INTRODUÇÃO À FILOSOFIA A filosofia não é adversarial

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INTRODUÇÃO À FILOSOFIA
Observação: os textos aqui disponibilizados são escritos em português de Portugal.
A filosofia não é "adversarial" - Richard E. Creel. Tradução de Desidério Murcho. Thinking
Philosophically, Blackwell, Oxford, 2001, p. 88
1. Porque em filosofia argumentamos uns com os outros sobre questões filosóficas é natural
pensar que a filosofia é um processo "adversarial" [antagónico] como dois advogados (o de
acusação e o de defesa) que argumentam um contra o outro num tribunal. Contudo, há duas
razões pelas quais esta comparação dos filósofos com os advogados não é boa. Em primeiro
lugar, o objectivo de cada advogado é ganhar a causa do seu cliente — quer o seu cliente
esteja inocente quer não. Pelo contrário, o objectivo de dois filósofos que se encontrem a
argumentar um com o outro é chegar à verdade — seja ela qual for e seja quem for que
tenha razão. Como um estudante afirmou, eloquentemente, o objectivo de cada advogado é
ganhar a causa, quer ele tenha a verdade quer não, ao passo que o objectivo de cada filósofo
é chegar à verdade, quer ele ganhe o argumento quer não. (Sendo os filósofos seres
humanos, nem sempre são assim tão imparciais, mas o ideal é este.)
2. Em segundo lugar, num julgamento há uma autoridade (o juiz ou o júri) que os advogados
tentam persuadir, e que em última análise determina se o acusado está ou não inocente. Em
filosofia, pelo contrário, não há qualquer juiz ou júri com autoridade para tornar uma
posição incorrecta e a outra correcta. Só existimos nós. Claro que alguns de nós sabem mais
do que outros sobre questões filosóficas, e o mais sábio é ficar atento e aprender com quem
sabe mais do que nós, mas quando chega o momento de tomar decisões relativamente a um
tema filosófico somos todos igualmente responsáveis pelas nossas crenças e devemos por
isso tomar, cada um de nós, as suas próprias decisões.
De onde surge a filosofia? - Colin McGinn.Tradução de Célia Teixeira. Retirado de Como se
faz um Filósofo, de Colin McGinn (Lisboa: Bizâncio, 2007)
1. Mesmo os nossos conceitos mais básicos não são claros para nós; usamo-los sem grandes
problemas, mas não temos qualquer compreensão articulada do que envolvem. É aqui que a
filosofia entra. E isto mostra que é um erro pensar que todas as questões genuínas são
científicas ou empíricas. Na verdade, a própria ciência levanta probletTmas filosóficos.
2. O mesmo acontece com a literatura, a história, a economia, as ciências da computação, a
matemática e assim por diante. Na matemática, por exemplo, há a questão de saber de onde
vieram os números: será que são apenas marcas num papel, ou ideias na mente dos
matemáticos? Será que são, como Platão pensava, entidades objectivas e independentes da
mente que existem fora do espaço e do tempo? Nada daquilo que aprendemos numa aula
normal de matemática nos pode dar a preparação necessária para responder a tais perguntas
(apesar de os nossos professores de matemática poderem ter as suas ideias filosóficas sobre
estas questões). Nas ciências empíricas, as teorias são criadas para explicar os dados que
foram observados, e consideramos muitas vezes que estas teorias fornecem descrições
correctas da realidade. Mas note-se que esta caracterização banal da ciência usa vários
conceitos que precisam urgentemente de ser elucidados: o que é uma teoria? O que é uma
explicação? O que distingue uma observação da teoria usada para a explicar? O que é a
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verdade? O que é a realidade? A ciência opera com estes conceitos, mas não tem recursos
para os explicar. O mesmo acontece com as ciências sociais: também usam os conceitos que
acabámos de referir, mas também invocam conceitos como o de razão ou motivo, assim
como conceitos normativos como o de correcto e obrigatório — e estes conduzem-nos à
filosofia moral e política, assim como à filosofia da mente. As artes empregam conceitos
estéticos como os de beleza e representação, que levantam questões filosóficas: é a beleza
subjectiva ou objectiva? Será que toda a representação artística é fundamentalmente do
mesmo tipo? O que determina o valor estético de uma obra de arte? Depois há os conceitos
extremamente gerais que surgem de súbito em todo o lado — tempo, causalidade,
necessidade, existência, objecto, propriedade, identidade. Nenhuma disciplina científica nos
pode dizer o que estes conceitos envolvem porque são pressupostos por quaisquer destas
disciplinas; precisamos da filosofia para compreender estes conceitos. Por exemplo: é a
causalidade simplesmente uma questão de simples conjunção constante de acontecimentos
— de "um raio de coisa que se segue a outra", como A. J. Ayer costumava dizer — ou será
que envolve um elemento de conexão necessária? E que tipo de necessidade poderá ser?
Será qualquer coisa como a verdade necessária de "os solteiros não são casados"?
3. Estas são as perguntas que os seres humanos fazem naturalmente e acerca das quais têm
estados perplexos desde que se registou pela primeira vez o pensamento articulado. As
crianças fazem perguntas filosóficas espontaneamente, para grande frustração de seus pais
— uma vez que os pais estão muitas vezes tão filosoficamente perdidos como os seus filhos.
O filósofo é apenas alguém com interesses particularmente fortes sobre estas velhas
questões universais; é a encarnação de um género de curiosidade humana — o género que
procura o geral, e não o particular, que procura o abstracto e não o concreto. Claro que é
fácil ficar impaciente com estas questões, pois não admitem resolução científica. Mas na
verdade esta é uma resposta de filisteu combinada com fetiche científico. A ciência é sem
dúvida uma tarefa importante e nobre, mas não é a única forma de investigação intelectual
com valor. Não devemos abraçar a ideia de que uma pergunta ou é científica ou coisa
nenhuma.
Filosofia e crítica - Bertrand Russell. Tradução de Desidério Murcho. Retirado de Os
Problemas da Filosofia, de Bertrand Russell (Oxford: Oxford University Press, 1912; trad.
portuguesa: Lisboa, Edições 70, em preparação)
1. A característica essencial da filosofia, que a torna um estudo diferente da ciência, é a crítica.
A filosofia examina criticamente os princípios usados na ciência e na vida quotidiana;
procura inconsistências que possam existir nestes princípios, e só os aceita quando, em
resultado de um inquérito crítico, não surgiu qualquer razão para os rejeitar. [...]
2. Contudo, quando falamos da filosofia como uma crítica do conhecimento, é necessário
impor uma certa limitação. Se adoptamos a atitude do céptico completo, colocando-nos
completamente fora de todo o conhecimento, e pedindo, desta posição exterior, para sermos
obrigados a regressar ao interior do círculo do conhecimento, estamos a exigir o impossível,
e o nosso cepticismo nunca poderá ser refutado. Pois toda a refutação tem de começar com
algum pedaço de conhecimento que os contendores partilham; nenhum argumento pode
começar da dúvida nua. Logo, para que algum resultado se alcance, a crítica do
conhecimento que a filosofia usa não pode ser deste tipo destrutivo. Contra este cepticismo
absoluto nenhum argumento lógico se pode avançar. Mas não é difícil ver que o cepticismo
deste tipo não é razoável. A "dúvida metódica" de Descartes, que inaugura a filosofia
moderna, não é deste tipo, sendo antes o tipo de crítica que estamos a dizer que é a essência
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da filosofia. A sua "dúvida metódica" consistia em duvidar de tudo o que parecesse
duvidoso; em parar, perante cada pedaço de aparente conhecimento, para perguntar a si
próprio se, depois de reflectir, poderia estar certo de que o sabia realmente. Este é o tipo de
crítica que constitui a filosofia. Algum conhecimento, como o conhecimento da existência
dos nossos dados dos sentidos, parece deveras indubitável, por mais que reflictamos calma e
meticulosamente sobre ele. Com respeito a tal conhecimento, a crítica filosófica não exige
que nos abstenhamos da crença. Mas há crenças — como, por exemplo, a crença de que os
objectos físicos se assemelham exactamente aos nossos dados dos sentidos — que têm
abrigo em nós até começarmos a reflectir, mas descobre-se que se evaporam quando são
submetidas a um inquérito aturado. Tais crenças a filosofia irá convidar-nos a rejeitar, a não
ser que uma nova linha de argumentação se encontre que as sustente. Mas rejeitar as crenças
que não parecem abertas a quaisquer objecções, por mais cuidadosamente que as
examinemos, não é razoável, e não é o que a filosofia advoga.
3. A crítica que se tem em vista, numa palavra, não é a que, sem razão, aposta em rejeitar, mas
a que considera os méritos de cada pedaço de conhecimento aparente, retendo o que
continua a parecer conhecimento uma vez terminada esta consideração. Tem de se admitir
que permanece algum risco de erro, uma vez que os seres humanos são falíveis. A filosofia
pode afirmar justamente que diminui o risco de erro, e que em alguns casos torna o risco tão
pequeno que na prática é negligenciável. Fazer mais que isto não é possível num mundo em
que os erros têm de ocorrer; e mais que isto nenhum defensor prudente da filosofia afirmará
ter conseguido.
Filosofia - objecto e método - Cornman, Leher e Pappas. Pilosophical Problems and
Arguments: An introduction,New York, Macmillan Publishing Co., Inc., 19823, pp. 1-3
(tradução de Vasco Casimiro). http://www.terravista.pt/aguaalto/5159/PAPPAS.htm
1. «Ainda não há muito tempo, todas as matérias científicas eram consideradas parte da
filosofia. A filosofia da natureza [philosophy of matter] compreendia o que agora chamamos
química e física; a filosofia do espírito [philosophy of mind] cobria as matérias da
psicologia e áreas adjacentes. Em suma, a filosofia era concebida de forma tão lata que
cobria qualquer campo da investigação teórica. Qualquer assunto em relação a cujo
conteúdo fosse possível apresentar uma teoria explicativa tornar-se-ia um ramo da filosofia.
