Maio...... - Clube Mundo

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ANO 24
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tiragem:
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MAIO/2016
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20 000 exemplares
A espada do Brexit paira
sobre a Europa
E mais...
N
a Batalha da Inglaterra, entre julho e outubro de 1940, a força aérea
britânica evitou a catástrofe,
conservou a independência
de Londres e lançou as
sementes da derrota final
nazista, em 1945. A Europa
de hoje é, em algum sentido,
um fruto daquela batalha.
Em poucas semanas, será
travada uma nova Batalha
da Inglaterra. Dessa vez, o
teatro de combate são as
urnas do plebiscito britânico sobre a permanência
na União Europeia. Como
em 1940, estará em jogo o
futuro da Europa.
Brexit é a contração
Em Manchester (Inglaterra), eleitores portam cartazes que defendem o voto pela ruptura da
popular da expressão “saída
Grã-Bretanha com a União Europeia, no plebiscito convocado para 23 de junho
britânica” (Britain exit). No
lado do Brexit alinham-se as forças “eurocéticas” abrigadas principalmente no Partido Conservador e no ultranacionalista Partido
da Independência do Reino Unido (Ukip). As crises do euro e dos refugiados são as armas brandidas pelo exército antieuropeu.
No lado oposto, perfilam-se o primeiro-ministro David Cameron, com parcela dos conservadores, o Partido Trabalhista, os
nacionalistas escoceses e a maior parte da elite empresarial e financeira.
A Grã-Bretanha não ocupa o núcleo da União Europeia, composto pela parceria entre Alemanha e França. Também não faz
parte da Zona do Euro. Mesmo assim, uma retirada britânica assestaria um golpe profundo no projeto europeu e, por extensão,
na ordem geopolítica do Ocidente.
A Europa está em jogo, mas há algo mais. Na hipótese de saída britânica, os nacionalistas escoceses teriam todos os argumentos
para exigir um novo referendo sobre a permanência da Escócia no Reino Unido. De fato, um triunfo do Brexit poderia implicar
a desagregação da própria Grã-Bretanha. A sorte está lançada.
Veja as matérias às págs. 6 a 9
Grande Sertão
À sombra do barão de Coubertin
espectro da Grécia Antiga paira sobre o Ocidente desde os tempos da Renascença.
No final do século XIX, auge da Belle Époque, Pierre de Frédy, o barão de Coubertin,
evocou o espírito dos deuses gregos para criar o movimento olímpico. Os primeiros Jogos
Olímpicos da era moderna realizaram-se em 1896, exatos 120 anos atrás, em Atenas.
Coubertin olhava para o seu tempo quando promoveu uma suposta ressurreição
das olimpíadas gregas. De fato, respondia a demandas das elites políticas e culturais de
uma Europa embriagada pela crença no progresso, na tecnologia e no Estado-nação. O
movimento olímpico exaltava o individualismo, a honra, o patriotismo e o militarismo.
Além disso, cultuava o higienismo, a disciplina social e a estética da forma física.
De 1896 para cá, muita coisa mudou, com a profissionalização de inúmeros esportes. Mas o “ideal olímpico”, com sua pesada carga ideológica, continua a animar o
espetáculo quadrienal que se instalará no Rio de Janeiro em agosto.
Pág. 10
© Nova Fronteira/Divulgação
O
© Divulgação
© Oli Scarff/AFP
● O Meio e o Homem – A
modernização portuária
do Brasil avançou mais
rápido que a implantação das infraestruturas
viárias de escoamento
de mercadorias.
Pág. 2
● Editorial – Os políticos estão na berlinda
– com toda a justiça.
Mas inexiste saída fora
da política.
Pág. 3
● Há 70 anos, Juan Domingo Perón inventou
o peronismo. A Argentina nunca mais foi a
mesma.
Pág. 3
● Primeiro turno das eleições peruanas evidenciou a cisão do país
entre o fujimorismo e
o antifujimorismo.
Pág. 4
● Diário de Viagem – A
polaridade política e
geográfica entre Johannesburg e a Cidade do
Cabo reflete a dupla
alma da África do Sul.
Pág. 5
● Um século atrás, por
meio de um acordo
secreto, britânicos e
franceses delinearam as
fronteiras do Oriente
Médio. Hoje, essa ordem estatal implode sob
as vagas de uma guerra
de âmbito regional.
Pág. 11
● A Operação Lava Jato
inspira-se na Operação
Mãos Limpas, que varreu a Itália duas décadas
atrás. Temos lições a
extrair dela.
Pág. 12
Nº 3
Gutemberg de Vilhena Silva
Especial para Mundo
Gargalos rodoviários reduzem a eficiência
dos portos brasileiros
A
construção histórico-geográfica dos
portos no Brasil implicou um legado que vai das instalações rudimentares,
implantadas logo após o “descobrimento”,
até os grandes complexos portuários e
terminais especializados hoje existentes ao
longo de toda a sua costa. Essa evolução
teve pontos de destaque importantes:
em 1808, a “abertura dos portos às nações amigas”; no final do século XIX, as
principais concessões para exploração dos
“portos organizados” e das ferrovias de
acesso; na ditadura militar, a implantação
de terminais especializados, compatíveis
com a industrialização, como instrumento
da prioridade exportadora dos Planos Nacionais de Desenvolvimento (PND).
A partir da lei de modernização dos
portos, de 1993, que dispõe sobre o regime
jurídico de exploração das instalações portuárias, foram criadas algumas definições, com
destaque para o porto organizado, ou seja,
construído e aparelhado para atender às necessidades da navegação, da movimentação
e da armazenagem de mercadorias, concedido ou explorado pela União, sob jurisdição
de uma autoridade portuária. Diante de
várias dificuldades, a lei de modernização
dos portos sinalizou para uma reestruturação da atividade baseada em princípios de
desregulamentação e descentralização.
No Brasil, existem 34 principais portos
públicos, entre marítimos e fluviais [veja
o mapa]. Desse total, 16 são delegados,
concedidos ou têm sua operação autorizada
à administração por parte dos governos
estaduais e municipais. Além dos portos
marítimos, há também 62 portos secos em
funcionamento em diversos estados, situados
em zona secundária, onde são executadas
operações de movimentação, armazenagem
e despacho aduaneiro de mercadorias.
No Brasil, mesmo que a circulação por
cabotagem tenha sua importância, predomina o transporte de longas distâncias.
Os principais produtos movimentados são
minério de ferro, mercadorias conteinerizadas, combustíveis, grãos de soja, fertilizantes, milho, bauxita, trigo, maquinário
em geral e farelo de soja.
Desde 2002 os portos nacionais vêm
apresentando aumento nas exportações e
diminuindo as importações. Além do aumento das commodities agrícolas e minerais
estimulado pelo crescimento da China, os
preços internacionais desses importantes
Principais portos brasileiros
Porto de Santana
Porto de Manaus
Porto de
Santarém
Porto de Belém
Porto de Vila do Conde
Porto de Itaqui
Porto de Fortaleza
RR
EXPEDIENTE
Terminal Salineiro de Areia Branca
AP
Porto de Natal
AM
MA
PA
CE RN
PB
PE
AL
SE
PI
AC
TO
RO
BA
MT
GO
MG
MS
SP
ES
RJ
Porto de Cabedelo
Porto de Recife
Porto de Suape
Porto de Maceió
Porto de Salvador
Porto de Aratu
Porto de Ilhéus
Porto da Barra do Riacho
Porto de Vitória Porto do Forno
Porto do Rio de Janeiro Porto de Niterói
Porto de Itaguaí
Porto de Angra dos Reis
Porto de São Sebastião
Porto de Santos
SC
Porto de Antonina
Porto de Paranaguá
Porto de São Francisco do Sul
RS
Porto de Itajaí
Porto de Imbituba
Porto de Laguna
Porto de Estrela
Porto de Porto Alegre
Porto de Pelotas
1.000 km
0
Porto de Rio Grande
PR
Fonte: ANTAQ, 2015
produtos na pauta de exportações brasileira
foram inflados por movimentos especulativos nas bolsas de mercadorias mundiais.
Com a crise econômica de 2008, o cenário
do comércio mundial tomou um novo
rumo. Grandes economias como os Estados Unidos e a França sofreram com suas
exportações, principalmente os produtos
que agregam alta tecnologia.
As dez principais mercadorias movimentadas nos portos organizados (minério de
ferro, soja, combustíveis e óleos minerais,
açúcar, milho, fertilizantes e adubos, farelo de
soja, produtos químicos orgânicos, plástico e
suas obras e trigo) representaram 68,4% da
movimentação de cargas nessas instalações.
A China se tornou o maior parceiro dos
produtos brasileiros, superando os Estados
Unidos, parceiro principal entre as décadas
de 1970 e 2000. A Argentina posiciona-se
na terceira colocação em trocas comerciais
com o Brasil via portos. Na Europa, França e
Alemanha são os grandes nomes das relações
bilaterais com o Brasil via portos. Nos casos
desses dois países, as importações brasileiras
chegam a superar as exportações, sobretudo
com produtos de alta tecnologia.
O Porto de Santos, em São Paulo,
continua sendo o mais relevante do Brasil
e também da América Latina, com movi-
mentação de contêineres muito superior
a qualquer outra no cenário nacional.
Contudo, quando avaliamos as taxas de
crescimento nos últimos anos, dois portos
amazônicos, os de Belém e de Vila do Conde, ambos no Pará, destacaram-se no período 2002-2012, em razão da alta no preço
das commodities por eles exportadas.
O Brasil enfrenta grandes dificuldades em seu sistema portuário. A carência
de vias de acesso e de investimentos em
infraestrutura aumenta o custeio dos preços dos fretes, comprometendo diversos
produtos, principalmente os perecíveis,
e prejudicando a competitividade dos
portos. A dispersão da malha rodoviária
brasileira é um agravante, visto que é por
ela que ocorre o transporte de cargas e o
tráfego urbano. A solução desses gargalos
de infraestrutura, uma tarefa de médio
e longo prazos, propiciaria importantes
avanços de produtividade portuária, criando condições para a evolução da pauta de
exportações em longas distâncias.
Gutemberg de Vilhena Silva é
professor de Geografia Política na
Universidade Federal do Amapá
e bolsista de Pós-Doutorado do
CNPq no exterior
MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO
2016 MAIO
PANGEA – Edição e
Comercialização de Material
Didático LTDA.
Redação: Demétrio Magnoli, José Arbex Jr.,
Nelson Bacic Olic (Cartografia)
Jornalista responsável: José Arbex Jr.
(MTb 14.779)
Revisão: Jaqueline Ogliari
Pesquisa iconográfica: Thaisi Lima
Projeto e editoração eletrônica: Wladimir Senise
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www.clubemundo.com.br
Infelizmente não foi possível localizar os
autores de todas as imagens utilizadas
nesta edição.
