PELAS ESQUINAS DOS ANOS 70 Utopia e poesia no Clube da

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PELAS ESQUINAS DOS ANOS 70
Utopia e poesia no Clube da Esquina
por
Francisco Carlos Soares Fernandes Vieira
Dissertação de Mestrado em Poética apresentada
à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em
Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Orientador: Prof. Dr. Frederico Augusto L. de Góes.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Faculdade de Letras – Julho de 1998
EXAME DE DISSERTAÇÃO
VIEIRA, Francisco Carlos Soares Fernandes.
Pelas esquinas dos anos 70: utopia e poesia
no Clube da Esquina. Rio de Janeiro: UFRJ,
Faculdade de Letras, 1998, 132 fl. mimeo.
Dissertação de mestrado em Poética.
BANCA EXAMINADORA
Professor Doutor Frederico Augusto Liberalli de Góes
Orientador
_______________________________________________________________
Professora Doutora Nízia Villaça
Professor Doutor Antônio Lauro de Oliveira Góes
_______________________________________________________________
Professor Doutor André Luiz Bueno
Professora Doutora Ana Maria Alencar
Defendida a Dissertação:
Conceito:
Em: / /1998
Para Maristela, minha estrela,
e Clarice, minha pequena luz.
A meu pai (in memoriam):
“Longe, longe ouço essa voz
que o tempo não vai levar”.
À Minha mãe, Yvone, a meus irmãos
Lygia Maria, Ana Cristina, Elisa Maria
e José Alberto pela força, carinho e
união.
Aos
sobrinhos
Raphael,
Guilherme, e “quem mais chegar”.
A todas as crianças e jovens, principais responsáveis
por novas utopias para o século XXI.
A todas as pessoas que, como eu, apreciam a poesia,
seja lida, recitada ou cantada.
A todos que viveram e acreditaram (e aos que, apesar
de tudo, ainda acreditam) se possível transformar a
utopia em “topia”.
A todos que, juntos comigo, passaram por esquinas,
ruas, estradas de terra, vales, montanhas, avenidas,
praias, pedras, rios, mares, marés e minas, contribuindo,
direta ou indiretamente, para esta pesquisa.
Agradecimentos
especiais
às
pessoas
que
contribuíram
mais
concretamente:
Professor Dr. Fred Góes, por ter aberto caminho para pesquisas referentes à
canção na Faculdade de Letras e pela orientação segura e tranqüila;
Professor Dr. André Bueno, pelo grande estímulo à pesquisa;
Professor Dr. Lauro Góes, pelo redimensionamento da teoria literária através
do teatro;
Professora Doutora Beatriz Resende, pela contribuição para minha formação
acadêmica;
Professora Doutora Nizia Villaça, por ter aberto meus horizontes em relação à
comunicação;
Professora Doutora Maria da Graça Aziz Cretton, uma das maiores
incentivadoras para o meu ingresso no mestrado;
Professor Doutor Sérgio M. Gesteira, por me fazer gostar ainda mais da
literatura brasileira;
Professora Doutora Marta de Sena, pelo grande apoio quando era
coordenadora de Ciência de Literatura na Pós-Graduação;
Funcionários da Pós-Graduação que, nos momentos difíceis, sempre me
deram força e resolveram problemas burocráticos;
Maristela, pelas sugestões dadas para aperfeiçoamento do texto;
Elisa, pelos “toques”, dicas, correções e revisões no texto;
Toda a minha família, pelo apoio e compreensão em momentos nos que não
pude estar presente;
Rafael, amigo de tantas viagens e “pé na estrada”, pelas sugestões e socorros
na luta com o computador;
Luiz Carlos, compadre e amigo desde a graduação, pela força e incentivo ao
ingresso na pós-graduação;
Denise, por possibilitar o contato com os músicos e compositores Márcio
Ramos e Ana Antoun e pela tradução do resumo;
Marly, Márcio e Ana, pelas conversas agradáveis sobre o Clube da Esquina,
sobre música e, ainda, por terem me apresentado a Nélson Ângelo;
Nélson Ângelo, um dos músicos e compositores que passaram pelo Clube da
Esquina, pelas agradáveis e elucidativas conversas sobre música, poesia e
anos 70, registradas em fita cassete para esta pesquisa.
SINOPSE
A importância do Clube da Esquina como resistência
cultural, através da música e poesia, durante os anos
70, período mais intenso da ditadura militar no Brasil.
Poesia e utopia através das canções do Clube da
Esquina, revelando a união fundamental de ambas para
o homem. Revitalização da poesia cantada; MPB: Um
dos principais veículos da poesia na atualidade.
SUMÁRIO
1 – INTRODUÇÃO
1.1 – Nas esquinas da poesia .............................................................................8
1.2 – Minhas esquinas ......................................................................................11
2 – ESQUINA: CRUZAMENTO DA VIA POÉTICA E DA VIA MUSICAL.........16
2.1 – Semeando as canções no vento ..............................................................16
2.2 – De tudo se faz canção .............................................................................27
3 – ANTES DA ESQUINA ................................................................................41
3.1 – Pré-68: “de minha garganta as canções explodem” ................................41
3.2 – A travessia de Milton ................................................................................46
4 – O CLUBE DA ESQUINA.............................................................................65
4.1 – Da sombra eu tiro o meu sol.....................................................................65
4.2 – Nuvem Cigana..........................................................................................70
4.3 – Saídas e bandeiras...................................................................................74
5 – A NOITE E O SONHO NO CLUBE DA ESQUINA: RESISTÊNCIA
CULTURAL PELAS ESQUINAS DOS ANOS 70.............................................92
5.1 – A noite.......................................................................................................92
5.2 – Milagre dos Peixes: censura nas esquina..............................................101
5.3 – O sonho não acabou..............................................................................109
6 – FIM DO MILÊNIO; FIM DAS UTOPIAS?..................................................119
7 – BIBLIOGRAFIA.........................................................................................126
8 – DISCOGRAFIA..........................................................................................131
A História é um carro alegre
Cheio de um povo contente
Que atropela indiferente
Todo aquele que a negue
É um trem riscando trilhos
Abrindo novos espaços
Acenando muitos braços
Balançando nossos filhos
(PABLO MILANES E CHICO BUARQUE – Canción por
la unidad de Latino América)
estão velhos ou mortos os homens que acreditam
nos homens? Os justos estarão no fim? Não e não.
Assim como a injustiça, a violência e o ódio se
espalham e deixam seu rastro de miséria por onde
passam – a semente de amor, dignidade e justiça
que recebemos frutifica
e também estende seus
braços. Está plantada no coração dos jovens. (...)
Debaixo de nosso abençoado sol tropical, junto com
nossos maiores e nossa juventude (mãos dadas com
nossa infância) apostamos tudo na utopia.
(FERNANDO BRANT – “A caminho da utopia”)
1 – INTRODUÇÃO
1.1 – Nas esquinas da poesia
O presente trabalho pretende analisar a produção poética do Clube da
Esquina na década de 70, época em que o Brasil vive o momento do “milagre
econômico” e sob intensa ditadura militar. Todavia, é um período em que,
apesar das adversidades, surgem vários poetas, compositores, músicos, dos
quais se destaca o grupo “mineiro”.
O objeto central de estudo vai do disco Milton Nascimento (1969) até o
de Lô Borges, A Via Láctea (1979), por ser o período compreendido por estas
obras o mais intenso e o mais marcante de criação, produção, arranjo e
execução coletiva dos principais participantes do Clube da Esquina. Antes,
porém, será necessário voltar um pouco aos anos sessenta a fim de que se
possa entender como surge este grupo “mineiro” e quais as relações existentes
com movimentos importante dessa década, como a Bossa Nova, Tropicalismo,
os festivais da canção, as canções de protesto, os CPCs.
O ponto de partida será o ano de 1967, mesmo ano da explosão
tropicalista, pois é quando se estabelece a união do “quinteto” central deste
estudo: Milton Nascimento, Lô Borges, Márcio Borges, Ronaldo Bastos e
Fernando Brant. Contudo, serão necessárias algumas referências aos anos
antecessores que possibilitaram e desencadearam este frutífero encontro para
podermos entender o ideal destes autores, relacionado-as com a produção
poético-musical do “grupo”.
O período de surgimento do grupo corresponde ao momento mais
obscuro do regime militar instaurado em 1964, que não deixou opções para os
opositores do regime e, principalmente, para jovens cheios de sonhos e idéias
para mudar o mundo, como os compositores do Clube da Esquina e tantos
outros da época. É bom lembrar que esse era o momento da contracultura e
da ebulição do poder jovem em todo mundo, e que, no Brasil, apresentava uma
especificidade devido ao endurecimento do regime em 1968. No entanto, havia
uma tônica geral neste movimento, um inconsciente coletivo: a luta contra a
falta de liberdade política, social, sexual, comportamental. Por isso, algumas
das saídas possíveis para enfrentar tal situação foram usadas pelos jovens de
então: a luta armada, as drogas, o “desbunde” (que é uma denominação
específica do Brasil, é a contracultura aclimatada), muitas vezes de forma
camuflada. Em alguns instantes, estas saídas aparecem lado a lado em
pessoas que não concordavam com a truculência do regime militar e com a
falta de liberdade política, cultural e artística.
O ano de 1968 foi um ano marcante, um divisor de águas em nossa
história recente. Não só aqui no Brasil, como na Europa, especialmente França
e Inglaterra, nos Estados Unidos, na China e em outros países. Em matéria
recente do jornal Folha de São Paulo, há uma série de artigos, cujo título
principal é “A Última Utopia”,1 que reanalisaram e revêem o ano de 1968. em
nosso estudo, também verificaremos se este movimento de 68 foi realmente o
último momento utópico do século, principalmente agora que se fala em fim da
história, fim do socialismo, fim da utopia, fim da poesia, fim de tudo.
observaremos ainda a relação da produção poético-musical do Clube da
Esquina com o ideal de 1968 e que conseqüências os movimentos da década
de 60 geraram para estes autores.
É justamente a partir deste ano (1968) que começaram a florescer as parcerias
entre Milton, Fernando, Lô e Márcio, embora Milton e Márcio tenham iniciado a
compor em 1963. A década de sessenta, período de grande efervescência
política, social, cultura e artística, certamente influenciou e deixou marcas nas
suas composições, assim como a década subseqüente de extremo
cerceamento da liberdade de expressão fez com que estes outros autores
tentassem fazer com que alguma contestação passasse “pela fresta”.2
Afinal de contas, utopia e poesia muitas vezes caminham juntas.