Contudo, quando uma certa área de investigação atingia um ponto em que uma teoria
principal dominava e, por conseguinte, se desenvolviam métodos uniformizados de crítica e
confirmação, essa área era separada da árvore mãe da filosofia e tornava-se independente.
2. Por exemplo, os filósofos avançaram em tempos uma série de teorias para explicar a
natureza da matéria. Um deles afirmou que todas as coisas eram constituídas por água;
outro, de alguma maneira mais próximo das concepções actuais, propôs a teoria de que a
matéria era composta de pequenos átomos homogéneos e indivisíveis. Tendo-se certas
teorias acerca da matéria, bem como os métodos experimentais para as testar, tornado
aceites entre a comunidade científica, a filosofia da natureza deu origem às ciências da física
e da química. Outro exemplo de um problema filosófico convertido em problema científico
é o da natureza da vida. Numa determinada altura, a vida foi concebida como uma entidade
espiritual que entrava no corpo no momento do nascimento e o abandonava no momento da
morte; noutra altura, foi concebida como uma força vital especial que activava o corpo.
Hoje, a natureza da vida é explicada em termos de bioquímica.
3. Assim, é uma peculiaridade da filosofia que, tendo a argumentação e a disputa conduzido à
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aceitação de uma certa teoria, acompanhada de uma metodologia adequada para tratar uma
certa temática filosófica, a teoria e a metodologia se separem da filosofia e sejam
consideradas parte de outra disciplina. Certas temáticas estão actualmente em processo de
transição. Um exemplo disso é o campo da linguística e, em particular, dentro desse campo,
a temática da semântica. Os filósofos construíram uma multiplicidade de teorias para
explicar como podem as palavras ter significado [meaning] e o que constitui o significado
das palavras. As explicações eram em termos de imagens, ideias e outros fenómenos
psicológicos. Actualmente, os filósofos e os linguistas explicam o que é o significado em
termos da função das palavras no discurso e das características semânticas subjacentes, que
desempenham na semântica um papel semelhante ao desempenhado na física pelas
características das partículas atómicas. Neste campo não há uma distinção precisa entre
filósofos e linguistas. Ambos utilizam metodologias recentemente desenvolvidas de análise
gramatical e semântica para articular leis e teorias que permitam explicar a estrutura e o
conteúdo da linguagem. É característico de uma área em processo de transição o facto de
não ser claro se um investigador dessa área é filósofo ou cientista. Em filosofia, o
desenvolvimento de uma área conduz muitas vezes à sua independência e autonomia. É por
esta razão que qualquer especificação da filosofia em termos do seu objecto será, muito
provavelmente, controversa na actualidade e desactualizada no futuro.
4. Contudo, as considerações anteriores explicam uma característica relativamente constante da
filosofia, a saber, o seu estado de incompletude [the unsettled state of the art]. As questões
estudadas em filosofia são tratadas através de métodos dialécticos de argumentação e contraargumentação. E um aprendiz [student] pode às vezes sentir que, depois de uma longa e
árdua investigação, nada ficou estabelecido. Esta impressão deve-se, em parte, ao facto de,
num dado momento, a filosofia parecer lidar com aqueles problemas intelectuais que ainda
não foram articulados de modo a permitir que uma única teoria e metodologia lhes seja
aplicada que sirva para a sua resolução. Quando o espírito humano se defronta com algum
problema intelectual complexo, sem que haja um tratamento [approach] experimental
uniforme e estabelecido para a questão, é de esperar que o problema se encontre no domínio
da filosofia. Uma vez que a investigação intelectual tenha conduzido à articulação de uma
teoria uniforme com um método geralmente aceite de investigação experimental, então, com
toda a probabilidade, o problema deixará de ser considerado parte da filosofia. Será, em vez
disso, atribuído a uma disciplina independente. Assim, por causa do seu próprio êxito, a
filosofia vai perdendo algumas das suas temáticas.
5. Contudo, esta caracterização não deve levar-nos a pensar que todos os problemas filosóficos
são potencialmente exportáveis por meio de um processamento bem sucedido. Algumas
questões e problemas resistem a essa exportação em virtude do seu carácter geral e
fundamental. Por exemplo, em todos os campos da investigação, as pessoas procuram o
conhecimento. Mas é em filosofia que se pergunta o que é o conhecimento, ou sequer se tal
coisa é possível [whether there is any such thing at all]. Tais questões pertencem ao ramo da
filosofia chamado epistemologia. Em alguns domínios, na economia e na política [politics],
por exemplo, estudam-se as consequências causais de diversas acções e políticas [policies].
Em filosofia, pergunta-se quais são as características gerais que tornam as acções e as
políticas [policies] justas [right] ou injustas [wrong]. Tais questões pertencem ao domínio da
ética. Finalmente, críticos, literatos, compositores e artistas perguntam se um certo objecto é
uma obra de arte. Os filósofos preocupam-se com a questão mais geral de saber o que torna
uma certa coisa um objecto de arte. Estas são as questões da estética. Outras questões acerca
da natureza [character] da liberdade, do espírito e de Deus parecem ser objecto perene da
filosofia porque são questões simultaneamente muito básicas e muito gerais.
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6. Além disso, um tratamento bem sucedido de um problema dentro de determinada área pode
gerar novos problemas. Por exemplo, uma explicação de fenómenos físicos em termos de
leis e teorias levanta a questão de se saber se o movimento dos corpos humanos, que fazem
parte do universo físico, tem lugar de maneira puramente mecânica, o que poria em causa a
nossa impressão de sermos agentes livres que determinam o seu próprio destino por
deliberação e decisão. Da mesma forma, o sucesso da neurofisiologia na explicação do
nosso comportamento levanta a questão de se saber se os pensamentos e os sentimentos não
serão senão processos físicos. Não temos maneira de responder a estas perguntas através de
um apelo directo à experiência ou de uma teoria firmemente estabelecida. Em vez disso,
temos de confiar nos métodos da investigação filosófica - o exame cuidadoso de argumentos
apresentados em defesa de posições divergentes e a análise dos termos importantes neles
contidos.
7. Não há que recear a escassez de temas filosóficos. O objecto [subject matter] da filosofia
apenas é limitado pela capacidade do espírito humano de colocar novas questões e de
reformular as antigas segundo um novo ponto de vista [in some novel way]. Ao fazê-lo,
fornecem-se novos conteúdos à única área que recebe de braços abertos todos os órfãos
intelectuais rejeitados pelas outras disciplinas por causa da sua estranheza e dificuldade. A
filosofia é o lugar de acolhimento [home] dos problemas intelectuais com os quais as outras
disciplinas são incapazes de lidar. Em consequência disso, está cheia do interesse intelectual
da controvérsia e da disputa que têm lugar nas fronteiras da investigação racional.»
O carácter conceptual da filosofia - Desidério Murcho. (2000). O que é a filosofia?
http://www.intelectu.com/arquivo.html
Pensemos outra vez numa afirmação como ‘Nenhum objecto pode viajar mais depressa do
que a luz’. As afirmações das ciências empíricas são afirmações do género desta: afirmações que se
referem ao mundo que podemos observar pelos sentidos ou que podemos inferir a partir de
observações e medições complicadas realizadas com instrumentos como um espectrómetro ou um
radiotelescópio. Mas por mais que façamos medições e observações não iremos descobrir se os
animais têm direitos, nem se Deus existe, nem se há números.
1. Ao contrário da física e da biologia, a filosofia não tem um carácter empírico; é um estudo
conceptual. Neste aspecto, a filosofia é mais parecida com a matemática, que também não é
uma disciplina empírica. Mas a filosofia distingue-se da matemática por várias razões. Em
primeiro lugar, não dispõe de métodos formais de demonstração, como a matemática; em
segundo lugar, não se ocupa do tipo de problemas de que se ocupa a matemática. Mas de
que tipo de problemas se ocupa afinal a filosofia?
2. Uma vez mais, o melhor é dar exemplos e apontar algumas das características mais salientes
dos problemas filosóficos típicos. Pensemos, por exemplo, em Deus. Os cristãos têm uma
dada concepção de Deus, os muçulmanos outra e os hindus outra ainda. E há muitas mais,
tantas quantas as religiões. As religiões partem de certas verdades reveladas pelos seus
profetas e inscritas nos seus livros sagrados; procuram descobrir a verdadeira natureza de
Deus e encontrar o caminho da salvação. Mas nada disso são problemas filosóficos. A
filosofia não cultiva dogmas, como a religião; a filosofia faz o contrário: procura destruir
dogmas. Os cristãos, muçulmanos e hindus, partem do princípio de que existe Deus. A
filosofia pergunta: mas que razões temos para pensar que existe Deus? E, admitindo que
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existe um deus sumamente bom e criador, omnisciente e omnipotente, como se explica a
existência do mal? A filosofia faz as perguntas difíceis que muitas pessoas gostariam de
calar, e que efectivamente têm muitas vezes conseguido calar ao longo da infeliz história
humana. Podemos dizer, poeticamente, que a filosofia é um grito de liberdade contra a
opressão do dogma. E nisto, uma vez mais, a filosofia é semelhante à ciência.
3. O que distingue os problemas da filosofia dos problemas da ciência é o seu carácter
conceptual, a sua generalidade e a inexistência de fronteiras precisas. Os problemas da
matemática são também bastante gerais e em grande medida conceptuais – mas têm
fronteiras muito precisas. Não se pode determinar matematicamente se os animais têm
direitos; não se pode determinar matematicamente se Deus existe – e nem sequer se pode
determinar matematicamente se os números existem independentemente de nós. Qualquer
problema com suficiente generalidade, de carácter conceptual e para a solução do qual não
exista qualquer ciência pode ser um problema filosófico. Os problemas da matemática têm
fronteiras muito claras: têm de poder ser resolvidos pelos métodos formais da matemática.