Teremos prazer em creditar os fotógrafos,
caso se manifestem.
E R R A T A
O
texto publicado à pág. 4 da edição
nº 2 (abril/2016) de Mundo
H&C, sobre a reforma curricular, tem
como coautor Ruy Lozano, licenciado
em Ciências Sociais pela USP, professor do
Ensino Médio e coautor do livro Geografia:
Contextos e Redes (Moderna).
E
“Ontem, a Câmara dos Deputados do Brasil
aprovou a abertura do processo de impeachment
quase nenhum dos de-
I
T
O
R
I
A
A saída é política
americano)
–
L
seguiram a mesma linha, colocando
pelos deputados faz parte de um processo inevi-
em destaque o total despreparo político, para dizer
tável e necessário de aprendizagem.
o mínimo, dos parlamentares brasileiros diante de
acusação oficial, a de que o seu governo praticou
No Brasil, mesmo muito daqueles que apoiaram
‘pedaladas fiscais’. Em vez disso, citaram razões
como ‘para você, mamãe’, ‘pela paz em Jerusalém’,
‘pelos corretores de seguros’, ‘pelos caminhoneiros’, ‘para que não nos tornemos vermelhos,
como na Venezuela e na Coreia do Norte’.”
Foi assim que a revista britânica The Economist , uma das mais respeitadas do mundo ,
o impeachment se sentiram incomodados, não repre-
Não há atalhos, caminhos curtos para a construção de uma democracia. A “decisão da maioria”
demanda, antes de mais nada, a consciência de que
há maiorias e minorias, e portanto diferenças. A co-
sentados pelo festival de barbaridades apresentado
esão social só pode ser mantida pela interlocução
de
Dilma Rousseff. Mas
D
putados que fizeram uso da palavra mencionou a
uma crise de grande magnitude.
pela
Câmara. Restou
um gosto de ópera-bufa, de
– e este é, precisamente, o
Negar a política equivale a in-
e respeito às diferenças
perplexidade para aqueles que de fato se preocupam
lugar da política.
com o destino do país.
terromper o diálogo e transformar as diferenças
em antagonismos, em choques inconciliáveis.
noticiou a abertura do processo de impeachment
Uma reação possível – de fato, a mais previsível
– é a condenação genérica dos políticos e da própria atividade política como um todo, sentimento
Dilma Rousseff, em 18 de abril. Poderia ter
reforçado pela decepção de muitos com o governo
de várias encruzilhadas emaranhadas. Se há uma
PT. Mas a negação da política é a
pior “saída” possível, até por não representar saída
alguma. Bem ou mal, o Congresso Nacional reflete
o nível de consciência política do eleitorado brasileiro, e é essa realidade que o país deve enfrentar.
Nesse sentido, o grotesco espetáculo promovido
saída no horizonte, ela será possível se – e apenas
de
também acrescentado a homenagem feita pelo
deputado Jair
Ustra,
Bolsonaro ao coronel Brilhante
um dos mais implacáveis torturadores à
época da ditadura militar.
Outros importantes
jornais e revistas – incluindo Le Monde (francês),
El País (espanhol) e The New York Times (norte-
chefiado pelo
Éo
caminho para a desagregação social e o caos.
O Brasil está diante de uma encruzilhada, ou
se
– os cidadãos brasileiros tomarem para si a ta-
refa de determinar o seu próprio destino, o que
inclui ir às ruas, quando necessário, e pressionar,
desafiar e exigir seriedade e comprometimento de
seus representantes.
Newton Carlos
Da Equipe de Colaboradores
A
história me foi contada por um
jovem peronista engajado como
guerrilheiro. O que se segue foi presenciado por ele. Perón tinha de escolher um
chefe de polícia. Reuniu os líderes das
várias facções para comunicar sua escolha.
“Mas esse senhor serviu à ditadura como
policial”, reagiu um dos presentes, do
plantel esquerdista. “Eu preciso de alguém
que tenha experiência policial, quando eu
quiser fazer guerrilha eu chamo vocês”,
sentenciou Perón, encerrando a reunião.
Juan Domingo Perón assumiu como
presidente eleito da Argentina em junho de
1946, há 70 anos, no imediato pós-guerra,
e governou por nove anos, consolidando o
movimento peronista por meio do Partido
Justicialista. Voltaria ao poder décadas
depois, brevemente, entre 1973 e 1974,
falecendo no posto. A política moderna
argentina gira em torno do peronismo.
Decifrar o peronismo continua sendo
um desafio enfrentado com pouco êxito pelos historiadores. Versão “argentinizada” do
fascismo? Ou fascismo de esquerda? Alguns
falam em variante do bonapartismo, outros
em feitiço populista com o ornamento da
beleza jovem de Eva Perón ou simplesmente
em “pai dos descamisados”, como o nosso
Getulio foi o “pai dos pobres”. O conceito
de caudilhismo fornece um elo de aproximação entre o peronismo e o getulismo, que
produziu traumas políticos e mobilizou a
diplomacia americana.
A foto,
de 1951,
mostra
Juan Perón
no auge de
seu poder
e prestígio
na
Argentina
© Archivo General de la Nación, Buenos Aires
O peronismo como esfinge
Uma biógrafa de Perón, a uruguaia Marisa
Navarro, disse que ele era “excessivamente personalista”, traço que o colocava num mesmo
saco com outros ditadores latino-americanos.
Construiu monumentos em sua homenagem,
trocou nomes de ruas, substituindo-os pelo
seu, adorava ouvir discursos de exaltação a ele
próprio etc. Tampouco suportava um mínimo
de oposição. Mas teve apoio popular, algo
que nem mesmo seus mais ferozes inimigos
se dispunham a questionar. O peronismo foi
o maior movimento de massas da América
Latina, no qual se confundiam as cabeças
de Perón e Evita, a primeira-dama e musa
inspiradora dos “descamisados”.
O argentino Jorge Abelardo Ramos, um
nacionalista de esquerda, foi às origens. De
modo sucinto, a crônica é a seguinte. Perón
“percebeu” que a industrialização criara um
enorme proletariado sem tradição de militância sindical e política, sem relações com
as esquerdas tradicionais, uma “nova classe
social que se constituía em enorme fator
de poder”. Por isso num dos tantos golpes
MAIO 2016
que se seguiram à derrubada do presidente
Hipólito Yrigoyen, em 1930, no crack de
Wall Street, e da falência do “projeto de
hegemonia burguesa” na velha Argentina
da classe média, escolheu o Ministério do
Trabalho, mobilizou os “descamisados” e
assumiu o poder em 1946.
A influência do fascismo ficou clara na
adoção de uma “terceira posição”, entre o
comunismo e o capitalismo. Aliança de
classes, em vez de luta de classes, e divisão
da renda nacional, de modo igual, entre
capital e trabalho. Não só a elite conservadora se opunha ao peronismo. Também
comunistas e socialistas, cujos espaços o
peronismo invadiu. O inglês H. S. Ferris
lembra o que ele fez em matéria de salários
e previdência, razão mais forte pela qual a
“revolução libertadora”, que o derrubou
em 1955, não conseguiu desmontar seu
movimento. O peronismo voltou ao poder
em maio de 1973, por meio de Héctor
Cámpora, um preposto de Perón, e em
outubro do mesmo ano, com o próprio
Perón que retornava do exílio.
Naquelas eleições, o caudilho obteve
64% dos votos. Levou à Casa Rosada,
como vice, a segunda mulher, Isabelita,
prenúncio do caos, já que se consumiam
as resistências físicas de Perón. Com sua
morte, explodiram os conflitos internos
do peronismo, envolvendo guerrilheiros
esquerdistas (os Montoneros), sindicalistas
de todos os tipos e gângsteres de extremadireita, como José López Rega, “El Brujo”,
que se instalou em palácio em parceria com
Isabelita, a herdeira e sucessora de Perón,
golpeada em 1976.
O peronismo precisou de 18 anos (de
1955 a 1973) para deixar claro que a Argentina não podia ser governada sem ele – e
menos de dois (o curto período de Isabelita)
para mostrar como se leva um país à ruína.
Foram abertas as comportas para uma
ditadura brutal e as crises que resultaram
numa tragédia nacional. O que chegou a ser
o maior movimento de massas da América
Latina tornou-se mero objeto eleitoral
Não só isso. O peronismo sempre teve
personalidade ditatorial, mas com Isabelita
e López Rega adotou o banditismo. Os militares que sobrevieram aos dois aumentaram a
dose de crueldade. Com a redemocratização,
no final de 1983, o peronismo tornou-se
mero objeto eleitoral, sem feições definidas.
Hoje, abriga o confronto entre um manipulador dos chamados “movimentos sociais” e
um empresário milionário com a disposição
de mobilizar eleitoralmente a classe média. A
Argentina talvez seja o único país latino-americano com história de presença marcante da
classe média nos embates políticos. Ela foi
dominante no pré-peronismo.
Néstor e Cristina Kirchner, os herdeiros mais destacados do peronismo,
governaram por mais de 13 anos, entre
2003 e 2015. A recente derrota eleitoral de
Cristina, que não fez seu sucessor, coloca
um ponto de interrogação na longa história que começou há sete décadas e que se
confunde com a trajetória da Argentina
moderna.
MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO
peru
Uma nação dividida pelo fujimorismo
No primeiro turno das eleições peruanas, liberais e esquerdistas disputaram os votos antifujimoristas
ogo mais, em 5 de junho, os peruanos escolherão seu
novo chefe de Estado, no segundo turno das eleições
presidenciais. O sucessor de Ollanta Humala será Keiko
Fujimori, filha do ex-presidente Alberto Fujimori, que
governou entre 1993 e 2000, ou Pedro Pablo Kuczynski,
o PPK, um economista liberal que ocupou o cargo de
ministro das Finanças no governo de Alejandro Toledo,
na primeira metade da década de 2000.
O primeiro turno, realizado em 10 de abril, não merece a qualificação ritual de uma “festa da democracia”,
pois o órgão eleitoral oficial cassou as candidaturas de
Julio Guzmán e César Acuña Peralta com base em frágeis argumentos técnicos. O centrista Guzmán iniciou
sua campanha com apenas 5% das intenções de votos e
alcançou em março, na hora de sua cassação, o segundo
lugar nas sondagens, com mais de 20%. Sobram teorias
conspirativas sobre o gesto do órgão eleitoral, que provavelmente exerceu influência decisiva na configuração do
segundo turno.
Sem Guzmán, os eleitores se dividiram desigualmente
entre três candidaturas. Keiko venceu facilmente, com
quase 40% dos votos populares, mas não obteve a maioria
absoluta. PPK chegou ao segundo turno com 21% dos
votos, pouco à frente de Verónika Mendoza, candidata
da Frente Ampla, uma coalizão de esquerda, com cerca
de 19% dos votos. No fundo, o país dividiu-se entre fujimoristas e antifujimoristas – e o segundo grupo partiu-se
entre um arauto de políticas liberais, pró-mercado, e uma
defensora de políticas intervencionistas.
