto de Feira de Santana e do Sertão de um modo Geral.140 Em suma, os exemplos apresentados de canções sinalizam para uma tendência mais geral adotada por outros compositores e intérpretes que, ao longo dos anos 90 (que, a meu ver, se estende para além da década propriamente dita) tentaram dialogar e propor novos parâmetros à historiografia que pudessem, a partir da análise do passado, produzir uma leitura crítica da situação do negro na sociedade contemporânea. Há, paralelamente, um universo de canções mais sintonizadas com a denúncia do Racismo brasileiro e da Democracia Racial, como escreveu o compositor e músico Artur Cardoso: ADÂO NEGRO (Arthur Cardoso, 1998) Apartheid disfarçado todo dia quando me olho não me vejo na TV quando me vejo estou sempre na cozinha ou na favela submissa ao poder já fui mucama mas agora sou neguinha minha pretinha, nós gostamos de você levante a saia e saia correndo pro quarto na madrugada patrãozinho quer lhe vê será que um dia eu serei a patroa? Sonho que um dia isso possa acontecer ficar na sala, não ir mais para a cozinha 140 Sobre a sociedade escravista-colonial no Sertão da Bahia ver o rico trabalho do prof. Erivaldo Neves. NEVES, Erivaldo F. Das Sesmarias ao minifúndio: uma comunidade sertaneja. UEFS, 2000. Não me custa advertir também sobre o Clássico POPINO, Rolie. Feira de Santana. Ed. Itapuã, 1968 125 agora digo o que vejo na TV: um som negro, um Deus negro, um Adão negro, o negro no poder...” A ideologia da Democracia racial denunciada na expressão “apartheid disfarçado todo dia” é associada pelos mecanismos de invisibilização social (como a TV) e ela manutenção de espaços sócio-racialmente hieraquizados (como a representação da Sala e da Cozinha). Alguns comentários já foram feitos sobre esta percepção, de inspiração Freyreana que incide sob a idéia de que a cozinha esta para os escravos, negros, mulheres, assim como a sala para os senhores, brancos, homens. Uma criativa leitura desta relação dualista foi feita por Carlos Albuquerque que denomina de “racismo sonoro” o hábito de considerar os instrumentos rítmicos como parte da ‘cozinha’ na formação das bandas, em sua breve análise sobre o Dub (e a nova centralidade-liberdade para o baixo e bateria) vertente mais psicodélica da música Jamaicana141. Comentários à parte, Artur Cardoso, que é co-fundador da Banda Adão Negro (que é um nome, de saída, sugestivo) propõe uma contra-narrativa de questões estruturais e cotidianas da sociedade. Este recurso, visível em outras leituras musicais do contexto, enuncia a presença de uma metafísica de negritude mais edificada em torno do orgulho negro do que propriamente na imagem do negro como vítima, uma mudança substancial, eu diria, do ponto de vista das estratégias discursivas e das perspectivas dos grupos negros urbanos. Ainda que não faça mais parte do Adão Negro (dado que é no mínimo intrigante e que não pode ser devidamente contemplado nesta pesquisa) esta é uma das mais conhecidas canções do Reggae baiano desde fins dos anos 90. Em outra canção, o Militante, compositor e baixista Jorge França realça, entre outras questões que também mereceria destaque, a relevância da auto afirmação do negro à constituição de uma “identidade” na luta contra o racismo: IDENTIDADE (Jorge França) “Ei, meu irmão negro! 141 Nas palavras de Albuquerque: “Afinal, porque guitarra, teclados e vocais são ‘sala? E desde quando a música é uma Kitchenette? Na Jamaica essa discussão não existe. Lá o ritmo é livre, sempre senhor absoluto das suas ações.” (1997, p. 97). 126 Não tenha medo de ser você não renegue a sua cor ela te acompanhará onde você for ela faz parte da sua identidade assuma, enfrente a sua verdade(...) Nunca acredite em que diz que você não é belo mas pregue a paz entre o branco, o negro, o vermelho e o amarelo e lute contra a discriminação esse é o seu destino, vamos lá meu irmão...142 Este tipo de referência, presente em outras gravações, permite mensurar a relevância da produção local da música Reggae à construção de novos sentidos de pertencimento negro e repostas à desigualdade sócio-racial. Ésta manifestação esteve presente em outros materiais como o exemplo que será tratado a seguir: o informativo “Folha do Reggae”. Queimando tudo com a Folha do Reggae Completando esse quadro, a mobilização político-cultural em torno da divulgação música Reggae também foi registrada em fontes como o informativo Folha do Reggae publicado em Salvador no verão de 1997. Ainda que publicado em apenas três edições, os exemplares do jornal são uma fonte de extrema importância, pois apresentam uma agenda movimentada de eventos, lançamentos de discos, informações sobre a presença dos blocos de Reggae e Samba-Reggae no Carnaval (representados em blocos tais como Resistência Ativa, Ska Reggae, Amantes do Reggae e muzenza do Reggae de Salvador) além de entrevistas com músicos como Nengo Vieira e Edson Gomes e Sine Calmon. No expediente do jornal entre editores e colabores, personagens da miltância negra na Bahia com Raimundo Bujão, Samuel Vida, Antonio Godi, índio do Olodum e outros. Além de artigos acadêmicos sobre música Rasta-Reggae e pertencimento negro, 142 França, Jorge. Canção “identidade”. Banda The Sheriff, disco: Velha Raiz, 2003 127 era publicado em cada edição a tradução para o português de canções de Bob Marley, que contavam com a colaboração do Historiador João José Reis.143 Entre as matérias destaca-se a que trata da presença dos blocos de Reggae no Carnaval (intitulada no periódico de “arrasta-reggae”) ocupando espaços outrora negados no circuito da festa momesca, bem como trazendo para o enfrentamento, questões de cunho étnico-identitário. É importante destacar que o Reggae chegava naquele contexto instaurando um contraponto aos blocos de trio (da chamada axé music) no que diz respeito à manifestações de racismo no interior do evento público, como informa o Folha do Reggae , a partir de entrevista com Rosiel Santana, diretor do Muzenza: “O muzenza resgatou neste carnaval o direito de sair na rua durante o dia, chegando no domingo e terça às 16:00 h na avenida... Para Rosiel Santana, a importância do reggae é muito grande no carnaval, pois o ritmo é tocado até pelos blocos de trio resgatando a auto estima do povo afro-baiano. Segundo ele, a partir do momento que se mostra o que se tem de bom, a sociedade deixa de resistir e passa a acreditar, “o que era coisa de preto se transforma em algo valorizado pela sociedade”. (...) Rosiel acha que existe um cansaço com relação axé music promovida pela falta de qualidade das músicas dos blocos de trio que, com raras exceções, engloba conotações racistas, como na música da banda Tiete Vips que diz: “a ti b aba, a ti be be, nego nagô fede mais do que sariguê” No entanto o Reggae não vem pra competir mas para ocupar seu espaço no carnaval de Salvador como forma de manifestação qualitativa do povo negro...” Em linhas Gerais, pode-se considerar que a Folha do Reggae se propunha como um veículo da mídia impressa alternativa com ênfase: na divulgação do cenário artístico-musical do Reggae produzido dentro e fora da Bahia; na denúncia dos casos de racismo e outras formas de segregação na sociedade que atingiam mais diretamente os negr@s144. Como um manifesto político-cultural e étnico-identitário com atenção às mobilizações do movimento negro baiano e outros campos dos movimentos sociais o 143 Fui informado que no início dos anos 80 foi produzido um pequeno livro contendo traduções (inglêsprotuguês) das canções de Bob Marley e outros artistas afro-jamaicanos produzidas pelo professor em parceria de Antonio Godi, responsável pelas ilustrações. 