Em filosofia, pelo contrário, não há métodos formais para resolver problemas.
4. [...]
5. Uma das características da filosofia é o facto de não ser uma investigação empírica, como já
sublinhei; para saber se os animais têm direitos ou se Deus existe, não tenho de fazer
trabalho científico de campo, não tenho de fazer experiências em laboratórios, nem tenho de
elaborar inquéritos, nem tenho de fazer estatísticas; limito-me a pensar. Posso ter de usar
dados empíricos fornecidos pelas ciências; mas não compete à filosofia fazer o levantamento
desses dados.
6. Este modo de proceder tradicional da filosofia, que resulta da sua natureza conceptual, acaba
por contribuir para pseudo-investigações de quem não sabe distinguir os problemas
susceptíveis de serem estudados pela filosofia dos problemas que só com alguma
investigação empírica podem ser abordados de forma respeitável.
7. Repare-se na seguinte distinção crucial. Todos nós temos opiniões sobre vários aspectos do
mundo que nos rodeia. Eu vou a um país estrangeiro e formo uma ideia intuitiva sobre o
carácter das pessoas desse país, comparando-as com as pessoas do meu próprio país. A
formação deste tipo de opiniões é inevitável; mas não se pode confundir isto com ciência.
Ninguém pode dizer, só porque visitou durante 3 anos a Índia, que os indianos são em geral
mais honestos do que os portugueses. Este resultado não oferece quaisquer garantias; é
suficiente para animar conversas de café com os nossos amigos; mas basear um estudo sério
sobre estas observações não sistemáticas é uma tolice.
8. Se temos de basear uma reflexão filosófica sobre dados empíricos, esses dados empíricos
têm de ser fidedignos; não podem resultar da mera observação de senso comum.
O que é estudar filosofia? - Nigel Warburton. Tradução de Desidério Murcho. Original:
http://www.open.ac.uk/Arts/philos/whatis.htm.
1. A filosofia é diferente de muitas outras disciplinas das Letras porque para estudar filosofia é
necessário fazer filosofia. Para ser um historiador de arte, não é necessário pintar; para
estudar poesia, não é necessário ser um poeta; e podemos estudar música sem tocar um
instrumento. Contudo, para estudar filosofia é necessário que nos entreguemos à
argumentação filosófica (argumentar é apresentar razões ou indícios que conduzem a uma
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conclusão). Não se trata de operar ao nível dos grandes filósofos do passado; mas quando se
estuda filosofia faz-se o mesmo tipo de coisa que eles fizeram. Podemos jogar futebol sem
chegar ao nível do Pelé, e podemos obter muita satisfação intelectual filosofando sem a
originalidade ou o brilhantismo de Wittgenstein. Mas em ambos os casos será necessário
desenvolver algumas das competências usadas pelos grandes praticantes. Essa é uma das
razões pelas quais a filosofia pode ser uma área de estudos imensamente compensadora.
2. A palavra "filosofia" deriva do grego "amor da sabedoria". Mas isto não é particularmente
útil para a compreensão do modo como a palavra é agora usada. A filosofia é um disciplina
nuclear relativamente à maior parte dos cursos de humanidades. Centra-se em questões
abstractas como "Será que Deus existe?", "Será o mundo realmente como nos parece que
é?", "Como devemos viver?", "O que é a arte?", "Teremos uma liberdade de escolha
genuína?", "O que é a mente?", e assim por diante.
3. Estas questões muito abstractas podem surgir na nossa experiência quotidiana. Algumas
pessoas fazem uma caricatura da filosofia como se fosse uma disciplina sem relevância para
a vida, uma disciplina para estudar em casa unicamente por satisfação intelectual, o
equivalente académico de fazer palavras cruzadas. Mas isto é uma representação gravemente
errada de grande parte da disciplina. Por exemplo, o caloroso debate sobre se o boxe deve
ser proibido só pode responder-se enfrentando questões abstractas importantes. Quais são os
limites aceitáveis da liberdade individual num país civilizado? Quais são as justificações
para o paternalismo, para forçar as pessoas a comportar-se de uma certa forma para o seu
próprio bem? Por outras palavras, este debate não é apenas sobre reacções emocionais ao
boxe; depende antes de pressupostos filosóficos fundamentais (um pressuposto é uma
afirmação a favor da qual não se avança qualquer argumento; uma afirmação que se aceita
para permitir a argumentação).
4. A análise de razões e argumentos é uma área própria da filosofia. De facto, se a filosofia tem
um método distintivo, é este: a construção, crítica e análise de argumentos. As competências
filosóficas são aplicáveis em qualquer área em que os argumentos sejam importantes, e não
apenas nos domínios da especulação abstracta. São particularmente úteis quando se escreve
ensaios, dado que se espera habitualmente que se defenda conclusões, e não apenas que as
afirmemos. Por esta razão, uma formação básica em filosofia é extremamente importante,
seja qual for a disciplina académica que se tenha em mente seguir.
O que é a filosofia? - WARBURTON, Nigel (1998). Elementos básicos de filosofia. Lisboa:
Gradiva, páginas 19 – 27.
1. O que é a filosofia? Esta é uma questão notoriamente difícil. Uma das formas mais fáceis de
responder é dizer que a filosofia é aquilo que os filósofos fazem, indicando de seguida os
textos de Platão, Aristóteles, Descartes, Hume, Kant, Russell, Wittgenstein, Sartre e de
outros filósofos famosos. Contudo, é improvável que esta resposta possa ser realmente útil
se o leitor está a começar agora o seu estudo da filosofia, uma vez que, nesse caso, não terá
provavelmente lido nada desses autores. Mas mesmo que já tenha lido alguma coisa, pode
mesmo assim ser difícil dizer o que têm em comum, se é que existe realmente uma
característica relevante partilhada por todos. Outra forma de abordar a questão é indicar que
a palavra «filosofia» deriva da palavra grega que significa «amor da sabedoria». Contudo,
isto é muito vago e ainda nos ajuda menos do que dizer apenas que a filosofia é aquilo que
os filósofos fazem. Precisamos por isso de alguns comentários gerais sobre o que é a
filosofia.
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2. A filosofia é uma actividade: é uma forma de pensar acerca de certas questões. A sua
característica mais marcante é o uso de argumentos lógicos. A actividade dos filósofos é,
tipicamente, argumentativa: ou inventam argumentos, ou criticam os argumentos de outras
pessoas ou fazem as duas coisas. Os filósofos também analisam e clarificam conceitos. A
palavra «filosofia» é muitas vezes usada num sentido muito mais lato do que este, para
referir uma perspectiva geral da vida ou para referir algumas formas de misticismo. Não irei
usar a palavra neste sentido lato: o meu objectivo é lançar alguma luz sobre algumas das
áreas centrais de discussão da tradição que começou com os gregos antigos e que tem
prosperado no século XX, sobretudo na Europa e na América.
3. Que tipo de coisas discutem os filósofos desta tradição? Muitas vezes, examinam crenças
que quase toda a gente aceita acriticamente a maior parte do tempo. Ocupam-se de questões
relacionadas com o que podemos chamar vagamente «o sentido da vida»: questões acerca da
religião, do bem e do mal, da política, da natureza do mundo exterior, da mente, da ciência,
da arte e de muitos outros assuntos. Por exemplo, muitas pessoas vivem as suas vidas sem
questionarem as suas crenças fundamentais, tais como a crença de que não se deve matar.
Mas por que razão não se deve matar? Que justificação existe para dizer que não se deve
matar? Não se deve matar em nenhuma circunstância? E, afinal, que quer dizer a palavra
«dever»? Estas são questões filosóficas. Ao examinarmos as nossas crenças, muitas delas
revelam fundamentos firmes; mas algumas não. O estudo da filosofia não só nos ajuda a
pensar claramente sobre os nossos preconceitos, como ajuda a clarificar de forma precisa
aquilo em que acreditamos. Ao longo desse processo desenvolve-se uma capacidade para
argumentar de forma coerente sobre um vasto leque de temas -- uma capacidade muito útil
que pode ser aplicada em muitas áreas.
4. A filosofia e a sua história
5. Desde o tempo de Sócrates que surgiram muitos filósofos importantes. Já referi alguns no
primeiro parágrafo. Um livro de introdução à filosofia poderia abordar o tema
historicamente, analisando as contribuições desses grandes filósofos por ordem cronológica.
Mas não é isso que farei neste livro. Ao invés, abordarei o tema por tópicos: uma abordagem
centrada em torno de questões filosóficas particulares e não na história. A história da
filosofia é, em si mesma, um assunto fascinante e importante; muitos dos textos filosóficos
clássicos são também grandes obras de literatura: os diálogos socráticos de Platão, as
Meditações, de Descartes, a Investigação sobre o Entendimento Humano, de David Hume e
Assim Falava Zaratustra, de Nietzsche, para citar só alguns exemplos, são todas magníficos
exemplos de boa prosa, sejam quais forem os padrões que usemos. Apesar de o estudo da
história da filosofia ser muito importante, o meu objectivo neste livro é oferecer ao leitor
instrumentos para pensar por si próprio sobre temas filosóficos, em vez de ser apenas capaz
de explicar o que algumas grandes figuras do passado pensaram acerca desses temas. Esses
temas não interessam apenas aos filósofos: emergem naturalmente das circunstâncias
humanas; muitas pessoas que nunca abriram um livro de filosofia pensam espontaneamente
nesses temas.