O espectro de Alberto Fujimori pairou sobre a campanha presidencial pela segunda vez. Nas eleições de 2011,
Keiko disputou o segundo turno com Humala, perdendo
por estreita margem (51,5% a 48,5%). Fujimori, o pai,
condenado por violações de direitos humanos e corrupção,
cumpre sentença de prisão de 25 anos. Mesmo assim, dois
quintos dos peruanos querem restaurar o fujimorismo, por
meio de sua herdeira política. É que o nome Fujimori está
associado à ordem e ao assistencialismo.
O ex-presidente Fujimori conduziu uma campanha
inclemente de erradicação do Sendero Luminoso, uma
© Congresso da República do Peru, Lima
L
Keiko, filha do ex-presidente Alberto Fujimori,
obteve quase 40% dos votos no primeiro turno
das eleições no Peru, graças a uma plataforma
assistencialista, na tradição herdada de seu pai
A esquerda na encruzilhada
Verónika Mendoza rejeitou apoiar qualquer uma das candidaturas remanescentes no segundo turno das eleições peruanas.
“Ambas representam a continuidade do modelo depredador e excludente que queremos mudar”, disse a terceira colocada no
turno inicial, acrescentando, porém, que “o pior que pode acontecer a nosso país é o retorno do fujimontesinismo ao governo”. Na linguagem política peruana, “fujimontesinismo” faz referência à dupla Alberto Fujimori e Vladimiro Montesinos, o
sinistro chefe do Serviço de Inteligência Nacional (SIN), responsável direto pelas perseguições políticas e violações de direitos
humanos no governo de Fujimori.
A segunda parte da declaração de Verónika evidencia a encruzilhada da esquerda peruana. A Frente Ampla não pode
emprestar apoio ao liberal PPK, mas define o fujimorismo como inimigo principal. De fato, além de óbvias motivações ideológicas, a esquerda peruana abomina Keiko Fujimori por razões político-eleitorais. No fim das contas, o fujimorismo rouba
o oxigênio da esquerda no país, controlando o eleitorado mais pobre.
Há 40 anos, quando as ditaduras latino-americanas perdiam fôlego, a esquerda peruana emergiu como uma força política
ascendente e coesa. Em 1977, uma coalizão esquerdista sedimentou-se na Frente Operária, Camponesa, Estudantil e Popular
(Focep), disputando o eleitorado das principais cidades e de algumas importantes regiões rurais. A Focep estava longe de almejar
realisticamente um triunfo eleitoral nacional, mas parecia abrir caminho para a consolidação de um grande partido de esquerda
no país. Contudo, a oportunidade política da esquerda foi perdida com o início da insurgência armada do Sendero Luminoso,
que atravessou toda a década de 1980 e pavimentou o caminho para o regime autoritário de Fujimori.
Uma segunda encarnação da esquerda coagulou-se com a ascensão de Ollanta Humala. O antigo oficial militar iniciou sua
carreira política na direita ultranacionalista, mas fez um brusco giro à esquerda, rendendo-se aos encantos anti-imperialistas de
Hugo Chávez. Foi como um convertido ao chavismo que ele venceu o primeiro turno das eleições presidenciais de 2006, mas
acabou batido no turno final por Alan García, o candidato do mais tradicional partido peruano. O apoio explícito e incisivo
do caudilho venezuelano parece ter sido a causa decisiva da derrota.
Humala chegou à Presidência em 2011, concorrendo como um candidato da esquerda moderada e derrotando Keiko
Fujimori. No governo, porém, abandonou sua plataforma de esquerda, conservando as políticas econômicas ortodoxas do
antecessor. Então, a esquerda desistiu de Humala, organizando-se na Frente Ampla e escolhendo Verónika Mendoza como
sua candidata. A derrota de abril evidenciou que uma muralha separa a esquerda peruana da maioria do eleitorado pobre. O
nome da muralha é fujimorismo.
MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO
organização de insurgência armada de inspiração maoísta
que operou com força na década de 1980. O Sendero Luminoso difundiu-se a partir do Departamento de Ayacucho,
no centro-sul do país, para o altiplano central e as vertentes
andinas e amazônicas setentrionais, praticando atos de
terror e aterrorizando comunidades rurais. A prisão de seu
líder, Abimael Guzmán, em 1992, marcou o declínio da
insurgência, que ainda conserva pequenos bandos e realiza
operações de impacto quase desprezível.
Junto com o triunfo sobre o Sendero, Fujimori consolidou sua liderança por meio de uma política ortodoxa de
choque anti-inflacionário e de incontáveis
ações assistencialistas, que deixaram marcas
profundas nos povoados pobres do interior.
Keiko triunfou em quase todo o Peru setentrional, beneficiando-se principalmente dos
votos dos pobres e das populações rurais.
Ela venceu em Lima, surfando no eleitorado
da periferia da metrópole, mas perdeu nas
regiões centrais da capital. Por outro lado, o
sul do Peru dividiu-se entre Verónika Mendoza, que triunfou no altiplano, e PPK, que
venceu na populosa faixa litorânea.
A fronteira do fujimorismo separa o
Peru tradicional do Peru moderno. Nas
cidades, uma classe média em expansão e
os trabalhadores organizados rejeitam o populismo autoritário do ex-presidente. Desde
a derrota de 2011, Keiko procura reinventar-se como
liderança moderada, a fim de ultrapassar a barreira
política do antifujimorismo. Durante a campanha,
comprometeu-se a respeitar a democracia e os direitos
humanos, garantindo inclusive que não tentaria promover um perdão judicial para seu pai. A sua manobra
tática consiste em distinguir a herança econômica da
herança política do fujimorismo. Ela promete estabilidade econômica e assistência aos pobres, rejeitando
as soluções autoritárias do passado.
O resultado do primeiro turno sugere que a reinvenção de Keiko não fracassou. Cinco anos atrás, a filha de
Fujimori obteve 23,5% dos votos no turno inicial, contra
31,7% de Humala, que concorria numa plataforma de
centro-esquerda. O salto para os 40% obtidos em abril
confere a Keiko uma oportunidade excepcional de alcançar o grande prêmio.
Contudo, a força do antifujimorismo não deve ser
desprezada. Em 2011, cerca de metade dos eleitores de
PPK, que chegou em terceiro lugar ao turno inicial,
com 18,5%, preferiu eleger o candidato da esquerda,
recusando a orientação de seu candidato e negandose a votar em Keiko. Hoje, as coisas inverteram-se e,
ironicamente, é o liberal PPK que depende dos votos
da esquerda para ultrapassar a herdeira do fujimorismo
[veja o boxe].
2016 MAIO
Adriano Lucchesi
Especial para Mundo
Johannesburg e Cidade do Cabo,
duas faces da África do Sul
Cidade do Cabo (acima) e
Johannesburg – associadas,
respectivamente, ao Rio
de Janeiro e a São Paulo
por turistas brasileiros que
visitam o país – são ícones
de uma sociedade que
tenta se reinventar na era
pós-apartheid
© South African Tourism
rise política e econômica endêmicas,
governo lutando contra processo de
impeachment, desemprego e criminalidade
aumentando a cada dia, êxodo de cérebros, reforma indevida na casa de campo,
corrupção sistêmica atingindo as maiores
empresas estatais do país, estádios superfaturados e ociosos, partido governista
tentando salvar o projeto de poder. Por
incrível que pareça, não estamos falando
do Brasil.
A nova República da África do Sul
foi constituída em 1994, tendo como
primeiro presidente eleito o xhosa Nelson
Mandela, líder do Congresso Nacional
Africano (CNA). Com o fim do regime
do apartheid, o CNA deixou de ser um
movimento clandestino, identificado com
a luta de liberdade dos africanos contra
a opressão neocolonialista e racista das
metrópoles europeias. Na antiga África do
Sul, os freedom fighters Nelson Mandela,
Oliver Tambo e Walter Sisulu lutavam
contra o regime do Partido Nacional de
D. F. Malan, Pieter Botha e Frederik de
Klerk. A partir de 1990, com a liberdade
de Mandela, o CNA pavimentou seu
caminho rumo ao governo. Saiu da obscuridade das townships para conquistar os
Union Buildings, o palácio presidencial de
Pretoria, sede do Poder Executivo.
Com uma ascensão espetacular e um
líder carismático, respeitado em todo o
planeta, o CNA reinou pleno por muitos
anos, sem enxergar qualquer movimento
oposicionista que viesse a tirar o sono da
cúpula do partido. Após a Presidência de
Mandela (1994-1999), assumiu o posto
seu vice, Thabo Mbeki (1999-2008). Exceto por uma política de saúde desastrada
e equivocada, em especial com relação à
prevenção da aids, Mbeki fez um bom
governo na área econômica e alçou a
África do Sul a uma posição de destaque
no continente africano. Na área social,
as transformações foram mais lentas que
as demandas da população carente, mas
houve avanços na habitação e educação,
manteve-se o excelente nível da infraestrutura, as empresas públicas de transporte,
comunicações e energia funcionavam a
contento e as tensões raciais, embora sempre evidentes, recebiam do governo ordens
de arrefecimento, não de inflamação.
Com a eleição do zulu Jacob Zuma
para a Presidência, em 2009, o CNA con-
© South African Tourism
C
verteu-se de verdadeiro partido do povo
sul-africano em mero herdeiro dos anos da
luta pela liberdade, do legado de Mandela
e, principalmente, da carta racial, para se
perpetuar no poder. A grande maioria da
população negra da África do Sul vota no
CNA quase por instinto: gratidão, lealdade
ou receio de mudanças. Mas o governo de
Zuma é tão ruim que até mesmo este cenário começa a se embaralhar, e aumenta a
demanda por mudanças. Disputas internas
no CNA enfraquecem o partido, enquanto
a oposição da Aliança Democrática, que
governa a província do Cabo Ocidental,
começa a ser percebida nas outras regiões
do país.
Os paralelos entre Brasil e África do
Sul ultrapassam as esferas da corrupção e
do desgoverno, manifestando-se também
no cotejo das duas principais metrópoles.
Johannesburg, como São Paulo, é o motor
econômico da África do Sul e sua cidade
mais populosa. A Cidade do Cabo, como
o Rio de Janeiro, destaca-se pela extraordinária beleza de suas praias e montanhas,
pelo modo de vida mais relaxado e uma
MAIO 2016
economia centrada em serviços e turismo.
Para o turista brasileiro que visita as duas
cidades sul-africanas, a comparação com
São Paulo e Rio é inevitável, embora as
semelhanças limitem-se aos pontos citados
e aos códigos telefônicos. Curiosamente,
o código de Johannesburg é 11, e o da
Cidade do Cabo, 21.