144 Como exemplo a matéria “Demissões na prefeitura: o negão dança mais uma vez” que denunciava os cortes de vagas de trabalho anunciados em 1997 pelo então prefeito de Salvador. Jornal Folha do Reggae, Salvador, 1997, p. 3 128 informativo dialogava com a valorização da estética e cultura negras mediadas pela música. A existência desta fonte evidencia que a cristalização da música Reggae no cenário sócio-cultural da Bahia não se deu sem enfrentamentos e toda sorte formas de repressão e retaliação. Curiosamente, é no verão do Reggae baiano que se levantam, de um lado artistas, profissionais liberais, pequenos empresários145 e de outro segmentos da justiça e outros órgãos do Estado num enfrentamento simbólico e muitas vezes judicial que envolveu casos polêmicos como o ocorrido com o Músico e compositor Sine Calmon e a Banda Morrão Fumegante, noticiado por inúmeros veículos da imprensa baiana e nacional e pelo informativo e foco. A primeira edição do Jornal traz uma matéria sobre a controvérsia iniciada em 1996 pelo Delegado Itamir Casal da Delegacia de Tóxicos e intorpecentes e fomentada pela Juíza Dayse Lago da 1º vara privativa de Tóxicos que condenou Sine Calmon a cumprir pena em regime fechado por suposta apologia e uso de drogas, uma vez que, no entendimento dos ditos defensores da “lei” o próprio nome da banda (Morrão Fumegante) fazia alusão ao “baseado”146. Na versão do líder da Banda a expressão foi inspirada nas escrituras bíblicas – não nos esqueçamos da ligação deste com os Remanescentes nos anos 80, já comentado anteriormente – no Livro de Mateus, Capítulo 12: “Não esmagará a cana quebrada, nem apagará o morrão que fumega até que se triunfe o Juízo”147 A rigor, o sentido da nomenclatura em questão despertava para uma série de posições subversivas que, de certo modo afrontavam o poder local e reconfigurava as relações de poder e segregação sob as quais se assentavam as desigualdades na Bahia, em como o exemplo de Salvador. Osmundo Pinho(1997) percebeu este caráter contestatório implícito na questão ao analisar os espaços de lazer e consumo de música no Pelourinho, a exemplo do Bar do Reggae. Faço minhas suas considerações de que os 145 Só para citar, o periódico contava com apoio de pequenas e médias empresas do comércio, a exemplo do Hotel Pelourinho, em Salvador – onde se realizavam muitas apresentações de Reggae nos anos 80-90 – Loja Wave Beach – que comercializa produtos e roupas para a prática do surf, o que assinala uma parcela importante do público regueiro da cidade, os surfistas (ver Santos, 2001) – Grão de Arroz, restaurante macrobiótico e outros. 146 Denominação popular para designar o cigarro de maconha. 147 Seguramente, por força destes episódios, esta passagem está inscrita na capa do CD Fogo na Babilônia de Sine Calmon e Morrão Fumegante (Atração Musical, 1997) 129 gritos de “Fogo na babilônia”, o consumo de Ganja, bem como a proliferação destes espaços ligados ao Reggae se configuravam também como territórios de contestação anti-racista, anti-repressão e anti-moralista, fundando uma alternativa que, pelo desapego à ordem e apoio de uma parcela de jovens (inclusive não-negros e de classe média) incomodava alguns segmentos mais conservadores de nossa sociedade.148 Paradoxalmente a ação destes magistrados surtia efeito reverso contribuindo para a divulgação e maior popularidade do artista. É preciso destacar os sucessivos episódios envolvendo a polícia e o artista baiano, acabaram por envolver inúmeros agentes da militância negra na cidade, o que seguramente também contribuiu para a popularização de seu trabalho. De todo modo, a abordagem coercitiva destes agentes é ponto corrente na História do Reggae e foi frequentemente pontuado em um conjunto de canções que serão comentadas a seguir “Porrada de polícia” “Todo camburão tem um pouco de Navio Negreiro” (O Rappa, 1994) As manifestações de racismo e outras desigualdades sociais associadas à violência policial é um dos temas frequentemente encontrados no universo de canções do Reggae baiano, sobretudo a partir de 1988, contexto de franco acirramento dos movimentos negros urbanos na sociedade brasileira (prol e contra o centenário da abolição e, para além deste), ocasião de amargas crises econômicas e políticas no cenário nacional, como assinalam as intensas mobilizações sociais do período. Wacquant (s/d) tem sugerido haver uma relação entre o aumento da repressão policial em conformidade com a crescente presença da afirmação dos movimentos sociais negros e suas estratégias poítico-culturais, no contexto dos EUA. Não acredito que seja possível concluir que este fenômeno se evidencie em salvador e outras cidades da Bahia por força das mesmas razões. Entretanto, partindo das evidências observadas a partir da 148 Ver mais em PINHO, Osmundo de A. “The Songs of Freedom: notas etnográficas sobre cultura negra global e práticas contraculturais locais” In: SANSONE, Lívio/TELES, Jocelio(orgs.)., 1997 (obra citada.) 130 análise dos registros muisicais em foco, sugiro que há pelo menos um indício a ser seguido. Na Bahia, Alguns episódios de discriminação envolvendo músicos, produtores e em muitos casos o regueiro em geral também foram pauta das falas dos entrevistados o que evidencia a tensão em torno da afirmação e cristalização do Reggae como estilo de vida, subcultura. Tentando compreender os muitos “perfis” do regueiro soteropolitano, Marcos R. Santos destaca que a experiência (profundamente desagradável, leia-se) de passar pelo baculejo, o que, segundo o autor é interpretado pelos sujeitos como uma “encenação de sua condição de excluído, de marginal, de oprimido pela Babilônia”. 