Podemos até afirmar que uma não existe sem a outra, portanto, se a utopia
acaba, a poesia acaba também. E se a poesia acaba, conforme disse Octavio
Paz, o homem reduz-se à metade. “À medida que o poeta se desvanece como
existência social e se torna mais rara a circulação em plena luz de suas obras,
aumenta seu contato com isso que, à falta de menor expressão, chamaremos a
metade perdida do homem”.3
Trinta anos se passaram. Esta poesia de esquina, logicamente sem
valor pejorativo, deixou para a nossa cultura uma rica herança e, com certeza,
contribuiu para o amadurecimento de nossa poesia, em especial, em sua
modalidade cantada. Estas contribuições serão ressaltadas ao longo do
trabalho.
Para analise de nosso objeto, foram pesquisados e analisados, em
primeira instância, os discos dos principais intérpretes das canções do Clube
da Esquina – Milton Nascimento, Lô Borges, Beto Guedes – e ainda alguns dos
14 Bis, do Flávio Venturini, do Boca Livre, lançados, em sua maioria, no
período de 1968-1980. Recorremos a alguns discos e cd’s lançados após esse
período quando foi preciso estabelecer esta relação com a década de 70 e a
vigente ou para ouvir regravações de canções do período assinalado acima.
Para atingir os objetivos, foram consultados livros, jornais, revistas e
entrevistas de rádio que se referiam diretamente ao objeto de estudo, tais como
o livro Os Sonhos não Envelhecem4, um relato de histórias do Clube da
Esquina feito por Márcio Borges, um de seus integrantes primordiais. Como
embasamento teórico, devido ao tema, utilizamos uma biografia interdisciplinar
com textos de Poética, Semiologia, Comunicação, História, Cultura, Música.
Octavio Paz, Umberto Eco, Walter Benjamim e Heloísa Buarque de Hollanda
são alguns dos estudiosos que mais deram sustentação às nossas reflexões.
Outra fonte importante foi a entrevista realizada com um dos músicos e
compositores que participou do Clube da Esquina, Nélson Ângelo.
Devido à amplitude de temas e canções e para reforçar o caráter
coletivo e de convergência de ideais nas composições dos autores em estúdio,
optamos em centralizar a pesquisa em alguns núcleos teóricos mais relevantes
e coincidentes, tais como: “noite”, “sonho”, utopia, resistência.
Embora reconhecendo a especificidade da canção e que sua plena
realização enquanto arte depende de sua audição, o enfoque predominante
será o poético, já que consideramos a letra de música uma forma de poesia.
Contudo, sempre que necessário e possível, iremos nos referir à parte musical,
pois a canção é um conjunto letra/música.
1.2 – Minhas esquinas
Apesar de já existirem outras pesquisas e trabalhos que consideram a
letra de música uma manifestação literária, a destacar a Tese de Doutorado de
Fred Góes5, ainda há preconceito, algumas vezes de forma direta; outras
veladamente, de algumas pessoas da área de Literatura em aceita-la como
uma forma poética. Contrariando estas últimas opiniões, também defendo a
tese de que letra de música é, de fato, poesia. Esta polêmica me instiga e me
mobiliza desde a época da graduação, quando pela primeira vez ensaiei
discutir o assunto, ainda que de forma muito ingênua e simples, apresentando
uma monografia intitulada “Letra de música é poesia” à professora Beatriz
Resende, no final do curso de Teoria Literária IV. Dessa época de graduação,
destaco como fundamentais, para o aprofundamento destas questões e para
minha formação, os cursos optativos ministrados pelos professores Fred Góes
e André Bueno nos quais elas sempre foram tratadas sem preconceitos e com
muita discussão teórica e prática.
Preconceitos de lado, hoje tenho certeza de que foram, principalmente,
as letras de música que me levaram a gostar tanto de poesia e, posteriormente
à Faculdade de Letras. Sempre gostei muito de música e, habitualmente, tinha
(ainda tenho) o costume de ouví-las com atenção, analisando-as e não apenas
consumindo-as como produtos industriais vazios e sem poeticidade. Percebia
que várias canções possuía valor poético e foram, sem dúvida, as canções de
Milton Nascimento, Lô Borges, Beto Guedes, Chico Buarque, Vinícius de
Morais, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Alceu Valença, Geraldo Azevedo e tantos
outros nomes da MPB que me levaram a gostar e querer conhecer outros
poetas. Ou seja, foram estes que me levaram ao encontro de tantos outros
poetas excelentes, como Vinícius de Morais, Carlos Drummond de Andrade,
Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Fernando Pessoa.
Lembro-me de que, durante a década de 70, adorava ficar no meio das
rodas de violão de meus irmãos mais velhos e seus amigos. Fui tendo um
contato cada vez maior com a MPB: através do rádio, ouvia, de preferência, a
FM-NACIONAL; através dos discos de minhas irmãs mais velhas; indo a vários
shows no final dos anos setenta e início dos oitenta nos mais variados lugares.
Isso sem falar nas inesquecíveis rodas de violão em 1982 com colegas da
terceira série do segundo grau do Instituto Guanabara onde estudava e que
aconteciam na hora do recreio, em passeios e em bares de Vila Isabel, Tijuca e
adjacências. “Rolavam” músicas de cantores e compositores variados: Milton
Nascimento, Chico Buarque (Já na época, para mim, um dos maiores poetas
brasileiros), Lô Borges, Beto Guedes, Gilberto Gil, Zé Ramalho, Geraldo
Azevedo, João Bosco, etc. Dentre as músicas que faziam parte do repertório,
sempre eram pedidas e desde então ficaram em minha memória estão: Um
Girassol da Cor de seu Cabelo (de Lô e Márcio Borges), Cais (de Milton
Nascimento e Fernando Brant), Admirável Gado Novo (de Zé Ramalho),
Andança (de Danilo Caymmi, Edmundo Souto e Paulinho Tapajós), Apesar de
Você (de Chico Buarque), Não Chores Mais (Versão de Gilberto Gil), O Bêbado
e a Equilibrista (de João Bosco e Aldir Blanc). Estas três últimas tidas como
espécie de hinos pela liberdade democrática e pelo fim total da ditadura militar.
Um sinal significativo de como o LP Clube da Esquina já me impressionava (e a
outros de minha geração) pela sua qualidade poético-musical é a presença de
duas músicas deste disco entre as minhas preferências de então. Já
conhecendo este LP duplo, pois tínhamos o disco em casa, passei a me
interessar cada vez mais pela obra de Milton e dos outros mineiros,
destacando-se entre eles Lô Borges.
Na verdade, esta questão da letra de música já me intrigava e me
motivava antes de começar a Faculdade de Letras, pois via os compositores
mencionados acima também como autênticos poetas e não entendia e nem
aceitava essa discriminação pelo simples fato do veículo da poesia ser outro.
A escolha de trabalhar com as canções dos participantes do Clube da
Esquina se dá, então, por vários motivos: o prazer de ouvir e analisar seu
conteúdo poético-musical, o grande interesse pelas manifestações culturais e
artísticas da década de 70 e pela produção poética coletiva, uma das
especificidades do texto poético-musical.
Embora muitas das pessoas engajadas politicamente encarassem a
contracultura e o ideal hippie como uma alienação, sempre vislumbrei ali um
inconformismo com a situação vigente no país, mesmo sabendo que o
movimento hippie vagava por vários países e não era só brasileiro. Na verdade,
o ideal hippie e de contracultura encontra no Brasil um ambiente exatamente
favorável para sua perpetuação, visto que as formas diretas de contestação
política estavam fechadas. Temos, pois, uma série de grupos tentando viver e
lutar contra o regime, uns mais e outros menos alternativos. O Clube da
Esquina se insere neste contexto.
NOTAS:
1
FOLHA DE SÃO PAULO. Caderno Mais. “A última utopia”. São
Paulo. 10/05/1998.
2
VASCONCELLOS, G (1977).
3
PAZ, O. (1972) p.85.
4
BORGES, M (1996)
5
GÓES, F (1993)
2 – ESQUINA: CRUZAMENTO DA VIA POÉTICA E DA VIA MUSICAL
O reaparecimento da palavra falada não implica numa volta
ao passado: o espaço é outro, mais vasto, e, sobretudo em
dispersão. A espaço em movimento, palavra em rotação; a
espaço plural, uma nova frase que seja como um delta
verbal, como mundo que explode em pleno céu. Palavra ao
ar livre, pelos espaços exteriores e inferiores: nebulosa
contida em uma pulsação, pestanejo de um sol.
(OCTAVIO PAZ – Signos em rotação)
2.1 – Semeando as canções no vento*
Como esta pesquisa pretende analisar a poesia produzida na década de
70 pelos letristas (ou melhor, poetas) integrantes do Clube da Esquina, quando
o Brasil vivia o momento do “milagre econômico” e a ditadura militar, antes de
iniciarmos propriamente o tema, fez-se necessário estabelecermos algumas
diferenciações em relação a alguns termos que serão usados durante o
desenvolvimento do texto.
Em primeiro lugar, usaremos o termo poesia em seu sentido mais amplo,
a arte poética. Por isso, mesmo sabendo das diferenças existentes entre poema
e letra de música, assunto que será abordado adiante, esse termo será
empregado ora para a letra de música, ora para o poema, pois todo o texto que
trabalha artisticamente a palavra, privilegiando a função poética da linguagem, é
um texto poético; daí a denominação genérica poesia.
A questão letra/poesia será tratada, já que o âmago da pesquisa são
letras de música e, embora com diferenças em relação aos poemas, estas são,
como tentaremos demonstrar, formas poéticas, “e isso é inalienável, a canção
que existe para ser cantada tem um texto: e é nele que está evidente a função
poética da linguagem”.1 por isso chamaremos os ditos letristas de poetas por
também considerá-los artistas da palavra.
Não pretendemos, contudo, igualar poema e letra de música, nem
estabelecer uma hierarquia de valores a afirmar que uma é superior à outra.
Como foi muito bem definido por Fred Góes em sua Tese de Doutorado, a letra
de música possui uma especificidade, não podendo ser analisada isoladamente
da música.
(...) Letra e música formam um contexto indissolúvel; não se
trata de um texto subordinado à música (ou ao contrário
disso). Há simultaneamente em sua produção e na
perspectiva de suas relações, dada a necessidade de
coadunar o ritmo, a melodia e a letra. 2
Então, se na letra de música há poeticidade, é evidente que ela também
é uma forma poética. 3
Há críticos que consideram a letra de música um simples produto da
indústria cultural, sendo algo que é feito para ser consumido superficialmente e
sem qualquer análise ou discussão. Ou seja, descartam a possibilidade de uma
letra de música vir a ser considerada uma forma literária.