Johannesburg situa-se na Província de
Gauteng, que significa “Terra do Ouro”.
Daí veio a riqueza da menor e mais rica
província da África do Sul. O ouro, atualmente esgotado, possibilitou o financiamento de indústrias e o fortalecimento
do setor financeiro. Sandton é o ícone da
riqueza de Gauteng, enquanto Soweto
mantém-se como a referência da luta de
libertação e do período livre da vida de
Mandela nos tempos do apartheid.
Cidade de 4,5 milhões de habitantes
(ou 7 milhões, considerando a região metropolitana), espalhada por diversos bairros
e distritos interligados por highways com
e-tolls (cobrança automática de pedágios),
Jo’burg é conurbada com Pretória. Oferece vibrante vida cultural, noturna e
gastronômica, ignorada pela maioria
dos turistas, que preferem dedicar seu
tempo aos safáris, natureza e cultura de
outras regiões do país. A aversão deriva,
em parte, à injusta fama de violência
que acompanha Jo’burg. Embora o
centro da cidade de fato mereça cuidado
especial, as demais regiões são relativamente seguras e possuem atrações que
justificam o interesse dos visitantes.
A Cidade do Cabo é, na opinião de muitos, a mais bela cidade litorânea do mundo.
Além das atrações históricas e culturais do
centro (conhecido como City Bowl), que
preserva muitas construções do tempo da
Companhia das Índias Ocidentais, a fantástica arquitetura Cape Dutch é uma singular
fusão de culturas e etnias. Além das óbvias
influências africana e europeia, a cidade
também experimenta a influência asiática
e muçulmana dos Cape Malays.
A capital do Cabo Ocidental situa-se
em uma península com 75 quilômetros de
extensão em que mar e montanha se fundem em um espetáculo único da natureza.
Ao contrário do Rio, onde as montanhas
são dominadas por favelas, na Cidade do
Cabo as montanhas são protegidas tanto
pelos ricos quanto pelos pobres por uma
cuidadosa legislação de parques nacionais
que regula a utilização do patrimônio natural. A região turística é segura, e muitos
avanços sociais vêm sendo observados nas
regiões mais carentes das townships próximas ao aeroporto.
Vista por muitos como cidade arrogante e europeia, a Cidade do Cabo talvez
guarde a chave do futuro da nação. Com
uma administração moderna e eficiente,
a Aliança Democrática governa o Cabo
Ocidental desde 2009 e agora ambiciona
voos mais altos. Se Gauteng deixar de lado
as rivalidades políticas tradicionais, permitindo que novas e arejadas ideias vindas do
Atlântico atinjam Pretória, teremos uma
importante evolução no sombrio cenário
atual, marcado pelo moribundo governo
de Jacob Zuma.
Adriano Lucchesi, administrador de
empresas pela FGV e mestre em Turismo pela
ECA-USP, é diretor da Atlantic Connection
Travel, especialista em África desde 1996.
Ele completou a travessia terrestre da Cidade
do Cabo, na África do Sul, a Alexandria, no
Egito, em junho de 2015
MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO
D
esde que a Grã-Bretanha ingressou
na então Comunidade Econômica
Europeia (CEE), em 1973, a relação entre
Londres e seus sócios continentais tem
sido a de um casamento sem amor, como
bem definiu o jornal espanhol 20 Minutos.
O último lance dessa união conflituosa
teve início em setembro do ano passado,
quando a Câmara dos Comuns britânica
(Parlamento) aprovou uma lei permitindo
que o primeiro-ministro David Cameron,
do Partido Conservador, realizasse um
referendo sobre a permanência britânica
na União Europeia. Marcado para 23 de
junho, o referendo pode assinalar uma
derrota histórica do projeto europeu.
A iniciativa do referendo decorreu da
pressão dos “eurocéticos”, os contrários à
integração europeia, que cresceu muito
desde a crise econômica, inclusive no núcleo
do Partido Conservador. Eles alegam que a
União Europeia impõe excessivas regulações
à atividade econômica e que os custos não
compensam os ganhos. Também defendem
restrições drásticas à circulação de pessoas
no espaço europeu e se opõem a uma maior
integração política. Para evitar o que está
sendo chamado de Brexit (Britain exit, saída
britânica da União Europeia), Cameron
tentou arrancar de Bruxelas uma série de
concessões. O primeiro-ministro busca
armas políticas para vencer o referendo,
barrando o voto “não”.
A desconfiança britânica em relação
à Europa continental é histórica e, no
passado, levou Londres a adotar uma
política externa baseada no “equilíbrio
de poder”, de modo a evitar a hegemonia
de um único país no continente [veja a
matéria à pág. 8]. Ironicamente, foi um
líder britânico, Winston Churchill, quem
primeiro defendeu, em 1946, a criação
dos “Estados Unidos da Europa”, baseada
na reconciliação entre França e Alemanha.
Mas, quando o Tratado de Roma criou
a CEE, em 1957, a Grã-Bretanha recusou-se a integrá-la, por priorizar os laços
comerciais e políticos com os países da
Commonwealth (Comunidade britânica) e
por ter restrições a um projeto baseado no
conceito de compartilhamento da soberania nacional em benefício de instituições
supranacionais.
O cenário mudou junto com os ventos
da economia. Em 1961, os britânicos reviram sua posição e solicitaram a entrada
na CEE, mas as negociações foram barradas dois anos depois pelo presidente da
França, Charles De Gaulle, que via com
desconfiança os laços estreitos entre Lon-
Brexit: a Europa sem a Grã
Cláudio Camargo
Especial para Mundo
dres e Washington. De Gaulle acalentava o
projeto de criar uma “Europa das nações”,
equidistante das duas superpotências da
Guerra Fria (os Estados Unidos e a União
Soviética), e enxergava na Grã-Bretanha um
aliado prioritário dos Estados Unidos.
No fim, os britânicos conseguiram
entrar no clube europeu em 1973, mas
conservaram um pé atrás em relação ao
projeto de integração. Londres não aderiu
ao Sistema Monetário Europeu (SME),
criado em 1979. Durante o governo
de Margaret Thatcher, a Grã-Bretanha
assinou um acordo para reduzir sua contribuição à CEE, argumentando que não
se beneficiava dos subsídios agrícolas. Os
britânicos tampouco aderiram ao Tratado
de Maastricht, de 1992, que implantou a
moeda única, nem ao Acordo de Schengen,
de 1995, de livre circulação de cidadãos no
espaço europeu. Recentemente, em 2011,
Londres rechaçou o pacto orçamentário,
um acordo para reforçar a Zona do Euro,
atingida pela crise econômica global.
Depois da aprovação do referendo, Cameron apresentou ao presidente do Conselho Europeu, o polonês Donald Tusk, várias
propostas no sentido de redefinir a relação
britânica com a União Europeia, a fim de
debilitar os argumentos dos defensores do
Brexit. A principal, e mais polêmica, refere-se ao filho bastardo desse casamento de
conveniência: os imigrantes. Trata-se de um
“freio de contenção emergencial” – leia-se:
redução – dos benefícios dos trabalhadores
imigrantes com menos de quatro anos de
contribuição. Além disso, os britânicos propuseram que a União Europeia reconheça
o direito britânico de não avançar rumo à
união política. Londres também pressiona
por um mercado único mais aberto e menos regulado. Finalmente, Cameron pediu
o reconhecimento explícito de que o euro
não é a única moeda do bloco europeu, de
modo que países que não pertençam à Zona
do Euro não sejam alijados das decisões monetárias. As contrapostas de Tusk atenderam
parcialmente às demandas de Cameron,
mas foram questionadas por França, Bélgica
e República Checa. A França, por exemplo,
teme uma suavização das normas bancárias
que beneficie a City londrina.
No campo político do Brexit, destacase o xenófobo Partido da Independência
do Reino Unido (Ukip), liderado por Nigel Farage, que capturou 13% dos votos
Começou uma nova Batalha da Inglaterra. Do seu resultado depende o destino de
União Europeia, os escoceses votarão pela saída do Reino U
as ondas de choque do Brexit sobre um continente curvado pelo peso de diversas cris
ingleses votarem pela saída da
Timothy Garton Ash, “Here’s how to argue with a Brexiter – and win”
© Andrew Parsons/i-images/Flickr/Creative Commons
União europeia
O primeiro-ministro conservador britânico David Cameron teme que o
Brexit, além de ter um significado econômico desastroso, acabe provocando
a separação da Escócia e, com ela, o fim da própria Grã-Bretanha
nas últimas eleições para o Parlamento
Europeu. Também defendem o Brexit
inúmeros deputados conservadores e até
alguns trabalhistas. Mas os arautos da saída se viram em uma saia justa quando a líder da extrema-direita francesa, Marine Le
Pen, prometeu visitar Londres em apoio
à retirada. Do outro lado da trincheira,
Cameron obteve o apoio do presidente
americano, Barack Obama. Em visita a
Londres por ocasião do 90º aniversário
da rainha Elizabeth II, Obama advertiu
que, no caso de uma separação, os britânicos não poderiam esperar tratamento
diferenciado por parte de Washington,
como um acordo comercial bilateral. As
declarações irritaram os líderes do Brexit,
entre eles o prefeito de Londres, Boris
Johnson, conservador como Cameron.
Em artigo publicado no tabloide The
Sunpor, Johnson sustentou que o fato de
o pai de Obama ter nascido no Quênia,
ex-colônia britânica, explicava os “sentimentos antibritânicos” do presidente. De
quebra, ele criticou Obama por ter tirado
um busto de Winston Churchill do Salão
Oval da Casa Branca.
MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO
2016 MAIO
Apesar do casamento sem amor, a opção
pelo divórcio pode ser pior para ambos e péssima para o mundo. “Bruxelas é consciente
de que uma Europa sem o peso econômico
e geopolítico da Grã-Bretanha seria muito
menos Europa”, escreve Miguel Máiquez
no jornal espanhol 20 Minutos. Por isso, as
concessões à singularidade britânica exigidas
por Cameron estão sendo vistas pela União
Europeia como um mal menor. “Do outro
lado do Canal da Mancha, entretanto, a
corda é tensionada, mas sem se romper, num
reconhecimento implícito de que os tempos
do poderio britânico já se foram e que uma
Grã-Bretanha fora da União Europeia perderia grande parte de seu peso econômico e
estratégico”, conclui Máiquez.
Máiquez não disse, mas um triunfo do
Brexit provavelmente provocaria a secessão
escocesa, rompendo a unidade da Grã-Bretanha [veja a matéria à pág. 7]. O G20, por
sua vez, num alerta dramático, afirmou em
fevereiro que o Brexit poderia desestabilizar
a economia mundial. Alea jacta est!
