As cinco danças de Vénus (Expresso: 20-03-1999) De oito em oito anos, num ciclo bem conhecido dos povos antigos, o mais brilhante dos planetas escreve no crepúsculo cinco figuras diferentes. Vénus traça hoje nos céus uma dessas figuras NÃO há planeta mais fascinante do que Vénus. Não há «estrela da tarde» mais brilhante nem «estrela da manhã» mais luminosa. Não há planeta que tanto tenha fascinado os antigos. Os babilónios diziam que os planetas eram ovelhas perdidas, borregas tresmalhadas do grande rebanho das estrelas do céu. Os gregos chamavam-lhes «vagabundos», palavra que nos chegou, pelo latim, no vocábulo «planeta». Habituados a observar diariamente o céu, a orientar-se pelas estrelas e a ler no firmamento o grande ciclo das estações, os povos antigos cedo Vénus prepara-se para alcançar a sua altura máxima, que atingirá em meados de Maio, começando depois a descida para o horizonte perceberam que alguns daqueles pontos brilhantes deambulavam entre as estrelas do céu. Enquanto estas se deslocam em uníssono no seu movimento nocturno e anual, os planetas movem-se de noite para noite contra o fundo estelar, descrevendo um movimento aparente muito complexo. Para observar os planetas ao longo dos seus ciclos, um mês ou mesmo um ano de observações acumuladas não é o suficiente. É necessário que se recolham observações ao longo de muitas décadas e que essas observações se acumulem de geração para geração. As primeiras civilizações deslumbravam-se com o céu e registavam cuidadosamente as deslocações dos planetas. Cedo perceberam que essas ovelhas tresmalhadas tinham movimentos distintos. Marte, o planeta vermelho, descreve uma volta completa ao firmamento em cerca de dois anos. Júpiter e Saturno só muito lentamente se deslocam contra as estrelas, pelo que descrevem uma rotação completa em pouco mais do que um ano. Estes três planetas aparecem por vezes como «estrelas da manhã», antecipando o nascimento do Sol, outras vezes como «estrelas da tarde», mergulhando no horizonte a seguir ao astro-rei. Noutras alturas, aparecem alto no céu a meio da noite. Noutras, ainda, desaparecem ofuscados pelo Sol e passam dias sem ser observados. Os outros dois planetas observáveis a olho nu - Mercúrio e Vénus - descrevem um movimento diferente. Nunca estão muito longe do Sol. Quando aparecem, é sempre ao crepúsculo, como «estrelas da tarde», ou pela madrugada, como «estrelas da manhã». Sabemos hoje a razão por que isso acontece: Mercúrio e Vénus são planetas inferiores, a sua órbita é interior à da Terra, e nunca se podem afastar visualmente muito da nossa estrela. Em contraste, os restantes planetas são chamados superiores, pois a sua órbita é exterior à do nosso planeta, pelo que podem aparecer em oposição ao Sol e ser visíveis a meio da noite. Mercúrio é um planeta fugidio. Está muito perto do Sol, é difícil de observar e nunca é visível por muito tempo. Vénus aparece durante bastante mais tempo acima do horizonte. Muito mais brilhante, esteve sempre no centro das atenções dos astrónomos da antiguidade. Quem tenha observado Vénus ao longo das últimas semanas, olhando para o planeta dia após dia ao crepúsculo, terá notado que este tem aparecido cada dia mais alto nos céus e que, ao mesmo tempo, parece deslocar-se lentamente de sul para norte. Assim é, de facto. O planeta prepara-se agora para alcançar a sua altura máxima, que atingirá em meados de Maio, começando depois uma lenta descida para o horizonte. Em fins de Julho, já será difícil observá-lo, pois mergulhará no horizonte logo a seguir ao ocaso. Vénus está a descrever nos céus do crepúsculo um «V» invertido muito largo, uma figura típica bem conhecida dos antigos. Se, daqui a oito anos, olharmos para Vénus pela mesma altura, veremos que se encontrará no mesmo lugar e que dançará a mesmíssima dança nos céus do crepúsculo. Vénus está a desenhar uma das suas cinco danças características, que se repetem, invariavelmente, de oito em oito anos. Os astrónomos da civilização maia, que floresceu na América Central entre os séculos IV e X, estavam deslumbrados com as danças de Vénus. As suas observações, naturalmente acumuladas ao longo de séculos, permitiram-lhes notar esta estranha periodicidade do planeta e as figuras peculiares que ele descreve nos céus. Os maias tinham um nome para cada uma dessas danças e associaram uma lenda a cada uma