149 Outras leituras musicais reforçaram esta impressão evidenciando uma postura de afirmação de uma identidade que se afirma numa dinâmica de alteridade. Gravações numerosas registraram situações de repressão direta e indireta, bem como a marginalização ostensiva deste ‘aparelho’ de estado incidindo sobre a cena sóciocultural em que a musicalidade Reggae se inseria como contracultura musical alternativa. Edson Gomes é o autor com um número maior de canções registradas, fato que se explica por ser este o músico com maior número de discos gravados. Analisando sua obra musical, evidencio alguns exemplos que servem para ilustrar, com efeito, as presentes reflexões. O disco Campo de Batalha (EMI-ODEON, 1992) é um exemplo sugestivo desta leitura crítica. O título da obra já sugere uma interpretação das relações sociais a partir de um conjunto de tensões em que se inscrevem as “posições dos sujeitos”, como sugeria análogamente Foucault. A faixa de abertura, a canção “criminalidade” inaugura o disco ao som de uma sirene policial que demarca nitidamente o tom de denúncia. A letra da canção destaca a criminalidade como situação de violência urbana provocada por um conjunto de fatores dentre os quais se insere a “falta de segurança” e a atuação do aparelho policial em conformidade com este quadro: CRIMINALIDADE (Edon Gomes, 1992) É tanta violência na cidade Brother tanta criminalidade As pessoas se trancam em suas casa Pois não há segurança nas vias públicas 149 baculejo é abordagem-revista indisfarcavelmente preconceituosa da polícia. Santos, 2001, p. 78. 131 E nem mesmo a polícia pode impedir Às vezes a polícia entra no jogo A gente precisa de um super-homem Jah Jah Jah Que faça a mudança imediata Jah Jah Jah Pois nem mesmo a polícia pode destruir Certas manobras organizadas Ah ah ah É tanta violência na cidade Brother tanta criminalidade A lua não é mais dos namorados Os velhos não curtem mais as praças E quem se aventura Pode ser a última E quem se habilita Pode ser o fim A gente precisa de um super-homem Jah Jah Jah Que faça a mudança imediata Jah Jah Jah Pois nem mesmo a polícia pode destruir Certas manobras organizadas Não, tudo um dia vai passar Sei que tudo um dia vai mudar Seguramente por ser um dos músicos de Reggae de maior visibilidade no Brasil, Edson Gomes foi alvo da abordagem policial em situações diversas. Em entrevista concedida em 2006 para uma revista virtual, o músico relata dois episódios de constrangimento ocorridos nos anos 90: No CD [Apocalipse] abordei na música Fogo na Babilônia, uma situação que ocorreu comigo. Em 1997 a policia civil forjou um mandato de busca e 132 apreensão. Invadiram minha casa em busca de droga e me mobilizaram e reviraram a casa em busca de drogas. Outra situação que aconteceu foi quando eu e meu irmão Bráu fomos a uma imobiliária alugar um apartamento. Então quando saímos com o cara da imobiliária. No caminho fomos parados pela polícia armados de metralhadoras e mandaram descer do carro alegando estarem procurando um carro roubado que parecia com o que estávamos. A canção-denúncia citada além de evidenciar estas informações reflete uma posição discursiva onde o autor-sujeito se coloca como crítico destas relações e desigualdade. Ainda no álbum Apocalipse Gomes gravou “Camelô”, uma das canções de trabalho150 que teve ampla repercussão na imprensa e outros espaços de divulgação. A canção aborda a violência dos órgãos públicos contra os trabalhadores do mercado informal em meados dos anos 90 mais de 54% da população economicamente ativa de Salvador151: CAMELÔ (Edson Gomes, 1997) Sou camelô Sou do mercado informal Com minha guia sou Profissional Sou bom rapaz Só não tenho tradição Em contrapartida sou de boa família Olha doutor Podemos rever a situação Pare a polícia Ela não é a solução não Não sou ninguém Nem tenho pra quem apelar Só tenho meu bem 150 Faixa do disco selecionada pelo produtor(em geral) e/ou músicista(s) para divulgação do disco. Em geral é a faixa que deve ser incentivada nas rádios e outros meios de comunicação como portifólio do disco lançado. 151 Sobre este tema ver a publicação organizada pelo Sindicato dos Bancários: GOMES, Álvaro (org.). O trabalho no século XXI: Considerações para o futuro do trabalho. São Paulo: Ed. Anita Garibaldi; Bahia: Sindicato dos Bancários da Bahia, 2001; 133 Que também Não é ninguém Quando a polícia cai em cima de mim Até parece que sou fera Até parece... Naquele contexto, a gestão municipal do então prefeito Antônio Imbassahy, representante da extrema direita baiana, promovia mais um projeto modernizante para a cidade a partir d uma política de “limpeza” do centro urbano de Salvador. Além das demissões em massa152 em nome do “enxugamento” da máquina administrativa, a prefeitura intensificou os chamados “Rapas”, mutirões fiscais encarregados pela manutenção do espaço urbano que, sob esta alegação, retiravam (com o uso da força) centenas de trabalhadores autônomos da cidade, momento que foi devidamente retratado pelo músico. A canção neste contexto é uma fala situada, e como tal, se revela como contradiscurso à ordem hegemônica. Esta abordagem tem sido marca inconfundível do trabalho de Edson Gomes ao longo de mais de 20 anos. Em muitas outras canções o autor-intérprete tematiza a violência policial de maneira contundente, o suficiente para lhe ter causado alguns episódios assaz desagradáveis, como citado acima. Parece sintomático que este período em especial guarde um número considerável que canções que abordem este problema haja vista o contexto de cristalização do Reggae como estilo étnico-estético-musical redefinindo o panorama das identidades sociais neste fim de século XX. Atesta, ao meu ver, o confronto em torno da apropriação da música reggae (e sua bagagem cultural) pelos segmentos marginalizados na sociedade baiana encorajados por estes novos ritmos e, de outro lado, os representantes de uma “velha ordem” social que identificava nestas manifestações uma certa ameaça ao status quo. Em outras palavras o conjunto de canções registradas ao longo dos anos 90 são emblemáticas das contradições que giravam em torno da afirmação do Reggae no cenário sócio-cultural baiano. Não a toa este foi tema da segunda faixa do primeiro disco Dionorina de 1994 (o LP música das ruas). A canção “porrada de polícia” é uma referência emblemática da percepção do artista sobre o problema: 152 O Jornal Folha do Reggae publica breve matéria sobre as medidas autoritárias da Prefeitura Municipalem 1997. 