6. Qualquer estudo sério da filosofia terá de envolver uma mistura de estudos históricos e
temáticos, uma vez que se não conhecermos os argumentos e os erros dos filósofos
anteriores não podemos ter a esperança de contribuir substancialmente para o avanço da
filosofia. Sem algum conhecimento da história, os filósofos nunca progrediriam:
continuariam a fazer os mesmos erros, sem saber que já tinham sido feitos. E muitos
filósofos desenvolvem as suas próprias teorias ao verem o que está errado no trabalho dos
filósofos anteriores. Contudo, num pequeno livro como este, é impossível fazer justiça às
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complexidades da obra de filósofos individuais. As leituras complementares, sugeridas no
fim de cada capítulo, ajudam a colocar num contexto histórico mais vasto os assuntos aqui
discutidos.
7. Porquê estudar filosofia?
8. Defende-se por vezes que não vale a pena estudar filosofia uma vez que tudo o que os
filósofos fazem é discutir sofisticamente o significado das palavras; nunca parecem atingir
quaisquer conclusões de qualquer importância e a sua contribuição para a sociedade é
virtualmente nula. Continuam a discutir acerca dos mesmos problemas que cativaram a
atenção dos gregos. Parece que a filosofia não muda nada; a filosofia deixa tudo tal e qual.
9. Qual é afinal a importância de estudar filosofia? Começar a questionar as bases
fundamentais da nossa vida pode até ser perigoso: podemos acabar por nos sentir incapazes
de fazer o que quer que seja, paralisados por fazer demasiadas perguntas. Na verdade, a
caricatura do filósofo é geralmente a de alguém que é brilhante a lidar com pensamentos
altamente abstractos no conforto de um sofá, numa sala de Oxford ou Cambridge, mas
incapaz de lidar com as coisas práticas da vida: alguém que consegue explicar as mais
complicadas passagens da filosofia de Hegel, mas que não consegue cozer um ovo.
A vida examinada
10. Uma razão importante para estudar filosofia é o facto de esta lidar com questões
fundamentais acerca do sentido da nossa existência. A maior parte das pessoas, num ou
noutro momento da sua vida, já se interrogou a respeito de questões filosóficas. Por que
razão estamos aqui? Há alguma demonstração da existência de Deus? As nossas vidas têm
algum propósito? O que faz com que algumas acções sejam moralmente boas ou más?
Poderemos alguma vez ter justificação para violar a lei? Poderá a nossa vida ser apenas um
sonho? É a mente diferente do corpo, ou seremos apenas seres físicos? Como progride a
ciência? O que é a arte? E assim por diante.
11. A maior parte das pessoas que estuda filosofia acha importante que cada um de nós examine
estas questões. Algumas até defendem que não vale a pena viver a vida sem a examinar.
Persistir numa existência rotineira sem jamais examinar os princípios na qual esta se baseia
pode ser como conduzir um automóvel que nunca foi à revisão. Podemos justificadamente
confiar nos travões, na direcção e no motor, uma vez que sempre funcionaram suficientemente bem até agora; mas esta confiança pode ser completamente injustificada: os travões
podem ter uma deficiência e falharem precisamente quando mais precisarmos deles.
Analogamente, os princípios nos quais a nossa vida se baseia podem ser inteiramente
sólidos; mas, até os termos examinado, não podemos ter a certeza disso.
12. Contudo, mesmo que não duvidemos seriamente da solidez dos princípios em que baseamos
a nossa vida, podemos estar a empobrecê-la ao recusarmo-nos a usar a nossa capacidade de
pensar. Muitas pessoas acham que dá demasiado trabalho ou que é excessivamente
inquietante colocar este tipo de questões fundamentais: podem sentir-se satisfeitas e
confortáveis com os seus preconceitos. Mas há outras pessoas que têm um forte desejo de
encontrar respostas a questões filosóficas que representem um desafio.
Aprender a pensar
13. Outra razão para estudar filosofia é o facto de isso nos proporcionar uma boa maneira de
aprender a pensar mais claramente sobre um vasto leque de assuntos. Os métodos do
pensamento filosófico podem ser úteis em variadíssimas situações, uma vez que, ao analisar
10
os argumentos a favor e contra qualquer posição, adquirimos aptidões que podem ser
aplicadas noutras áreas da vida. Muitas pessoas que estudam filosofia aplicam depois as
suas aptidões em profissões tão diferentes quanto o direito, a informática, a consultoria de
gestão, o funcionalismo público e o jornalismo - áreas onde a clareza de pensamento é um
grande trunfo. Os filósofos usam também a perspicácia que adquirem acerca da natureza da
existência humana quando se voltam para as artes: alguns filósofos foram também
romancistas, críticos, poetas, realizadores de cinema e dramaturgos de sucesso.
[...]
14. A filosofia é difícil?
15. A filosofia é muitas vezes descrita como uma disciplina difícil. Há vários tipos de
dificuldades associadas à filosofia, algumas delas evitáveis.
16. Em primeiro lugar, é verdade que muitos dos problemas com os quais os filósofos
profissionais lidam exigem efectivamente um nível bastante elevado de pensamento
abstracto. Contudo, o mesmo se aplica a praticamente todas as actividades intelectuais: a
esse respeito, a filosofia não é diferente da física, da teoria literária, da informática, da
geologia, da matemática ou da história. Tal como acontece com estas e outras áreas de
estudo, a dificuldade em dar um contributo substancialmente original na área respectiva não
deve ser usada como desculpa para negar às pessoas comuns o conhecimento dos avanços
dessas áreas, nem para as impedir de aprender os seus métodos básicos.
17. Contudo, há um segundo tipo de dificuldade associada à filosofia que pode ser evitada. Os
filósofos nem sempre são bons prosadores. Muitos têm fracas capacidades para comunicar
claramente as suas próprias ideias. Por vezes, isto acontece porque só estão interessados em
atingir uma pequeníssima audiência de leitores especializados; outras vezes, porque usam
uma gíria desnecessariamente complicada que se limita a confundir os que com ela não
estão familiarizados. Os termos especializados podem ser úteis para evitar explicar certos
conceitos sempre que são usados. Contudo, há entre os filósofos profissionais uma tendência
infeliz para usar termos especializados como um fim em si; muitos usam expressões latinas
apesar de existirem equivalentes portugueses perfeitamente aceitáveis. Um parágrafo cheio
de palavras desconhecidas e de palavras conhecidas usadas de forma desconhecida pode
intimidar. Alguns filósofos parecem falar e escrever numa linguagem inventada por eles.
Isto pode fazer que a filosofia pareça muito mais difícil do que na verdade é.
18. [...]
Os limites do que a filosofia pode fazer
19. Alguns estudantes têm expectativas excessivamente altas em relação à filosofia. Esperam
que a filosofia lhes forneça uma imagem acabada e detalhada dos dilemas humanos. Pensam
que a filosofia lhes irá revelar o sentido da vida e explicar todas as facetas das nossas complexas existências. Ora, apesar de o estudo da filosofia poder iluminar algumas questões
fundamentais relacionadas com a nossa existência, não oferece nada que se pareça com uma
imagem acabada, se é que de facto pode existir tal coisa. Estudar filosofia não é uma alternativa ao estudo da arte, da história, da psicologia, da antropologia, da sociologia, da
política e da ciência. Estas diferentes disciplinas concentram-se em diferentes aspectos da
vida humana e oferecem diferentes tipos de esclarecimentos. Alguns aspectos da vida das
pessoas resistem à análise filosófica e até talvez a qualquer outro tipo de análise. É por isso
importante não esperar demasiado da filosofia.
11
O que é a filosofia? - Thomas Nagel. (1997). Que quer dizer tudo isto? Lisboa: Gradiva,
páginas 7 – 9.
1. As nossas capacidades analíticas estão muitas vezes já altamente desenvolvidas antes de
termos aprendido muita coisa acerca do mundo, e por volta dos catorze anos muitas pessoas
começam a pensar por si próprias em problemas filosóficos — sobre o que realmente existe,
se nós podemos saber alguma coisa, se alguma coisa é realmente correcta ou errada, se a
vida faz sentido, se a morte é o fim. Escreve-se acerca destes problemas desde há milhares
de anos, mas a matéria-prima filosófica vem directamente do mundo e da nossa relação com
ele, e não de escritos do passado. É por isso que continuam a surgir uma e outra vez na
cabeça de pessoas que não leram nada acerca deles.
2. [...] Não discutirei os grandes escritos filosóficos do passado nem o contexto cultural desses
escritos. O núcleo da filosofia reside em certas questões que o espírito reflexivo humano
acha naturalmente enigmáticas, e a melhor maneira de começar o estudo da filosofia é
pensar directamente sobre elas. Uma vez feito isso, encontramo-nos numa posição melhor
para apreciar o trabalho de outras pessoas que tentaram solucionar os mesmos problemas.
3. A filosofia é diferente da ciência e da matemática. Ao contrário da ciência, não assenta em
experimentações nem na observação, mas apenas no pensamento. E ao contrário da
matemática não tem métodos formais de prova. A filosofia faz-se colocando questões,
argumentando, ensaiando ideias e pensando em argumentos possíveis contra elas, e
procurando saber como funcionam realmente os nossos conceitos.
4. A preocupação fundamental da filosofia é questionar e compreender ideias muito comuns
que usamos todos os dias sem pensar nelas. Um historiador pode perguntar o que aconteceu
em determinado momento do passado, mas um filósofo perguntará: «O que é o tempo?» Um
matemático pode investigar as relações entre os números, mas um filósofo perguntará: «o
que é um número?» Um físico perguntará o que constitui os átomos ou o que explica a
gravidade, mas um filósofo irá perguntar como podemos saber que existe qualquer coisa
fora das nossas mentes. Um psicólogo pode investigar como as crianças aprendem uma
linguagem, mas um filósofo perguntará: «Que faz uma palavra significar qualquer coisa?»