delas. Vénus aparecia-lhes como o deus Kukulcan, que descia a Xibalba, o mundo escuro e subterrâneo, para combater os demoníacos deuses das trevas. Em Agosto, quando Vénus desaparecer, de novo engolido pelo brilho do crepúsculo, ter-se-á cumprido mais um dos ciclos da lenda maia. O planeta do deus Kukulcan reaparecerá em Setembro nos céus da madrugada. Para os maias, que há muitos anos assistiram a renascimentos semelhantes, o aparecimento da «estrela da manhã» representava a vitória de Kukulcan sobre os demónios de Xibalba. Fazia-se de novo luz, sinal que os sacerdotes faziam pagar com sacrifícios humanos. Se a crueldade desses sacrifícios hoje nos choca, vale a pena relembrar também a senha sanguinária de Cortez e seus conquistadores, ibéricos e europeus, que destruíram a ferro e fogo as civilizações da América Central, com tanto desprezo pela vida como pela cultura locais. Foi em 1555, na cidade de Maní, que os conquistadores procederam a uma grande queima final de livros. José de Acosta, numa obra mais tarde impressa em Salamanca, relata terem «encontrado um grande número desses livros com esses caracteres (hieróglifos maias) e, como eles não contivessem mais do que superstições e mentiras do demónio, queimámo-los todos, o que eles muito surpreendentemente lamentaram muitíssimo». Os maias destacavam-se entre os povos da América Central por terem desenvolvido uma escrita ideográfica (com hieróglifos) e por preservarem o seu conhecimento em obras escritas, a que os ocidentais chamaram códices. Os conquistadores estranhavam o amor que os maias tinham pelas suas obras, mas foram impiedosos nas destruições de livros. Depois das queimas, apenas quatro dos livros maias chegaram até nós. É pouco, mas é o bastante para perceber como essa civilização estava muito adiantada na observação dos planetas. Os maias repararam que as figuras que Vénus desenhava no céu eram cinco e viram que de oito em oito anos se fechava um ciclo, em consonância com os ciclos das estações, pelo que basearam o seu calendário no ciclo de Vénus. O que os maias observaram é o resultado de uma notável consonância entre a órbita da Terra e a do nosso vizinho planeta. Vénus demora 224 dias a descrever uma órbita em torno do Sol. Como a Terra se move no mesmo sentido, Vénus volta a aparecer-nos na mesma posição relativa ao Sol 584 dias depois. É o chamado período sinódico. Multiplicando 584 por cinco e dividindo por oito dá 365 dias, um ano terrestre. Quer dizer, de oito em oito anos, Vénus aparece na mesma posição relativa ao Sol e também relativa ao fundo estelar. As cinco danças de Vénus repetem-se num ciclo de oito anos. Os maias basearam a medida do seu tempo nesta consonância de ritmos, conseguindo uma precisão notável. O seu calendário tinha um erro inferior a um dia por cada quinhentos anos, numa altura em que os europeus utilizavam o calendário juliano e estavam ainda a séculos de conseguirem uma reforma aceitável do seu calendário. Os astrónomos não sabem ainda se a proporcionalidade de cinco para oito entre os períodos orbitais da Terra e de Vénus é uma pura coincidência ou é o fruto da atracção gravitacional mútua entre os dois planetas. Muitos dizem que se trata de um acaso e apontam para a imperfeição dessa consonância; na realidade, as órbitas não coincidem exactamente de oito em oito anos, mas estão apenas desfasadas dois dias em cada um desses períodos. Outros, como David Grinspoon, autor de Venus Revealed (Addison-Wesley, 1997), suspeitam que esta consonância tenha sido criada, de forma imperfeita, na altura da formação do sistema solar, quando os planetas se estavam a criar pelo agrupamento violento da nuvem protoplanetária. A verdade é que o sistema solar está repleto de ressonâncias orbitais. Neptuno e Plutão, por exemplo, dançam ao ritmo de três para dois. Enquanto o primeiro descreve três órbitas, o segundo faz duas. Muitas das luas de Júpiter e de Saturno estão prisioneiras de ressonâncias semelhantes. Seja a regularidade de Vénus fruto do acaso ou seja ela o resultado da atracção do nosso planeta, o certo é que as cinco danças de Kukulcan continuam a repetir-se com a precisão que fascinou os antigos maias. Testemunhamos hoje a ascensão do antigo deus. Em breve o veremos desaparecer no ocaso, para de novo ressurgir em Setembro, vitorioso sobre Xibalba e os demónios das trevas. Texto de UO CRATO