134 PORRADA DE POLÍCIA (Dionorina/Jorge Magalhães, 1994) É no fundo da fome Que a boca lambe a mesa farta de pavor É na fome e na dor Como porrada de polícia Quem mora no morro Tristes projetos de vida Se corre pro osso É presunto na pista Se fica é pirão pra polícia Ninguém quer polícia pra ordenar a fila Representantes armados do sistema É no fundo da fome Que a boca lambe a mesa farta de pavor É na fome e na dor Como porrada de polícia Não dá pra chorar Quando mais forte é o desejo de comer Guerreiros da redenção da raça humana Detenham o trem da babilônia Porque não param o trem Da babilônia O apelo-denúnciia à violência policial é ponto alvo desta canção. Cabe registrar que o termo violência deve ser compreendido de maneira ampla, para além da moléstia física, como qualquer manifestação de arbitrariedade do corpo policial diante da sociedade em geral. Relaciona ainda, a crescente violência policial à miséria e outras mazelas velhas conhecidas de nosso país. Posição semelhante, e muito mais explícita foi registrada por outros artistas dentre os quais cabe o exemplo do Reggaeman Feirense Jorge de Angélica que em seu primeiro disco gravado em 1998 (Sopa de Papelão) traz uma 135 análise pontua sobre o problema na canção “Gangue”, é uma análise pontual do problema: GUANGUE Jorge de Angélica, 1998) Guangue perseguindo Guangue... Morros e favelas Pega fogo, corre sangue Com essa briga de guangue Guangue perseguindo Guangue... Inocentes não tem nada a ver É quem vai pagar É quem vai morrer Com essa briga de guangue Guangue perseguindo Guangue... Confrontos Em que se confundem Pessoas de bem Honesta e trabalhadora Lhe dão tiro de 12 PT e metralhadora Comentem muita injustiça Tantos fora da lei Como a própria polícia quanta ignorância os miseráveis matam as mulheres também matam as crianças é guangue de marginais guangue de policiais pois eles armados são todos, são todos todos iguais 136 e a gente nunca sabe quem mata mais são balas perdidas Guangue perseguindo Guangue Guangue perseguindo Guangue... A violência no interior dos bairros periféricos nos centros urbanos do Brasil é uma infeliz realidade. Não tem sido diferente na cidade de Feira de Santana, onde vive o artista e de onde tirou inspiração para as questões identificadas na canção. Em sua análise, a polícia é comparada às quadrilhas de criminosos que sitiam os bairros periféricos da cidade e, deste modo, co-responsável pelos altíssimos índices de mortalidade que atingem esta parcela da população urbana. Esta posição redeu ao músico inúmeros casos de perseguição conforme o próprio informou em sua entrevista: Tivemos muitos problemas com a polícia. O pessoal do Reggae era oprimido. Quando eu fiz a música Gangue perseguindo Gangue fui abordado por uma patrulha de polícia no dia do show que queria que Jorge de Angélica descesse do palco pra me espancar, me fazer covardia. Naquele dia Deus providenciou anjos em forma de Sargento, de cabo que chamou a patrulha... Pra ir embora do show a viatura teve que dar uma certa cobertura até próximo de casa. O sargento Valdir chamou “eles” e explicou [ação que] abrandou os ânimos e modificou o raciocínio dos policiais. Este episódio demonstra que o enfrentamento com a polícia, se dava a partir de uma dinâmica própria de relativa negociação e conflito. O Sargento Valdir citado foi, segundo Jorge de Angélica um dos primeiros colecionadores de discos de Reggae na cidade e co-fundador do fã clube Marcus Garvey, sediado no bairro da mangabeira. Ainda segundo o músico, o referido policial contribuiu, ainda que de maneira indireta para amenizar a perseguição aos “homens rastas” da cidade, alvo de rotineiras abordagens públicas. Obviamente este dado não está dissociado da maior popularização da música Reggae nos centros urbanos da Bahia. Em suma, estas e outras vivências registradas e problematizadas nas faixas dos discos de Reggae ora analisado faz refletir sobre a importância do Reggae como 137 discurso étnico-identitário de denúncia às manifestações de racismo e outras formas de violência. “De Jesus à Jah...” (Interlude) Uma audição das fontes tem revelado a necessidade de compreender, de maneira mais aprofundada, a relação entre Religiosidade e produção musical no contexto em foco, uma vez que a experiência religiosa se nos apresenta de maneira bastante singular nas canções, e mesmo declarações públicas dos artistas. É fundamental considerar que não me proponho, pelo menos por hora, a analisar densamente os caminhos dessa relação mas, apontar, a título de reconhecimento os campos religiosos se apresentam nos materiais analisados. Pensar a religião nesse contexto implica correr os riscos apontados no ao estudo de Marco Davi Oliveira (2004) sobre a participação dos negros no universo religioso pentecostal brasileiro. Segundo o autor, a enorme presença quantitativamente negra entre os adeptos destas religiosidades tem-se convertido num fenômeno merece maiores estudos. Curiosamente na Bahia, parte considerável dos músicos e maior projeção (comercial) da música Reggae são pentecostais ou tem alguma ligação com este campo religioso. A rigor, esta relação já faz parte da história social do Reggae desde suas origens jamaicanas. A trajetória da música Reggae está desse modo, indissociada dos caminhos da filosofia Rastafari. A história moderna da Jamaica tem entre suas páginas a presença dos movimentos panafricanistas como uma das influências mais marcantes no universo político e cultural da Ilha. De certo modo, a divulgação da música Reggae no mundo proliferou a cultura Rasta pelos continentes. Através cultura Rasta, por sua vez a música Reggae tornou-se um das principais trilhas sonoras do Atlântico Negro, definindo o perfil de parcela considerável dos grupos sociais em centros urbanos de países do chamado primeiro mundo, a exemplo de Londres, na Inglaterra (Sansone, 1988). Na Bahia, se a música Reggae foi um dos mais emblemáticos elementos articuladores de “estilos de vida diferenciados”, a presença da ideologia rastafári também resultou em “uma gama de versões”, como sugeriu Cunha (1993). Em seu estudo realizado no início dos anos 90, Cunha já observava que a influência da música 138 afro-jamaicana havia alterado profundamente o as formas de identificação étnica, de modo que o uso do termo “Rasta” havia sido incorporado como auto-inscrição de negritude e anti-racismo de cunho político ora laico, ora religioso. Este tipo de impressão ficou em muitas gravações do período. Em 1990 quando do lançamento do álbum Recôncavo, o cantor e compositor Edson Gomes se posicionava nessa perspectiva, com a canção “Adultério”: ADULTÉRIO (Edson Gomes, 1990) Rastafary Se desligando desse sistema E da coisa imunda que nos envenena E que adultera a nossa sina Rastafary Cantando Reggae em cada esquina A coisa linda que nos alucina E que faz ficar tão boa a vida Eles querendo mudar nossa sina Nos injetando a inconsciência Dizendo que é a democracia Grande piada conto de fada (Rastafary) Disso sabemos (Rastafary) Por isso vivemos A violência em toda cidade Ninguém jamais viu a liberdade A repressão em toda cidade Ninguém jamais viu a liberdade O termo Rastafary é encarado, neste caso, como sinônimo de auto-identificação étnica e política não necessariamente ligada a um conteúdo religioso. De todo modo, a existência de espaços alternativos como a “legião Rastafari” - uma primeira tentativa de aglutinar interessados pelo rastafarianismo e a música Reggae no bairro da liberdade – e posteriormente a busca por um contato maior com o conhecimento da Bíblia, trouxe expressões idiossincráticas de uma religiosidade híbrida. Nesta busca, muitos jovens 139 passam a