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Tradução & Comunicação
Revista Brasileira de Tradutores
Nº. 22, Ano 2011
ALCORÃO: UMA QUESTÃO DE TRADUÇÃO E
LEITURA
Quran: a question of translating and reading
RESUMO
Nícia Adan Bonatti
Universidade Presbiteriana Mackenzie
[email protected]
O presente trabalho examina um artigo publicado no Livro Negro da condição das
mulheres que concerne aos eventos de apedrejamento, escorados pelas leis islâmicas,
e que ocorrem em especial no Irã. O fenômeno tem sua origem numa leitura da charia,
extensão da interpretação do Alcorão, o que enseja um questionamento dos efeitos da
tradução e da leitura de textos sagrados sobre os direitos civis em dada cultura. A
tradução e o estabelecimento do texto sagrado islâmico são aqui um evento complexo,
ao qual se adiciona a interpretação autorizada dos ulemás, os intérpretes outorgados
do livro-guia em sua cultura. Dessa leitura podem decorrer duas consequências: se
efetuadas por humanistas sensíveis, têm a capacidade de levar aos fundamentos de
uma ética que guie com compaixão os fiéis; se, entretanto, feitas por um viés
reducionista, que busque preservar o poder patriarcal, têm o atributo de levar
mulheres a uma situação jurídica amplamente desfavorável e, numa situação extrema,
à pena de apedrejamento. Seja qual for a vertente, o fato aponta para a
impossibilidade de domesticação e fixação de significados, sempre dados à
disseminação e sujeitos à subjetividade do leitor. É evidente que o tradutor também
não se despe dessa subjetividade que, muito marcadamente, conduz suas escolhas
lexicais e compõe a ética que norteia sua prática, que deve então se pautar pela
responsabilidade na produção de significados (a traduautoria), pelo acolhimento do
Outro e, no caso que nos ocupa, pela defesa das ideias que possam vir a modificar a
situação daqueles desprovidos de amparo jurídico e civil. Essa tradução engajada,
protótipo da relação com a alteridade, ancorada no respeito à pluralidade de visões,
na historicidade e na consideração dos direitos humanos, promoverá assim um
esforço duplo: o da aproximação com o Estrangeiro e com suas diferenças.
Palavras-Chave: tradução; leitura; alcorão; engajamento; ética.
ABSTRACT
Anhanguera Educacional Ltda.
Correspondência/Contato
Alameda Maria Tereza, 2000
Valinhos, São Paulo
CEP 13.278-181
[email protected]
Coordenação
Instituto de Pesquisas Aplicadas e
Desenvolvimento Educacional - IPADE
Artigo Original
Recebido em: 04/08/2011
Avaliado em: 03/09/2011
Publicação: 30 de setembro de 2011
The present work examines an article published in the Black Book on the Condition of
Women which concerns stonings, supported by Islamic law, and occurring, in
particular, in Iran. The phenomenon traces its origins to a reading of sharia law, in
turn arising from an interpretation of the Quran, and it here occasions an inquiry into
the effects of the translation and reading of sacred texts on civil rights in a given
culture. The translation and establishment of the sacred Islamic text are, here, a
complex event, to which is added the authorized interpretation of the ulemás -- the
approved interpreters of the guide-book in their culture. This reading reveals two
consequences: if implemented by reasonable humanists, it has the capacity to (bring to
its fundamentals) an ethics which might guide the faithful compassionately; if,
however, it is done with a reductionist bias that seeks to preserve patriarchal power, it
would have the effect of putting women in a highly unfavorable judicial situation and,
in its most extreme form, in danger of being killed by stoning. Whichever reading
should prevail, all this points to the impossibility of domesticating and fixing
signifieds, which are always given to dissemination, and subject to the interpretation
of the reader. It is clear that the translator, also, cannot simply step out of this
subjectivity, which profoundly shapes her lexical choices and comprises the ethics
which orient her practice. The translator therefore must accept responsibility for the
production of signifieds, for the reception of the Other, and, in the particular case
which occupies us here, for the defense of ideas which could come to change the
situation of those deprived of civil and judicial support. Such an engaged translation,
a prototype of the relation to and with alterity, anchored in respect for the plurality of
world-views, in historicity, and in the consideration of human rights, would therefore
have a twofold effect: that of bringing one closer to the Strange/Foreigner and her
differences.
Keywords: translation; reading; quran; engagement; ethics.
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Alcorão: uma questão de tradução e leitura
1.
POLÍTICAS DA TRADUÇÃO
Esta reflexão contempla um artigo intitulado “As lapidações no Irã” – escrito por Azadeh
Kian-Thiébaut, mestre de conferências em Ciência Política na Universidade de Paris VIII,
pesquisadora na Unidade Mista de Pesquisas (UMR) Mundo Iraniano e delegada no
Centro Nacional de pesquisa Científica (CNRS) –, que integra O Livro Negro da condição das
mulheres, a ser publicado neste semestre pela Editora Bertrand Brasil e cuja tradução foi
por mim elaborada. Ele nos auxiliará a meditar sobre os efeitos da tradução e da leitura
de textos sagrados que têm reflexos no Direito (ou na falta de direitos) das mulheres de
alguns países islâmicos, apesar de muitos deles serem signatários de tratados
internacionais, sobretudo da Declaração dos Direitos Humanos. Também oferecerá
subsídios à reflexão sobre os mecanismos de tradução, em suas várias nuanças, e as
consequências que dela podem advir.
Tenho tratado da tradução do Livro Negro por diferentes prismas em artigos
(2008, 2009) e conferências1, sempre observando a mobilização do tradutor para
disseminar em sua língua materna uma obra de vertente política que, devidamente
propagada e discutida, pode vir a gerar modificações sociais por meio de pressões
internacionais. Se atingido, esse objetivo tornará a vida de outras mulheres mais digna,
sempre no horizonte da defesa dos direitos humanos. Um passo a mais na discussão sobre
o acolhimento do Outro e sobre a predisposição à ação que pode ser movida por uma
experiência tradutória. Um olhar a mais sobre a vertente política que deriva da tradução.
2.