Cláudio Camargo é jornalista
e sociólogo
ã-Bretanha?
e duas uniões: o
Reino Unido e a União Europeia. Se os
Unido. Então, não haverá Grã-Bretanha. Enquanto isso,
ses poderia sinalizar o início do fim da União Europeia.
© Fox Filmes/Divulgação
”, The Guardian, 20 de fevereiro de 2016
© W.J. Morgan & Co/Biblioteca do Congresso, Washington D.C.
A história de William Wallace, “pai” do nacionalismo
escocês, foi levado por Mel Gibson às telas
de Hollywood; as intrigas e lutas pelo poder
que marcam profundamente a Escócia foram
transformadas em tragédia por William Shakespeare,
numa de suas peças mais impressionantes, Macbeth
MAIO 2016
Referendo agita separatismo escocês
W
illiam Wallace (1270-1305) apaixona-se pela
camponesa Marian Braidfoot (1276-1297), com
quem pretende se casar, em 1296. Mas os tempos são
difíceis: estamos na Escócia, que acaba de ser invadida
pelo rei inglês Eduardo I, fazendo eclodir a primeira de
uma longa série de guerras separatistas. Para acatar a lei
imposta por Eduardo I, Wallace terá que ceder a um senhor feudal inglês o direito de dormir com sua noiva no
dia do seu casamento. Eles decidem casar-se secretamente,
e Wallace assume a resistência ao invasor, cultivando um
sentimento nacionalista herdado de seu pai (morto por
soldados ingleses).
A história é narrada no filme Coração valente, dirigido
e estrelado por Mel Gibson e lançado nos Estados Unidos em 1995. Os feitos de Wallace são retomados, hoje,
pelos nacionalistas escoceses que lutam pela separação da
Grã-Bretanha.
Wallace tornou-se um importante líder dos escoceses
e chegou a impor grandes derrotas ao exército inimigo,
em particular na sangrenta Batalha de Stirling, travada
em setembro de 1297, quando foram mortos cerca de
5 mil soldados ingleses, para um número incerto, mas
relativamente baixo, de perdas escocesas. No ano seguinte,
Wallace seria nomeado Protetor da Escócia, num momento crucial de consolidação de um ideal de unificação
nacional. Contudo, traído por uma parte da nobreza do
país, foi preso pelos ingleses e executado em 1305 (Marian
foi morta por um nobre inglês em 1297, pouco depois
de seu casamento).
As guerras contra a Inglaterra prosseguiram, de forma
intermitente, até 1357, quando a Escócia recuperou sua
independência, selada em 1502 por meio de um tratado
de paz perpétua. Para firmar o pacto, Henrique VII da
Inglaterra ofereceu em casamento sua filha Margarida ao
rei da Escócia. Cem anos depois, em 1603, o rei James
VI da Escócia se tornaria também James I da Inglaterra.
Proclamando-se rei da Grã-Bretanha, o monarca escocês
instalou-se em Londres, embora as duas nações tenham
permanecido independentes. Finalmente, em 1707, depois de longas negociações, seria assinado o Tratado da
União que criou o Reino Unido.
Nenhum capítulo dessa longa história ocorreu de forma tranquila e indolor. Muito ao contrário. Foram séculos
de guerras civis lideradas por clãs escoceses que disputavam
o poder entre si, num complexo jogo que envolvia alianças,
traições e conflitos com a monarquia inglesa. Não por
acaso, William Shakespeare inspirou-se na Escócia para
escrever Macbeth, uma de suas tragédias mais impressionantes, cujo tema central é a luta pelo poder.
A criação do Reino Unido sufocou, em parte, a voz
das correntes nacionalistas que insistiam no separatismo,
criando uma falsa sensação de estabilidade. O cenário
mudou no final da década de 1980, quando a agitação
provocada na Europa pela crise do bloco socialista estimulou a eclosão de sentimentos nacionalistas em todo o
continente. As tensões latentes voltaram a eclodir com
força também na Escócia. A expressão política desse processo foi a grande vitória eleitoral, em 2011, do Partido
Nacional Escocês (SNP), cujo líder, Alex Salmond, dizia
não ver qualquer propósito na união entre Inglaterra, Escócia e País de Gales. Para ele, uma Escócia independente,
com sua abundância em petróleo, poderia se tornar um
dos países mais ricos do mundo. Sua campanha tinha
por lema a ideia de que havia chegado a hora da Escócia
“controlar seu próprio destino”.
Tradicionalmente, a Escócia funcionou como base
política do Partido Trabalhista, de linha social-democrata.
A ascensão fulminante do SNP quase destruiu a influência
trabalhista na região, que foi substituída pelo nacionalismo separatista. À frente do SNP, Salmond conseguiu
convocar um plebiscito regional para decidir a separação
da Escócia, realizado em setembro de 2014. A proposta foi
derrotada por 55,3% contra 44,7%. Refletindo o poder
mobilizador do tema da separação, o comparecimento
às urnas, de 84,5% dos eleitores, foi o mais alto em um
pleito britânico desde 1928, quando as mulheres conquistaram o direito ao voto. Os separatistas perderam, mas a
Escócia ganhou mais autonomia e poder de decisão sobre
questões regionais.
Para derrotar o movimento separatista, os líderes dos
três principais partidos britânicos, incluindo o primeiroministro conservador David Cameron, adotaram todos
os argumentos imagináveis: da chantagem pura e simples (acenando com a catástrofe econômica da Escócia,
decorrente da impossibilidade de manter a libra esterlina
como moeda nacional, em caso de separação) até o apelo
aos laços históricos e culturais sedimentados ao longo de
séculos entre os países integrantes do Reino Unido, passando pelo medo de “um salto no desconhecido”. Tratava-se
de criar a imagem de uma Escócia que pagaria um preço
insuportável por seu isolamento, sem com isso adquirir
qualquer vantagem real. Os argumentos conseguiram
convencer a maior parte do eleitorado.
Mas o quadro político mudará completamente de
figura se triunfar a proposta do Brexit no referendo de 23
de junho. Será quase insustentável manter uma retórica
“unionista” dentro da Grã-Bretanha se a maioria dos
eleitores decidirem romper com a União Europeia. Nessa
hipótese, os separatistas argumentariam que uma Escócia
dentro da União Europeia estaria mais conectada com o
mundo que uma Grã-Bretanha rompida com a Europa.
Na sua campanha contra o Brexit, Cameron admite
que o que está em jogo é o destino da própria Grã-Bretanha. Os escoceses são profundamente europeístas. Se,
apesar disso, uma maioria composta principalmente
por ingleses decidir pelo Brexit, tudo indica que o SNP
conseguiria convocar um novo plebiscito separatista – e
triunfaria. Uma Grã-Bretanha fora da União Europeia
seria, provavelmente, apenas um Reino Desunido. Nesse
caso, mais de sete séculos depois, o fantasma de William
Wallace voltaria a rondar os campos e as terras altas da
Escócia.
MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO
união europeia
De Churchill a Cameron, Londres oscila diante da Europa
© Biblioteca do Congresso, Washigton D.C.
s dois estadistas-trovadores contaram-nos histórias
sobre quem somos – os britânicos e os franceses
– e, porque acreditamos neles, nos tornamos, em alguma
medida, os povos que eles inventaram.” O diagnóstico,
do historiador Timothy Garton Ash, refere-se a Winston
Churchill, o primeiro-ministro que conduziu a GrãBretanha na prova de fogo da Segunda Guerra Mundial,
e Charles De Gaulle, o general que se insurgiu contra
o governo colaboracionista francês e ergueu a bandeira
da resistência antinazista. As “histórias” narradas pelos
“estadistas-trovadores” ajudam a entender as divergências
entre Paris e Londres sobre a Europa e iluminam as raízes
profundas da campanha pelo Brexit.
De Gaulle contou a história da “França verdadeira”,
ou seja, da nação em luta contra a Alemanha nazista e da
potência europeia que rejeita a hegemonia norte-americana. “A Europa unida, do Atlântico aos Urais”, sua fórmula
célebre, expressava o sonho impossível de restauração
de um mundo destruído pela guerra mundial. Na visão
do general, o futuro da França seria a liderança de um
continente reconstruído, livre tanto do poderio norteamericano quanto do expansionismo soviético.
A União Europeia não emanou do sonho do general, mas de uma radical correção dele promovida pela
realidade. De Gaulle almejava perenizar a fragmentação
da Alemanha produzida pelo Acordo de Potsdam, que
desenhou as quatro zonas de ocupação na potência derrotada. Contudo, as crises que desaguaram na Guerra Fria
provocaram, em 1949, a reunião das três zonas ocidentais
na República Federal Alemã (RFA) e, ao mesmo tempo, o
nascimento da Organização do Tratado do Atlântico Norte
(Otan). Com a Otan, veio o rearmamento da RFA. Com
o Plano Marshall, a reconstrução industrial da Alemanha
Ocidental. Então, a França tomou a iniciativa de lançar o
Plano Schuman, de 1950, que resultaria na Comunidade
Europeia do Carvão e do Aço (Ceca), o embrião da atual
União Europeia.
A soberania nacional estava na base do pensamento de
De Gaulle. O projeto de integração europeia nasceu justamente da ideia de superação da soberania nacional, único
caminho para a conciliação histórica entre os interesses da
França e da Alemanha. O Plano Schuman não seria possível com De Gaulle, mas o general afastara-se do governo
francês desde janeiro de 1946. Entretanto, no conceito
de integração europeia subsistia um fragmento decisivo
da visão gaullista: a Europa unida, não “do Atlântico aos
Urais”, mas com a França no seu núcleo.
Do outro lado do Canal da Mancha, Churchill
contou uma história muito diferente. Ele falou sobre a
comunidade de interesses dos “povos de língua inglesa”,
delineando para a Grã-Bretanha um futuro no qual a Europa continente ocuparia lugar apenas periférico. Na sua
visão geopolítica, a monarquia britânica persistiria como
potência mundial pela manutenção do império, na forma
da Commonwealth, e por meio de uma aliança estratégica
com os Estados Unidos. Churchill voltou à chefia de
governo em outubro de 1951, a tempo de confirmar a
Winston Churchill sustentava uma visão
imperial da Grã-Bretanha, na qual as relações
com a Europa continental ocupavam um
lugar secundário
Gráfico 1
Comércio exterior britânico (2015)
250
200
150
Milhões de libras
“O
A corrente “eurocética” britânica manifesta-se no Partido Conservador e no ultranacionalista Ukip, mas suas raízes profundas estão
fincadas no solo do imediato pós-guerra
100
43,7%
56,3%
53,2%
46,8%
50
0
Exportações
Importações
União Europeia
Resto do mundo
Gráfico 2
Efeitos do Brexit no ritmo de crescimento britânico
(horizonte de 15 anos)
% 0
-5
-10
-15
-20
-25
-30
Cenário norueguês
Cenário canadense
Cenário russo
Fonte: HM Treasury, abril de 2016
rejeição britânica à Ceca. Londres também decidiu não
participar do Tratado de Roma, de 1957, que criou a
Comunidade Econômica Europeia (CEE). Os britânicos
são “eurocéticos” desde o início.