Qualquer pessoa pode perguntar se entrar num cinema sem pagar está errado, mas um
filósofo perguntará: «O que torna uma acção boa ou má?»
5. Não poderíamos viver sem tomar como garantidas as ideias de tempo, número,
conhecimento, linguagem, bem e mal, a maior parte do tempo; mas em filosofia
investigamos essas mesmas coisas. O objectivo é levar o conhecimento do mundo e de nós
um pouco mais longe. É óbvio que não é fácil. Quanto mais básicas são as ideias que
tentamos investigar, menos instrumentos temos para nos ajudar. Não há muitas coisas que
possamos assumir como verdadeiras ou tomar como garantidas. Por isso, a filosofia é uma
actividade de certa forma vertiginosa, e poucos dos seus resultados ficam por desafiar por
muito tempo.
O que é um filósofo? - Mary Warnock. Tradução de Desidério Murcho. Retirado de Mulheres
Filosóficas (1996), pp. Xxix-xxx.
1. "O que faz de alguém um filósofo, além de ser considerado como tal pela universidade?"
Primeiro, penso que um autor tem de dar atenção a questões com um alto grau de
12
generalidade, e tem de se sentir à vontade com as ideias abstractas. Não é suficiente procurar
a verdade, pois podemos estabelecer a verdade com respeito a factos particulares; isso pode
ser o objectivo dos historiadores, ou dos romancistas que procuram dizer de forma
imaginativa como as coisas são, num certo sentido. Um filósofo diria também sem dúvida
que procura a verdade, mas está interessado em seja o que for que está por detrás dos factos
particulares da experiência, dos pormenores da história; um filósofo ocupa-se do significado
subjacente da linguagem que nós usamos habitualmente e sem pensar, as categorias em
função das quais organizamos a nossa experiência. Assim, esse filósofo ou filósofa diria não
apenas que procura a verdade, mas que procura uma verdade, ou teoria, que explique o
particular e o pormenor e o quotidiano.
2. Um grande filósofo que exemplifica estas características foi o escocês David Hume. Nunca
desempenhou quaisquer funções académicas (apesar de uma vez o ter tentado
infrutiferamente); a maior parte dos seus escritos pertencia a esse tipo particularmente
escocês, o ensaio; e os seus ensaios tratavam de vários temas sociais, políticos e
económicos. Mas a sua grande obra filosófica, o Tratado da Natureza Humana, que ele
terminou quando tinha apenas 26 anos, foi concebida para estabelecer os fundamentos de
uma ciência empírica genuína da natureza humana. A partir destes fundamentos Hume
esperava que se pudesse construir uma elucidação de todo o conhecimento humano,
incluindo o conhecimento científico, e de toda a moral, incluindo a moral política. Aqui
temos generalidade, e de facto uma enorme ambição explicativa.
3. Hume satisfaz também outro critério pelo qual medimos um verdadeiro filósofo: ocupava -se
não apenas de apresentar as suas ideias, mas também de argumentar a seu favor. Esta atitude
tem conduzido quase sempre, entre os filósofos, a um interesse apaixonado pelas ideias uns
dos outros; e tem levado os filósofos a discordar, e se possível a refutar, os argumentos dos
outros filósofos; e também a expor teorias por meio de diálogos, falados ou escritos. Por
vezes, como no caso de Platão, Berkeley ou Hume, estes diálogos são ficcionais; por vezes
são reais, e tomaram a forma de respostas a objecções, como no caso de Descartes, ou de
troca de correspondência. Os filósofos são por natureza faladores e epistolares; só raramente
preferem sentar-se e pensar, isolados dos seus pares.
O valor da filosofia - Bertrand Russell (Tradução de Álvaro Nunes). Os Problemas da
Filosofia, Oxford University Press, Oxford, 2001, pp. 89-94.
1. Tendo agora chegado ao fim da nossa análise breve e muito incompleta dos problemas da
filosofia, será vantajoso que, para concluir, consideraremos qual é o valor da filosofia e
porque deve ser estudada. É da maior necessidade que examinemos esta questão, tendo em
conta que muitas pessoas, sob a influência da ciência ou de afazeres práticos, se inclinam a
duvidar de que a filosofia seja algo melhor do que frivolidades inocentes mas inúteis,
distinções demasiado subtis e controvérsias sobre matérias acerca das quais o conhecimento
é impossível.
2. Esta visão da filosofia parece resultar em parte de uma concepção errada dos fins da vida e
em parte de uma concepção errada do género de bens que a filosofia procura alcançar. A
física, por meio de invenções, é útil a inúmeras pessoas que a ignoram completamente, pelo
13
que seu o estudo é recomendado, não apenas, ou principalmente, devido ao efeito no
estudante, mas sim devido ao efeito na humanidade em geral. A filosofia não tem esta
utilidade. Se o estudo da filosofia tem algum valor para os que não estudam filosofia, tem de
ser apenas indirectamente, por intermédio dos seus efeitos na vida daqueles que a estudam.
Portanto, se o valor da filosofia deve ser procurado em algum lado, é principalmente nestes
efeitos.
3. Mas mais, se não queremos que a nossa tentativa para determinar o valor da filosofia
fracasse, temos de libertar primeiro as nossas mentes dos preconceitos daqueles a que se
chama erradamente homens "práticos". O homem "prático", como se usa frequentemente a
palavra, é aquele que reconhece apenas necessidades materiais, que entende que os homens
devem ter alimento para o corpo, mas esquece-se da necessidade de fornecer alimento à
mente. Mesmo que todos os homens vivessem desafogadamente e que a pobreza e a doença
tivessem sido reduzidas ao ponto mais baixo possível, ainda seria necessário fazer muito
para produzir uma sociedade válida; e mesmo neste mundo os bens da mente são pelo
menos tão importantes como os do corpo. É exclusivamente entre os bens da mente que
encontraremos o valor da filosofia; e somente aqueles que não são indiferentes a estes bens
podem ser convencidos de que o estudo da filosofia não é uma perda de tempo.
4. Como todos os outros estudos, a filosofia, aspira essencialmente ao conhecimento. O
conhecimento a que aspira é o que unifica e sistematiza o corpo das ciências e o que resulta
de um exame crítico dos fundamentos das nossas convicções, dos nossos preconceitos e das
nossas crenças. Mas não se pode dizer que a filosofia tenha tido grande sucesso ao tentar dar
respostas exactas às suas questões. Se perguntarmos a um matemático, a um mineralogista, a
um historiador ou a qualquer outro homem de saber, que corpo exacto ma questão a um
filósofo, se for sincero terá de confessar que o seu estudo não chegou a resultados positivos
como aqueles a que chegaram outras ciências. É verdade que isto se explica em parte pelo
facto de que assim que se torna possível um conhecimento exacto acerca de qualquer
assunto, este assunto deixa de se chamar filosofia e passa a ser uma ciência separada. A
totalidade do estudo dos céus, que pertence actualmente à astronomia, esteve em tempos
incluído na filosofia; a grande obra de Newton chamava-se "os princípios matemáticos da
filosofia natural". Analogamente, o estudo da mente humana, que fazia parte da filosofia, foi
agora separado da filosofia e deu origem à ciência da psicologia. Assim, a incerteza da
filosofia é em larga medida mais aparente do que real: as questões às quais já é possível dar
uma resposta exacta são colocadas nas ciências, e apenas aquelas às quais não é possível, no
presente, dar uma resposta exacta, formam o resíduo a que se chama filosofia.
5. Contudo, esta é apenas uma parte da verdade sobre a incerteza da filosofia. Há muitas
questões ― entre elas aquelas que são do maior interesse para a nossa vida espiritual ― que,
tanto quanto podemos ver, continuarão sem solução, a menos que as capacidades do
intelecto humano se tornem de uma ordem completamente diferente da actual. O universo
tem uma unidade de plano ou de propósito, ou é uma confluência fortuita de átomos? A
consciência é um componente permanente do universo, dando a esperança de que a
sabedoria aumente indefinidamente, ou é um acidente transitório num pequeno planeta no
qual a vida tem por fim de se tornar impossível? O bem e o mal são importantes para o
universo ou apenas para o homem? Estas são questões que a filosofia coloca e a que
diferentes filósofos responderam de diferentes maneiras. Mas, quer seja ou não possível
descobrir respostas de outro modo, parece não ser possível demonstrar que alguma das
respostas sugeridas pela filosofia é verdadeira. No entanto, por muito pequena que seja a
esperança de descobrir uma resposta, a filosofia tem o dever de continuar a examinar estas
questões, a consciencializar-nos da sua importância, a examinar todas as respostas que lhes
14
são dadas e a manter vivo o interesse especulativo pelo universo, que pode ser destruído se
nos limitarmos ao conhecimento que podemos verificar com exactidão.