POPULAÇÃO DIRETAMENTE CONCERNIDA
Na introdução da entrevista que faz com o professor Tarik Ramadan, Silio Boccanera, do
programa Milênio, informa:
Um bilhão e trezentos milhões de muçulmanos se espalham pelo mundo. [...] do mundo
árabe à Indonésia, do Paquistão à Malásia e ao Afeganistão. Vivem em minoria em
regiões de tradição cristã, como a Europa, onde são quase 20 milhões, ou nos Estados
Unidos, onde são 10 milhões; encontram-se ainda em outras partes do mundo, inclusive
no Brasil. Variam na maneira de cultuar a religião fundada por Maomé no século VII e
interpretam seu livro sagrado, o Alcorão, de maneiras tão diversas quanto um
protestante escocês e um ortodoxo russo fazem com a Bíblia. Existem muçulmanos que
leem o Alcorão como um tratado jurídico, ou como a Constituição de um país, a ser
obedecida em cada cláusula, sem levar em conta a época ou as circunstâncias em que foi
escrito.
1
“Engajamento da tradutora: uma experiência de limite”, I Encontro E por falar em tradução, 15 de outubro de 2010, IELUnicamp. “A tradução do Livro Negro: em defesa da condição das mulheres”, em 20 de novembro de 2010, Centro
Universitário Adventista de São Paulo, UNASP, campus Engenheiro Coelho.
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Esses números nos fornecem a magnitude dos indivíduos concernidos pelas
questões de tradução e leitura colocadas pelo Alcorão. Também se faz necessário assinalar
a visão trazida em cena pelo entrevistado do programa. Como indica Boccanera, Tarik
Ramadan – de nacionalidade suíça, filho de egípcios, muçulmano, doutor em Teologia e
professor em Oxford – é, segundo a revista Foreign Police, uma das 50 pessoas mais
intelectualmente influentes no mundo. O entrevistado adianta, aqui, um viés que nos
ocupará neste artigo:
Quando lemos o Alcorão e as Tradições Proféticas, os dois textos que são as referências
para os muçulmanos, [percebemos que] no Alcorão há versos que, se lidos literalmente,
vão produzir discriminações. Interpretações reducionistas são feitas pelos literalistas.
(10:39).
Ele prossegue, desta feita referindo-se à projeção cultural:
O islamismo – assim como ocorre com o cristianismo, o judaísmo e os monoteísmos –
veio da sociedade patriarcal, portanto, há uma projeção sobre o texto. A maioria dos
leitores das fontes é constituída por homens. As fontes falam dos papéis das mulheres, e
não das mulheres enquanto tais. [...] Papéis tais como mãe, esposa, filha e irmã, e não
sobre o papel de mulheres. Está faltando feminilidade na literatura islâmica. [...] A leitura
que as pessoas fazem do texto é reducionista. Elas estão sendo literais, não estão
contextualizando. Às vezes, as posições das pessoas vêm da sua cultura, e não do Alcorão2.
(14:45)
A tese de Ramadan encontra respaldo na análise efetuada por Aïcha El Hajjami
(2008)
A tradição do profeta foi igualmente portadora de um projeto de transformação social
profunda. O profeta iniciou, com suas palavras e sua prática cotidiana, a reconstrução
das relações entre os sexos sobre uma base igualitária: “as mulheres são as irmãs
uterinas dos homens diante das leis” diz ele num hadith. Ele dizia num outro hadith que
percebia no fato do homem aplicar-se às tarefas caseiras, um ato pedagógico de
humildade e de reeducação, apropriado para combater a vaidade masculina, e dava ele
mesmo o exemplo assumindo diferentes tarefas dos cuidados da casa, reservadas
tradicionalmente às mulheres e consideradas como aviltantes para um homem. Essa
abordagem constituía para a época uma reviravolta na distribuição dos papéis
estabelecidos socialmente e uma tomada de consciência da separação erigida entre o
espaço público e o privado. Aliás, as mulheres muçulmanas da época em que vivia o
profeta investiram no espaço público em todos os seus setores: a mesquita, lugar do
saber e de tomadas de decisão, o souk, lugar de trocas econômicas e sociais, e
participavam da vida política e das guerras para defender a comunidade. Esses
ensinamentos muito ricos em termos de respeito e dignidade para as mulheres não
foram, infelizmente, traduzidos pelos diferentes intérpretes de textos sacros nas normas
jurídicas dos quais eles foram deduzidos. Ainda pior, algumas prescrições corânicas,
liberadoras para a época, foram desviadas de suas finalidades e interpretadas com um
sentido opressivo. Esse é o caso com a poligamia, com a dissolução do laço conjugal, e
da herança, tomando somente estes três exemplos constantemente evocados para criticar
a condição das mulheres no Islã.
As indicações oferecidas por Ramadan e El Hajjami só fazem endossar o
problema em cascata que aqui nos ocupa: o da tradução, que envolve necessariamente um
ponto de vista de quem a faz, e o da leitura – daí seu desdobramento em cascata – que
2
Todos os grifos são meus.
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dela será feita ao longo do tempo. Para enfatizar o caos, tomado em sua acepção técnica3,
precisamos considerar a construção do “original”, o que inclui a transmissão oral e a
reunião dos fragmentos conforme a visão de quem a promoveu. Para aplicar a reflexão a
um caso concreto, examinaremos o produto dessa complexa composição na estrutura
jurídico-social do Irã.
3.
O IRÃ E A PENA DE APEDREJAMENTO
O Alcorão é o livro sagrado do islã. Sua tradição indica-o como a primeira obra clara
redigida em árabe claro, o que se coloca na base da noção de “inimitabilidade” do
Alcorão. As palavras nele contidas teriam sido a palavra do próprio Deus, Alá em árabe,
transmitidas pelo arcanjo Gabriel para o profeta Maomé, durante um período de vinte e
três anos. Ela é uma das duas partes da revelação, sendo a segunda constituída pelos
hadits proféticos e pela suna. Hadits são narrativas dos atos ou ditos de Maomé, relatados
por seus companheiros e repetidos pelos crentes como parte de sua edificação espiritual.
A suna, que significa “encaminhamento” ou “prática”, e complementa a segunda fonte
primária da lei, é o meio pelo qual o Alcorão deve ser lido.
O próprio fato da transmissão do dito divino tem cunho sublime, isto é, deve-se
ao kalam, que é a capacidade de Alá traduzir para seus profetas determinadas informações
sobre o bem e o mal, a vida e a morte, o paraíso e o inferno, assim como os limites entre o
lícito e o ilícito, o que faz do al-kitâb (o livro) o paradoxo de uma obra “incriada”, que
existe sem ter sido humanamente criada, o que, portanto, confirma seu caráter inimitável,
e que durará, segundo a promessa divina, até o fim dos tempos sem sofrer alterações. Ele
é dividido em 114 capítulos chamados suratas que, por sua vez, são compostas por 6.219
versículos em sua versão canônica. Temos, de partida, um problema de tradução.