Na realidade, os que assim pensam produzem velhas estratificações da
literatura e da arte: poema menor, poema maior; poeta maior e poeta menor;
cultura superior e cultura inferior; nível alto, médio e baixo.4 Estes críticos não
aceitam que a arte literária, no caso a palavra poética cantada, seja consumida
por um grande número de pessoas ao mesmo tempo, independente de sua
qualidade, pois desta forma não pode ser considerada literatura, sendo somente
um produto da cultura de massa. Não podemos concordar com que pensa
assim, pois o simples fato de ser largamente disseminado pelos meios de
comunicação de massa não invalida poeticamente um texto. Será que todas as
letras de música são meros produtos industriais sem valor estético? Quem
pensa que sim esquece de uma coisa: da capacidade múltipla da arte, da
possibilidade semiótica da arte.
Ademais, classificações e estratificações como essas são variáveis no
tempo e no espaço, como bem lembrou Teixeira Coelho:
(...) frequentemente, na história, a passagem de um produto
cultural de uma categoria inferior para outra superior é
apenas questão de tempo. É o caso do jazz, que saiu dos
bordéis e favelas negras para as platéias brancas dos teatros
municipais. (...)5
Portanto não se pode rotular ou enquadrar definitivamente um texto em
um nível sem refletir o que está por trás disso, pois o que determina se um
texto é poesia não é a sua origem, classe social, meio de disseminação ou
forma e sim um conjunto de valores tais como: grau de poeticidade,
universalidade, ambigüidade que, como veremos a diante, estão presentes nos
textos das canções do Clube da Esquina. Na verdade, estas tentativas de
classificar e dividir os textos literários tem o objetivo de separar e ratificar a
divisão clássica entre a arte erudita e a arte popular, onde a primeira sempre é
vista como superior pela elite.
Vale lembrar aqui a oposição estabelecida por Umberto Eco: de um lado,
os “apocalípticos”; do outro, os “integrados”.6 É preciso considerar estas duas
visões antagônicas para podermos tirar algumas conclusões. Não da para
aceitar
a
posição
dos
“apocalípticos”
que
simplesmente
atacam
e
desconsideram o valor artístico da poesia cantada, por acharem que as letras
de músicas apenas repetem formulas e imagens, são meros produtos
industriais que visam só ao lucro, estando a reboque das grandes empresas do
disco e do entretenimento. O fato de reproduzir uma obra artística em série não
tira seu valor estético, embora altere a concepção de arte. Caso contrário,
desde que foram inventados os vários meios de reprodução de obras de arte
em diferentes modalidades, não poderíamos mais falar em arte. Na era da
“reprodutibilidade técnica”, segundo Benjamin, a concepção de arte altera-se e
deixa de ter um valor apenas de culto. A arte perde sua aura primitiva e caráter
de contemplação individual, assumindo um aspecto cada vez mais social e
plural. A reprodução técnica da obra de arte, em suas diferentes formas, muda
a relação do indivíduo com a obra. Em relação à canção, a pessoa pode ouvila em vários ligares e fruí-la de diversos modos. Ou seja, há uma
“refuncionalização da arte”7 .
No caso da literatura, esta teria acabado com a invenção da tipografia,
depois com a invenção do fonógrafo e do gramofone; com a invenção do rádio,
depois da televisão e, mais recentemente, a sua morte definitiva com a
invenção do computador. Na realidade, o que temos são adaptações da
literatura aos vários meios, sem, no entanto, uma ser melhor do que a outra;
são formas diferentes que podem coexistir perfeitamente. Desde a Grécia antiga
que a literatura manifestava-se principalmente pela via oral, só deixando de sêlo a partir da invenção da reprodução tipográfica. Hoje temos a literatura
coligada a outros códigos, contudo, como já foi dito, isto não lhe tira o valor, ou
melhor, não é este fato por si só que vai determinar se é ou não literatura.
Por outro lado, não se pode também aceitar tudo passivamente como os
“integrados” e achar que tudo que é transmitido pelos meios de comunicação de
massa é poesia e literatura, porque é falado e usa linguagem poética. Se assim
fosse, propaganda e outros textos que utilizam a função poética seriam textos
literários. Não é isso que defendemos, pois é notório e sabido que estes textos
e muitas letras de música realmente só visam ao consumo fácil e aceitação
passiva dos ouvintes e leitores, por vezes, de fato, sem qualquer poeticidade.
Ou seja, não pretendemos dizer que todas as letras de música são grandes
obras literárias, visto que algumas realmente repetem chavões e fórmulas, mas
boa parte o são. Contudo, estas redundâncias não são exclusividade dos textos
das canções populares, podendo aparecer em outras modalidades literárias,
como: romances, contos, poemas.8
Umberto Eco, no livro citado acima, elabora duas listas com possíveis
ataques e defesas que a cultura de massas (ou como ele prefere: cultura dos
“mass media” ou “comunicações de massa”) recebe. Estes dois pólos
radicalmente contrários devem ser considerados em análises do fenômeno
poético em canções, visto que é possível encontrarmos, entre estas, textos
altamente poéticos ao lado de outros desprovidos ou com grau reduzido de
poeticidade.9 Logicamente , não são estes textos o centro de nossa discussão e
sim uma grande parte de textos da MPB que usam a palavra poeticamente sem
repetir fórmulas. Ou seja, usando termos utilizados por Umberto Eco, temos de
um lado as canções “gastronômicas” e de outro, as canções “diferentes”, entre
as quais estão inseridas as canções do Clube da Esquina e de tantos outros
nomes da MPB.10 É importante ressaltar quer o fato de uma canção “diferente”
ser executada maciçamente não lhe tira o valor poético, pois o fator
determinante deste valor não é a quantidade de vezes que uma música é
tocada, e sim o seu grau de poeticidade, algo difícil de ser medido. Essa
dualidade também é percebida por Geraldo Carneiro quando afirma que “é
preciso distinguir pelo menos duas formas de utilização do texto na música
popular”. Em relação ao primeiro tipo de música, ele diz que “o texto
desempenha uma função industrial precisa” procurando “originalidade na
banalidade”; enquanto no segundo grupo de canções, “o propósito do texto é a
invenção”.11
É preciso apagar o preconceito existente que menospreza qualquer
forma de literatura que não seja livresca e aceita pela elite. É o que
pretendemos com uma análise poética das canções dos membros do Clube da
Esquina, sempre que possível relacionando com a música já que são
inseparáveis.
Tudo depende da visão do que se considera arte e as suas funções. Por
exemplo, Charles Lalo sugeria cinco funções possíveis da arte: função de
diversão, função catártica, função técnica, função de idealização e função de
reforço ou duplicação.12 No decorrer da história da literatura, algumas dessas
funções eram valorizadas em detrimento de outras; depois, em outro momento,
alterava-se a hierarquia. E, assim essas e outras funções foram revezando-se.
Não cabe aqui nos estendermos neste assunto, mas apenas ressaltar que a
arte pode ter várias funções simultâneas na sociedade moderna.
Para provar que também a letra de música é um termo literário, estamos
recorrendo a alguns teóricos da literatura, arte e cultura que, ao longo dos anos
se preocuparam em discutir o texto poético, passando por Aristóteles, Octavio
Paz, Umberto Eco, Massaud Moisés e outros. Observaremos se o que esses
teóricos discutiam e disseram sobre a poesia também pode se aplicar à letra de
música e de que maneiras.
Por exemplo, seguindo a classificação dos gêneros proposta por
Massaud Moisés, a Letra de Música, embora ressaltando seu caráter semiótico,
pode ser considerada uma das formas poéticas do gênero literário Poesia,
podendo aparecer nas duas espécies propostas pelo referido autor – Lírica e
Épica – já que os autores destes tipos de textos também trabalham
artisticamente com palavras, ora “alargando o eu até o limite do nós: na
subjetividade do poeta se reflete um povo, uma raça e mesmo toda a
humanidade” (o poeta épico); ora “desprezando ou amoldando a si o plano
exterior, se dobra para dentro de si numa autocontemplação narcisista e
solitária” (o poeta lírico).13 Para comprovar isso, podemos citar como exemplo
deste a canção Um girassol da cor do seu cabelo e, do outro, San Vicente,
conforme podemos perceber nos fragmentos abaixo:
UM GIRASSOL DA COR DO SEU CABELO (Lô Borges e
Márcio Borges)
Vento solar e estrelas do mar
a terra azul da cor do seu vestido
Vento solar e estrelas do mar
você ainda quer morar comigo
Se eu cantar não chore não
É só poesia
Eu só preciso ter você por mais um dia
(...)
Vento solar e estrelas do mar
Um girassol da cor do seu cabelo
(...)
SAN VICENTE (Milton Nascimento e Fernando Brant)
Coração americano
Acordei de um sonho estranho
Um gosto de vidro e corte
Um sabor de chocolate
No corpo e na cidade
Um sabor de vida e morte
Coração americano
(...)
Por conseguinte, também podemos chamar os ditos letristas de poetas, uma
vez que assim chamamos genericamente todos os autores de sonetos, odes,
canções, rondeis, baladas, rondós, poemas, poemetos, epopéias. Isto, contudo,
não descarta denominações específicas para o produtor de algumas dessas
formas, como sonetista, poeta épico, menestrel, rapsodo, trovador, letrista. Ou
seja, todo produtor de poesias é chamado genericamente de poeta;
conseqüentemente, só por preconceito ou menosprezo por formas poéticas
populares, com a letra de música, os letristas não são considerados poetas por
boa parte dos teóricos da literatura que nem a consideram texto literário;
quando muito, dizem que fazem parte do folclore, que é paraliteratura ou
subliteratura.
O próprio Massaud Moisés se contradiz, pois não considera a canção e
outras manifestações orais literatura. Embora ele descarte o caráter oral da
literatura ao afirmar que “somente procede falar em literatura quando possuímos
documentos escritos ou impressos”, dizendo que “a rigor, trata-se de
transmissão de comunicação oral do texto literário escrito ou impresso: depois
que este surge, é que se processa a sua manifestação em voz alta”14, podemos
subsidiar a defesa da letra de música como uma forma poética em seu próprio
texto.
