Folhear - Bertrand

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O NOME DAQUELE
QUE NÃO TEM NOME
sessenta e três poemas de
KABIR
versões de
Jorge Sousa Braga
ASSÍRIO & ALVIM
Pouco se sabe sobre a vida de Kabir, para além
do que deixam adivinhar os seus poemas, as hagio‑
grafias e as lendas. Terá vivido em Varanasi (Bena‑
res), o mais sagrado dos lugares sagrados hindus e
simultaneamente um centro de comércio e peregri‑
nação, na primeira metade do século xv.
Nascido de uma viúva brâmane e adoptado
por uma família da casta dos tecelões, convertida à
fé islâmica, Kabir revela nos seus poemas um pro‑
fundo conhecimento quer do hinduísmo quer do
islamismo (e dentro deste do sufismo). De Vara‑
nasi, uma cidade que prometia a salvação a todos
os que nela morressem, ter­‑se­‑á retirado no fim da
vida para uma obscura cidade chamada Magahar.
Kabir faz parte de um grande movimento (o
movimento Bhakti — devoção), que tendo come‑
çado na região Tamil, rapidamente se espalhou
por toda a Índia, tendo atingido a sua máxima
expressão, nos séculos xv e xvi no norte do país.
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Distingue­‑o um amor ardente por um único deus
(sem qualidades), que ele tanto chama Rama como
Hari, em oposição às ortodoxias religiosas e hie‑
rarquias sociais. «O Bhakti favorecia o informal ao
formal, o espontâneo ao que estava escrito, o ver‑
nacular ao sânscrito. Kabir comparava o sânscrito,
a linguagem dos deuses e privilégio dos brâmanes,
à água estagnada de um poço e o bhasha (a lingua‑
gem vernacular usada pelos poetas bhakti) à água
corrente de um rio»1.
Não restam manuscritos dos poemas de Kabir
que lhe sejam contemporâneos. Aquilo que che‑
gou até nós não é um único texto, mas um con‑
junto de textos (o mais antigo do século xvi): o
Bijak (ou tradição oriental), o Panchavani (ou tra‑
dição ocidental) e o Adi Granth (o livro sagrado
dos Sikhs — a tradição do norte). Apenas o Bijak
é constituído exclusivamente por poemas de Kabir.
Confrontando os vários textos verifica­‑se que os
poemas variam em número, que raramente se re‑
petem e quando se repetem as variações são signi‑
ficativas, não existindo portanto um núcleo que
seja comum a todas as tradições.
Songs of Kabir : T. Arvind Krishna Mehrotra, prefácio de
Wendy Doniger, NYRB classics, 2011.
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Os poemas de Kabir (ou do colectivo cha‑
mado Kabir) obedecem a três formas literárias: os
padas (composições cantadas, cujo tamanho varia
de dez a doze versos e em que o verso inicial ser‑
ve também de refrão); os ramainis (composições
líricas que acabam com dois versos isolados) e os
dohas ou sakhis (composições com apenas dois ver‑
sos, que podiam ser recitados ou cantados). No
total são­‑lhe atribuidos 1573 padas, 134 ramainis
e 4395 sakhis1.
Foi Tagore (com a assistência de Evelyn Un‑
derhill) quem efectuou a primeira tradução dos
poemas de Kabir para uma língua ocidental (1914).
Trata­‑se já de uma tradução em segunda mão, feita
a partir da tradução do hindi para bengali de K.M.
Sen. Dizia John Stratton Halley que «as traduções
são como rios — as suas nascentes muitas vezes es‑
condidas e os seus destinos potencialmente oceâ‑
nicos»2. Essa tradução encontrou eco de imediato
em Yeats («The wild swans at Coole») e em muitos
outros poetas. Não será alheio ao sucesso que esses
poemas encontraram no ocidente, o facto de terem
1
Kabir: The Weaver’s Song : T. Vinay Dharwadker. Penguin
Books, 2003.
2
Kabir: Ecstatic Poems : Robert Bly, Beacon Press, 2004.
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sido traduzidos por um poeta com a qualidade de
Tagore. As «Songs of Kabir» serviram de base (e con‑
tinuam a servir) para outras traduções e recriações
nas mais diversas línguas (entre elas as de Robert
Bly, André Gide e Czeslaw Milosz). Também Ezra
Pound sucumbiu ao encanto de Kabir (há dez poe‑
mas seus nas «Translations», embora a fonte não te‑
nha sido Tagore). Mais recentemente surgiram tra‑
duções académicas, entre as quais convém assinalar
as de Charlotte Vaudeville («Au cabaret de l’amour),
de Linda Hess («The Bijak of Kabir») e a de V.K.
Sethi («Kabir — the Weaver of God’s Name». As
traduções adiante apresentadas beberam de várias
fontes (sendo também a principal a de Tagore).
A vida de Kabir confunde­‑se com a lenda. Des‑
ses episódios lendários da vida de Kabir há espe‑
cialmente dois que gostaria que tivessem sido reais:
o primeiro é o do encontro entre Kabir e Mirabai.
O segundo tem a ver com a sua morte: hindus e mu‑
çulmanos teriam disputado o seu corpo, uns para
cremá­‑lo, outros para enterrá­‑lo. Quando abriram
o caixão, o que restava de Kabir era uma coroa de
flores, que hindus e muçulmanos dividiram entre si.
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Como poderia quebrar­‑se o nosso amor?
Como a folha do lótus na água
assim és tu
e eu o teu escravo
Como a ave que contempla a lua
assim és tu
Como o rio que desagua no oceano
assim o meu coração desagua em ti
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