Entretanto, Maomé era iletrado, como a maioria dos homens de seu tempo;
sendo assim, memorizou os ensinamentos e proferiu-os aos seus companheiros, que o
anotaram em diversos suportes: conforme a tradição, foram transcritos em folhas,
omoplatas de camelos, pedaços de couro, fragmentos de cerâmica, etc. Apesar de todo o
cuidado de Maomé para que tudo ficasse escrito, o texto não foi reunido num só lugar. Ao
quesito tradução somam-se a fragmentação e a dispersão.
Uma primeira compilação foi feita pelo califa Abu Bakr durante os dois anos que
se seguiram à morte do profeta, ocorrida em junho de 632, aos 62 anos de idade,
3
Comportamento de um sistema dinâmico que evolui no tempo, de acordo com uma lei determinista, e é regido por
equações cujas soluções são extremamente sensíveis às condições iniciais, de modo que pequenas diferenças iniciais
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desaparecimento que acarretaria a divisão de seus seguidores entre sunitas e xiitas. Abu
Bakr temia que, com a morte dos companheiros de Maomé, inevitável diante das muitas
batalhas que enfrentavam, esse saber se perdesse. Para evitar erros, os ensinamentos
foram conferidos, inclusive por testemunhas que teriam ouvido as palavras de Maomé, e
então transcritos sobre papel. Buscou-se até mesmo garantir a pronúncia do profeta, tarefa
levada a efeito pelo califa Uthman em 647. Todas as outras versões e fragmentos
encontrados foram destruídos para que se evitasse uma leitura paralela. Todas as cópias
subsequentes derivaram desse esforço de proteção dos significados e são lidas e recitadas
até os nossos dias. Interpretado pelos ulemás, os doutores da fé, esse texto está na origem
do direito muçulmano4 (STEHLY).
Em que pese a afirmação de intraduzibilidade do Alcorão, desde a época de
Maomé o texto já foi traduzido, ainda que fragmentariamente. Entretanto, até a
atualidade algumas correntes conservadoras defendem que o texto só possa existir em
árabe, o que configura uma questão política, além de religiosa. O texto, traduzido a partir
da divindade, escrito por um esforço coletivo, cujos significados foram “garantidos” por
um califa, destina-se, desta forma, a ser confinado a uma só língua.
Os muçulmanos reconhecem a charia, conjunto de regras que norteiam sua
conduta. Em árabe esse termo é usado no sentido religioso e significa “caminho para
respeitar a lei de Deus”; ele codifica os aspectos públicos e privados da vida no islã, o que
o faz ser designado, no Ocidente, como lei islâmica ou direito muçulmano. Seu alcance,
normatividade e aplicação variam geograficamente. As normas nele contidas também são
dependentes da distinção existente entre revelação e inspiração, o que traz dificuldades no
plano teológico-jurídico. Mohammed Shakankiri (1981), professor de Direito na
Universidade de Paris, indica que a charia é a “via”, enquanto o fiqh, sistema legislativo
que faz referência à submissão total a Deus, é “a inteligência, a explicação e a
interpretação da charia”. Esse autor sugere que a insuficiência da lei revelada para
regulamentar todos os problemas jurídicos da vida muçulmana levou à extensão da charia,
fazendo-a conter regras de origem não religiosa. Pode-se deduzir que isso configura um
problema de ampliação interpretativa, uma questão de leitura e de inferências. De toda
forma, apesar de citada no Alcorão (surata 5, versículo 48; surata 42, versículo 13), a charia
nunca foi codificada num livro de leis. Disso decorre um dos problemas suscitados pelas
extensões e livres interpretações, o da lapidação ou apedrejamento, sanção aplicada na
atualidade muitas vezes, nos casos de adultério. Temos que considerar, para os fins que
acarretarão estados posteriores extremamente diferentes. (Houaiss)
4 Disponível em: <http://stehly.chez-alice.fr/histoire1.htm>. Acesso em: fev. 2010.
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aqui nos ocupam, que o Alcorão não propõe, em caso de infidelidade, a pena de lapidação
(KHIAN-THIÉBAUT, p. 116)
É sobre esse tecido textual/interpretativo apontado que o Irã, a partir da
revolução de 1979, baseia sua Constituição, o que suscita alguns problemas internacionais,
como pode ser visto numa decisão da Corte Europeia dos Direitos Humanos de 31 de
julho de 2001 (PARTISI e outros):
Assim como a Corte Constitucional, esta Corte reconhece que a Charia, refletindo
fielmente os dogmas e as regras divinas estabelecidas pela religião, apresenta um caráter
estável e invariável. São-lhes estrangeiros princípios tais como o pluralismo na
participação política ou a evolução incessante das liberdades públicas. A Corte sublinha
que, lidas conjuntamente, as declarações em questão que contêm referências explícitas à
instauração da Charia dificilmente são compatíveis com os princípios fundamentais da
democracia, tais como resultam do Tratado compreendido como um todo. É difícil
declarar-se respeitoso da democracia e dos direitos humanos, e simultaneamente
sustentar um regime fundamentado na Charia, que se afasta claramente dos valores do
Tratado, sobretudo em relação às suas regras de direito penal e de procedimento penal,
do lugar nela reservado às mulheres na ordem jurídica e à sua intervenção em todos os
campos da vida privada e pública, em conformidade com as normas religiosas.
O Irã sofreu muitas mudanças sociais a partir do século XX. A chegada da
modernidade (trazida pela Revolução Constitucionalista de 1906-1911, da qual as
mulheres participaram) acenou com transformações desejáveis – que finalmente não
aconteceram – e acabaram por confinar a mulher ao espaço doméstico, disponível para o
desejo de seu parceiro e responsável pela educação dos filhos. O código civil de 1933,
amplamente fundado na charia, manteve a superioridade masculina e a ordem patriarcal.