Massaud, ao definir literatura, prende-se muito ao caráter escrito,
deixando de lado o aspecto oral:
(...) Por mais generosa que seja a idéia romântica duma
literatura oral, popular, esta não passa de folclore, e só
adquire status literário quando escrita, pelos próprios autores
ou pelos interessados na matéria; em suma, quando
oferecida à leitura. Esta é, inquestionavelmente, a primeira
condição para que uma obra possua caráter literário.15
Depois, em nota ele cita dois autores em posições antagônicas, contudo,
mais uma vez, desconsidera-as, tentando menosprezá-las. Alfonso Reyes16: “A
rigor, [a literatura é] oral por essência (e não só por sua origem genérica) visto
que o caráter gráfico se refere à palavra falada e nela cobra sentido, e a palavra
só é escrita por acidente, para ajuda da memória”. Richard Chase17: “não há
povo que não tenha literatura”. Após citar estes dois autores Massaud diz:
“Parece que se confundem atividades limítrofes, mas não idênticas, o Folclore e
a Literatura, e está-se conferindo a populações iletradas uma atividade que
pressupõe, necessariamente, o ato de escrever”.18 Mais uma vez Massaud
repete um preconceito existente desde que o homem associou a arte literária à
letra, sinal gráfico, esquecendo-se de que esta não existe se o som; é apenas
uma representação gráfica dos sons das palavras. E ainda ressalta o caráter
elitista da arte literária ao dizer que esta não pode ser feita por iletrados. Parta
ressaltar a posição aqui defendida, observamos o que diz McLuhan: “Dir-se-ia
que a grande virtude da escrita é o poder de deter o veloz processo do
pensamento para a contemplação e analises constantes. A escrita é a tradução
do audível para o visual”. 19
Na verdade, o que Massaud diz ser inquestionável e primeira condição
para uma obra ser literária é uma consolidação de uma postura elitista que
desconsidera manifestações literárias orais e esquece o fato de que a literatura
se faz com palavras. Estas não são apenas sinais impressos em papéis, são,
acima de tudo, combinações de poemas, possuindo ritmo, intensidade,
musicalidade. Aqui vale lembrar Fernando Paixão: “Ler com os ouvidos/ Ler
com o nariz/ Ler com a boca/ Ler com a pele”.20 Não podemos, então, esquecer
a capacidade múltipla da literatura, de se realizar de diferentes modos.
Não pretendemos, contudo, retirar a importância da disposição espacial
das palavras no papel, importantíssima para a poesia; nem esquecer que
existem formas literárias contemporâneas que dependem fundamentalmente da
escrita, como o romance; mas sim reiterar a possibilidade de definirmos
Literatura de uma forma mais abrangente e “despreconceituosa”. Ademais,
mesmo sem a presença do texto escrito, é possível realizarmos o ofício de
críticos e fruidores do texto literário. Isto é possível ao ouvirmos um poema, um
repente ou desafio, uma história, uma canção; ao assistir a uma peça de teatro
e ao presenciarmos outras manifestações literárias orais. É óbvio que, se
tivermos o texto em mãos, poderemos nos deter mais detalhadamente em
aspectos não percebidos somente pela oralidade.
Enfim, reiteramos o que disse Alfonso Reyes: a arte literária existia
mesmo antes de haver a reprodução tipográfica e até antes de haver a escrita;
por isso, a literatura é oral em sua essência, sendo a letra responsável,
principalmente, pela perpetuação dos textos. A escrita tem a função essencial
de registro, sendo impossível imaginar a literatura e a sociedade atual sem ela,
porém o fato de tal texto não estar escrito não invalida seu caráter literário, nem
impede sua fruição como arte.
Apesar de reconhecida como forma autônoma e poética por alguns
críticos, a letra de música ainda hoje é vista por muitos teóricos, professores,
estudiosos de literatura como uma forma menor, sem valor estético, mero
produto de massa, paraliteratura, fato abordado e discutido na Tese de
Doutorado de Fred Góes: “...inúmeras classificações que aqui se sintetizam na
de Jean Tortel – ‘paraliteratura’ – que pela própria etimologia, já deixa bem clara
a posição defendida por muitos, isto é, má literatura, aquilo que está à margem
do literário”.21
Vários teóricos procuram rotular e desqualificar modalidades literárias
não convencionais, não livrescas como sendo formas menores, marginais. Foi
assim com a poesia concreta, com a poesia produzida pelos poetas alternativos
da década de 70, também chamados “marginais”, foi e é assim com os nossos
letristas da MPB e tantos outros que não seguem o cânone literário. Trabalhar
com um grupo de artistas literários que foram tachados de “desbundados” e que
optaram em trabalhar a palavra poética na música durante a década de 70 é
algo muito estimulante.
Não pretendemos, contudo, inverter o preconceito e considerar a poesia
cantada superior à poesia escrita ou falada, nem muito menos afirmar que toda
letra de música é uma obra-prima. O objetivo é mostrar que a poesia cantada é
literatura, visto que trabalha artisticamente a palavra. A canção é uma forma
poética que apresenta diferenças em relação ao poema, pois, como vimos é a
união de letra e música e, por isso, sua plena realização só acontece a partir da
interação das duas. Assim como o gênero dramático só se realiza plenamente
quando encenado e acrescido de elementos extraliterários (o palco, a
encenação, o figurino, o cenário, as luzes, etc), a canção só se realiza
plenamente quando a letra, parte literária, está associada à música.
No caso da literatura brasileira deste século, é inconcebível imaginar uma
antologia poética ou estudo sobre a poesia deste período que não contenha
textos poéticos advindos da música popular. Um painel da poesia brasileira dos
últimos trinta anos tem que conter textos de Milton Nascimento, Ronaldo
Bastos, Márcio Borges, Fernando Brant, Chico Buarque, Caetano Veloso,
Gilberto Gil, Djavan, Capinam, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, entre tantos
outros que trabalham poeticamente a palavra associada à música; assim como
um amplo painel da literatura brasileira da primeira metade do século, sem
preconceitos quanto ao meio de disseminação poética, deve conter textos de
Noel Rosa, Dorival Caymmi, Orestes Barbosa, Cartola, Ari Barroso, Lamartine
Babo, Braguinha, Luiz Gonzaga, Humberto Teixeira e muitos outros.
Na verdade, o preconceito em relação à letra de música e outras
manifestações poéticas mais
populares data de muito tempo. Basta
observarmos o preconceito que sofreram vários de nossos compositores
populares da primeira metade deste século: “Ainda era muito forte o preconceito
contra a música popular. Segundo os padrões moralistas da época, o mundo da
música era ocupado por homens e mulheres que não mereciam, sequer, ser
recebidos em casas de família”.22 Aqui se percebe claramente a oposição entre
cultura popular e cultura erudita. A primeira seria uma “arte menor” e, por isso,
não merecia uma boa aceitação por parte da sociedade da época, enquanto a
segunda seria a “Arte”. Neste trecho de seu livro A MPB na era do rádio, Sérgio
Cabral relata o episódio em que Carlos Alberto Ferreira Braga, o Braguinha,
escondeu-se sob um pseudônimo para que os amigos não o identificassem
como autor e cantor ao mesmo tempo, sendo um recurso utilizado por outros
autores. Ou seja, se a sociedade da época não aceitava a música popular,
considerando-a algo feito por malandros e pela classe mais baixa, como iria
aceitar que alguém dissesse que textos das canções poderiam ser
considerados poesia e, portanto literatura.
Os compositores/poetas do Clube da Esquina deixaram músicas e versos
inesquecíveis e belos, ao mesmo tempo em que nos dão uma síntese de como
foi este período 68-80. Aqui vale lembrar Octavio Paz quando estabelece a
relação entre poesia e história. Esta é uma das funções da poesia: o resgate de
um período histórico, fazendo-nos reviver o momento. A poesia não descreve o
momento ou relata-o como a história, revive-o, recria-o. Os textos das canções
do Clube da Esquina fazem tão bem este papel, que, portanto, evidentemente
são poesia.23
2.2 – De tudo se faz canção**
O preconceito com a letra de música é o mesmo que, em geral,
acompanhou e acompanha as formas literárias que não são da cultura letrada
desde que a poesia deixou de ser predominantemente manifestada pela via
oral. Podemos dizer que, após a Idade Média quando ainda era bastante
valorizado o seu caráter oral, a literatura se elitiza, passando a se supervalorizar
a modalidade escrita em detrimento da oral, seja falada, seja cantada.
O século XX trouxe várias inovações que, no seu decorrer, foram
acarretando mudanças na vida das pessoas e, dentre essas, alterações
diversas na arte, e em especial, na literatura.
Portanto a arte moderna
incorporou e vem incorporando as inovações tecnológicas, utilizando-as como
instrumentos.
A poesia cantada começa a recuperar um pouco de espaço, não de seu
valor, com a modernidade, quando os novos meios de reprodução fonográfica
são criados e vão se sofisticando ao longo do século. Pode-se localizar esta
tímida revitalização da poesia no início do século com o advento do
modernismo, quando as audições de música começam a se deslocar do espaço
privado para o espaço público, ainda que com um limite de propagação restrito
às classes mais privilegiadas. Este aspecto é muito bem discutido por Nicolau
Sevcenko em seu livro Orfeu extático na metrópole.
Não foram só salões, clubes e bailes pagos que vieram
mudar a cena. Por trás deles estava a universalização da
indústria fonográfica, com o grande destaque das
distribuidoras americanas. O ano de 1919 assinalou
justamente a transição tecnológica do obtuso gramofone para
a moderna vitrola: mais versátil, mais potente e sobretudo
mais acessível. (...) Por isso, se o gramofone estivera
associado com as audições privadas, no lar, em família, de
música erudita ou óperas, a vitrola se oferecia para audições
públicas de jovens excitados com o frenesi de bandas
estridentes (...).24
As invenções do fonógrafo e do gramofone possibilitaram uma
ampliação, ainda tímida, das audições musicais que antes era restrita aos
concertos em teatros, às músicas tocadas pelas orquestras como fundo nos
cinemas e em suas salas de espera ou em casa, principalmente, através do
piano. Ainda no fim do século XIX, o fonógrafo já aparecia como a grande
invenção que reproduzia sons variados: “Grande exposição da máquina norteamericana O fonógrafo – Que fala! Canta! Ri! Ladra! Mia! E toca solos de
pistom!”25
Na década de 20, teremos o início das gravações elétricas e a evolução
no rádio ampliando a audição de música popular, sendo, segundo Sergio
Cabral, o símbolo deste novo modo o cantor Mário Reis (1907 – 1981).
(...) Era algo muito novo para um público que se acostumara
a ouvir a nossa música geralmente mais gritada do que
propriamente cantada. Agora, dispondo de um sistema de
som capaz de registrar qualquer tipo de voz, por meio de
microfones, amplificadores e agulhas eletromagnéticas de
leitura, ninguém precisava berrar mais. Cantando de maneira
coloquial, muitas vezes quase recitando, Mário Reis tornouse o pai da moderna apresentação da música popular
brasileira. (...)26
Temos ainda nesta época a instalação, modernização e evolução
tecnológica das gravadoras no Brasil. Foram instaladas no Brasil as
multinacionais Parlophon, Columbia, Brunswick e a Victor todas com
equipamento elétrico. foi uma época de muitas gravações na música popular
brasileira. Uma das conseqüências é a possibilidade de, assim como no poema,
“acompanhar pelas letras das músicas a evolução dos acontecimentos
políticos”27, ou seja, de revivermos a história de um período, algo que é uma das
características fundamentais do texto literário. Esta é uma função muito bem
desempenhada pela crônica e incorporada ao poema pelo Modernismo, que
passa a apresentar uma linguagem mais próxima do cotidiano e temas do dia-adia. Dentre os compositores deste período podemos destacar Noel Rosa, um
poeta e tanto que nos faz viver um momento histórico com belas imagens.