A mudança de rota veio apenas na década de 1960,
junto com a desintegração do Império Britânico. Contudo, a solicitação britânica de ingresso na CEE foi bloqueada precisamente pela França, presidida de novo por
MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO
De Gaulle, que enxergava na Grã-Bretanha a sombra da
influência norte-americana sobre a Europa. No fim, em
1973, mais de dois anos após a morte de De Gaulle, a
Grã-Bretanha entrou, finalmente, na CEE. Mesmo assim,
nunca ingressou em seu núcleo de decisão, articulado em
torno da parceria franco-alemã.
O “euroceticismo” definiu a rota britânica. Logo
após a queda do Muro de Berlim (1989) e a reunificação
alemã (1990), França e Alemanha dobraram a aposta na
integração europeia, firmando o Tratado de Maastricht,
de união econômica e monetária. Diante disso, Londres
repetiu seu gesto original de rejeição, aferrou-se ao dogma
da soberania nacional e decidiu ficar fora da Zona do Euro.
Um pé na canoa europeia, outro na aliança estratégica com
Washington – eis a política escolhida pelos britânicos na
encruzilhada de Maastricht.
O Partido Conservador, de Churchill, sempre funcionou como ponta de lança do “euroceticismo” britânico.
A conservadora Margaret Thatcher recusou o Tratado de
Maastricht, um quarto de século atrás. Nos últimos anos,
diante das crises combinadas do euro e dos refugiados,
a corrente “eurocética” ganhou o reforço, pela extremadireita, do xenófobo Partido da Independência do Reino
Unido (Ukip). Sob pressão intensa, o primeiro-ministro
conservador David Cameron prometeu o plebiscito
sobre a permanência do país na União Europeia. Cameron opõe-se ao Brexit, assim como a maioria do Partido
Trabalhista, de oposição, mas não têm o respaldo de seu
próprio partido, que está cindido.
Apesar dos “eurocéticos”, ao longo das décadas a GrãBretanha colou-se à Europa continental. Mesmo separada
pela moeda, a economia britânica está profundamente
integrada ao restante da União Europeia. Um indício disso
encontra-se na distribuição do comércio exterior: quase
44% das exportações e cerca de 53% das importações
britânicas realizam-se com países do bloco europeu [veja
o gráfico 1]. Na hipótese do Brexit, a parceria comercial
sofreria abalos maiores ou menores, alertam os defensores
da permanência britânica.
Um relatório técnico do Tesouro britânico analisou três
cenários econômicos resultantes do Brexit no horizonte
de 15 anos. No “cenário norueguês”, a Grã-Bretanha se
associaria à Área Econômica Europeia. No “canadense”,
Londres negociaria um acordo bilateral de comércio
com a União Europeia. Finalmente, no “russo”, a GrãBretanha não teria nenhum acordo comercial específico
com a União Europeia. A conclusão: em todos os casos,
a expansão do PIB perderia velocidade, desacelerando-se
entre 4% e 25% [veja o gráfico 2]. Não é por acaso que
o Brexit carece de apoio no meio empresarial britânico.
O Brexit parece uma péssima ideia econômica. Barack
Obama ressaltou que não é uma boa alternativa, do ponto
de vista dos interesses geopolíticos e de segurança da GrãBretanha. Mas, às vésperas do plebiscito, quase metade
dos eleitotes estavam dispostos a arriscar. É que a história
que o “estadista-trovador” contou tem seu peso.
2016 MAIO
união europeia
À beira do colapso?
No rastro da crise do euro, a crise dos refugiados esgarçou o consenso liberal europeu e amplificou a audiência das correntes nacionalistas,
colocando em risco o projeto supranacional da União Europeia
ideranças empresariais da Alemanha temem que os
desentendimentos sobre como lidar com a crise de
refugiados e o crescente nacionalismo nos países-membros
possam levar à dissolução da União Europeia. A chegada à
Europa de centenas de milhares de pessoas que fogem da
guerra e da pobreza em países como Síria e Iraque tem abalado ainda mais os laços entre os países europeus, que já se
encontravam esgarçados em decorrência da crise financeira
da Zona do Euro. Além disso, o crescente nacionalismo
pode ameaçar a riqueza, o sucesso econômico e a segurança
da Europa, disseram os presidentes das mais destacadas
associações empresariais da Alemanha à Reuters.
“‘O ano que vem vai ser crucial para a Europa’, disse
Ulrich Grillo, líder da associação industrial BDI. [...] A falta
da solidariedade dentro do bloco faz que com que a Europa
arrisque todas as conquistas das últimas décadas, disse Hans
Peter Wollseifer, presidente da Associação de Negócios
Especializados. A imigração tem elevado as preocupações
de segurança e impulsionado o apoio a partidos eurocéticos
por toda a Europa, como o partido alemão AfD, a Frente
Nacional na França, o Lei e Justiça na Polônia e o Partido
da Independência do Reino Unido (Ukip), que se opõe à
presença da Grã-Bretanha na União Europeia.”
A pequena nota, veiculada pela agência Reuters, em
dezembro de 2015, oferece uma síntese precisa da crise
que ameaça a União Europeia. Ela resulta da confluência
de três vertentes principais que se
alimentam mutuamente: a entrada de milhares de refugiados que,
submetidos a condições desumanas
e desesperadoras, buscam meios de
sobreviver; a reação orquestrada por
correntes nacionalistas e xenófobas,
que demandam o fechamento de
fronteiras; as incertezas quanto ao
futuro do euro, como decorrência
da crise mundial que se abriu em
2008. A campanha pelo Brexit, que
coloca em pânico alguns dos principais líderes europeus e o presidente
norte-americano Barack Obama,
é, provavelmente, a expressão mais
clara da dimensão atingida pela crise
[veja a matéria à pág. 6].
A abertura das fronteiras entre
os Estados europeus foi uma das
maiores realizações do processo de
integração europeia. Em junho de
1985, Alemanha, Bélgica, França e
Luxemburgo anunciaram o Acordo
de Schengen, que propunha suprimir gradualmente os controles nas fronteiras comuns e
instaurar um regime de livre circulação para todos os cidadãos dos Estados signatários e de outros países europeus
que aceitassem os seus termos. Em contraste com a crise
que produziria o colapso do antigo bloco socialista, as elites
europeias triunfantes aparentavam, então, ter a capacidade
MAIO 2016
de realizar o sonho de uma Europa livre, democrática,
internacionalista e unificada pelo mercado.
A queda do Muro de Berlim (1989), a assinatura do
Tratado de Maastricht (1992) e a entrada em vigor da
União Europeia (1993) pareciam referendar a vitória
desse modelo liberal. A humanidade em seu conjunto,
após inúmeras tentativas que resultaram em fracasso
– sendo a última delas o socialismo soviético – parecia,
finalmente, ter encontrado a melhor forma de organizar
as sociedades. Se algo demonstrava que a história tinha
mesmo chegado ao fim, com o triunfo inquestionável do
liberalismo, como preconizava Francis Fukuyama, era a
Europa de Schengen. Mas o sonho, se ainda não acabou,
agora ameaça converter-se em pesadelo.
A “crise dos refugiados” escancarou a tampa do bueiro
da xenofobia, do racismo e da islamofobia que palpitam
nos subterrâneos da vida política e cultural da Europa.
Nesse quadro, os atentados abomináveis que, nos últimos meses, sacudiram Paris e Bruxelas, cometidos pelo
grupo jihadista Estado Islâmico, geraram os motivos, ou
pretextos, para fechar as fronteiras nacionais, declarar
estado de emergência e ampliar os poderes da polícia,
além de acentuar a retórica nacionalista e anti-islâmica.
Imediatamente após os atentados, quando as dezenas
de vítimas inocentes ainda não haviam sido enterradas,
houve uma escalada de medidas repressivas e de controle
por parte dos governos europeus; na França, o presidente
social-democrata François Hollande chegou ao cúmulo
de proibir manifestações públicas. A euforia de Schengen
transformou-se no seu oposto.
No final de sua viagem à Europa, realizada em abril,
com o objetivo oficial de homenagear a rainha Elizabeth,
que completou 90 anos, Obama fez uma forte declaração:
o mundo precisa de uma Europa unida. Antes disso, o
presidente norte-americano havia multiplicado elogios à
política de abertura de fronteiras aos refugiados, preconizada pela primeira-ministra alemã Angela Merkel. As
declarações foram entendidas como um ataque direto ao
Brexit e um apelo à preservação de Schengen, como peça
fundamental à preservação do que ainda resta da ordem
mundial. Mas o pomo da discórdia é justamente a política
da Alemanha para os refugiados.
A União Europeia jamais conseguiu formular uma
alternativa à crise dos refugiados. Em 2015, alguns governos, em particular o da Hungria, decidiram fechar as
fronteiras. Merkel, inicialmente, abriu as portas da Alemanha, além de adotar uma série de outras medidas que
multiplicaram tensões entre os países do bloco europeu.
Os críticos de Merkel – em especial, os “primos pobres”
da União Europeia (Eslováquia, Hungria, Polônia e
República Checa) – passaram a
acusá-la de “hipocrisia”. Segundo os governos desses países,
o discurso humanista alemão
apenas ocultava seus interesses
reais: o país precisa de imigrantes. Estimativas oficiais indicam
que a população alemã, hoje de
82 milhões, cairá para algo em
torno de 68 milhões, em 2060.
Para que essa queda não tenha
impacto desastroso na economia,
teria que ser compensada com a
chegada de imigrantes, em um
ritmo anual de até 491 mil pessoas por ano até 2050. Merkel,
portanto, estaria tentando impor
os interesses nacionais da Alemanha ao conjunto da União
Europeia, fazendo valer seu peso
econômico e político.
Os países mais periféricos da
União Europeia – em particular,
a Grécia – tendem a pagar um
preço mais elevado pela crise,
piorando um quadro já deprimente provocado pelo desemprego e pela falta de perspectivas. Isso tudo acentua o
medo, a frustração e sentimentos irracionais de violência,
caldo de cultura ideal para o avanço da xenofobia e da
extrema-direita. Por mais que Obama multiplique apelos,
não há solução à vista.