Contudo, durante o reino de Reza Shah (1925-1941), fundador da dinastia dos Pahlavi
(1925-1979), algumas reformas foram introduzidas, tais como a aceleração da
escolarização das meninas em meio urbano e a fundação da Universidade de Teerã em
1936, mesmo ano em que os tribunais islâmicos foram abolidos e em que o porte do véu
foi proibido. Essa medida causou uma enorme polêmica, pois
[...] para a esmagadora maioria das mulheres que estava confinada no mundo fechado
dos valores tradicionais, não portar o véu equivalia à nudez. Aos olhos de seus maridos,
pais ou irmãos que, conformemente à tradição, eram os guardiões da honra (nâmous) da
família e do 'pudor' das mulheres, essa proibição era inaceitável, dado que os despojava
de sua masculinidade. (KIAN-THIÉBAUT, p.111)
O Alcorão pronuncia-se a respeito e recomenda às crentes que “dobrem o véu
sobre o peito e que “abaixem o olhar, que guardem a castidade” (24:31 e 33:59), o que de
modo algum implica as sanções que foram posteriormente também interpretadas pelos
líderes religiosos. Annie Sugier, que escreve “O caso do véu na França”, também no Livro
Negro, reproduz um trecho de um artigo do jornal Libération (10/12/2003), de autoria do
escritor Mohamed Kacimi, em que este explica a origem do véu:
[...] trata-se de uma crença semítica muito antiga, que considerava a cabeleira como o
reflexo dos pêlos púbicos. [...] O véu é o meio de tornar a mulher invisível no espaço
público, é o meio de designar-lhe seu lugar e seu estatuto de subordinada. Ainda em
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nossos dias, o uso do véu é obrigatório no Irã, inclusive para as turistas. Só no ano de
2007, a polícia fez mais de 110.000 “advertências” para mulheres “mal veladas”. (p. 379)
Havia nas leis islâmicas tanto a noção de adultério quanto a de execução por
apedrejamento, mas sua codificação e aplicação datam do estabelecimento da Revolução
Islâmica. Sob o pretexto de privilegiar a procriação e a família, punem-se todas as relações
sexuais que transgridem as prescrições5, como indica Kian-Thiébaut:
O adultério é definido como a relação sexual, fora do casamento, entre um homem e
uma mulher, ou entre dois homens, ou entre duas mulheres. O islã, como todas as outras
religiões, privilegia a procriação e a família e reprova todas as relações sexuais que
transgridem as prescrições. (p. 116)
A punição tem origem no rito da lapidação de Satã em Mina, etapa essencial na
peregrinação a Meca: um monólito, representação do Mal, é ali alvo de pedradas de todos
os peregrinos que se dirigem à cidade sagrada. Para Kian-Thiébaut, “as mulheres que
ousam exercer sua sexualidade fora do quadro determinado pelas leis e normas
dominantes seriam então as representantes de Satã, que convêm serem eliminadas por
meio de pedradas.” (p. 116)
Mas de onde se traduziu esse castigo? O Alcorão faz várias referências ao
adultério: “Se vossas mulheres cometem a ação infame [o adultério], chamem quatro
testemunhas. Se seus testemunhos se reunirem contra elas, tranquem-nas nas casas até
que a morte as visite ou que Deus lhes ofereça uma forma de salvação.” (4:19). Em outro
lugar, propõe até mesmo o perdão para o adultério: “Se dois indivíduos dentre vós
cometem uma ação infame, puna-os a ambos; mas se eles se arrependem e se corrigem,
deixe-os tranquilos, pois Deus perdoa e é misericordioso.” (4:20). Os dispositivos contidos
nesse versículo são modificados na surata XXIV, A Luz: “Infligireis ao homem e à mulher
adúlteros cem chibatadas cada um. Que a compaixão não vos entrave no cumprimento
desse preceito de Deus... Que o suplício ocorra na presença de certo números de crentes.”
(273) A fim de evitar falsos testemunhos ou difamações, o Alcorão prevê severas punições
para os acusadores: “Aqueles que acusarem de adultério uma mulher virtuosa, sem poder
encontrar quatro testemunhas, serão punidos com oitenta chibatadas; além disso, vós não
admitireis jamais seu testemunho, em qualquer coisa que seja, pois eles são perversos.”
(24:6)
A prova de adultério que o Alcorão exige (quatro testemunhas) é muito difícil – e
às vezes impossível – de estabelecer. Além disso, segundo as principais doutrinas
jurídicas do islã, as quatro testemunhas devem assegurar-se de que a penetração tenha
5
Ver, por exemplo, uma execução em: <http://www.apostatesofislam.com/media/stoning.htm> e explicações dadas por
Hadi Ghaemi, da International Campaign for Human Rights in Iran, em <http://www.slate.fr/story/25895/Iran-lapidationfemmes-justice-Islam>. Acesso em: fev. 2010.
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ocorrido, e isso deve ser feito passando-se um fio entre os corpos no momento do
adultério presumido. O adultério só é provado se o fio encontrar um obstáculo.
A lapidação, portanto, é codificada e praticada na base do hadith , àquilo que se
julga teria sido dito pelo Profeta. Mas, como explica o aiatolá Jannâti, professor na escola
teológica de Qom, há mais de cinquenta mil hadiths não autenticados; dentre eles, a maior
parte é em detrimento das mulheres e de seus interesses6.
Essa leitura do hadith seria então uma questão de livre interpretação e de
consequente ilegitimidade que tem seus efeitos imediatos atentando contra a integridade
e o direito fundamental à vida das mulheres. No Irã, no Paquistão, no Afeganistão, na
Nigéria, na Arábia Saudita, entre outros países, subsiste a execução por apedrejamento,
levada a cabo com requintes de perversidade. Ele é aplicado em casos de adultério (ou
suposição de) e está previsto no código penal iraniano (Lei de Hodoud e Qesas,
promulgada pelo Parlamento Islâmico em 1982). Nesse caso, a lei prevê duas penas: a
morte por lapidação ou as chibatadas. No primeiro caso, antes da execução, a condenada
deve tomar um banho cerimonial com água de lótus, depois com água de cânfora, depois
com água pura e em seguida se envolver numa límpida e alva mortalha. Nos termos do
artigo 102, as mulheres deverão ser enterradas até a altura do peito (e os homens até a
cintura, o que, deixando-lhes os braços livres, permite ao menos um simulacro de
autodefesa contra as pedradas); pelo artigo 104, indica-se que o tamanho das pedras não
deverá ser muito grande a fim de não causar a morte muito rapidamente; também não
deverão ser pequenas a ponto de não poderem receber o nome de pedras. A finalidade da
execução é infligir à vítima uma dor atroz antes de sua morte. Note-se que o
procedimento dura cerca de meia hora, o que proporciona um sofrimento indizível àquela
que é vítima de tal punição, até que a morte sobrevenha. Em seguida, ela receberá as
preces dos mortos, antes de ser enterrada. Como se vê, uma atrocidade praticada sem
qualquer fundamento jurídico e/ou religioso, mas convenientemente ancorada, do ponto
de vista masculino, que se apressa em defendê-los, nos “costumes” que nenhuma
instituição, nesses lugares, ousa questionar ou afrontar. Esse é o produto da
“interpretação” de líderes religiosos que fundam as práticas civis na charia.