6. É verdade que muitos filósofos defenderam que a filosofia pode estabelecer a verdade de
determinadas respostas a estas questões fundamentais. Eles acreditaram ser possível provar
por demonstrações rigorosas que o mais importante nas crenças religiosas é verdadeiro. Para
que possamos julgar estas tentativas, é necessário examinar o conhecimento humano e
formar uma opinião quanto aos seus métodos e às suas limitações. Seria insensato
pronunciarmo-nos dogmaticamente sobre um assunto destes, mas se as investigações dos
capítulos anteriores não nos induziram em erro, somos forçados a renunciar à esperança de
encontrar provas filosóficas das crenças religiosas. Não podemos, portanto, incluir como
parte do valor da filosofia qualquer conjunto de respostas exactas a essas questões. Por esta
razão, mais uma vez, o valor da filosofia não depende de qualquer pretenso corpo de
conhecimentos que podemos verificar com eTradução de Álvaro Nunes
7. Bertrand Russellxactidão e que aqueles que a estudam adquiram.
8. Na verdade, o valor da filosofia tem de ser procurado sobretudo na sua própria incerteza. O
homem que não tem a mais pequena capacidade filosófica, vive preso aos preconceitos
derivados do senso comum, das crenças habituais da sua época ou da sua nação, e das
convicções que se formaram na sua mente sem a cooperação ou o consentimento reflectido
da sua razão. Para um tal homem o mundo tende a tornar-se definido, finito, óbvio; os
objectos vulgares não levantam quaisquer questões e as possibilidades invulgares são
desdenhosamente rejeitadas. Assim que começamos a filosofar, pelo contrário, verificamos,
como vimos nos capítulos iniciais, que mesmo os objectos mais comuns levam a problemas
a que apenas podemos dar respostas muito incompletas. Embora a filosofia seja incapaz de
nos dizer com certeza qual é a resposta verdadeira às dúvidas que levanta, é capaz de sugerir
muitas possibilidades que alargam os nossos pensamentos e os libertam da tirania do
costume. Assim, embora diminua o nosso sentimento de certeza quanto ao que as coisas são,
a filosofia aumenta muito o nosso conhecimento do que podem ser; elimina o dogmatismo
um tanto arrogante daqueles que nunca viajaram na região da dúvida libertadora e, ao
mostrar as coisas que são familiares com um aspecto invulgar, mantém viva a nossa
capacidade de admiração.
9. Para além da sua utilidade na revelação de possibilidades insuspeitadas, a filosofia adquire
valor ― talvez o seu principal valor ― por meio da grandeza dos objectos que contempla e
da libertação de objectivos pessoais e limitados que resulta desta contemplação. A vida do
homem instintivo está fechada no círculo dos seus interesses privados. A família e os amigos
podem estar incluídos, mas o mundo exterior não é tido em conta excepto na medida em que
possa auxiliar ou impedir o que entra no círculo dos desejos instintivos. Numa vida assim há
algo de febril e limitado, comparada com a qual a vida filosófica é calma e livre. O mundo
privado dos interesses instintivos é um mundo pequeno no meio de um mundo grande e
poderoso que, mais cedo ou mais tarde, reduzirá o nosso mundo privado a ruínas. A menos
que consigamos alargar os nossos interesses de modo a incluir todo o mundo exterior, somos
como uma guarnição numa fortaleza sitiada, que sabe que o inimigo impede a sua fuga e que
a rendição final é inevitável. Numa vida assim não há paz, mas uma luta constante entre a
persistência do desejo e a incapacidade da vontade. De uma forma ou doutra, se queremos
que a nossa vida seja grande e livre, temos de fugir desta prisão e desta luta.
10. Uma forma de fugir é por intermédio da contemplação filosófica. Na sua perspectiva mais
ampla, a contemplação filosófica não divide o universo em dois campos hostis ― amigos e
inimigos, prestável e hostil, bom e mau ― vê o todo com imparcialidade. Quando é pura, a
15
contemplação filosófica não procura provar que o resto do universo é semelhante ao homem.
Toda a aquisição de conhecimento é um alargamento do Eu, mas alcança-se melhor este
alargamento quando ele não é directamente procurado. É obtido quando o desejo de
conhecimento é apenas operativo, por um estudo que não deseja antecipadamente que os
seus objectos tenham esta ou aquela característica, mas adapta o Eu às características que
encontra nos seus objectos. Este alargamento do Eu não é obtido quando, aceitando o Eu
como é, tentamos mostrar que o mundo é de tal modo semelhante a este Eu que é possível
conhecê-lo sem ter de admitir o que parece estranho. O desejo de provar isto é uma forma de
auto-afirmação e, como toda a auto-afirmação, é um obstáculo ao crescimento do Eu que ela
deseja e de que o Eu sabe ser capaz. Na especulação filosófica como em tudo o mais, a autoafirmação vê o mundo como um meio para os seus próprios fins; considera, assim, o mundo
menos importante do que o Eu e o EuTradução de Álvaro Nunes
11. Bertrand Russell limita a grandeza dos seus bens. Na contemplação, pelo contrário, partimos
do não-Eu e por intermédio da sua grandeza alargamos os limites do Eu; por intermédio da
infinidade do universo a mente que o contempla participa da infinidade.
12. Por esta razão, as filosofias que adaptam o universo ao Homem não promovem a grandeza
de alma. O conhecimento é uma forma de união do Eu e do não-Eu e, como todas as uniões,
é prejudicado pelo domínio e, portanto, por qualquer tentativa de forçar o universo a
conformar-se ao que encontramos em nós. Há uma ampla tendência filosófica para o ponto
de vista que nos diz que o Homem é a medida de todas as coisas, que a verdade é feita pelo
homem, que o espaço, o tempo e o mundo dos universais são propriedades da mente e que,
se existir algo que não tenha sido criado pela mente, é incognoscível e não tem qualquer
importância para nós. Se as nossas discussões anteriores estavam correctas, este ponto de
vista é falso; mas para além de ser falso, tem o efeito de despojar a contemplação filosófica
de tudo o que lhe dá valor, uma vez que a confina ao Eu. Aquilo a que chama conhecimento
não é uma união com o não-Eu, mas um conjunto de preconceitos, de hábitos e de desejos,
que constituem um véu impenetrável entre nós e o mundo fora de nós. O homem que
encontra prazer numa teoria do conhecimento destas é como o homem que nunca deixa o
círculo doméstico por receio de que a sua palavra possa não ser lei.
13. A verdadeira contemplação filosófica, pelo contrário, encontra satisfação em todo o
alargamento do não-Eu, em tudo o que engrandeça os objectos contemplados e, por essa via,
o sujeito que contempla. Tudo o que na contemplação seja pessoal ou privado, tudo o que
dependa do hábito, do interesse pessoal ou do desejo, deforma o objecto e, por isso,
prejudica a união que o intelecto procura. Ao criarem desta forma uma barreira entre o
sujeito e o objecto, estas coisas pessoais e privadas tornam-se uma prisão para o intelecto. O
intelecto livre verá como Deus pode ver, sem um aqui e agora, sem esperanças nem temores,
sem o empecilho das crenças vulgares e dos preconceitos tradicionais, calmamente,
desapaixonadamente, no desejo único e exclusivo de conhecimento ― conhecimento tão
impessoal e tão puramente contemplativo quanto o homem possa alcançar. Também por este
motivo, o intelecto livre dará mais valor ao conhecimento abstracto e universal, no qual os
acidentes da história privada não entram, do que ao conhecimento originado pelos sentidos e
dependente, como este conhecimento tem de ser, de um ponto de vista exclusivo e pessoal e
de um corpo cujos órgãos dos sentidos deformam tanto quanto revelam.
14. A mente que se habituou à liberdade e à imparcialidade da contemplação filosófica
conservará alguma desta mesma liberdade e imparcialidade no mundo da acção e da
emoção. Encarará os seus propósitos e desejos como partes do todo, com a falta de
persistência que resulta de os ver como fragmentos minúsculos num mundo no qual nada
16
mais é afectado por qualquer acção humana. A imparcialidade que, na contemplação, é o
desejo puro da verdade, é a mesma qualidade da mente que, na acção, é a justiça e na
emoção é o amor universal que pode ser dado a tudo e não apenas aos que consideramos
úteis ou dignos de admiração. Por conseguinte, a contemplação alarga não apenas os
objectos dos nossos pensamentos, mas também os objectos das nossas acções e das nossas
afecções; faz-nos cidadãos do universo e não apenas de uma cidade murada em guerra com
tudo o resto. A verdadeira liberdade humana e a sua libertação da sujeição a esperanças e
temores mesquinhos consiste nesta cidadania do universo.
15. Assim, resumindo a nossa discussão sobre o valor da filosofia, a filosofia deve ser estudada,
não por causa de quaisquer respostas exactas às suas questões, uma vez que, em regra, não é
possível saber que alguma resposta exacta é verdadeira, mas antes por causa das próprias
questões; porque estas questões alargam a nossa concepção do que é possível, enriquecem a
nossa imaginação intelectual e diminuem a certeza dogmática que fecha a mente à
especulação; mas acima de tudo porque, devido à grandeza do universo que a filosofia
contempla, a mente também se eleva e se torna capaz da união com o universo que constitui
o seu mais alto bem.
Para que serve a filosofia? -Desidério
http://www.intelectu.com/arquivo.html.
Murcho(
2000). O
que
é
a
filosofia?
1. A filosofia, diz-se por vezes, não serve para nada. [...]
2. Mas será verdade que a filosofia não serve para nada? Claro que não. A filosofia, como a
ciência, como a arte e como a religião, serve para alargar a nossa compreensão do mundo.
Em particular, a filosofia oferece-nos uma compreensão da nossa estrutura conceptual mais
básica, oferece-nos uma compreensão daqueles instrumentos que estamos habituados a usar
para fazer ciência, para fazer religião e para fazer arte, assim como na nossa vida quotidiana.
A filosofia é difícil porque se ocupa de problemas tão básicos que poucos instrumentos
restam para nos ajudarem no nosso estudo. Os matemáticos fazem maravilhas com os
números; mas são incapazes de determinar a natureza última dos próprios números -- têm de
se limitar a usá-los, apesar de não saberem bem o que são. Todos nós sabemos pensar em
termos de deveres, no dia a dia; mas a filosofia procura saber qual é a natureza desse
pensamento ético que nos acompanha sem nós darmos muitas vezes por isso.