E já na década de 30, segundo Sérgio Cabral, os aparelhos de
reprodução fonográfica começam a ser adquiridos pela classe média, dando
início a uma era em que o rádio se destacaria cada vez mais como o principal
veículo da música popular brasileira e da poesia cantada: “O mercado foi
contemplado com a venda a crédito, o que levou a classe média, já nos
primeiros anos da década de 30, a substituir o velho piano da sala de visitas
pelo aparelho de rádio e pela vitrola, ou pelo gramofone”.28
Após esta fase, teremos a canção popular cada vez mais ocupando
espaço nos meios de comunicação, por meio dos programas de rádio e dos
festejos de carnaval, que eram seus principais divulgadores. Posteriormente,
além do rádio, que ocupa um espaço relevante na cultura brasileira desde os
anos 30, embora a primeira estação brasileira de rádio – a Rádio Sociedade –
tenha surgido em 20 de abril de 1922 no Rio de Janeiro, teremos a televisão, os
festivais e shows difundindo a poesia cantada.
O desenvolvimento da radiofonia foi o principal instrumento para revigorar a
poesia em sua modalidade cantada. Sendo o elemento fundamental de
divulgação de grandes mestres da nossa MPB, como Noel Rosa, Pixinguinha,
Silvio Caldas, Orestes Barbosa e tantos outros, o rádio continua exercendo esta
função, auxiliado pela televisão, sobretudo a partir dos anos 60. Embora Sergio
Cabral marque como o “fim da era do rádio” o ano de 195829, o rádio continua
fazendo parte do dia-a-dia do brasileiro, porém de outra forma. Não mais os
músicos e cantores ai vivo nas rádios, embora isso tenha se prolongado pelo
início da década de sessenta. A partir dos anos 60, temos uma nova era do
rádio, cabendo a este veículo a propagação da poesia cantada através das
músicas gravadas em LPs. Na verdade, não temos a morte deste veículo de
comunicação, apenas uma alteração no seu modo de execução proporcionada
pela chegada da televisão ao Brasil em 1950. É lógico que esta alteração não
se dá repentinamente, mas sim de forma gradativa durante os anos 50.
A frase que se ouvia na rádio Nacional-FM (décadas de 70 e 80)
“brasileiro não vive sem rádio” expressa muito bem a relação que o brasileiro
continuou tendo com este veículo de comunicação e a música popular
propagada por ele. Assim como a rádio não acabou com a chegada da
televisão, ele continua tendo seu espaço próprio após a chegada do
computador e com um papel fundamental da propagação da música e da poesia
cantada de hoje e de outros tempos. Assim como a poesia escrita tem e
continuará a ter seu espaço mesmo com todas as inovações tecnológicas.
Enfim,
um
meio
não
anula
necessariamente
outro,
podem
coexistir
perfeitamente: reunião de “signos em rotação”, espaço plural.30
Através do rádio a poesia cantada se espalha por todo território nacional,
colocando belos versos nos ouvidos e lábios de milhões de brasileiros, para
desespero dos conservadores da literatura que valorizam somente a poesia
escrita e não consideram a letra de música manifestação literária ou criam
rótulos para diminuí-la, como, por exemplo, paraliteratura.
Embora fazendo parte da vida brasileira desde que se popularizou nos
anos 30, a MPB ganha fôlego novo a partis da década de 60 e 70 com a
expansão dos meios de comunicação de massa e a poesia invade lares e bares
via música popular brasileira. Temos, então, boa parte dos nossos melhores
poetas produzindo poesia para ser cantada. Isso não quer dizer que não tenha
existido poesia livresca neste período, porém boa parte dos textos poéticos da
época estavam na música popular, seja na bossa nova, na canção de protesto,
no tropicalismo, seja nas canções dos festivais ou, posteriormente, no Clube da
Esquina e outros.
(...) É importante salientar que, neste momento, a música se
torna um item fundamental na pauta de consumo de boa
parte da juventude das camadas médias das áreas urbanas.
A música veiculava não apenas informação estritamente
musical, mas também poética e comportamental e, tudo isso,
de modo especialmente integrado. (...)31
Originalmente, a literatura era iminentemente um ato social, passando depois a
ser
um
ato
predominantemente
individual,
mesmo
considerando
que
continuaram existindo, como até hoje, audições públicas, recitais de poemas,
histórias contadas em rodas familiares e de amigos. O enfoque principal passa
a ser o texto escrito em detrimento da oralidade.
Em sua origem, a poesia, a música e a dança eram um
todo. A divisão das artes não impediu que durante muitos
séculos o verso fosse ainda, com ou sem apoio musical,
canto. Em Provença os poetas compunham as músicas de
seus poemas. Essa foi a última ocasião em que a poesia do
ocidente pôde ser música sem deixar de ser palavra. Desde
então, toda vez que se tenta reunir ambas as artes, a poesia
se perde como palavra, dissolvida nos sons. A invenção da
imprensa não foi a causa do divórcio, mas acentuou-o de tal
modo que a poesia em vez de ser algo que se diz e se ouve
converteu-se em algo que escreve e se lê. Certo, a leitura do
poema é uma operação particular: ouvimos mentalmente o
que vemos. Não importa: a poesia nos entra pelos olhos, não
pelos ouvidos. E ademais, lemos para nós mesmos, em
silêncio. Trânsito do ato público ao privado: a experiência se
torna solitária. (...)32
Realmente, a partir da invenção da reprodução tipográfica, a poesia
afasta-se de suas origens e passa a ser mais vista e lida em silêncio do que
ouvida, falada e cantada. Posteriormente, há uma mudança em seu formato
proporcionada pelo século XX e a modernidade: a recuperação e a
revalorização do som da poesia, principalmente através da música popular,
contudo, agora, é um som amplificado.
Na verdade, a poesia não se perde e fica “dissolvida nos sons” quando
acompanhada
da
música,
apenas
há
mudanças
significativas
no
pronunciamento das palavras influenciadas pela melodia, ritmo, arranjo e
harmonia da linguagem musical. A música reforça a palavra e seu conteúdo
poético, obviamente de forma diferente do poema. Pode ser que antes que
antes do advento do Modernismo houvesse isso, porém este começa a
revitalizar a poesia cantada, ainda que de forma tímida. Todavia, a partir dos
anos 60, esta revitalização torna-se irrevogável com a poesia cantada
dominando, muitas vezes, a cena poética brasileira. Há, então, um
revigoramento da poesia com seu deslocamento para o espaço público.
(...) Hoje a situação transformou-se de novo: voltamos a ouvir
o mundo, embora não possamos vê-lo. Graças aos novos
meios de reprodução sonora da palavra, a voz e o ouvido
recobram seu antigo lugar. Alguns anunciam o fim da era da
imprensa. Não creio. Mas a letra deixará de ocupar um lugar
central na vida dos homens. O espaço que a sustentava já
não é esta superfície plana da física clássica, na qual se
depositavam todas as coisas, desde os astros até as
palavras. (...) hoje o espaço se move, incorpora-se e torna-se
rítmico. Assim, o reaparecimento da palavra falada não
implica numa volta ao passado: o espaço é outro, mais vasto,
e, sobretudo, em dispersão. A espaço em movimento, palavra
em rotação; a espaço plural, uma nova frase que seja como
um delta verbal, como um mundo que explode em pleno céu.
Palavra ao ar livre, pelos espaços exteriores e interiores:
nebulosa contida em uma pulsação, pestanejo de um sol.33
Ainda sobre a relação música-poesia, podemos refletir sobre o que
Octavio Paz diz:
A poesia ocidental nasceu aliada à música; depois, as duas
artes se separaram e cada vez que se tentou reuni-las o
resultado foi a querela ou a absorção da palavra pelo som.
Assim não penso em uma aliança entre as duas. A poesia
tem a sua própria música: a palavra. E esta música, como
Mallarmé demonstra, é mais vasta que a do verso e da prosa
tradicionais. De uma maneira algo sumária, mas que é
testemunho de sua lucidez, Apollinaire afirma que os dias do
livro estão contados: “la typografye termine brillament as
carrière, à l’aurore des moyens nouveaux de reproduction qui
sont lê cinema et lê phonographe”. Não creio no fim da
escritura; creio que cada vez mais o poema tenderá a ser
uma partitura. A poesia voltará a ser palavra pronunciada.34
Há aqui duas posições aparentemente contraditórias, mas que, no fundo,
não são excludentes. Primeiro, Paz afirma não crer numa aproximação da
poesia com a música, defendendo que a poesia possui a sua própria música e
que esta acaba por absorver a musicalidade latente do texto poético. Já
Apollinaire dizia que a poesia escrita estava com os dias contados, devido aos
novos meios de reprodução fonográfica que permitiriam uma divulgação muito
maior da poesia cantada. O próprio Paz conclui dizendo que não crê no fim da
escritura, mas que “a poesia voltará a ser a palavra pronunciada”. Ou seja,
temos aqui o regresso da poesia às suas origens, quando era basicamente oral.
Na verdade, como o próprio tempo já nos mostrou, a poesia escrita
continua existindo, assim como a poesia falada e cantada. O que acontece é
que,
devido
ao
incremento
dos
meios
de
produção
fonográfica
e
desenvolvimento dos meios de comunicação áudio-visuais, a poesia passa,
cada vez mais, a se destacar em sua modalidade cantada. Para isso
contribuíram, especificamente no Brasil, os movimentos culturais da década de
60, como a Bossa Nova, os CPCs, o Tropicalismo, a Jovem Guarda, os festivais
de MPB, as canções de protesto; e a nível mundial, os Beatles, a contracultura,
o maio de 1968 em Paris.
Contudo, não podemos dizer que uma forma de poesia é melhor que
outra ou que uma anula a outra. São formas poéticas que sobrevivem apesar de
todo tecnicismo e têm seu espaço na atualidade.