Alguns exemplos flagrantes da punição mobilizaram a opinião pública
internacional em 2004, com a condenação, entre outras, de Jila Izadi, uma garota de
apenas treze anos de idade, acusada de relações incestuosas com seu irmão de 15 anos, e a
de outra menor, Leyla Mafi, deficiente mental acusada de prostituição. Segundo um
6
As declarações do aiatolá Jannât, estão publicadas em Haqouq-e zanan, n° 19-20, março de 2001, p. 13, e são citadas in
Azadeh Kian-Thiébaut, Les femmes iraniennes entre islam, État et famille, op. cit., p. 239.
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relatório da Anistia Internacional, ambas conseguiram um sursis da execução, obtido
depois de protestos nacionais e internacionais. A despeito dessas pequenas grandes
vitórias, as disposições legais concernindo à execução por apedrejamento ou outras
modalidades, tais como o enforcamento, permanecem e se fizeram sentir na execução de
ao menos 159 pessoas, entre as quais uma menor, contabilidade que se refere somente ao
ano de 2004. A Anistia Internacional teme que o número de execuções a partir de 2005
tenha sido continuamente subestimado e indica que o Irã tem a mais alta taxa de
execuções sumárias: em 2008, por exemplo, elas foram oficialmente divulgadas como
sendo 317. Apesar disso, o Irã engajou-se de modo explícito e sem reservas a respeitar o
artigo 6 do Pacto Internacional, relativo aos direitos civis e políticos, pronunciando a pena
de morte somente “para os crimes mais graves”.
Kian-Thiébaut prossegue em suas indagações:
Por que as autoridades iranianas consideram o adultério como um crime grave? Em que
a sexualidade da mulher poria em risco a ordem social? Por que as mulheres sofrem,
mais que os homens, esse castigo atroz que é a morte por lapidação? Podemos buscar as
respostas a essas questões na doutrina islâmica, fundada na hipótese de uma
sexualidade feminina ativa. Percebida como uma força poderosa, ela conduziria, na falta
de controle, ao caos social (fitna) e ameaçaria a vida religiosa e cívica dos homens7. (p.
110)
A autora assinala as modificações introduzidas pela modernidade no Irã,
apontando para o retrocesso causado pelo “retorno às origens” defendido pelos líderes de
então:
Não se encontram traços de relações heterossexuais extraconjugais no Irã antes do início
do século XX. Na dinastia dos Qajars (1796-1925), as relações homossexuais eram
difundidas entre os homens, e as autoridades clericais, excluídas do poder político, não
conseguiam impor as penas previstas pelas leis islâmicas. O amor masculino era
centrado no homem amado, adolescente (amrad) ou adulto (mokahannas), e a idéia de
beleza era assexuada8. A chegada da modernidade (trazida pela Revolução
Constitucionalista de 1906-1911, da qual as mulheres participaram) tornou o desejo e a
relação homossexuais anormais e retrógrados, e colocou a responsabilidade desses
eventos sobre o confinamento das mulheres no espaço doméstico e na segregação sexual.
O desejo heterossexual tornou-se, dessa forma, uma condição para aceder à
modernidade. A socialização dos homens e das mulheres no espaço público deveria
facilitar a emergência desse desejo heterossexual, conduzindo a uma nova configuração
da vida familiar e à transformação do casamento de um contrato de procriação numa
relação romântica. (p. 110)
Na análise que efetua, Kian-Thiébaut defende que em nome da preservação dos
valores familiares, do cuidado com a prole e com a continuidade das gerações, esboçou-se
um retrato de lealdade e disponibilidade da mulher para com seu marido, às expensas de
seu relacionamento com outras mulheres, de sua formação intelectual, de seus anseios
7
A esse respeito, os trabalhos da marroquina Fatima Mernissi são muito esclarecedores. Fatima Mernissi, Beyond the Veil.
Male-Female Dynamics in a Modern Muslim Society, New York, Wiley, 1975, Fatima Mernissi, Sexe, idéologie, islam, Tierce Deux
Temps, 1983.
8 Afsaneh Najmabadi, Women with Mustaches and Men without Beards. Gender and Sexual Anxieties of Iranian Modernity,
Berkeley, Los Angeles, University of California Press, 2005.
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pessoais e de sua participação no mercado de trabalho9. Por outro lado, os homens
preservaram suas prerrogativas dentro do casamento, tomado então como um contrato
sexual/procriador que admitia, entre outras benesses, o repúdio sumário, a poligamia, o
casamento temporário10, a guarda dos filhos, o direito à herança etc.
4.
BASES DA LEITURA ATUAL
É preciso enfatizar que embora existisse a noção de adultério e das sanções a ele aplicadas
nas leis islâmicas, sua codificação e aplicação datam da instauração da Revolução
Islâmica. A finalidade, segundo as autoridades, é preservar a imagem da pureza da
mulher islâmica, portanto, qualquer transgressão deve ser violentamente reprimida, o que
vem garantir o reforço da ordem patriarcal e da dominação masculina11. À mulher cabe o
papel de depositário dos valores familiares e aquele de submissão total, caso contrário
punições adicionais podem ser levadas a cabo:
Se a mulher recusa a submissão, a lei autoriza seu marido a sancioná-la, em primeiro
lugar recusando-se a fornecer-lhe sua pensão (artigo 1108 do código civil), e em certos
casos pelo divórcio. A submissão da mulher é objeto de um amplo consenso entre os
especialistas da jurisprudência islâmica, que alimentam seus argumentos em vários
versículos do Alcorão: “A mulher é seu campo. Cultive-a da maneira que quiser, tendo feito
antes alguns atos de devoção [...]. Os maridos são superiores às suas mulheres por causa das
qualidades pelas quais Deus os elevou acima delas, e por que os homens empregam seus bens para
dotar as mulheres. As mulheres virtuosas são obedientes e submissas [...]. Vocês admoestarão
aquelas desobedientes e as relegarão a leitos à parte; vocês as espancarão, mas assim que
obedecerem, não sejam mais agressivos com elas”12.
O controle total das mulheres inclui aquele de sua sexualidade, que deve ser
exercida exclusivamente dentro do quadro do casamento. O conjunto vem reforçar a
desigualdade entre os sexos, atribuível a uma hierarquia natural e que submete a mulher
às exigências sexuais de seu marido (artigo 1105 do código civil). A disponibilidade da
mulher tem que ser ampla e irrestrita, em que pesem seus próprios apetites e disposição
física, pouco importando a época em que seus deveres se choquem com suas próprias
contingências de saúde:
Segundo o islã, a melhor mulher muçulmana é aquela cujo instinto sexual em relação ao
marido permanece vivo e desperto. Aquela que se declara sempre pronta a iniciar o ato
sexual com seu marido e que toma a iniciativa. Um hadith afirma que um dia uma
mulher perguntou ao Profeta qual era o direito dos maridos e ele respondeu que estes
9
Para outras abordagens, vide Nima Naghibi, Rethinking Global Sisterhood,, Minnesota Press, 2007.