© Patrice Pierrot/Citizenside/AFP
“L
Fundamentalistas católicos do grupo Civitas
marcham, em Paris, em defesa dos valores
cristãos e tradicionais da França, em oposição às
comunidades de imigrantes islâmicas,
árabes e africanas
MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO
jogos olímpicos
Mens sana in corpore sano
Elaine Senise Barbosa
Especial para Mundo
“Mente sã em corpo saudável” – a expressão, do poeta romano Juvenal, apareceu no
primeiro século da era cristã e tem raízes no filósofo grego Tales de Mileto. No final do século
XIX, sob a sua inspiração, o barão de Coubertin recriou os Jogos Olímpicos
© Arquivo Nacional Alemão/Clobença
Pierre de Coubertin é o idealizador dos
Jogos Olímpicos modernos, que acabaram
ganhando uma importante dimensão simbólica,
particularmente durante as Olimpíadas de
Berlim, em 1936, quando o atleta negro norteamericano Jesse Owens derrotou a equipe
alemã, encarregada por Adolf Hitler de provar a
suposta superioridade da raça ariana
©
Naj-Oleari/European
Parliament/Fotos
© Pietro
Biblioteca
do Congresso, Washington
D.C. Públicas
uando o francês Pierre de Frédy (1863-1937), o
barão de Coubertin, propôs a recriação dos Jogos
Olímpicos, no final do século XIX, ele estava projetando
sobre o universo desportivo o impacto das então recentes
descobertas arqueológicas ocorridas na Grécia. A cidade de
Olímpia, sede dos jogos gregos, era objeto de escavações
que trouxeram de volta à luz a arena olímpica.
Nessa época, os europeus gostavam de fazer listas e
rankings, um hábito que se mundializou. “As sete maravilhas do mundo antigo” era uma delas. Entre as “maravilhas” estava a estátua de Zeus Olímpico, de 12 metros
de altura, em ouro e marfim, feita por Fídias, o escultor
mais famoso da Grécia Antiga e amigo de Péricles. Descobrir esses lugares, as ruínas, era o que impulsionava a
arqueologia no século XIX, quando muitas das escavações
foram financiadas por ricaços excêntricos. Assim, Olímpia
foi encontrada: era lá que estava o Templo de Zeus e a
famosa estátua. Mas a própria estátua não estava lá. Aquele
era apenas o seu lugar.
Celebrados desde 776 a.C. às margens do Rio Alfeu e
dedicados ao deus-mor do Olimpo, os jogos congregaram
os cidadãos do mundo helênico durante mais de um milênio. Contudo, entraram na lista de “cultos pagãos” e tiveram sua realização sumariamente proibida pelo imperador
romano Teodósio I no ano de 393, quando o cristianismo
tornou-se a única religião admitida pelo Estado. Então,
Olímpia perdeu importância e declinou – horrivelmente
depois do grande incêndio que consumiu o Templo de
Zeus e a magnífica estátua, em algum momento no século V. Posteriormente, terremotos, inundações e guerras
terminaram por relegar a cidade e os Jogos Olímpicos ao
esquecimento.
A revalorização da Antiguidade Clássica no século XIX
ajudou as elites europeias da Belle Époque a afirmarem sua
autonomia diante do pensamento conservador baseado
na tradição religiosa, oferecendo-lhes um antropocentrismo grego idealizado. Nesse sentido, o tema olímpico
destacou-se por exaltar valores como o patriotismo, o
desprendimento pessoal (expresso no amadorismo dos
competidores), a honra (o famoso fair play) e o pacifismo
(pela integração dos atletas de diferentes origens). Mas
a recriação dos Jogos Olímpicos também respondeu a
outras demandas da época, ligadas à consolidação dos
Estados nacionais e à nova ordem urbano-industrial, tais
como o militarismo, o higienismo, o individualismo e a
disciplinarização das massas.
A ligação com o nacionalismo é evidente, já que os
atletas competem em nome de seus países e é o hino
nacional que coroa a entrega de medalhas. Além disso, a
regra do amadorismo reforça o princípio de que se “veste
a camisa” da pátria não por objetivos financeiros, mas por
amor desinteressado. O nacionalismo, por sua vez, pedia
exércitos compostos por cidadãos – como na Grécia – e
esses homens comuns precisavam ser treinados. O valor
que o barão de Coubertin dava à prática desportiva co-
© Biblioteca do Congresso, Washington D.C.
Q
MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO
nectava-se com uma questão crucial para os franceses de
sua geração: a vergonha pela derrota na Guerra FrancoPrussiana de 1871.
Assim como Coubertin, muitos outros estavam convencidos de que a superioridade do material humano
do exército prussiano devera-se à introdução da prática
de exercícios físicos como ginástica e corrida, capazes
de melhorar a força e disciplina dos soldados. O ideal
olímpico ajudava a trazer de volta essa valorização do
corpo enquanto “máquina” de força e resistência, cujo
desempenho poderia melhorar graças ao condicionamento e ao planejamento. Com o tempo, todos os exércitos
incorporaram as atividades físico-desportivas como parte
fundamental do treinamento militar e, não por acaso,
muitos atletas olímpicos saíram das forças armadas em
todos os lugares.
Enquanto isso, o mundo conhecia as gêmeas industrialização/urbanização e a necessidade urgente de organizar as
massas de trabalhadores que se aglomeravam nas grandes
cidades. De um lado, a preocupação com a ordem pública:
o andar na rua, o decoro pessoal, a limpeza. Do outro,
questões derivadas da nova ordem econômica: a fábrica,
a jornada de trabalho e, sobretudo, o rendimento. Disciplinar os corpos tornou-se uma importante tarefa dos
Estados, a fim de assegurar a ordem social e os interesses
da moderna economia de mercado.
Nas nascentes escolas públicas, as crianças eram
ensinadas desde pequenas a ficarem quietas e atentas, seguindo instruções sem questionar. Já a prática
esportiva – responsável pelo surgimento da Educação
Física – auxiliava no condicionamento dos corpos por
intermédio de movimentos repetitivos, pelo desenvolvimento do trabalho em equipe e pelo uso racional do
tempo. Assim preparados, os jovens ingressavam no
mundo do trabalho aptos a se ajustarem às necessidades
de suas atividades profissionais e às cobranças por “performances”. Na prática pedagógica escolar, tornou-se
comum a realização de “olimpíadas”.
Já com o avanço do sanitarismo, ou seja, da saúde
pública, o Estado conquistou o direito de invadir a privacidade do corpo em nome do interesse coletivo. As vacinas
apareceram e se tornaram obrigatórias; os desajustados
eram trancados em hospícios e prisões. O estilo de vida
deve priorizar a saúde, e os médicos e profissionais de
saúde são fundamentais nesse processo de domínio sobre
o corpo. O corpo deve ser saudável e belo, o que também
implica em autocontrole. Os atletas olímpicos são esse
ideal de perfeição, devem nos inspirar a prática de uma
alimentação saudável, a ausência de vícios, a higiene corporal. O corpo perfeito é um fim em si mesmo. Herdamos
o culto à beleza física dos gregos.
Elaine Senise Barbosa é historiadora e professora no
Curso Intergraus, em São Paulo
2016 MAIO
10
oriente médio
Acordo Sykes-Picot ainda assombra o mundo árabe
Firmado há exatos cem anos, o acordo secreto franco-britânico dividiu o Oriente Médio em esferas de influência
e delineou fronteiras hoje contestadas
MAIO 2016
O Acordo Sykes-Picot
MAR
CÁSPIO
MAR NEGRO
IMPÉRIO
RUSSO
TURQUIA
Tabriz
ZONA AZUL
Mossul
Alepo
ZONA A
Beirute
Damasco
Amã
Jerusalém
Kirkuk
PÉRSIA
(IRÃ)
Bagdá
ZONA B
ZONA
VERMELHA
Basra
SINAI
(EGITO)
ARÁBIA
SAUDITA
R
MA ELHO
M
VER
11
Mapa 1
MAR
MEDITERRÂNEO
E
m junho de 2014, após derrubar a última marca
que identificava a fronteira entre a Síria e o Iraque, um representante da organização jihadista Estado
Islâmico proclamou que o Acordo Sykes-Picot estava
liquidado. O acordo originalmente secreto, firmado
entre Grã-Bretanha e França em 1916, em plena Primeira Guerra Mundial (1914-1918), foi a base para a
delimitação de grande parte das fronteiras atuais entre
os países do Oriente Médio.
No sistema geopolítico multipolar do início do século
XX, as principais potências situavam-se no continente
europeu, com destaque para Grã-Bretanha e França, detentoras dos maiores impérios coloniais. Em um segundo
plano estavam os impérios Alemão, Russo, Austro-Húngaro e Otomano. O jogo de interesses entre essas potências
deu origem a uma série de alianças que estão na raiz da
deflagração da Primeira Guerra.
Apesar da enorme extensão de seu império colonial,
os britânicos dependiam do petróleo, uma matéria-prima energética que se tornava cada vez mais importante,
especialmente o extraído na região da Mesopotâmia, que
fazia parte do Império Turco-Otomano. Por conta disso,
esse território e algumas áreas adjacentes tornaram-se
focos das atenções de potências europeias como França,
Alemanha e Rússia.
O Império Turco-Otomano já era um gigante enfraquecido, o “homem doente da Europa”, numa expressão
da época, e perdia gradativamente o controle de territórios
sob seu domínio. Às vésperas da eclosão da guerra, a desintegração do império era entendida como uma questão
de tempo, e as potências europeias se preparavam para
avançar sobre seus despojos.
Negociado no final de 1915, o acordo foi assinado
em maio de 1916 pelos diplomatas britânico Mark Sykes
e francês François Georges-Picot. Era um pacto secreto
entre os dois governos, que se abriu depois à participação
do Império Russo e da Itália. Ele definiu o desenho geopolítico do Oriente Médio e, desde então, funciona como
um dos pilares da ordem geopolítica regional.
O acordo conciliva os interesses britânicos e franceses
durante a Primeira Guerra Mundial, travada entre a Tríplice Entente (Grã-Bretanha, França e Império Russo) e
a Tríplice Aliança (Império Alemão, Austro-Húngaro e
Itália, que mudou de lado no primeiro ano do conflito).
O Império Turco-Otomano, que controlava amplas áreas
do Oriente Médio, juntou-se à Tríplice Aliança.
Segundo o pacto secreto, os britânicos assumiriam o
controle dos territórios que atualmente correspondem, em
linhas gerais, à Jordânia e ao Iraque, além de uma pequena
área em torno de Haifa, cidade situada na porção setentrional do atual Estado de Israel. Aos franceses, caberia o
sudeste do que hoje é a Turquia, a Síria, o Líbano e o norte
do Iraque. As duas potências ficaram livres para definir
as fronteiras no interior daquelas áreas. A Palestina, que
abrange atualmente Israel e os territórios palestinos de
Gaza e Cisjordânia, ficaria sob tutela internacional [veja
o Mapa 1].