freqüentar igrejas pentecostais de Salvador e vivenciam uma série de conflitos dada à postura (estética inclusive) diante do estudo da bíblia. Segundo Olívia G. da Cunha (1993) citando Burdick (1989), trata-se de “ambivalências e contradições de uma aparente igualdade racial”. Mesmo inseridos em igrejas - como a Igreja pentecostal Jesus Nazareno - a convivência destes jovens foi sempre marcada por episódios de discriminação. Entre os exemplos, o caso do conjunto “Estado de alerta” que fazia parte do corpus da agremiação religiosa. Para muitos Jovens Rastas o acesso aos à música era frequentemente vetado, seja na formação da banda, seja na escolha dos repertórios. Ainda que o reggae fosse inserido como um dos “ritmos” no culto, a presença dos “regueiros” ao uso da palavra foi quase sempre restrita. Cunha (ibid.) aponta ainda que, entre muitos jovens Rastas de Salvador, a interpretação a cerca destes processos revelava um tipo característico de acetismo intramundano – para lembrar Weber (1905) - que encarava a igreja como “extensão do Mundão”, logo, de seus vícios e contradições. Para além da experiência da “Legião” é possível destacar ao longo dos anos 90 alguns exemplos desta concepção particular de rastafarianismo-pentecostalismo registrados na produção fonográfica. É importante notar que há uma distinção central entre esta vivência religiosa do rasta “convertido”, ou cristãos, e os chamados “crentes”: ao defender o princípio da salvação pela fé – que remonta à gênese dos movimentos reformistas na Europa do século XVI – num contexto onde o conflito religioso perpassa a dimensão racial, emerge uma nova identidade étnico-religiosa que rejeita a submissão ao pastor e as regras das igrejas em detrimento da busca estrita pela ligação espiritual através do conhecimento bíblico e do culto à palavra. É o que se apresenta no disco de Ras Ciro Lima (Hailé Sellasiê I , grav.: independente, 2001). Os componentes gráficos do álbum, gravado em CD, remontam à iconografia judaico-cristã que serve de referencial simbólico para o rastafarianismo. Este material é um registro interessante para ilustrar o conjunto de trabalhos ligados à filosofia Rastafari produzidos na Bahia. Entre as canções, pode-se destacar a faixa “Naum Jah”: NAUM JAH (Ras ciro Lima) Naum JAH O Senhor nos consolou 140 Naum JAH Na batida do Tambor Foi o sangue de Jesús Que lavou o meu tambor Meu coração ele é um tambor Que está batendo I É um louvor De Jesus à Jah Rastafari I Foi o Sangue de Jesús Que lavou o meu tambor Esta canção ilustra bem a aproximação entre o universo cristão-pentecostal e a matriz panafricana do rastafarianismo. Com efeito, a alusão à figura de “Jesus” não se opõe à referência à “Jah”, representação maior do sionismo negro, mas, se locupletam como partes de uma mesma cosmovisão. A sonoridade tipicamente inspirada nos Burru Drums153 jamaicanos sugerem a peculiar experiência de um rastafarianismo tenazmente local. Em outros casos, vê-se com maior expressividade uma musicalidade fundamentalmente cristã, a exemplo dos trabalhos de Nengo vieira. Este que é um dos fundadores dos “Remanescentes” de Cachoeira e um dos e arranjadores e/ou compositores dos principais trabalhos de Edson Gomes e Sine Calmon, revela em seu trabalho uma vertente fundamentelmente cristã.154 Atualmente, Vieira é uma das lideranças religiosas da igreja Bola de Neve Church, de onde gravou ao vivo seu mais recente trabalho “Avivamente”155 Em linhas gerais, pode-se considerar que há muito para ser investigado, no que diz respeito às relações e tensões envolvendo a temática das religiões e a produção da música Reggae na Bahia. Utilizo estes poucos exemplos para sugerir que este é um caminho profícuo para análises futuras. 153 Tambores utilizados originalmente nas celebrações Rastafari. O tambor grave é o solista, enquanto os demais são responsáveis pelo ciclo intermitente da batida que identifica a musicalidade Rasta. 154 No anexo digital ouvir a faixa “somos libertos” do álbum homônimo 155 Selo Bola de Neve, 2006. 141 142 143 144 FAIXA 5 (Dub Version) : “QUEM NÃO GOSTA DE REGGAE, BOM SUJEITO NÃO É...” Manifestando e contaminando pelos fones nunca surdos microfones nunca mudos através das entidades sampleadas que dançam o absurdo do canteiro da gláxia nervosa falando para o ouvido do mundo: plugue-se, ligue-se vá longe... longe. (trecho de“Voyager” Nação Zumbi (futura), 2005) Vamos amigo, lute. senão a gente acaba perdendo o que já conquistou (Trecho da canção “lili” de Edson Gomes, 1990) 145 Se a musica é repleta de sentidos que remetem ao contexto em que foi produzida, sua reverberação também potencializa novas formas de leitura e apropriação. O debate que se propôs nesta dissertação foi uma tentativa de compreender algumas dimensões destas questões: mais especialmente a construção/legitimação das identidades negras mediadas pela música. Ao analisarmos a presença e fruição de culturas afro-musicais transnacionais como o Reggae, deparamo-nos com uma série de releituras que atualizam os sentidos estéticos, étnicos e políticos ou mesmo os distorcem. Obviamente, os caminhos e as lacunas apontadas por este estudo evidenciam seu caráter não conclusivo, além de sugerir o quão bem vindas e necessárias são as novas contribuições sobre esta área das reflexões sobre a música negra. Esta situação remete analogamente à apreciação de uma obra fonográfica, quando da audição de sua da ultima faixa. Com é sabido, a faixa de despedida não implica pôr fim à viagem sinestésica que a música proporciona. Curiosamente, estas faixas têm sido utilizadas em muitos discos (inclusive os de Reggae), para uma releitura da própria obra ou parte dela, em um novo arranjo onde se (re) aproveitam fragmentos, e mesmo sonoridades dispersas, numa edição não-linear dos sons, além de sugerir novas questões. Esta faixa-capítulo se propõe nesta direção. Não Trato aqui de uma consideração finaldefinitiva sobre a temática, mesmo porque isso seria impossível. Apresento, no entanto, algumas sugestões e futuros caminhos por onde, acredito, seja possível percorrer nos estudos sobre as memórias sonoras negr@s na Bahia, em particular à música Reggae. Há, interligado ao surgimento desta musicalidade afro-jamaicana, outras expressões que ganharam destaque na produção musical das últimas décadas, ainda que se desconheça a validade destas. Refiro-me a uma filosofia musical criada por músicoprodutores jamaicanos como King Tubby, Augustus Pablo, e Lee “scratch” Perry com recursos tecnológicos ainda precários à altura dos anos 60: o Dub. Para além de novas técnicas de gravação e edição, e mesmo reprodução ao vivo, o Dub é uma interface mais psicodélica da Música Reggae, Reconhecido pela presença irrevogável do baixo aliado ao ritmo da bateria - quase sempre “temperada” com efeitos de eco e reverb – e pelas sinuosas e mântricas frases dos instrumentos