O casamento temporário (dito nekâh monqate´, mot´eh ou sigheh), cuja duração varia de alguns minutos a noventa e nove
anos, é próprio da chari´a xiita duodecimana. Ele permite aos homens, casados ou celibatários, envolverem-se em relações
extraconjugais em completa legalidade. (N. da A.) Duodecimana é uma corrente muçulmana xiita, majoritária no Líbano e
no Irã.
11 Azadeh Kian-Thiébaut, « Changements familiaux et modernité politique en Iran », in Famille et mutations socio-politiques.
L´approche culturaliste à l´épreuve, Azadeh Kian-Thiébaut e Marie Ladier-Fouladi (org.), Paris, Éditions de la Maison des
Sciences de l´Homme, 2005.
12 Alcorão, traduzido do árabe para o francês por Kasimirski, cronologia e prefácio de Mohammad Arkoun, G. F.
Flammarion, 1970. Por ordem de citação: surata II, La Génisse, versículo 223, p. 62; surata II, La Génisse, versículo 228, p. 63;
surata IV, Les Femmes, versículo 38, p. 92. (N. da A.) Surata ou sura significa capítulo. (N. da T.)
10
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tinham vários. A mulher pediu-lhe então que enumerasse alguns deles. O Profeta
respondeu: “A mulher deve perfumar-se, vestir sua melhor roupa, maquiar-se e
oferecer-se ao seu marido todas as manhãs e todas as noites13“.
Outros autores vêm corroborar essa visão:
A mulher ideal é aquela que jamais recusa seus serviços sexuais ao marido. Mesmo
quando está angustiada e não está pronta, ela se submete ao marido simulando ser dela
a iniciativa do ato sexual. A mulher deve encurtar suas preces para satisfazer às
demandas sexuais de seu marido. Quando ele a espera no leito, é proibido à mulher
afastar-se deste para fazer suas preces ou para cumprir outros deveres religiosos. 14
Para o universo feminino iraniano, a lapidação funciona como um espectro
terrível, que espreita as mulheres mesmo na ausência de fatos concretos, contrariamente
ao que prega o Alcorão, dado que basta a suspeita para dar início a um procedimento que
leve ao apedrejamento. Essa realidade é tratada com sensibilidade em Le dernier souper (A
última ceia), filme iraniano de Fereydoun Jeyrani15, que trata da vida de uma professora
universitária submetida a um casamento arranjado e a uma vida sem paixões. No entanto,
ela acaba por conhecer um jovem, de quem se enamora. Depois de infinitas hesitações e
pesadelos com possíveis punições, ela acaba por decidir-se e pede o divórcio para ficar
com seu amor. Seu ato é qualificado de imoral e repudiado por todos os que a cercam. Ela
é assassinada por sua própria filha, em seu leito de noiva, mostrando assim que foi
finalmente alcançada pela ordem patriarcal.
5.
EXEMPLOS DE CONDENAÇÕES
Outras histórias de vida, infelizmente reais, são elencadas por Kian-Thiébaut:
Em 2004, Hajieh Esmailvand, de trinta e cinco anos, foi presa e acusada de ter cometido
adultério com um jovem de dezessete anos. Os dois foram presos em Jolfa, no noroeste
do país. Foram condenados à morte, ele por chibatadas, ela por apedrejamento. Em
novembro de 2004 as penas foram confirmadas pela Suprema Corte; esta ordenou que a
lapidação ocorresse antes de 21 de dezembro. Em 23 de dezembro, as autoridades teriam
suspendido temporariamente a sentença e submetido o caso à Comissão de Clemência e
de Anistia (Komisyon-e Afv va Bakhshoudegi) para que esta se pronunciasse sobre a
lapidação. Órgão do poder judiciário, esta última é habilitada a reduzir as penas ou a
agraciar os prisioneiros. O mesmo caso ocorreu com uma jovem menor de idade que tem
deficiência mental, Leyla Mafi, declarada culpada de prostituição e condenada à morte
em maio de 2004 pelo tribunal de primeira instância de Arak, baseada em suas
“confissões” diante da Corte. Segundo o relatório anual da Anistia Internacional
publicado em 25 de maio de 2005, as duas mulheres teriam se beneficiado de um sursis
da execução, obtido depois de protestos nacionais e internacionais. Entretanto, as
disposições legais concernindo a execução por lapidação permanecem. Se o número de
condenações à morte por lapidação baixou devido às pressões internacionais, o número
de execuções não diminuiu. Segundo o mesmo relatório, em 2004, “pelo menos 159
pessoas, entre as quais um menor, foram executados”. Dentre eles, Atefeh Rajabi, garota
de dezesseis anos, deficiente mental, foi condenada por prostituição e enforcada em 15
de agosto em Neka, cidade do norte do país.
13
Vasael-al Chi´ieh, vol. 14, p. 112, in Seyyed Javad Mostafavi, op. cit., vol. 1, p. 163. Apud Kian-Thiébaut, p. 113.
Ali Qaemi, Tashkil-e Khanevadeh dar Eslam (A formação da família no islã), Teerã, Ed. Amiri, 1994, p. 184-185.
15 Produzido em 2002, ganhou o prêmio de melhor filme e de melhor diretor no Festival Internacional de Filme de Los
Angeles (ARPA), e o prêmio de melhor atriz do Festival Internacional do Cairo.
14
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Mais um caso veio juntar-se a essas denúncias. Ocupando as manchetes de
jornais por todos os cantos do mundo e as preocupações de todos os órgãos de defesa dos
direitos humanos, de todas as instituições internacionais que podem de alguma forma
atuar, além de conclamações à adesão de todos os indivíduos por meio de infinitos
abaixo-assinados veiculados pela internet, surgiu o caso de Sakineh, a jovem mulher
iraniana condenada primeiramente às chibatadas e, num segundo momento, ao
apedrejamento. Em linhas bem amplas, eis a sua história:
5.1. Um caso emblemático: Sakineh Mohammadi Ashtiani
Em maio de 2006 a iraniana Shakineh Mohammadi Ashtiani foi julgada por ter mantido
relações ilícitas com dois homens, apesar de naquele momento já ser viúva. Foi condenada
à flagelação e recebeu 99 chibatadas. Contudo, em dezembro de 2006, por ocasião do
julgamento de um desses homens, Shakineh foi novamente trazida à cena: desta vez foi
declarada “culpada de adultério enquanto estava casada” e condenada à morte por
apedrejamento. Posteriormente Shakineh, cuja língua materna é o azeri, alegou que seu
depoimento havia sido feito sob tortura e que a declaração que assinara tinha sido escrita
em persa, língua que ela não fala. Além disso, só havia conseguido um advogado depois
do fim do procedimento de apelação. A imprensa foi proibida de cobrir o caso.