3. Para compreendermos melhor as dificuldades da filosofia é conveniente pensar numa
metáfora. Imagine-se que eu estou a fazer uma casa. Preciso de usar vários instrumentos,
como a pá de pedreiro, e vários materiais, como o cimento. Mas quando quero fazer uma pá
de pedreiro, ou quando quero fazer o cimento, terei de usar outros instrumentos mais
básicos. E depois terei de ter instrumentos para fazer os instrumentos com que faço a pá de
pedreiro ou o cimento. E por aí fora. Experimente ir para uma ilha deserta fazer uma casa,
sem levar nada da civilização. Será extremamente difícil: não terá instrumentos à sua
disposição para fazer nada, excepto as suas mãos e a sua inteligência.
4. Num certo sentido, é esta a dificuldade da filosofia: estamos a tentar estudar os próprios
instrumentos que usamos habitualmente para pensar. Por esse motivo, falta-nos
instrumentos, falta-nos apoio. Mas não estamos completamente desamparados; temos a
argumentação para nos ajudar. São os argumentos que fazem a diferença. São os argumentos
que nos permitem ir mais longe na compreensão da nossa estrutura cognitiva mais profunda,
que nos permitem compreender melhor os conceitos que usamos no pensamento quotidiano,
17
científico, artístico e religioso.
5. É agora claro que a filosofia serve para alguma coisa. Serve para compreendermos melhor a
estrutura conceptual que usamos no dia-a-dia, na ciência, nas artes e na religião. Claro que a
filosofia não serve para distrair o "povo", como o futebol ou a tourada. Mas também a
matemática não serve para isso, nem a religião, nem a arte em geral. Para que serve "Os
Maias" de Eça de Queirós? Para que serve a teoria da evolução de Darwin? Para que nos
serve saber que só na nossa galáxia há tantas estrelas quantos os segundos que existem em 3
mil anos? Serve para sabermos mais sobre nós próprios e sobre o universo em que
habitamos. Tal como a filosofia.
Por que razão há filósofos? - David Stove. Tradução de Desidério Murcho. Originalmente
publicado na revista Quadrant (Julho, 1985).
1. Todas estas questões indescritivelmente esquisitas sobre números, propriedades, indivíduos,
espaço, tempo, causalidade, mentes, possibilidade, probabilidade, necessidade, obrigação,
razões, leis, Deus... Não só são as questões individualmente esquisitas, como em conjunto
não formam mais do que um caos, desafiando qualquer tentativa de as reduzir a uma
sequência racional. E para mais nenhuma das questões parece alguma vez chegar a ser
finalmente respondida. É realmente uma cena perturbadora, quando nos afastamos e
contemplamos o todo. O mais penoso é o contraste que apresenta relativamente à ciência,
tomada como um todo. Na verdade, dificilmente é possível a alguém [...] não se perguntar
por que razão há-de haver filósofos, de todo em todo; ou pelo menos perguntar-se por que
razão há-de haver tantos, pagando-se a todos grandes quantidades de dinheiro retirando-o a
outras pessoas mais úteis.
2. A última questão é absolutamente irrespondível, na minha opinião. Mas a primeira penso
que consigo responder. A pista vital para ter em mente é que as pessoas, incluindo os
cientistas, são apenas pessoas, no final de contas: pobres criaturas cindidas e complicadas
como o leitor. Tome-se o Professor AB, o nosso distinto geneticista, membro do tal-e-tal,
que ganhou o prémio tal: que homem esperto ele deve ser! Bem, é verdade, de certo modo,
mas ele não é uma essência vítrea de conhecimento genético; ele é também muitas outras
coisas, e uma delas é que ele por acaso é um metodista cabeça de vento. Ou tome-se CD, um
físico dos melhores; mas acontece que ele leva Yuri Geller a sério, ou acredita que a última
física vindica a filosofia espiritualista de Berkeley. O Professor EF de matemática pura, à
beira da reforma, começa a fazer os seus muito ocupados colegas perder a cabeça
perguntando coisas como "Mas, no final de contas, o que raio é afinal um número?" GH
acabou a sua carreira como economista mas a mola real da sua vida foi uma visão que ele
apanhou de alguns filósofos do séc. XIX, de um paraíso no qual "as massas operárias" se
emancipam. (Ele não se deu conta de que, onde ele vive, as massas deixaram há muito de ser
operárias.) O Professor de História, IJ, nem sempre consegue calar as suas perplexidades
sobre a inevitabilidade histórica, e dá consigo a perguntar, como os filósofos, quais são as
condições de verdade de uma afirmação como "Hitler teria ganho a guerra se não tivesse
atacado a Rússia". KL, o Professor de Medicina, ainda que nada mais o empurre nessa
direcção, é levado pela sua nova tecnologia a enfrentar deliberações agonizantes sobre os
deveres de um médico para com os seus doentes. E assim por diante. Por outras palavras, as
pessoas inteligentes, entregues a si mesmas, acabarão por filosofar, mais tarde ou mais cedo,
seja qual for o campo de trabalho intelectual a que se entreguem, ou mesmo que a nenhum
se entreguem. O impulso para a filosofia é de facto tão natural e tão forte que nada se
conhece, excepto o terror totalitarista, que consiga reprimi-lo em absoluto. Numa sociedade
18
não totalitarista, pois, a filosofia será feita, e a única questão prática que resta é como haverá
melhores hipóteses de ser bem feita, ou por quem.
3. E eis que chega o último facto. Há filósofos que pensaram durante mais tempo e melhor
sobre a ética da medicina do que o professor de medicina alguma vez teve tempo de fazer.
Há filósofos que pensaram durante mais tempo e melhor sobre a experiência das duas fendas
do que os físicos. Há filósofos que pensaram mais tempo e melhor sobre os fundamentos da
matemática do que alguma vez será provável que um matemático o faça. E assim por diante.
Tenho consciência de que um filósofo não pode dizer isto da sua profissão sem trair uma
certa arrogância. Contudo, é a verdade literal. E é uma justificação suficiente para a
existência de uma classe de pessoas especialmente formadas em filosofia. Como classe, os
filósofos nunca são bem vistos pelos seus colegas universitários. A acusação que nos
lançavam costumava ser a de que andávamos perdidos em generalidades nebulosas. Hoje em
dia a acusação é habitualmente ao contrário: que negligenciámos "as grandes questões" a
favor de tecnicismos minuciosos e despropositados. Esta acusação é falsa, mas é
inteiramente compreensível que a façam. O padrão de rigor em filosofia subiu imenso neste
século, e este facto, só por si, é suficiente para explicar a fragmentação das grandes questões
únicas em muitas questões mais pequenas, e o consequente abrandamento de todo o
processo. A quem observa de fora, não podendo ver a floresta por causa das árvores, a coisa
parece naturalmente como se jamais pudesse ter a mais remota conexão seja com o que for
de interesse, de modo que um químico teórico, por exemplo, olhará provavelmente para nós
pensando "Lá vai mais um maldito filósofo: para que é que os alimentamos?" Bom, estes
pensamentos não são irracionais; mas estão errados. Ao mesmo tempo que nos desprezam,
os nossos colegas têm também medo de nós. Também isto não é falho de fundamento
racional! Em qualquer tipo de argumentação os filósofos são homens tenazes (alguns dos
quais são mulheres), e a maior parte das pessoas não querem atravessar-se no nosso caminho
mais do que uma ou duas vezes.
Os problemas
da filosofia - Desidério
filosofia?. http://www.intelectu.com/arquivo.html.
Murcho(2000).
O
q
ue
é
a
1. Eis, então, alguns exemplos de problemas da filosofia. A filosofia desenvolveu ao longo da
sua vida milenar várias disciplinas distintas. Por vezes, alguns problemas surgem em mais
do que uma disciplina. Mas é bom ter uma ideia dos diferentes tipos de problemas estudados
por algumas disciplinas da filosofia.
2. Comecemos pela ética. A ética não estuda os preconceitos comportamentais - preconceitos
como a ideia católica de que os homossexuais não podem casar e que ninguém deve ter
relações sexuais antes do casamento. A ética nada tem a ver com este tipo de coisas. Este
tipo de coisas emana de um certo cdigo religioso de comportamentos, que pouco se
relaciona na verdade com a ética - é apenas uma manifestação de uma certa visão religiosa
do mundo. Faz-se por vezes uma distinção entre "moral" e "ética" querendo reservar para
esta última a acepção filosófica, ao passo que a primeira se referiria aos costumes sociais.
Mas esta distinção é artificiosa e caiu em desuso desde há muito tempo.
3. A ética ocupa-se de vários tipos de problemas bastante distintos. Os mais fáceis de
compreender são os da ética aplicada, que se ocupa de problemas como o aborto e a
eutanásia. Será o aborto um mal que deve ser proibido? Repare-se que não se trata de saber
se o aborto é um mal aos olhos de Deus ou do Papa ou de qualquer confissão religiosa; tratase de saber se o aborto é, eticamente, e à luz da nossa razão, algo que deve ser proibido, tal
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como o assassínio é proibido independentemente das religiões. O que ocupa a reflexão
filosófica não é apenas a tentativa de dizer "Sim, o aborto é um mal" ou "Não, o aborto não
é um mal". O que distingue a reflexão filosófica é a fundamentação racional: os argumentos
que sustentam as nossas posições. O que importa são os argumentos que se apresentam para
dizer que sim ao aborto ou para dizer que não. O trabalho da filosofia consiste em estudar
esses argumentos e avaliá-los criticamente. A filosofia é algo que cada um faz com a sua
própria cabeça, em diálogo crítico com os outros. A filosofia não consiste em ler textos e
"comentar" o que esses textos dizem. A filosofia consiste em pensar nos mesmos problemas
que são tratados nesses textos, o que é muito, muito diferente.
4. Mas a ética ocupa-se de outras questões menos óbvias. Por exemplo, o que quer dizer
"Matar inocentes é um mal" ou "Não devemos matar inocentes"? O que quer realmente dizer
a palavra "dever"? Este tipo de problema é enfrentado pelo que se chama "metaética". A
metaética ocupa-se da questão de saber qual é a natureza do juízo ético. É a área mais geral
e conceptual da ética. Há várias teorias que tentam responder a este problema, algumas delas
tecnicamente bastante complexas e precisas.