Com a difusão cada vez maior da poesia cantada via meios de
comunicação de massa, temos, de certa forma, um regresso às origens da
poesia quando esta acompanhava o homem em seus afazeres diários. Não
queremos dizer com isso que a poesia de nossas canções tem a função exata
que tinha na antigüidade. Nesta época, ela estava associada aos rituais,
religiões, cultos e os homens é que entoavam e cantavam suas poesias, numa
atitude ativa, enquanto os homens de hoje, na maioria das vezes, têm uma
atitude passiva, pois só ouvem o que toca nas rádios, muitas vezes sem
qualquer atitude crítica e aceitando o que as grandes indústrias fonográficas e a
mídia “nos empurram com seus enlatados”.35
Hoje podemos confirmar o que Octavio Paz disse: a poesia é múltipla,
está nos papéis (livros, jornais, cartas) nas músicas, nas falas e, ampliando as
possibilidades, até nos computadores. Ou seja, “as obras do tempo que se
nasce não estarão regidas pela idéia da sucessão linear e sim pela idéia de
combinação: conjunção, dispersão, e reunião de linguagens, espaços e tempos
. a festa e a contemplação. Arte da conjunção”. Partindo desta idéia de Octavio
Paz, podemos afirmar que a canção – letra e música – é uma arte da
conjugação”, pois reúne linguagens diferentes que, combinadas, representam
uma revitalização da poesia, sendo uma forma de arte que renasce “como ação
e representação coletivas e o de seu complemento contraditório, a meditação
solitária”.36
Os meios de comunicação de massa conseguiram resgatar um pouco do
espaço perdido pela poesia cantada através dos séculos em nossa cultura,
ainda que com diferenças fundamentais em relação à poesia cantada época de
Aristóteles, apesar de existirem letras de música sem conteúdo poético. Quando
falamos desse resgate, não queremos dizer que os preconceitos e ataques a
ela findaram ou que já é amplamente aceito o valor poético das letras de
música, mas que, aos poucos, a poesia cantada vai encontrando o seu lugar,
sendo discutida e analisada por teóricos mais abertos, conseguindo, inclusive
entrar na faculdade de letras, ainda que de forma tênue e apesar das posições
retrógradas.
Também
não
pretendemos
supervalorizar
os
meios
de
comunicação de massa e dizer que todas as canções apresentam conteúdo
poético, já que várias simplesmente visam apenas a uma aceitação passiva do
público, sendo “empacotadas” e massacradas diariamente através da maioria
das rádios e tevês.
NOTAS:
*Verso da canção Sol de Primavera de Beto Guedes e Ronaldo Bastos.
**Verso da canção Clube da Esquina 2 de Milton Nascimento, Lô Borges e
Márcio Borges.
1
GÓES, F (1993) P. 77.
2 Ibidem, Ibidem
3 MOISÉS, M. (1993) p.125.
Sobre o conceito de poeticidade, vale observar dois trechos abaixo
recolhidos do livro A criação literária:
Mas como a poeticidade se manifesta? Nisto: a palavra é
experimentada como palavra, e não como simples substituto
do objeto nomeado, nem como explosão de emoção. Nisto:
as palavras e sua sintaxe, sua significação, sua forma
externa e interna não são índices indiferentes da realidade,
mas possuem seu próprio peso e seu próprio valor.
(JAKOBSON, J) “Qu’est-ce que la poésie?”, Poétique, Paris,
Seuil, 1971, número 7, pp.300, 307, e 307-308.
(...) A função poética não é a única função da arte verbal,
mas tão somente a função dominante, determinante, ao
passo que, em todas as outras atividades verbais, ela
funciona como um constituinte acessório, subsidiário. (...) Daí
que, ao tratar da função poética, a Lingüística não possa
limitar-se ao campo da poesia.” (Idem, Lingüística e
Comunicação, tr. Brasileira, S. Paulo, Cultrix, 1969, pp. 127 –
128)
4
ECO, U. (1979), p.56.
Umberto Eco apresenta muito bem uma crítica a estas estratificações:
Os três níveis coincidem, portanto, com três níveis de
validade estética. Pode-se ter produto high brow, que se
recomende por suas qualidades de ‘vanguarda’, e reclama
para ser fruído certo preparo cultural (...), e que, todavia no
âmbito das apreciações próprias daquele nível, venha a ser
julgado ‘feio’ (sem que, por isso, seja low brow). E pode haver
produtos low brow, destinados a serem fruídos por um
vastíssimo público, que apresentem características de
originalidade estrutural tais e tamanha capacidade de
superarem os limites impostos pelo circuito de produção e
consumo em que estão inseridos, que nos permitam julga-los
como obras de arte dotadas de absoluta validade.
5
COELHO, T. (1996), p.17.
6
ECO, U. (1979).
7
BENJAMIN, W. (1971) p. 172 – 176.
8
ECO, U. (1979).
Umberto Eco analisa bem esta questão, ponderando os erros de cada
lado:
O erro dos apologistas é afirmar que a multiplicidade dos
produtos da indústria seja boa em si, segundo uma ideal
homeotase do livre mercado, e não deva submeter-se a uma
crítica e a novas orientações. (p. 49)
O erro dos apocalípticos-aristocráticos é pensar que a cultura
de massa seja radicalmente má, justamente por ser um fato
industrial, e que hoje se possa ministrar uma cultura
subtraída ao condicionamento industrial. (p.49)
O autor diz que a falha está em formular o problema assim: “é bom ou
mau que exista a cultura de massa?”. Segundo Eco, o problema é:
(...) do momento em que a presente situação de uma
sociedade industrial torna ineliminável aquele tipo de relação
comunicativa conhecida como conjunto dos meios de massa,
qual a ação cultural possível a fim de permitir que esses
meios de massa possam veicular valores culturais? (p.50)
9
ibidem, p 39-48
10
ibidem, p.295-299.
11
In: BHAIANA, A. (1980) p. 192-193.
12
ECO, U. (1979) p.305.
13
MOISÉS, M. (1993) p.70.
14
Ibidem, p.20.
15
Ibidem, p.21-22
16
REYES, A. Deslinde, Prolegómenos a la Teoria Literária. México: El Colégio
de México, 1944. In: MOISÉS, M. (1993), p.22.
17
CHASE, R. In: Ibidem, p.22.
18
MOISÉS, M. (1993) p.18.
19
MCLUHAN, M. In: LIMA, L.C. (org.) (1969) p.145.
20
PAIXÃO, F (1991) p.102.
21
GÓES, F. (1993) p.73.
22
CABRAL, S. (1996) p.23.
23
PAZ, O. (1972).
(...) A palavra poética é histórica em dois sentidos
complementares, inseparáveis e contraditórios: no de
construir um produto social e no de ser uma condição prévia
à existência de toda sociedade. (p.52)
(...) Embora comungue no altar social e comparta com inteira
boa fé as crenças de sua época, o poeta é um ser à parte,
um heterodoxo por fatalidade congênita: sempre diz outra
coisa, inclusive quando diz as mesmas coisas que o resto
dos homens de sua comunidade. A desconfiança dos
Estados e das igrejas diante da poesia não nasce apenas do
natural imperialismo destes poderes: a própria índole do dizer
poético provoca o receio. Não é tanto aquilo que o poeta diz,
mas o que vai implícito ao seu dizer, sua dualidade íntima e
irredutível, o que outorga às suas palavras um gosto de
liberação. (...) A palavra poética jamais é completamente
deste mundo: sempre nos leva mais além, a outras terras, a
outros céus, a outras verdades. A poesia parece escapar à lei
de gravidade da história porque nunca é inteiramente
histórica. Nunca a imagem quer dizer isto ou aquilo. Antes
sucede o contrário, como já se viu: a imagem diz isto e aquilo
ao mesmo tempo. E mais ainda: isto é aquilo. (pp.55-56)
24
SEVCENKO, N (1992) p.90.
25
CABRAL, S. (1996) p.7.
Ibidem, P.18-19.
27
Ibidem, P.20.
28
Ibidem, P.19.
29
Ibidem, P.106.
30
PAZ, O (1972) p.119.
31
PEREIRA, C.A.M. (1981) p.39.
32
PAZ, O. (1972) p.116.
33
Ibidem, P.118-119.
34
Ibidem, P.26-27
35
RUSSO, R. (1984) GERAÇÃO COCA-COLA. In: Legião Urbana. Rio de
Janeiro EMI/ODEON, LP 064 422944, 1984.
36
PAZ, O (1972) p.137.
26
3 – ANTES DA ESQUINA
A idéia cardeal do movimento revolucionário da era
moderna é a criação de uma sociedade universal que,
ao as opressões, desenvolva simultaneamente a
identidade ou semelhança original de todos os homens
e a radical diferença ou singularidade de cada um.
(OCTAVIO PAZ – Signos em rotação)
3.1 – Pré-68: “de minha garganta as canções explodem”*
Antes de se chegar ao período de produção deste objeto de estudo, 6880, torna-se necessário um regresso aos anos anteriores para que se possa
situar o grupo de músicos, compositores e poetas que constituem o Clube da
Esquina, para entender como se deu a aproximação destes em torno de Milton
Nascimento e como os fatos influenciaram a produção poético-musical do
grupo.
Fazer um breve histórico dos principais acontecimentos da década de 60
não é uma tarefa fácil, nem é nosso objetivo principal, visto que foi um período
de transformações e possibilidades de transformações muito grandes, tanto na
política, quanto nas artes e, ainda, no comportamento geral. Por isso nos
limitaremos a citar alguns fatos e acontecimentos mais relevantes.
Após um início promissor de década nas mais diversas áreas com as
Reformas de Base reclamadas pela sociedade e pretendidas pelo Governo
João Goulart, temos o primeiro golpe mais duro contra as transformações que
vinham acontecendo ou que estavam por vir: a tomada do poder pelos militares
em 31 de março de 1964, mesmo dia em que Milton estréia em uma boate. “Por
questão de sobrevivência, Milton passa a tocar contrabaixo no conjunto
Berimbau Trio (formado por ele, Wagner Tiso e Paulinho Braga) na boate
Berimbau, inaugurada em 31 de março de 1964”.1
Neste inicio dos anos 60, temos uma “poesia de vanguarda ou de dicção
populista”, quando é feito o anteprojeto do Centro Popular de Cultura que
“postula o engajamento do artista “ e distribui os artistas e intelectuais em três
grupos: “ou conformismo, ou inconformismo (“revolta dispersiva”) ou a atitude
revolucionária conseqüente”.2
Após o golpe de 64, “apesar da ditadura há relativa hegemonia cultural
da esquerda no país”, segundo Roberto Shuwarz.3 O golpe militar age mais
drasticamente, neste primeiro momento, sobre os movimentos populares,
sindicais e partidos políticos. Por isso, continua a predominância do ideário
esquerdista na cultura, propagando-se, prioritariamente, entre professores e
estudantes universitários e secundaristas, e intensificando-se cada vez mais até
chegar o “dezembro negro” de 68.
Então, a MPB, que já vinha sendo revalorizada e redimensionada pela
Bossa Nova estreitando a inter-relação letra e música, exerce influência cada
vez mais significativa na juventude brasileira, destacando-se, depois, o
Tropicalismo, as Canções de Protesto, e os festivais de música. Ou seja, “a
música popular emerge também como um importante veículo de poesia,
domínio de pesquisas estéticas e campo de batalha entre as vanguardas
artísticas”.4
No pós-64 há vários acontecimentos importantes, não necessariamente
nesta ordem: a ilegalidade da UNE, os primeiros atos institucionais do General
Castelo Branco, o fim da eleição direta, o show Opinião, o Cinema Novo, Terra
em Transe, os festivais de música, “Geração Paissandu”, CPC X Vanguarda e,
ainda, manifestações estudantis contra atitudes autoritárias e por reformas em
vários países culminando no maio de 1968 na França. Estes fatos influenciaram
com certeza os jovens da época, em especial aqueles que sonhavam um
mundo melhor e começaram a produzir arte nesta época, como foi o caso de
Milton Nascimento, Márcio Borges, Fernando Brant, Ronaldo Bastos, Lô Borges
e outros.