Em 27 de maio de 2007 a Suprema Corte confirmou a sentença de morte, de
modo que somente uma graça concedida pelo aiatolá Ali Khamenei poderia evitar a
execução. Esta se mostrava iminente em julho de 2010, quando os filhos da acusada
fizeram uma campanha pela suspensão da pena. Muitos países, dentre os quais os Estados
Unidos e aqueles componentes da União Européia, fizeram manifestações e pedidos
oficiais ao Irã, na esteira da campanha dos filhos da acusada. Tiveram na empreitada a
companhia de organizações internacionais tais como Avaaz, Anistia Internacional e Human
Rights Watch.
Em 1º de agosto do mesmo ano o presidente Lula ofereceu asilo a Shakineh, mas
Teerã recusou a proposta. No dia 3 de agosto o New York Times indicou que a iraniana
havia também sido acusada de cúmplice no assassinato de seu marido. Além disso, o
advogado que a assistia, Mohammad Mos, assustado com as autoridades iranianas, pediu
asilo na Noruega. Ele foi substituído pelo causídico Houtan Kian, que em 4 de agosto
recebeu a informação de que sua cliente poderia ser executada por enforcamento. Pouco
depois, dois jornalistas alemães, do diário “Bild”, que entrevistavam o advogado e Sajjad,
filho da acusada, foram presos e torturados em Tabriz, cidade em que a ré está presa. O
advogado e Sajjad, que já haviam previsto essa possibilidade, também tinham pedido a
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intervenção do papa Bento XVI em favor de Sakineh e asilo político à Itália para si e para
Sahideh, sua irmã, pois corriam riscos no Irã. Em 2 de novembro, a Folha.com publicava:
“Recebemos do Irã informações fundamentadas de uma aceleração dos tempos de
execução. Podemos estar na vigília do enforcamento”, disse o presidente da associação
Refugiados Políticos Iranianos na Itália, Karimi Davood. Logo depois que a informação
foi divulgada, o Ministério de Relações Exteriores iraniano rejeitou que a decisão fosse
definitiva e garantiu que os procedimentos legais ainda não estavam concluídos. De
acordo com Davood, o que o governo do presidente Mahmoud Ahmadinejad busca é
“enforcar Sakineh em segredo e deixar o mundo diante de um fato consumado”, o que
causa “grande preocupação”.
Essa quase-novela que a cada capítulo nos deixa sem fôlego e à beira do
desespero pela impotência experimentada ainda não chegou ao fim – pelo menos não a
um fim conhecido. Percebe-se a intenção nítida de punir a qualquer custo, mesmo que a
acusação precise ser mudada ao sabor dos acontecimentos. Se a comunidade internacional
e os órgãos de defesa dos direitos humanos fizerem ecoar a barbaridade da sentença, há
que se alterar o grau de sordidez do crime: se o Ocidente não reconhece o “adultério” de
que se acusa Sakineh, é mister agravar o delito para que se possa efetivar a punição. Vista
daqui, a partir de nosso país, totalmente inserido no século XXI, essa odisséia parece
ainda mais bárbara e incongruente. Infelizmente, não é caso único, e compõe o triste leque
das arbitrariedades e violências cometidas contra as mulheres.
5.2. Um casamento temporário: Shahla Jahed
Em 01 de dezembro de 2010, Shahla Jahed foi condenada pela morte da mulher de Nasser
Mohammadkhani, ex-atacante da seleção iraniana nos anos 1980 e ex-técnico do
Persepolis, time de Teerã. Jahed era “esposa temporária” de Mohammadkhani, segundo a
lei islâmica do Irã, que permite aos homens ter até quatro esposas permanentes e um
número ilimitado de mulheres temporárias, desde que o marido arque com as despesas
das mulheres. A união temporária pode ser anulada ou renovada, o que leva críticos do
regime a qualificá-la como “prostituição legalizada”. Ao contrário da situação masculina,
as mulheres iranianas só podem ter um marido. Laleh Saharkhizan, a esposa do jogador,
foi morta em 2002, enquanto Mohammadkhani estava na Alemanha com seu time, o
Persepolis. Na época, o atleta também chegou a ser preso por cumplicidade, mas foi
liberado dias depois após autoridades afirmarem que Shahla havia confessado ter
cometido o crime sozinha. Quando ela pôde falar, fez um protesto durante seu
julgamento: “Se querem me matar, vão em frente. Se me mandarem de volta (à prisão),
vou confessar não apenas a morte de Laleh, mas também a de pessoas que foram mortas
por outros.” Apesar do estatuto de “esposa temporária”, Shala Jahed foi tida como “a
amante” do jogador, o que por si só já representa uma condenação e carrega consigo o
repúdio social, sobretudo daqueles que a acusam. Estes o fazem, não por acaso, na mesma
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linha de incriminação: o assassinato. Ainda aqui, uma mudança do prisma de leitura – a
do estatuto ocupado pela mulher – que atende à conveniência do momento.
Mohammadkhani compareceu ao enforcamento, realizado na prisão Evin, em Teerã, e o
irmão de Jahed puxou a cadeira que estava sob a condenada.
6.
LEITURA E TRADUÇÃO
Rosemary Arrojo (1992) indica:
O significado é produzido pelo leitor a partir de suas circunstâncias e das convenções
que organizam e delimitam suas instituições, inclusive a linguagem. Nesse sentido,
nenhuma leitura poderia ser considerada absolutamente correta ou incorreta,
absolutamente aceitável ou inaceitável. Uma determinada leitura pode ser considerada
correta ou aceitável apenas dentro de uma determinada situação ou perspectiva e esse
julgamento seria necessariamente diferente em outra situação e a partir de outra
perspectiva. (p. 88)
Essa reflexão nos levaria de pronto às condições de estabelecimento do texto do
Alcorão, desde o acontecimento do kalam e da revelação do divino para o humano,
considerando-se também a extensão temporal de mais de duas décadas para a apreensão
dos ensinamentos efetuada por Maomé, o processo de memorização e em seguida de
transmissão oral que este vivencia com seus seguidores imediatos, a fragmentação havida
na escrita destes, o trajeto seguido pelas frações de texto e sua conseqüente dispersão,
antes que a compilação fosse feita em 632 e uma primeira versão fosse então redigida
sobre papel. Todo o processo encontra seu prosseguimento com a conferição, havida
quinze anos depois, e com a profilática destruição de outras versões, assim como dos
fragmentos, numa clara tentativa de evitar qualquer outra possibilidade de interpretação.