harmônicos. Aparentemente, trata-se da repetição linear de pequenas melodias, mas, observando com cuidado percebe-se estar diante de uma montagem/edição de sons em que o engenheiro de som ganha liberdade no processo de criação. É portanto uma nova forma de conceber a música onde os 146 elementos sonoros podem ser combinados de muitas formas diferentes sem que haja, portanto uma relação estrita com a versão original.156 Em um ensaio jornalístico publicado em 2003, Hermano Vianna analisa a importância do Dub na produção contemporânea da música, defnindo-o como um procedimento filosófico, ou seja, mais que um estilo ou forma musical, um “modo de agenciamento de formas”, citando Jean Laude. Na análise de Vianna (2003): ...Segundo Laude, o que interessava a Picasso na “arte negra” não era o exotismo ou o primitivismo, mas sim a maneira mais-que-moderna que as máscaras e as estatuetas africanas propunham para pensar o mundo visual, onde a combinação, as redes de sentido e a “montagem” têm mais importância que a organização via linearidade da lei da perspectiva. Peço perdão por mais uma longa citação mas, não resisti reproduzi-la uma vez que entendo ser esta uma definição no mínimo coerente sobre a importância da produção musical jamaicana e sua propagação no terceiro mundo na segunda metade do Século XX, alterando a geopolítica da cultura. Mais que isso, sugere uma leitura da história da arte que situa a inventividade da arte africana, e dos seus descendentes na Diáspora, como paradigma alternativo à modernidade. Identifico-me ainda com a percepção do(s) autor (es) quanto à importância do músico como artesão dos conceitos e sujeito proeminente nas novas sociabilidades produzidas, dentre outras questões, pela relação como o universo da música. Para Vianna, os produtores do Dub são Filósofos, no sentido sugerido por Deleuze e Guatarri: sintetizadores de pensamentos (ibid.). Não pretendo me alongar nesse debate apesar de achar frutífero que novos trabalhos sobre a temática que hora me dedico levem em conta esta interface. Na última década esta é uma das influências marcantes entre muitos dos registros do Reggae gravado na Bahia. De certo modo, a música brasileira recente, tem forte infuência desta “filosofia dub” ou “cultura do Baixo” (no sentido sugerido por Linthon Kwesi Johnson em seu álbum Bass Culture), como insinua a crescente onda do Rap no Brasil que já duram mais de 20 anos. Em salvador, mais recentemente, há um incipiente e produtivo cenário inspirado nos clássicos do Dub, protagonizado por bandas como Ministério Público, Dubstereo que merecem atenção das lentes das ciências Humanas. 156 Ver alguns exemplos (Anexo digital, faixa 5) : Augustus Pablo (as canções “East of River Nile” gravadas em três versões por no álbum homônimo), King Tubby (as canções “King Tubby’s Dub” e “Turnable Dub”, gravadas no álbum Bring the dub come), 147 È central que levemos em consideração que há uma dimensão sensorial fundamental na música Reggae que também merece ser analisada com maiores detalhes nos estudos posteriores. Para José J. de Carvalho (1999), cabe aos estudos musicológicos inserir a interpretação das mudanças na percepção do ouvinte à gama de questões que tornam possível compreender a produção e circulação da música popular no contexto paradoxal da globalização. Segundo o autor, este quesito, remonta diretamente às transformações nos processos de gravação e na relação dos músicos com o produto final. Para Carvalho (1999) o princípio geral do equilíbrio sonoro definido pelos produtores e empresários das gravadoras, remonta ao famoso “Panopticum” de Bentham, discutido por Foucault, onde o músico, em Geral esta alijado do produto final, inclusive no que tange aos benefícios financeiros de seu trabalho. Tem se produzido um senso “padronizado” do fazer musical, seja pela duração da canção – que deve se adequar às regras do mercado fonográfico ou do tempo (exíguo) do rádio – seja pelas concepções das diferentes sonoridades. Ao meu ver, a presença da música Reggae no mercado fonográfico mundial, e mais especificamente na Bahia, minimamente instabilizou estas relações trazendo uma nova sensibilidade que opera como recurso político e filosófico e se apresenta em novas metafísicas do corpo. Seguramente, esta dimensão da sensibilidade musical é um dos elementos que explica o conhecido estado de êxtase em que se envolve o público dos shows de Reggae – entre os quais os inúmeros a que assisti neste intervalo de pouco mais de 02 anos em Salvador e Feira de Santana. Acho um reducionismo gritante (para não falar no preconceito) atribuir restritamente ao consumo de Cannabis, esta relação. Para muitos ouvintes de Reggae a “batida” – que entendo como interação ritmo-melodia – é um dos elementos mais significativos de identificação com o Reggae. Voltando à história do Reggae, fica muito nítido que a produção de novas sensibilidades sempre foi um tema presente na concepção dos músicos. A citação de Aston “Family Man” Barret sob o significado da música Reggae parece sugerir um sentido mais político, ainda que nas entrelinhas, que meramente se apresenta157 Em sua entrevista à esta pesquisa o produtor e radialista Clóvis Rabelo destaca, entre as experiências difíceis no processo de gravação do álbum Reggae’essência de Geraldo Cristal, a resistência dos técnicos de gravação em valorizar as freqüências 157 “a música Reggae é o batimento cardíaco do povo. E tem uma coisa boa: quando ela bate você não sente dor”. In Catch a fire, 1999(Vídeo). Obra citada. 148 graves em detrimento de um modelo de equalização mais aceito pelo mercado. Nos contou Clóvis Rabelo: -Teve técnico que disse: não bota meu nome aí no encarte. Desse jeito eu não assino a mixagem, por que senão eu posso me queimar”158 Entendo, portanto, que a questão da sensibilidade musical na produção musical da Reggae é mais uma das janelas deixadas por este trabalho para refexões mais apuradas no futuro. Analisando as fontes ficou evidente a relação entre o Reggae e as relações no mundo do trabalho e suas contradições. Entre o universo de temas versados pelas canções se inserem muitas leituras que situam a exploração, as sedições e metamorfoses das relações de trabalho no espaço urbano. É fundamental que se possa refletir melhor do que se fez aqui sobre as diferentes representações dos compositores e interpretes sobre as relações de trabalho e suas desigualdades. Há, entre as canções, discursos-posições críticos à babilônia (leia-se capitalismo contemporâneo) que não dissociam o fim da exploração de Classe da problemática em torno da superação do racismo na sociedade brasileira. Estas leituras são primordiais à compreensão tanto dos mecanismos de exclusão quanto acesso ao universo das relações de produção, bem como as estratégias de sobrevivência dos sujeitos. Como apontado em estudos como os de Silva (2001), o forte apelo político da musicalidade Reggae presente nas letras e toda sorte de símbolos de identificação acabam por interferir em outras identidades sociais como as identidades profissionais. Segundo Sansone (1988) as subculturas musicais vêm operando de maneira singular na formação dos comportamentos entre os grupos jovens nos centros urbanos de diversos países como Inglaterra e Brasil e alterando, inclusive, suas relações com o mundo do trabalho. Portanto, um olhar e ouvir mais interessado nestas questões pode render um estudo sugestivo. Outro caminho possível, diz respeito às relações de Gênero no universo da música e sua produção. O silêncio em torno da presença das mulheres na produção musical do Reggae baiano se constitui em uma lacuna por ser preenchida. Ainda que a profissão de músico tenha maior presença masculina, há que se perguntar sobre a atuação das mulheres. Em geral compondo as bandas como Backing Vocals ou atuando como produtoras culturais (como Jussara Santana e Cristiane Calmon) de algumas bandas a 158 Entrevista com Clóvis Rabelo, 149 presença feminina pode/deve ser alvo de um estudo mais detalhado. Entre a discografia analisada, o trabalho de Zavan Liv, o disco “Mil olhos”, é um registro sintomático de que esta temática pode ser produtivamente desenvolvida. Como foi apontado no capítulo 03 o enorme silêncio do mundo acadêmico diante dos movimentos sociais negros na cidade de Feira de Santana deve ser urgentemente quebrado. O diálogo com alguns/as de seus/suas protagonistas nestas últimas décadas, tem revelado inúmeras agitações sociais em combate à violência contra @s negr@s na cidade. Aliado a este dado cruel a farta documentação que se apresenta a partir dos jornais, além do acervo de História Oral sob tutela do CEDOC/UEFS, são motivos de sobra para referendar novas e mais ricas análises. Além disso, admito que muito sobre o reggae e seus sujeitos no contexto da cidade de cachoeira poderia ser abordado. Poupei energias sobre esta temática uma vez que o trabalho em curso de Bárbara Falcón neste programa de pós-graduação vem problematizando estas questões. Assim como esta temática, poderia também abordar com maior rigor a importância dos meios de comunicação, mais especialmente o rádio à afirmação da música Reggae no cenário sócio-cultural baiano. O trabalho de Clóvis Rabelo, Ray Company, Lino de Almeida e tantos outros foram e ainda são parte decisiva desta História. Guardo, portanto, minhas expectativas para as pesquisas de Antônio Godi (FACOM-UFBA), também em curso, sobre esta interface das novas sociabilidades mediadas pela música. Como foi apresentado aqui a discografia em torno da música Reggae é um forte enunciado da presença desta cultura musical no interior das relações sociais e suas contradições. Estou certo que, o estudo da relação identidade-música pode ser desenvolvido à luz que questões outras que não foram abordadas aqui. Não acredito que todo o sentido da música Reggae esteja restritamente vinculado ao universo das manifestações de anti-racismo e negritude. Minha preocupação no entanto é no gradativo esvaziamento da perspectiva do pertencimento negro que ao longo das últimas décadas edificou este e tantos outros estilos musicais. O ano de 2008 é ainda um momento sugestivo para se pensar sobre a história recente da música na Bahia, e como tal da música brasileira. Em artigo recente publicado no Jornal A Tarde, Antonio Godi comentou a falta de apoio das políticas públicas aos músicos e associações culturais ligadas à música Reggae em Salvador, no momento em que se comemoram 08 anos da aprovação do decreto municipal que transformou o 11 de 150 maio no dia do Reggae.159 Não nos esqueçamos que há 20 anos do lançamento de obras importantes como Reggae Resistência de Edson Gomes, ou Marley Vive da Banda Terceiro Mundo, bem como há 30 anos de fundação do Movimento Negro unificado, há muitas batalhas nessa “guerra cultural contemporânea” por serem travadas. Coincidências à parte, música Reggae continua definindo comportamentos, subjetividades, sonoridades e sem dúvida novas identidades. Foi seguramente embalado por estas influências que o compositor pernambucano Jorge Du Peixe lançou a provocação que intitula esta faixa-capítulo de considerações finais, à platéia de um show da Nação Zumbi neste ano em Salvador: “quem não gosta de Reggae, bom sujeito não é”. Faço minhas as palavras dele. 159 Decreto Municipal 5.817/2000. Ver Godi, A.J.V.S. “O Reggae ralando nos oito”. Jornal A tarde, maio de 2008. 151 ANEXO ANEXO I Discografia (por ordem cronológica) (1979/80 – 1987): 1. Gilberto Gil, Disco: Realce, Gravadora: Elektra, 1979. 2. Chico Evangelista & Jorge Alfredo, Disco: Bahia Jamaica, Gravadora: Copacabana, ano: 1980 3. Lazzo Matumbi, Disco (compacto): Salve a Jamaica, Grav.: Fermata, 1981 4. Gilberto Gil, Disco: Luar, Gravadora: WEA, 1981. 5. ________, Disco: Um Banda Um, Gravadora: WEA, 1982. 6. ________, Disco: Extra, Gravadora:WEA,1983. 7. ________, Disco: Raça Humana, Gravadora; WEA, 1984. 8. Lazzo. Disco: Viver, Sentir e Amar, Pointer Discos, 1983 9. ________, Filho da Terra - Pointer Discos, 1985 10. Luís Wagner. Disco: Ao vivo. Gravadora: Copacabada, 1986 11. Obina Shok. Disco: Obina Shok. Gravadora:RCA, 1986 (1988 – 1997): 12. Banda Terceiro Mundo, Disco: Marley Vive. Gravadora: EMI-Odeon, 1988 13. Celso Bahia, Disco: 2 Neguinhos, Gravadora: Continental, 1988. 14. Edson Gomes, Disco: Reggae Resistência, Gravadora: EMI-Odeon, 1988 15. ________,Disco: Recôncavo (identificado), Gravadora: EMI-Odeon, 1990 16. ________, Disco: Campo de Batalha, Gravadora: EMI-Odeon, 1992 17. ________, Disco: Resgate Fatal, Gravadora: EMI-Odeon, 1995 18. Gilberto Gil. Disco: O Eterno deus Mudança, Gravadora: WEA, 1989. 19. Lazzo. Disco: Atrás do Pôr do Sol. Gravadora: Nosso Som, 1988 20. Luís Wagner Disco: Conscientização, Copacabana, 1988 21. Muzenza, Disco: Muzenza do Reggae. Continental, Ed. Latino, 1988. 22. ________, Disco: Som Luxuoso. Continental, Ed. Latino, 1988. 23. Paul Simon, Disco: The Rhythm of The Saints, Gravadora: WBR, Editora: WBR, ano: 1990. 24. Dionorina, Disco: Música das Ruas, Gravadora: Stalo Discos-BA,1994 25. ________, Disco: SACASÓ, Gravadora: Zero Bala-BA, 1998 26. Paulinho Ganaê. Disco: Independência em Mente. Independente, 1997 27. Reggae Vibrações, Disco: Reggae Vibrações - Vários artistas, Kansas, 1991. 152 28. Renato Matos e banda Acarajazz. Disco: Reggadô. Mel/disoteca 2001, 1993 29. Sine Calmon e Banda Morrão Fumegante, Disco: Fogo na Babilônia. Gravadora: Atração Musical, 1997 (1998 – 2003): 30. Adão Negro, Disco: Adão Negro, 1998 31. ________, Disco: Só Diretoria, Gravadora: independente, 1999 32. ________, Disco: Vence Tudo: Gravadora: Atração Musical, 2003 33. ________, Disco: Vence Tudo Ao Vivo. Gravadora: Atração Musical, 2005 34. Diamba, Disco: Ninguém está a salvo, gravadora:independene, 2000? 