5. A epistemologia é outra disciplina da filosofia. Neste caso, trata-se de investigar vários
problemas relacionados com o nosso conhecimento. Uma vez mais, o carácter conceptual da
filosofia obriga a distinguir os problemas filosóficos do conhecimento dos problemas
psicológicos ou sociológicos do conhecimento. Por exemplo, a psicologia cognitiva tem
vindo a conduzir várias investigações sobre o modo como os seres humanos estruturam
vários aspectos do conhecimento. Piaget, por exemplo, procurou estabelecer etapas
diferenciadas no desenvolvimento cognitivo dos seres humanos. Os seus estudos estão hoje
ultrapassados por investigações mais recentes, mas tanto os seus estudos como os estudos
mais recentes não são estudos filosóficos nem têm interesse para a filosofia. Os problemas
estudados pela epistemologia ou pela filosofia do conhecimento não se referem de modo
algum ao fenómeno do conhecimento tal como ele ocorre realmente nos seres humanos; os
problemas da epistemologia e da filosofia do conhecimento são mais gerais e de carácter
conceptual.
6. Um dos problemas da epistemologia mais simples de apresentar é este: o que é o
conhecimento? O conhecimento distingue-se da mera opinião porque o conhecimento é
factivo -- isto é, não podemos conhecer falsidades, apesar de podermos pensar falsidades.
Mas o que é realmente o conhecimento? Não ser trata apenas de opinião, porque as opiniões
podem ser falsas mas o conhecimento não. Será então que o conhecimento é apenas a
opinião verdadeira? Mas será que podemos dizer que os atomistas gregos sabiam realmente
que tudo é composto por átomos? Eles tinham realmente essa opinião, e essa opinião veio a
verificar-se séculos depois ser verdadeira; mas, de algum modo, parece que eles não sabiam
realmente que tudo era composto de átomos -- apenas tinham essa opinião que, por acaso,
acabou por coincidir com a realidade. O que está em causa neste problema é a definição de
conhecimento -- algo que não pode determinar-se recorrendo a estudos de natureza
empírica.
7. Outro problema importante na área da epistemologia é a questão da justificação do
conhecimento - perante um fragmento particular de pretenso conhecimento, como podemos
saber que se trata realmente de conhecimento e não de uma ilusão? Por exemplo, todos
pensamos que o mundo exterior é independente de nós; mas que razões teremos para pensar
isso? E não haverá razões para pensar o contrário?
8. Reserva-se por vezes o termo "epistemologia" para a filosofia do conhecimento científico,
usando-se o termo "gnosiologia" para a filosofia do conhecimento em geral. Mas esta
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terminologia não é usada hoje em dia nas grandes universidades do mundo inteiro, nem
corresponde à realidade do que se estuda quando se estuda epistemologia. A epistemologia é
o estudo filosófico de vários problemas relacionados com o conhecimento independentemente de se tratar de conhecimento científico ou de outro qualquer tipo de
conhecimento. É a filosofia da ciência que se ocupa de vários problemas relacionados com o
conhecimento científico.
9. Outra disciplina filosófica é a metafísica, que se ocupa de outro tipo de problemas. Que tipo
de coisas existem no mundo? Admitindo que existem árvores e mesas e pessoas, será que os
números também existem? E as cores? E os conceitos, como a justiça? Quantos tipos de
existência há, se há mais do que um? E quais são as categorias mais gerais da realidade?
Como poderemos pensar a identidade? Se ao longo de 10 anos formos substituindo as tábuas
todas de um bote de madeira, o bote de hoje será ainda o mesmo do que o bote de há 10
anos? Mas se não é o mesmo, para onde foi o bote de há 10 anos e quando deixou ele de
existir?
10. É claro que há muitos, muitos mais problemas da filosofia. Os problemas da filosofia têm
esta característica em geral: não se podem resolver recorrendo aos métodos estabelecidos
das ciências e implicam um uso forte da argumentação. Os problemas da filosofia
interpelam-nos e exigem-nos argumentos. É claro que eu acho que o mundo exterior existe
independentemente de mim; mas como posso eu justificar esta opinião? A filosofia é um
pedido sistemático de justificações e essas justificações são argumentos - argumentos de
carácter conceptual e não argumentos de carácter empírico.
Por que razão há filósofos? David Stove. Tradução de Desidério Murcho. Originalmente
publicado na revista Quadrant (Julho, 1985).
1. Todas estas questões indescritivelmente esquisitas sobre números, propriedades, indivíduos,
espaço, tempo, causalidade, mentes, possibilidade, probabilidade, necessidade, obrigação,
razões, leis, Deus... Não só são as questões individualmente esquisitas, como em conjunto
não formam mais do que um caos, desafiando qualquer tentativa de as reduzir a uma
sequência racional. E para mais nenhuma das questões parece alguma vez chegar a ser
finalmente respondida. É realmente uma cena perturbadora, quando nos afastamos e
contemplamos o todo. O mais penoso é o contraste que apresenta relativamente à ciência,
tomada como um todo. Na verdade, dificilmente é possível a alguém [...] não se perguntar
por que razão há-de haver filósofos, de todo em todo; ou pelo menos perguntar-se por que
razão há-de haver tantos, pagando-se a todos grandes quantidades de dinheiro retirando-o a
outras pessoas mais úteis.
2. A última questão é absolutamente irrespondível, na minha opinião. Mas a primeira penso
que consigo responder. A pista vital para ter em mente é que as pessoas, incluindo os
cientistas, são apenas pessoas, no final de contas: pobres criaturas cindidas e complicadas
como o leitor. Tome-se o Professor AB, o nosso distinto geneticista, membro do tal-e-tal,
que ganhou o prémio tal: que homem esperto ele deve ser! Bem, é verdade, de certo modo,
mas ele não é uma essência vítrea de conhecimento genético; ele é também muitas outras
coisas, e uma delas é que ele por acaso é um metodista cabeça de vento. Ou tome-se CD, um
físico dos melhores; mas acontece que ele leva Yuri Geller a sério, ou acredita que a última
física vindica a filosofia espiritualista de Berkeley. O Professor EF de matemática pura, à
beira da reforma, começa a fazer os seus muito ocupados colegas perder a cabeça
perguntando coisas como "Mas, no final de contas, o que raio é afinal um número?" GH
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acabou a sua carreira como economista mas a mola real da sua vida foi uma visão que ele
apanhou de alguns filósofos do séc. XIX, de um paraíso no qual "as massas operárias" se
emancipam. (Ele não se deu conta de que, onde ele vive, as massas deixaram há muito de ser
operárias.) O Professor de História, IJ, nem sempre consegue calar as suas perplexidades
sobre a inevitabilidade histórica, e dá consigo a perguntar, como os filósofos, quais são as
condições de verdade de uma afirmação como "Hitler teria ganho a guerra se não tivesse
atacado a Rússia". KL, o Professor de Medicina, ainda que nada mais o empurre nessa
direcção, é levado pela sua nova tecnologia a enfrentar deliberações agonizantes sobre os
deveres de um médico para com os seus doentes. E assim por diante. Por outras palavras, as
pessoas inteligentes, entregues a si mesmas, acabarão por filosofar, mais tarde ou mais cedo,
seja qual for o campo de trabalho intelectual a que se entreguem, ou mesmo que a nenhum
se entreguem. O impulso para a filosofia é de facto tão natural e tão forte que nada se
conhece, excepto o terror totalitarista, que consiga reprimi-lo em absoluto. Numa sociedade
não totalitarista, pois, a filosofia será feita, e a única questão prática que resta é como haverá
melhores hipóteses de ser bem feita, ou por quem.
3. E eis que chega o último facto. Há filósofos que pensaram durante mais tempo e melhor
sobre a ética da medicina do que o professor de medicina alguma vez teve tempo de fazer.
Há filósofos que pensaram durante mais tempo e melhor sobre a experiência das duas fendas
do que os físicos. Há filósofos que pensaram mais tempo e melhor sobre os fundamentos da
matemática do que alguma vez será provável que um matemático o faça. E assim por diante.
Tenho consciência de que um filósofo não pode dizer isto da sua profissão sem trair uma
certa arrogância. Contudo, é a verdade literal. E é uma justificação suficiente para a
existência de uma classe de pessoas especialmente formadas em filosofia. Como classe, os
filósofos nunca são bem vistos pelos seus colegas universitários. A acusação que nos
lançavam costumava ser a de que andávamos perdidos em generalidades nebulosas. Hoje em
dia a acusação é habitualmente ao contrário: que negligenciámos "as grandes questões" a
favor de tecnicismos minuciosos e despropositados. Esta acusação é falsa, mas é
inteiramente compreensível que a façam. O padrão de rigor em filosofia subiu imenso neste
século, e este facto, só por si, é suficiente para explicar a fragmentação das grandes questões
únicas em muitas questões mais pequenas, e o consequente abrandamento de todo o
processo. A quem observa de fora, não podendo ver a floresta por causa das árvores, a coisa
parece naturalmente como se jamais pudesse ter a mais remota conexão seja com o que for
de interesse, de modo que um químico teórico, por exemplo, olhará provavelmente para nós
pensando "Lá vai mais um maldito filósofo: para que é que os alimentamos?" Bom, estes
pensamentos não são irracionais; mas estão errados. Ao mesmo tempo que nos desprezam,
os nossos colegas têm também medo de nós. Também isto não é falho de fundamento
racional! Em qualquer tipo de argumentação os filósofos são homens tenazes (alguns dos
quais são mulheres), e a maior parte das pessoas não querem atravessar-se no nosso caminho
mais do que uma ou duas vezes.
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