A empreitada, percebe-se, ancorava-se na suposição de que os sentidos se encontrassem
inexoravelmente presos às palavras e a intervenção humana não pudesse mais trazer
modificações. Entretanto, já de partida, o livro sagrado é interpretado pelos ulemás e,
portanto, a leitura é permeada pelas vicissitudes do humano, com todas as marcas que lhe
são características. A extensão promovida pela charia e pelos hadits, autorizados ou não,
deixa também azo para abrigar as contingências trazidas pela incessante modificação do
mundo que nos cerca, ainda que ela seja lenta. Esse mesmo traço pode tanto servir a uma
renovação dos direitos sociais quanto aos ventos políticos que sopram em mais de uma
direção, carregando consigo os destinos de uma nação e de seus estatutos jurídicos.
Como se pode depreender dos fatos apresentados, a leitura dos preceitos do
Alcorão levada a cabo por diferentes leitores e que varia não só no decorrer do tempo,
mas
também
ao
sabor
dos
acontecimentos
históricos
e
políticos,
dramaticamente as interpretações possíveis do texto sagrado muçulmano.
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radicaliza
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163
Se adeptas do reducionismo praticado por várias culturas, autorizadas por meio
de inúmeros representantes da defesa do patriarcado, pode ser até mesmo mortal,
sobretudo para as mulheres, muito embora um punhado de homens não esteja excluído
de seu alcance.
Se relativizada e contextualizada por pensadores como Tarik Ramadan e muitos
outros humanistas, constitui-se nos fundamentos de uma ética norteadora da conduta de
seus fiéis, ética que certamente não aceitaria uma punição tão desumana como aquela
atualmente praticada, por exemplo, no Irã.
Qualquer que seja a interpretação praticada pelos adeptos do islamismo, o
problema que se coloca diz respeito simultaneamente à leitura e à tradução. Em primeiro
lugar, porque leitor e tradutor são potencialmente dois lados de uma mesma moeda. De
fato, o tradutor é um leitor privilegiado, que deixa sua interpretação do texto de partida
por escrito, o que também não garante a domesticação dos significados, dado que este
será dado à disseminação e à construção de sentidos efetuada pelos leitores-alvo. É certo
que a construção de variados textos será menos drástica e trará consequências não tão
enérgicas quanto as que apontamos naquela praticada sobre o Alcorão, mas ela existirá de
maneira incontornável.
Toda a problemática do estabelecimento do texto sagrado para os muçulmanos,
assim como da sua extensão na charia, permeada pela projeção cultural que nela se insere
e autoriza novos significados – e que nos serve simbolicamente para refletir sobre
qualquer tradução e qualquer leitura – escancara aqui não só a complexidade desse
construto social-religioso, mas também a subjetividade inexorável de qualquer leitura e a
impossibilidade de fixar um sentido único para qualquer que seja o texto.
7.
NESSE COMPLEXO CONTEXTO, COMO TRADUZIR?
Em meus trabalhos e palestras tenho insistido sobre o sujeito-tradutor ou, como prefiro
chamá-lo, o traduautor, esse profissional que se assume como responsável pela produção
de significados que deixa por escrito e que se constitui sobre os alicerces de uma ética do
traduzir. Entre os autores que dela tratam está Salah Basalamah, que preconiza “a ética do
tradutor que impõe sua visibilidade e, por conseguinte, sua participação cidadã no esforço
de aproximação e de intercompreensão das diferenças”, sobretudo quando se tem a árdua
tarefa de promover “a difícil integração dos muçulmanos ocidentais e da expressão de sua
religiosidade nas sociedades laicas” (p. 49 et passim). Para Basalamah a tradução é o
próprio símbolo da heterogeneidade e da relação com a alteridade, o que enfatiza a ação
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do tradutor ao assumir sua subjetividade e dar-se a ver no texto que traduz, uma vez que
não se pode ser responsável a partir de um apagamento. Esse seria o tradutor engajado,
que tem consciência da distância que separa as culturas que o habitam ao mesmo tempo.
Dado que no meu caso da tradução do Livro Negro é um estrangeiro que fala de um
terceiro, adicionaria: que se vê também na contingência de tentar compreender o que está
em jogo para acolher a estranheza do Outro islâmico, sem deixar de empunhar a bandeira das
Outras que estão aqui concernidas. Como compatibilizar o acolhimento preconizado por
Schleiermacher (1999) e o defendido sem ressalvas por Derrida deste “alguém que não
fala como os outros” (2003, p. 7) com os direitos já adquiridos pela mulher na sociedade
ocidental? Como despir-me de minha cultura – aqui já atravessada pelo que leio de uma
autora de língua francesa – para então tentar tomar o ponto de vista do Estrangeiro, para
mim tão Estranho/Estrangeiro, desse outro permeado por tantos pressupostos
questionáveis, sobretudo do ponto de vista da interpretação, para tentar compreendê-lo?
Assumo-me: conscientizo-me da distância que separa minha cultura daquela islâmica,
compadeço-me da sorte das mulheres iranianas sujeitas à submissão e a uma legislação
tão menos protetora que aquela sob a qual vivo, tomo o viés da autora do texto, Azadeh
Kian-Thiébaut, e empreendo uma tradução que acolha também o olhar da cientista
política da Universidade de Paris em sua análise sobre a questão da lapidação no Irã.
Tomo-me como uma tradutora brasileira que deseja implementar um engajamento social
na defesa de minhas irmãs iranianas, coloco em jogo o substrato de minha subjetividade,
assumindo assim a inexorabilidade da clausura do meu tempo. E mostro a cara.
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Nícia Adan Bonatti
Mestrado em Linguística Aplicada pela Universidade
Estadual de Campinas (1993), doutorado em Linguística
pela Universidade Estadual de Campinas (1999) e
aperfeicoamento em Études Françaises pela Université de
Toulouse le Mirail (1981). Atualmente é da Junta Comercial
do Estado de São Paulo, Professora da Universidade
Presbiteriana Mackenzie.
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