35. Edson Gomes, Disco: Apocalipse, Gravadora: EMI-Odeon, 1998 36. Geraldo Cristal, Disco: Reggaessência, Gravadora: Independente, 2002 37. Gilberto Gil, Disco: Kaya N’ Gan Daya Gravadora: WEA, 2002. 38. Gilsam e Banda Airiyê, Disco: Reggae para Todos. Independente, 2002 39. Jorge de Angélica, Disco: Sopa de Papelão, Independente, 1998 40. ________, Disco: Confiança em Deus. Independente, 2002 41. Kamaphew Tawá e Aspiral do Reggae, Disco: Fonte do Saber. Independente, 1998. 42. Kebra Nagast. Disco: Desmistificação, Independente, ano: 43. Lazzo. Disco: Arte de viver, Gravadora: Eldorado, 1995 44. ________, Disco: Nada de Graça, LZZ, 1998 45. ________, Disco: Lazzo Matumbi 25 Anos ao Vivo, 2005 46. Nengo Vieira e tribo D’Abraão, Disco: Somos Libertos, atração Fonográfica, 1998 47. ________, Disco: Mata Atlântica, Idependente, 2003 48. ________, Disco: Chama, independente, 2006 49. Nilton Abisay e Banda Zorat, Disco: um dia pra sorrir, Gravadora: Independente, ano: 50. Ras Ciro Lima. Disco: Haile Selassiê I. Independente, 2001. 51. Sine Calmon e Banda Morrão Fumegante. Disco: Rosa de Saron. Gravadora: Atração Musical, 1999 52. ________,Disco: Eu vejo. Gravadora: Atração Musical, 2000 53. The Sheriff. Disco: Velha Raiz, figura 8 studio(independente), 2004. 54. Tin Tim Gomes. Pedra sobre Pedras. Independente, 1999. 55. Ubaldo Warú, Disco: Reggae Man. Gravadora: Musicart(independente), ano:? 56. Zavan Liv, Disco: Mil Olhos, Gravadora: Independente, 153 Sobre o CD anexo(digital): Acompanhando o formato impresso desta dissertação segue um CD contendo algumas das canções analisadas ao longo do texto. Para ouvi-las utilize um programa para reprodução de áudio do Windows, ou qualquer outro sistema operacional, com habilitação para arquivos no formato wave (.wav) ou extensão MP3 (.mp3) esta recomendação se extende aos aparelhos de som compatíveis para a leitura destes arquivos. O autor. 154 REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor W. “O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição”. In: Os Pensadores. 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Gravadora: Atração Musical, 2005 Banda Terceiro Mundo, Disco: Marley Vive. Gravadora: EMI-Odeon, 1988 Celso Bahia, Disco: 2 Neguinhos, Gravadora: Continental, 1988. Chico Evangelista & Jorge Alfredo, Disco: Bahia Jamaica, Gravadora: Copacabana, 1980 Diamba, Disco: Ninguém está a salvo, gravadora:independene, 2000? Dionorina, Disco: Música das Ruas, Gravadora: Stalo Discos-BA,1994 ________, Disco: Sacasó, Gravadora: Zero Bala-BA, 1998 Edson Gomes, Disco: Reggae Resistência, Gravadora: EMI-Odeon, 1988 ________, Disco: Recôncavo, Gravadora: EMI-Odeon, 1990 ________, Disco: Campo de Batalha, Gravadora: EMI-Odeon, 1992 ________, Disco: Resgate Fatal, Gravadora: EMI-Odeon, 1995 ________, Disco: Apocalipse, Gravadora: EMI-Odeon, 1998 ________, Meus Momentos 1. EMI Odeon, 1994. ________, Meus Momentos 2. EMI Odeon, 1994. ________, Série Identidade (Coletânea). EMI, 2002 Gilberto Gil. Disco: O Eterno deus Mudança, Gravadora: WEA, 1989. Gilberto ________, Disco: Realce, Gravadora: Elektra, 1979. ________, Disco: Luar, Gravadora: WEA, 1981. ________, Disco: Um Banda Um, Gravadora: WEA, 1982. ________, Disco: Extra, Gravadora:WEA,1983. ________, Disco: Raça Humana, Gravadora; WEA, 1984. ________, Disco: Kaya N’ Gan Daya Gravadora: WEA, 2002 Gilsam e Banda Airiyê, Disco: Reggae para Todos. Independente, 2002 Geraldo Cristal, Disco: Reggaessência, Gravadora: Independente, 2002 Jorge de Angélica, Disco: Sopa de Papelão, Independente, 1998 Kamaphew Tawá e Aspiral do Reggae, Disco: Fonte do Saber. Independente, 1998. Kebra Nagast. Disco: Desmistificação, Independente, ano: 2006 163 Lazzo, Disco (compacto): Salve a Jamaica, Grav.: Fermata, 1981 ________, Viver, Sentir e Amar, Pointer Discos, 1983 ________, Filho da Terra - Pointer Discos, 1985 Lazzo. Disco: Arte de viver, Gravadora: Eldorado, 1995 ________, Disco: Nada de Graça, LZZ, 1998 ________, Disco: Lazzo Matumbi 25 Anos ao Vivo, 2005 Luís Wagner. Disco: Ao vivo. Gravadora: Copacabada, 1986 ________, Disco: Conscientização, Copacabana, 1988 Muzenza, Disco: Muzenza do Reggae. Continental, Ed. Latino, 1988. Nengo Vieira e tribo D’Abraão, Disco: Somos Libertos, atração Fonográfica, 1998 ________, Disco: Mata Atlântica, Idependente, 2003 ________, Disco: Chama, independente, 2006 Nilton Abisay e Banda Zorat, Disco: um dia pra sorrir, Gravadora: Independente, Obina Shok. Disco: Obina Shok. Gravadora:RCA, 1986 Paul Simon, Disco: The Rhythm of The Saints, Gravadora/editora: WBR, 1990. Paulinho Ganaê. Disco: Independência em Mente. Independente, 1997 Ras Ciro Lima. Disco: Haile Selassiê I. Independente, 2001. Reggae Vibrações, Disco: Reggae Vibrações - Vários artistas, Kansas, 1991. Renato Matos e banda Acarajazz. Disco: Reggadô. Mel/disoteca 2001, 1993 Sine Calmon e Banda Morrão Fumegante, Disco: Fogo na Babilônia. Gravadora: Atração Musical, 1997 ________, Disco: Rosa de Saron. Gravadora: Atração Musical, 1999 ________,Disco: Eu vejo. Gravadora: Atração Musical, 2000 The Sheriff. Disco: Velha Raiz, figura 8 studio(independente), 2004. Tin Tim Gomes. Pedra sobre Pedras. Independente, 1999. Ubaldo Warú, Disco: Reggae Man. Gravadora: Musicart (independente), ano: Zavan Liv, Disco: Mil Olhos, Gravadora: Independente, 2002 Livros Grátis ( http://www.livrosgratis.com.br ) Milhares de Livros para Download: Baixar livros de Administração Baixar livros de Agronomia Baixar livros de Arquitetura Baixar livros de Artes Baixar livros de Astronomia Baixar livros de Biologia Geral Baixar livros de Ciência da Computação Baixar livros de Ciência da Informação Baixar livros de Ciência Política Baixar livros de Ciências da Saúde Baixar livros de Comunicação Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE Baixar livros de Defesa civil Baixar livros de Direito Baixar livros de Direitos humanos Baixar livros de Economia Baixar livros de Economia Doméstica Baixar livros de Educação Baixar livros de Educação - Trânsito Baixar livros de Educação Física Baixar livros de Engenharia Aeroespacial Baixar livros de Farmácia Baixar livros de Filosofia Baixar livros de Física Baixar livros de Geociências Baixar livros de Geografia Baixar livros de História Baixar livros de Línguas Baixar livros de Literatura Baixar livros de Literatura de Cordel Baixar livros de Literatura Infantil Baixar livros de Matemática Baixar livros de Medicina Baixar livros de Medicina Veterinária Baixar livros de Meio Ambiente Baixar livros de Meteorologia Baixar Monografias e TCC Baixar livros Multidisciplinar Baixar livros de Música Baixar livros de Psicologia Baixar livros de Química Baixar livros de Saúde Coletiva Baixar livros de Serviço Social Baixar livros de Sociologia Baixar livros de Teologia Baixar livros de Trabalho Baixar livros de Turismo