Em relação à literatura escrita deste período, Heloísa Buarque de
Holanda diz que ela “aparece desarticulada, como se não tivesse encontrado a
forma de adequar-se a essa efervescência”, ou seja, temos os poetas já
conhecidos como João Cabral, Carlos Drummond e outros, contudo suas
produções não estão diretamente ligadas à multiplicidade cultural requerida pelo
público. 5
Destacam-se na segunda metade da década de 60 a explosão do
Tropicalismo e os festivais de música promovidos pelas redes de televisão. O
Tropicalismo (com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Net, Capinam e
outros) misturando vários movimentos culturais e políticos da juventude
(Beatles, o cinema de arte, destacando-se Godard e Truffaut, Bob Dylan, os
hippies, contracultura) e valorizando entre outros elementos o fragmentário, a
valorização do tempo presente, a construção literária das letras, a crítica de
comportamento e, principalmente, o alegórico. Os festivais possibilitando o
surgimento e/ou consagração de vários artistas de qualidade e com
características variadas: Chico Buarque, Edu Lobo, Geraldo Vandré, Milton
Nascimento, entre outros.
Sem pretensão de estudar com minúcias a década de 60, mas apenas
dar uma idéia da riqueza e diversidade de valores surgidos então, temos nomes
como os citados acima e muitos outros, que não se esgotam nesta lista, como
Nara Leão, Paulinho da Viola, Paulo César Pinheiro, Mutantes, o pessoal da
Jovem Guarda. Ou seja, é um período extremamente rico para a nossa poesia
cantada.
Apesar de já estarmos num regime ditatorial, é em 1968 que ocorre o
golpe fatal para a democracia e a liberdade no Brasil: AI-5 (Ato Institucional N.º
5). É o grande “divisor de águas” de nossa história recente e que decreta, entre
outras medidas, a censura prévia aos meios de comunicação, o fechamento do
Congresso, ou seja, o fechamento completo do regime. Isso acarretará reflexos
evidentes na vida política, cultural e artística. Sobre o clima reinante nessa
época, Márcio Borges sintetiza usando uma linguagem cinematográfica e
comovente:
(...) Estudantes são mortos em Ohio. São mortos no Rio. São
mortos em toda parte, ah, look at all these lonely people…
Galeno sumiu. Beto Freitas sumiu. Inês sumiu. Ricardo Vilas
sumiu; os que não caíram ainda, ou não se exilaram viraram
freaks nas ruas, na praia, no mato, que ninguém quer morrer
e a morte agora ronda a juventude. A barra pesou. (...) Tudo
acontece no seio da juventude, do terror ao êxtase, mas o
globo terrestre continua dominado pelos gerontocratas (...)
Doze artigos desabam sobre nós e tornam todos os
brasileiros reféns indefesos da ditadura. (...) os atos
institucionais da ditadura estão matando o que restava do
belo de no horizonte perdido de nossos ideais. Agora é hora
de muita paranóia. Deise se suicidou. Serginho do Levy se
suicidou... (...) este dezembro negro vai ficar na memória de
todo mundo... sem lenço, sem documento seria LSD? Onde
andarão os que sumiram? Estão vivos? Ou mortos. O O
DOPS empastelou a sede nova do CEC (...)6
Segundo Gilberto Vasconcellos,
(...) depois de 1969, época em que a hegemonia cultural de
esquerda sofre um golpe mortal com a implantação do AI-5 e
a conseqüente despolitização vigente no país, a noção de
vanguarda entendida em termos de grupo desaparece no
cenário da MPB. (...)7
Entretanto, sem o intuito de enquadrá-los como vanguarda, o pessoal do
Clube da Esquina representa um dos principais focos de produção poéticomusical coletiva da década de 70, período marcado de um lado pelo
endurecimento do regime com prisões, torturas, mortes e intimidações para
quaisquer tentativas de oposição e de outro pela tendência ao individualismo,
surgimento de focos guerrilheiros em vários lugares e de grupos envoltos pelo
“pé na estrada”, pelo pó na/da estrada. Ou seja, temos uma necessidade em
vários jovens, já influenciados pelo ideal da contracultura disseminado em
outros países e marcados direta ou indiretamente por todo passado recente do
Brasil, da busca de convívios grupais que objetiva não só a fuga da triste
realidade, mas também uma maneira de não apagar completamente suas idéias
e seus sonhos. O desejo utópico realiza-se aqui em duas vertentes: ao mesmo
tempo em que é fuga da triste realidade, transforma-se em algo de concreto: a
organização de grupos.
O Clube da Esquina representa a necessidade de convívio e criação
coletiva como uma forma de resistência cultural, deixando-nos perceber vários
elementos que refletem o período, além da visão geral já aceita para seus
principais representantes que é a do “pé na estrada” e do “desbunde”. Sem
querer negar estes dois elementos, muito pelo contrário, ampliaremos as
conotações da obra do “grupo”, formando um painel da década de 70.
Em suma, desde 1964, a MPB passa a exercer influência notável na
juventude brasileira até a chegada à “cultura da depressão”, termo usado por
Gilberto Vasconcellos para designar o período de 1969 a 1974, marcado por
“variações no irracionalismo, no misticismo, no escapismo e sob o signo da
ameaça”. 8 E com Caetano, Gil e Chico no exterior, o Clube da Esquina assume
o movimento de resistência na MPB.
3.2 – A travessia de Milton 9
Antes de falar propriamente do surgimento do Clube da Esquina, é
necessária uma retrospectiva do passado do elemento aglutinador do “grupo”:
Milton Nascimento, ou, simplesmente, Bituca para os amigos mais íntimos.
Segundo várias pessoas que passaram pelo “clube”, entre as quais Nélson
Ângelo, foi ele quem juntou, “polarizou” essas pessoas todas por ser muito
admirado, talentoso, carismático, no sentido de juntar gente, provocando “uma
montanha de amizade”.10 é conveniente lembrar que o Clube nunca foi um
grupo formalmente estruturado, embora estejamos utilizando esta terminologia
desde o início. Na verdade, eles nunca constituíram um grupo nos moldes
tradicionais, entretanto no período de 1970 a 1978 estão quase sempre juntos,
inclusive no que se refere à participação nos discos dos diversos integrantes.
Milton Nascimento nasce em 1942 e é carioca da Tijuca, embora
“adotado” por Minas Gerais. Ele é levado ainda recém-nascido para Três Pontas
(MG) por seus pais adotivos. Lá, por volta dos 15 anos, forma o seu primeiro
conjunto musical – o “Luar de Prata” – com Wagner Tiso, mineiro, colega de
infância e primeiro parceiro. Depois passa por algumas outras experiências em
conjuntos e sai cantando e tocando por clubes de várias cidadezinhas.
Em 1963, uma primeira guinada em sua vida. Decidido a seguir uma
carreira artística e consciente de que esta não podia ser construída em Três
Pontas, Milton muda-se para Belo Horizonte e logo conhece alguns de seus
futuros parceiros, como Márcio Borges (mineiro nascido em 1946), seu irmão Lô
Borges (mineiro nascido em 1952, um garoto ainda) e, posteriormente,
Fernando Brant (mineiro nascido em 1946). Milton por um acaso vai morar
também no edifício Levy, onde morava a família Borges, tornando-se amigo
inicialmente de Marilton, que também era músico, e depois de todo o clã dos
Borges, em especial de Márcio e Lô. O período em que moraram no Levy
propiciou não só uma grande amizade entre Milton e os Borges a ponto de ser
considerado o décimo segundo filho da família, como também o início de uma
parceria com Márcio Borges e, posteriormente, já em Santa Tereza (Belo
Horizonte), com Lô Borges.
Desde então, Milton passa a tocar contrabaixo e a cantar em boates ao
lado de seu amigo Wagner Tiso que também havia se transferido para Belo
Horizonte. Os dois são convidados a integrar o conjunto Sambacana, com o
qual viajam para o Rio de Janeiro em 1964, a fim de gravarem dois discos.
Na verdade, Milton e Márcio Borges começam a se aproximar e tornamse amigos em 1964 quando passam a sair junto para conversar, beber, ir ao
cinema, uma das paixões de Márcio Borges que sonhava ser cineasta com
Milton fazendo a trilha sonora de seus filmes. Sobre as primeiras composições
de Milton, Márcio diz:
(...) Os arranjos que criava para músicas alheias eram algo
inédito, profundamente original e estranho, não se pareciam
com nada que alguém pudesse ter ouvido antes. Tinha de
tudo ali, Yma Sumac, carro de boi, vento no cafezal, Miles
Davis, Tamba Trio, Nelson Gonçalves, hino católico, trilha de
faroeste, e ao mesmo tempo não tinha nada, só Bituca e sua
voz retinida de taquara não-rachada, animal extraterreno
enjaulado a força, e no entanto capaz de doçura de mangue,
de fruto suculento. Original.11
De fato, a música de Milton, assim como a de vários outros “mineiros”,
possui uma enorme universalidade aliada a um forte provincianismo. Segundo
Nélson Ângelo, essa foi uma vantagem do local, pois “em Minas Gerais se ouvia
de tudo, com a cabeça totalmente despretensiosa”. Ouvia-se congada, Bach,
Chopin, Blues, Jazz, os Beatles (segundo ele, um capítulo à parte). Enfim,
“época de uma grande riqueza” com “músicos que tocam bem, harmonias
sofisticadas, composições sofisticadas” devido a essas e outras influências,
como a bossa nova.12
É importante destacar o grande incentivo dado pelo amigo Márcio Borges
à carreira de Milton Nascimento, que, na época, era também datilógrafo, ou
melhor, como ele mesmo preferia dizer, escriturário, fazendo isso para se
sustentar. Márcio foi o grande estimulador da carreira de Milton, de quem se
tornou seu primeiro parceiro nas composições, após uma profunda amizade que
consolidava entre ambos, cujo marco foi o filme Jules et Jim de François
Truffaut. “No dia de ver Jules et Jim, estávamos felizes como dois meninos em
férias deliciosas, Felizes porque fazia uma bela tarde ensolarada, éramos
jovens e fortes e apesar da ditadura íamos ver um filme genial”.13
Após assistirem ao filme três vezes, surgem as primeiras “filhas” como
passam a chamar as parcerias feitas por eles:
(...) Fomos direto para o Levy, direto para o ‘quarto dos
homens’. Sem delongas, Bituca pegou seu violão (...) e
inventou um trema; melhor destilou tudo aqui, todas as
emoções que andara sentindo nos últimos tempos, desde
sua mudança para o Levy, culminando naquelas seis horas
ininterruptas que passara concentrado na magia de uma
linda história de amor escrita com luz e sombra (...) Por
minha vez, eu rabiscava algumas palavras em torno do tema
que descrevia a mim próprio como Paz do amor que vem.14
Márcio afirma que “as eras poderiam se dividir, a partir desse fato
consumado, em A.J.J e D.J.J”, isto é, antes e depois de Jules et Jim.15 Nesta
noite, sob efeito do filme e do momento, os dois compõem três músicas: Paz
do amor que vem (Novena), Gira-girou e Crença. Podemos destacar Novena
(nome que vai figurar sozinho nas gravações posteriores), que, além de estar
no primeiro LP de Milton, é regravada duas vezes: primeiro, no LP de Beto
Guedes Amor de Índio (1978) e depois no Ângelus (1993) de Milton. A canção
lembra realmente uma novena, só que pelo amor, pelos “deserdados desse
chão”, misturando ternura e preocupação social.