0
200 km
Zona Azul (sob controle da França)
Zona A (sob influência francesa)
Zona internacional
Zona B (sob influência britânica)
Zona Vermelha (sob controle britânico)
às pretensões do regime czarista, que havia acabado de derrubar. Apesar dos constrangimentos causados pela revelação,
a maior parte dos termos do Sykes-Picot foi ratificada pela
Conferência de San Remo (1920) e pelo Conselho da Liga
das Nações que concedeu, em 1922, os mandatos britânico
e francês no Oriente Médio. Diversas tensões no Oriente
Médio, que eclodem em crises sucessivas, refletem os efeitos
da criação de fronteiras nacionais adaptadas aos interesses
franco-britânicos.
Os jihadistas do Estado Islâmico cultivam mitos e sonhos. Mas a proclamação da falência do Acordo Sykes-Picot
não deve ser vista, exclusivamente, como uma declaração
de fanáticos. A crise em curso, expressa pela guerra civil na
Síria, pelos persistentes conflitos no norte do Iraque e pela
ascensão militar do nacionalismo curdo, atesta a desestabilização da ordem nascida com o acordo centenário. O vazio
de poder aberto nessa área foi provisoriamente ocupado
pelo Estado Islâmico, que se apoderou de territórios e
proclamou um califado em 2014. O projeto dos jihadistas
é redesenhar o mapa do Oriente Médio de acordo com sua
visão de mundo [veja o Mapa 2].
No cenário do Oriente Médio operam potências regionais (Irã, Turquia e Arábia Saudita) e extrarregionais
(Rússia, Estados Unidos, países europeus e China). Todos,
de alguma forma, tentam tirar proveito das históricas
rivalidades religiosas (especialmente entre muçulmanos
sunitas e xiitas) e étnicas (curdos e yazidis, entre outras).
Contudo, os diversos atores temem a expansão do Estado
Islâmico, cujas ações reativaram o nacionalismo curdo,
abrindo a inesperada possibilidade da criação de um Curdistão soberano. A hipótese assusta a Turquia, o Iraque, a
Síria e o Irã, países que abrigam minorias curdas.
O governo britânico comprometera-se a apoiar a criação de países árabes independentes ao final da guerra, caso
seus líderes se dispusessem a lutar contra os turcos-otomanos. A promessa britânica fora avalizada, antes do
Mapa 2
início da guerra, pelo oficial T. E. Lawrence, o famoso “Lawrence da Arábia”. O Acordo Sykes-Picot
Presença do Estado Islâmico
foi uma traição de Londres àquele compromisso.
na Síria e no Iraque
Ele também abriu o caminho para a Declaração
de Balfour, de 1917, pela qual os britânicos aceTURQUIA Kobane
100 km
naram com a criação de um Lar Nacional Judeu
Mossul
na Palestina, passo inicial que conduziria à criação
Raqqa
Alepo
do Estado de Israel, em 1948.
Kirkuk
Atualmente, circula a tese de que o Acordo
Homs
Sykes-Picot, junto com a Declaração de Balfour,
SÍRIA
IRÃ
foi idealizado para obter o apoio do movimento
LÍBANO
sionista internacional, e especialmente dos judeus
Bagdá
Damasco
norte-americanos, objetivando induzir os Estados
Unidos a ingressar na guerra europeia ao lado da
JORDÂNIA
Entente. Teria servido, também, para impulsionar
IRAQUE
a Itália a mudar de lado, visto que o país mantinha
ARÁBIA
um conflito com o Império Turco-Otomano desde
SAUDITA
1911. Como contrapartida pela troca de alianças,
os italianos receberiam o controle da Líbia e de
Áreas sob domínio ou com atividade do Estado Islâmico
algumas ilhas do Mar Egeu. O Império Russo seria
Áreas sob controle dos governos da Síria e do Iraque
recompensado com a Armênia.
ou rebeldes sírios
O acordo só chegou ao conhecimento mundial
Região autônoma curda no Iraque
porque Lenin, o líder bolchevique da Revolução
Russa de 1917, denunciou sua existência e renunciou
MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO
itália
Lições da Operação Mãos Limpas
Duas décadas atrás, juízes de Milão devassaram a corrupção sistêmica na Itália. A operação italiana, que inspira a Lava Jato no Brasil,
não deve ser culpada pela ascensão de Berlusconi ao poder
Monumento em Palermo (Sicília, Itália) faz
homenagem ao juiz Giovanni Falcone, principal
responsável pela condução da Operação Mãos
Limpas contra a corrupção, com frequência
citada pelo juiz federal brasileiro Sergio Moro,
encarregado do julgamento dos denunciados
pela Operação Lava Jato
© Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
nome do juiz federal Sérgio Moro apareceu, em
abril, na tradicional lista das cem personalidades
“mais influentes” do ano publicada pela revista norte-americana Time. “Influente”, no caso, não é elogio nem crítica:
na mesma lista figuram Barack Obama, Vladimir Putin,
Angela Merkel, o papa Francisco, o ditador norte-coreano
Kim Jong-Un e o velocista Usain Bolt. O impeachment
de Dilma Rousseff comprova a influência de Moro, pois
a Operação Lava Jato, que ele conduz, foi um dos fatores
decisivos para a queda do governo brasileiro.
Moro, um juiz de primeira instância, tem apenas 43
anos. Aos 31, em 2004, no segundo ano do mandato inicial de Lula, escreveu um artigo intitulado “Considerações
sobre a Operação Mani Pulite”, publicado numa revista
jurídica. A expressão italiana Mani Pulite significa “Mãos
Limpas”, nome da megainvestigação judicial que, na década de 1990, desvendou a vasta rede de corrupção tecida
por políticos e empresários na Itália. A célebre investigação
inspirou o jovem juiz, que enxergou no Brasil os traços
característicos da santa aliança da corrupção expostos
na Itália. Sem a Operação Mãos Limpas, provavelmente
não existiria a Lava Jato – e Moro não constaria em lista
nenhuma de personalidades “influentes”.
Uma corrente de críticos da Lava Jato, geralmente
ligados ao PT, construiu uma narrativa condenatória
sobre a Mãos Limpas. Basicamente, eles alegam que a
investigação, conduzida por Antonio di Pietro e outros
juízes de Milão, devastou o sistema político-partidário
italiano e pavimentou a ascensão ao poder do corrupto
magnata Silvio Berlusconi. Os juízes milaneses teriam
desmoralizado a elite política, “criminalizando a política”
e produzindo uma coalizão governista tão corrupta quanto
as anteriores, mas menos democrática.
De fato, a operação judicial italiana teve o efeito de
um terremoto, destruindo dois dos principais partidos
políticos. Contudo, é histórica e factualmente falsa a conclusão de que seu resultado foi a ascensão de Berlusconi.
Antes pelo contrário: o poder de Berlusconi não emanou
da Mãos Limpas, mas da interrupção da Mãos Limpas.
Eis uma primeira lição para o Brasil de hoje.
Na Mãos Limpas, os juízes milaneses desvenderam as
redes de corrupção estabelecidas entre políticos e empresários, que configuravam um sistema estável de intercâmbio
de contratos públicos por subornos. Atingida diretamente,
a Democracia Cristã (DC), maior partido do país, perdeu
metade de seus votos em 1992 e explodiu dois anos mais
tarde. Já o venerável Partido Socialista (PSI), fundado
em 1892, desapareceu junto com a DC, também como
consequência dos processos judiciais. Contudo, o segundo
maior partido, o Partido Democrático da Esquerda (PDS),
herdeiro do Partido Comunista Italiano (PCI) escapou
da fase inicial da investigação e chegou ao governo. Mais
tarde, um pacto de conveniência entre o PDS e Berlusconi solapou a Mãos Limpas, abrindo caminho para o
“berlusconismo”.
© BKLuis/Creative Commons
O
À frente de uma coalizão conservadora, Berlusconi
venceu as eleições gerais de março de 1994, mas seu
gabinete caiu em dezembro daquele ano, derrubado precisamente por revelações da Mãos Limpas. Seguiram-se
governos efêmeros, típicos do parlamentarismo italiano,
até as eleições de abril de 1996, que marcaram o triunfo
da coalizão de centro-esquerda liderada pelo PDS. O PCI
havia mudado de nome, e de programa político, em 1991,
no rastro da queda do Muro de Berlim. Naquele abril de
1996, os ex-comunistas chegavam pela primeira vez ao
MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO
poder, impulsionados pelos ventos de mudança que agitavam a sociedade italiana. Não é inexato o diagnóstico de
que a Mãos Limpas ajudou a eleger o partido da esquerda,
que parecia ter “mãos limpas” num país furioso com os
sucessivos escândalos expostos por Di Pietro.
A coalizão de centro-esquerda governou entre 1996
e 2000, primeiro com o gabinete de Romano Prodi e,
em seguida, com o de Massimo D’Alema. Nesse período
decisivo, os juízes avançavam sobre os negócios mafiosos
de Berlusconi – mas também descobriam as falcatruas de
políticos ligados ao governo. Então, com a finalidade de
proteger os seus próprios corruptos, a maioria parlamentar
do PDS ajudou a passar leis cuidadosamente desenhadas
para retardar julgamentos e antecipar a prescrição de crimes. Na prática, a bancada governista atuou em parceria
com a oposição “berlusconista” para sabotar as investigações judiciais, cortando o oxigênio da Mãos Limpas. Eis
uma segunda lição para o Brasil: esquerda e direita podem
cooperar contra a “criminalização da política”, ou seja,
na proteção dos esquemas de corrupção que envolvem
políticos de todo o espectro ideológico.
A santa aliança da elite política italiana quebrou as
pernas da Mãos Limpas. Nas eleições gerais de maio de
2001, a coalizão Forza Italia, liderada por Berlusconi,
obteve 45,4% dos votos, contra 43,5% da L’Ulivo, a coalizão liderada pelo PDS. Num
distante terceiro lugar, com 5%
dos votos, ficou o Partido de Refundação Comunista. O apertado triunfo de Berlusconi refletiu
o desencanto dos eleitores com
o teatro hipócrita dos cinco anos
de governo do PDS. A “década
de Berlusconi”, formada por seus
períodos de governo de 2001 a
2006 e de 2008 a 2011, um longo ciclo de estagnação econômica e negacionismo político, não
pode ser atribuída à Operação
Mãos Limpas.
A tese de que a Mãos Limpas
conduziu à hegemonia de Berlusconi é tão falsa quanto a de
que a revolução popular contra
a ditadura de Hosni Mubarak,
no Egito, em 2011, gerou a ditadura de Abdul al-Sisi,
implantada em 2013. No caso do Egito, a narrativa exige que se esqueça o fracasso do governo da Irmandade
Muçulmana, eleito no rastro do levante contra Mubarak.
No caso da Mãos Limpas, exige que se ignore o fracasso
de meia década de governos de centro-esquerda. Eis a
terceira lição para o Brasil: submetida a tesouradas e colagens arbitrárias, a História funciona como ferramenta
nas lutas políticas atuais.
2016 MAIO
12
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