1 PARECER SOBRE A CONCORDÂNCIA DO VERBO SER EM VERSOS DE PAULO CÉSAR PINHEIRO Flávio Barbosa e Maria Elisa Silveira Conforme solicitação recebida de Conceição Campos, o objetivo deste parecer é discutir a concordância usada para o verbo ser nos seguintes versos de Paulo César Pinheiro, à luz da norma preconizada nos principais manuais gramaticais contemporâneos: Pra mim o verso de um poeta E a melodia de um compositor É sempre a minha forma mais direta De combater a força de uma dor. Pra mim o papo de um amigo E um copo de um bom vinho ou de um licor Já é o que eu preciso ter comigo Pra enfrentar qualquer perigo De desilusão de amor. Como regra geral, qualquer verbo concorda com o sujeito em número e pessoa. No entanto, especialmente no uso poético da linguagem, há possibilidades de concordâncias alternativas, orientadas principalmente por escolhas estilísticas com vistas a enfatizar nuances de significado. Essas possibilidades têm características específicas quando se trata de verbo de ligação, como o verbo ser. Algumas informações prévias devem ser consideradas no estudo da concordância em frases estruturadas com esse verbo. Em muitos casos, o verbo ser liga um sujeito, cujo núcleo é um substantivo ou um pronome, a um predicativo, cujo núcleo é um adjetivo ou advérbio. Nesses casos, geralmente não há dúvida: o verbo costuma concordar com o sujeito: “Tu és / Divina e graciosa, / Estátua majestosa / Do amor, / por Deus esculturada / E tomada com ardor / Da alma da mais linda flor / De mais ativo olor / Que na vida / É preferida pelo beija-flor...” (Pixinguinha e Otávio de Souza) “Linda borboleta, não seja buliçosa / Deixa a minha rosa que tão linda está no galho...” (Paulo da Portela) “Eu sou assim, / Quem quiser gostar de mim, eu sou assim...” (Wilson Batista) Nos casos em que o verbo de ligação conecta dois elementos com base substantiva, entretanto, muitas vezes é possível alterar a frase, transformando sujeito em predicativo e vice-versa. No caso dos versos em estudo, por exemplo, pensando-se em fatores estritamente sintáticos --- sem consideração à mensagem e às coerções lírico-musicais --- seria possível transformar a estrutura, invertendo os papéis: “Pra mim o verso de um poeta / E a melodia de um compositor / É sempre a minha forma mais direta / De combater a força de uma dor.” OU “Pra mim a forma mais direta / De combater a força de uma dor / É sempre o verso de um poeta / E a melodia de um compositor.” 2 O mesmo se dá no caso seguinte: “Quiseram me comprar, / eu não vendi / uma linda coleção de passarinhos / Bernardo é o gaturamo / Aurélio é o rouxinol / Lino é o canário / Mano Rubens, o curió...” (Paulo da Portela) OU “Quiseram me comprar, / eu não vendi / uma linda coleção de passarinhos / o gaturamo é Bernardo / o rouxinol é Aurélio / o canário é Lino / o curió, Mano Rubens...” Feita essa primeira observação, buscaremos mais embasamento nos estudos gramaticais. Evanildo Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, 1999, páginas 558-9), falando de “orações equativas, em que com [o verbo] ser se exprime a definição ou a identidade”, diz que, quando o verbo liga substantivos de números diferentes costuma concordar com aquele que está no plural. “às vezes, um dos termos é um pronome: A pátria não é ninguém: são todos (Rui Barbosa) Mas: Justiça é tudo, justiça é as virtudes todas. (Almeida Garret) Às vezes em vez de ser aparece o verbo parecer: Essa imensa papelada (...) Parecem indiscrições (Gonçalves Dias) Se o sujeito denota pessoa, o verbo ser concorda com o sujeito, qualquer que seja o número que funciona com o predicativo: Ela era as preocupações do pai. (...)” A exposição de Bechara, apesar de estabelecer por princípio a concordância com o termo no plural, dá margem para alguma liberdade de concordância expressiva em estruturas nas quais o verbo ser conecta dois elementos substantivos (é o que se vê pelos exemplos, que nem sempre corroboram a regra proposta). Essa liberdade é reafirmada no estudo de Rocha Lima (Gramática normativa da língua portuguesa, 1972, página 404): “Concordância especial do verbo 'SER' (...) 4º caso: estando o verbo ser entre dois substantivos de números diversos, ambos comuns ---, o que vai orientar a concordância é o sentido da frase: ela se fará com o termo a que se quiser dar maior relevo, isto é, com o elemento mais importante para quem fala: “Justiça é tudo, justiça é as virtudes todas, justiça é religião, justiça é caridade, justiça é sociabilidade, é respeito às leis, à lealdade, é honra, é tudo enfim.” (Almeida Garret) Belíssimo exemplo este, “onde é evidente intuito do escritor tornar patente, pela concordância, o relevo com que se lhe avulta ao espírito a idéia exprimida pelo vocábulo justiça, que é aqui manifestamente a predominante e cuja força ele mais encarede, repetindo o sinal que serve para a exprimir na linguagem.” (Carneiro Ribeiro) Já na seguinte frase de Camilo Castelo Branco: “O horizonte da terra mais afastado são cordilheiras agras.” a impressão que deve surpreender o leitor --- elemento afetivamente predominante --- se encontra no predicativo cordilheiras agras. 3 A verdade é que campeia certa arbitrariedade de construção: “O maior trabalho que tenho é os pastores com quem trato.” (Francisco Rodrigues Lobo) “Mas sei de uma coisa: meu caminho não sou eu, é outro, é os outros.” (Clarice Lispector) A orientação de Celso Cunha (Nova gramática do português contemporâneo, 1985, páginas 497-8), embasada em critérios um pouco diferentes dos anteriores, também autoriza os versos da canção em análise: Casos particulares de concordância com mais de um sujeito Vimos que o adjetivo que modifica vários substantivos pode, em certos casos, concordar com o substantivo mais próximo. Também o verbo que tem mais de um sujeito pode concordar com o sujeito mais próximo: (...) b) quando os sujeitos são sinônimos ou quase sinônimos: A conciliação, a harmonia entre uns e outros é possível (Augusto Abelaira) Todo o seu comentário, toda a sua exegese e todo o seu exame crítico vinha insuflado dessa virtude elucidativa em que a sua contribuição pessoal se fazia sentir, ainda que no campo da hipótese ou da conjectura. (Joaquim Ribeiro) O amor e a admiração nas crianças compraz-se dos extremos (Aquilino Ribeiro) c) quando há uma enumeração gradativa: A mesma coisa, o mesmo ato, a mesma palavra provocava ora risadas, ora castigos. (Monteiro Lobato) O grotesco, o pobre, o sem forças, era triturado agora na pressão dessa grande cidade, ininterrupta de gente, de casos que profundamente a excluíam. (Augustina Bessa Luís) d) quando os sujeitos são interpretados como se constituíssem em conjunto uma qualidade, uma atitude: A grandeza e a significação das coisas resulta do grau de transcendência que encerram. (Miguel Torga) Morro, se a graça e a misericórdia de Deus me não acode. (Camilo Castelo Branco) Por fim, a análise de Gladstone Chaves de Melo (Gramática fundamental da língua portuguesa, 1978, páginas 224-5) vai ao encontro da de Celso Cunha e enfatiza o que parece ser a justificativa mais forte para o uso do singular nas estrofes do samba: o fato de os elementos coordenados formarem uma unidade conceitual. Casos especiais de concordância 1. Sujeito composto Já vimos que, normalmente, o sujeito composto leva o verbo ao plural, com prevalência da primeira pessoa sobre as mais e da segunda sobre a terceira. Casos há, entretanto, e numerosos, em que o verbo fica no singular. (...) 1.3 É óbvio que se deixa o verbo no singular quando for apenas aparentemente composto o sujeito, isto é, quando os dois ou três elementos que o constituam estiverem unificados pelo sentido, funcionando como sinônimos ou como partes integrantes de um todo indecomponível. Se dissermos “a dor, o sofrimento e a angústia abateu-lhe muitíssimo o outrora animoso coração”, é claro que o sujeito é um só, expresso pelas três palavras, equivalentes, dor, sofrimento, angústia. “A largueza e relaxação da vida escurece a consciência e cega a alma.” (Antônio Vieira) [Os sujeitos --- “largueza e relaxação da vida” --- são sinônimos.] 4 “Os dous mais assinalados vultos literários do século de Luís XIV, Fénelon e Bossuet, bem que vivessem sob um monarca absoluto, cujo fausto e poderio deslumbrava a Europa, ... proclamaram, todavia, bem alto a verdade que não só se pode, mas deve-se às vezes desobedecer ao poder público e resistir-lhe passivamente.” (Macedo Costa) [Os sujeitos fausto e poderio estão tomados como um todo.] “.... desde que a misteriosa aparição e fuga do mendigo lhe roubou o sono e as esperanças” (Camilo Castelo Branco) [Os dois elementos do sujeito completam-se num todo: não foi apenas a “misteriosa aparição” do mendigo que roubou o sono ao homem, senão ela seguida da “misteriosa fuga”. (...)] 1.4 Quase escusado seria acrescentar que no singular permanece o verbo quando o sujeito que o precede exprime uma gradação: “Pobre Luís Dutra! Apenas publicava alguma cousa, corria à minha casa, e entrava a girar em volta de mim, à espreita de um juízo, de uma palavra, de um gesto, que lhe aprovasse a recente produção.” (Machado de Assis) Comentário : no exemplo, há gradação descendente. É comum, no entanto, a qualquer gradação escolha e rejeição sucessiva, de tal modo que o último termo é que fica sendo o definitivo, por assim dizer, e o único válido. Nisto consiste, do ponto de vista estilístico, o processo. Trata-se, pois, de sujeito simples, e que muito naturalmente deixa no singular o verbo. Considerações finais Com base no que observamos a partir das gramáticas transcritas, entendemos que as concordâncias encontradas nas estrofes em estudo são aceitáveis, pois se enquadram nos casos excepcionais previstos nos textos de referência. Seja por concordância expressiva, com os termos que se quer destacar nos versos, seja pela afinidade semântica entre os elementos coordenados no sujeito (interpretados como integrantes de uma unidade conceitual), o uso do verbo de ligação ser no singular é admissível e tem precedentes nas literaturas brasileira e portuguesa.