NOVENA (Milton Nascimento e Márcio Borges)
se digo um ai
é por ninguém
é pela certeza
de saber que tudo tem
tem sua vez de lá retornar
ao lugar mais fundo
fundo fundo mais que o mar
se digo sol
não tem vez
não espero mais a chuva
só preparo meu coração
a explosão de toda luz
a chama chama chama chama
se digo amor
só é por alguém
é pelos malditos
deserdados desse chão
Depois desse dia, as canções continuam saindo. Milton criando temas
musicais e Márcio criando letras, poesias. Havia todo um ritual, como Márcio
relata, com os dois indo comemorar em um bar chamado Bigodoaldo’s. O
proprietário ficava ao lado da mesa deles, escutando os poemas inéditos, “as
filhas” recém-nascidas que eram criadas após os filmes que viam e reflexões
sobre o momento histórico:
(...) A gente se isolava, refletia sobre as mazelas que tinha
diante dos olhos, representadas sobejamente pela barra
pesada, pela repressão da ditadura, e criava uma
representação musical da ternura, do amor e da ira que tais
reflexões suscitavam. Alguns amigos da turma não viam com
bons olhos aquele isolamento do resto da turma. (...)16
É importante ressaltar a existência de dois grupos freqüentados por
Márcio e Milton nesta época em Belo Horizonte: o CEC (Centro de Estudos
Cinematográficos) e o Ponto dos Músicos, “uma calçada da Avenida Afonso
Pena onde os profissionais do ramo se encontravam para fechar contratos de
bailes, arregimentar instrumentistas ou simplesmente confraternizar.” O
primeiro confirma uma grande atração dos jovens de então pelo cinema, em
especial os filmes de Godard e Truffaut que influenciaram a geração. O
segundo era regularmente freqüentado pelos dois, onde conheceram algumas
das pessoas que mais influência exerceram em suas vidas e carreiras
naqueles dias. Algumas dessas pessoas que freqüentavam o Ponto dos
Músicos e tocavam com os crooners Marilton Borges e Milton: Helvius Vilela,
pianista; Wagner Tiso, pianista e arranjador; Pacífico Mascarenhas, o “mestre”
que também incentivou muito a carreira de Milton, também ligado a outras
pessoas da Bossa-Nova no Rio e autor de um método de ensino de violão;
Paulo Horta, cantrabaixista; Nivaldo Ornelas, sax; além dos dois “papas”
Chiquito Braga e Valtinho Batera.17
Esse ambiente de qualidade musical ao encontrar poetas talentosos e
com aspirações políticas e artísticas comuns vai desaguar no trabalho coletivo
poético-musical: Clube da Esquina.
Mais um elemento importante ainda no ano de 1964: o grande desejo de
modificar o mundo que já se delineava em ambos, apesar de sufocados pela
recém instaurada ditadura militar – “poderíamos influir no destino dos seres
humanos, uma verdadeira revolução aconteceria no planeta, conduzida pela
juventude e pelo movimento estudantil, voltariam as emoções de 1917 na
Rússia”.18
Há um relato interessante de um nova conversa de Márcio com Dickson,
colega do Levy, em que este diz: “Nada é mais genial do que música. Cinema...
tem música. Teatro... tem música, Balé... tem música. Não é a toa que Vinícius
abandonou a diplomacia e a poesia literária para fazer música popular. Edu
Lobo é genial, não acha não, Godard?” (Godard é como Dickson chamava
Márcio.) Márcio responde: “Claro, genial”. Aí começa uma pequena discussão
entre os dois, quando Dickson fala “O negócio é fazer poesia para ser cantada,
que nem Vinícius”. Ao que Márcio responde, dizendo que Vinícius faz letra de
música, assim como ele, reiterando isso. Na verdade ambos falam do mesmo
tipo de texto, contudo esta divergência de denominação revela uma resistência
incutida nas cabeças das pessoas a considerar a letra de música uma forma de
poesia; por isso a insistência de Márcio em afirmar e reafirmar que aquilo que
faz é letra de música.19 Embora ele próprio tenha dito que não gosta de ser
chamado de letrista.
Nesta época, Belo Horizonte, como outras cidades brasileiras, vivia uma
agitação intensa: organização dos estudantes, reuniões acaloradas nas
universidades, diretórios. Enquanto isso, “camburões se multiplicavam nas
ruas. Soldados montados em cavalos moviam-se por entre os ônibus.
Caminhões verde-oliva estacionados em cruzamentos. E, às vezes, noites
estranhamente calmas e paradas”. Este clima parece anunciar outras tantas
noites igualmente “calmas e paradas” que seriam retratadas nas canções feitas
pela turma do Clube da Esquina nos anos subseqüentes.20
Em meio a esta situação, Milton conhece Fernando Brant através de
Sérvulo Siqueira, um amigo comum que estudava com Fernando no Colégio
Estadual e quem os apresentou. Eles inauguram a amizade “do melhor jeito
que se conhecia: bebendo”, “Fernando gostava de poesia, sabia de cor versos
inteiros de Garcia Lorca, Fernando Pessoa” e depois de conversarem, Milton
convida Fernando, que até então não escrevia nada, para escrever no dia
seguinte. Estava surgindo uma preciosa parceria deste encontro, que seria
responsável por uma das melhores parcerias da MPB.21
Segundo Márcio Borges, eles criavam as canções estimulados pelas
discussões sobre temas principais das conversas daquela época: socialismo,
revolução, cinema, cultura, movimento estudantil, clandestinidade. Havia uma
vontade muito grande de mudar o mundo e alguns jovens se dispunham de
corpo e alma para isso. “Belo Horizonte, mais do que nunca, fazia parte
integrante do mundo. Surgia pela primeira vez na província a consciência de
pertencermos a uma civilização planetária”.22
Essa cidade, ao mesmo tempo provinciana, cada vez mais universal e
sob o sufoco do regime, foi o local que possibilitou a aproximação desses
compositores, poetas e músicos. Além desses acontecimentos, Belo Horizonte,
como outras cidades brasileiras e do mundo, via explodir a “beatlemania”.
Entretanto, essa “beatlemania” não atingiu os músicos do Levy que
“continuavam preferindo jazz e bossa-nova, Os Cariocas, Johnny Alf, Tito Madi,
Tamba Trio, Claudete Soares” e ainda Elis Regina que apareceu na época
comandando o programa O Fino da Bossa. Sérvulo só falava deum trio
chamado Jimi Hendrix Experience.23
No entanto, Milton estava levando muito a sério os Beatles e dizia que
os meninos, Lô, Yé Borges, tinham que ver o primeiro filme dos Beatles, A
Hard Day’s Night. Na época, tinham, respectivamente, doze e onze anos.
Fascinados com os Beatles, os dois formam o conjunto com Beto Guedes e
Márcio Moreira, treze anos: The Beavers, os castores. Eles ensaiavam as
canções dos Beatles e se apresentavam em festinhas.
Paralelamente, iam surgindo e se aprimorando novas gerações de
compositores e músicos, a destacar: Nélson Ângelo (que acompanhou Milton
durante dez anos), Sirlan, Murilo Antunes, Tavinho Moura, Toninho Horta,
Flávio Venturini, Vermelho, Hely. Os três últimos, posteriormente, vão fundar o
grupo 14 Bis juntamente com Cláudio Venturini, irmão de Flávio.
Em 1965, a TV Excelsior paulista está à procura de jovens interpretes
pra o I Festival de Música Popular e manda chamar Milton, que se classifica em
terceiro lugar a música Cidade Vazia (de Baden Powell e Luís Fernando Freire)
e conquista o prêmio Berimbau de Bronze (de interpretação). Neste ano, há
dois outros acontecimentos que merecem ser citados: o fechamento do bar
Bucheco, onde se reuniam clandestinamente jovens em Belo Horizonte e a
mudança de Milton para São Paulo. Entretanto, esta fase em São Paulo não foi
muito positiva para Milton.
Já no ano seguinte, Elis Regina grava uma canção de sua autoria:
Canção do Sal, uma canção de trabalho que inicialmente era um poema. Este
foi um dos primeiros textos de Milton; o outro foi E a gente sonhando feito para
Márcio Borges.
Depois disso, há uma participação no festival Berimbau de Ouro com a
canção Irmão de Fé, de Milton e Márcio, porém esta é desclassificada logo na
primeira eliminatória e Milton jura que não se inscreverá mais em festivais.
Entretanto, Agostinho dos Santos, que resolvera apadrinha-lo, havia inscrito,
sem o conhecimento de Milton, Três músicas no II Festival Internacional da
Canção, que aconteceria brevemente no Rio de Janeiro.
O ano de 67 é marcante, pois Milton consegue classificar estas três
músicas entre quinze finalistas do Festival Internacional da Canção da Rede
Globo, obtendo o segundo lugar com Travessia, marcando o início da frutífera
parceria com Fernando Brant. As outras músicas foram Morro Velho, (sétima
colocada) e Maria, minha fé de Milton. Destas três, vale a pena destacar
Travessia, não só por ser a primeira música de Milton que realmente estoura a
nível nacional, mas também por ter sido a primeira parceria dele com Fernando
Brant e primeira letra de música deste, que se tornaria seu principal parceiro no
futuro. Travessia, inicialmente, tinha o nome de Vendedor de Sonhos. Na
época em que os dois mostraram a canção para Márcio Borges, este só não
gosta do primeiro verso “Quem quer comprar meus sonhos?”, dizendo achar
“esquisito esse negócio de comprar sonhos”. De fato, a sua sugestão foi aceita
e a canção ficou melhor sem este verso:
TRAVESSIA (Milton Nascimento e Fernando Brant)
Quando você foi embora
fez-se noite em meu viver
forte sou mas não tem jeito
hoje eu tenho que chorar
minha casa não é minha
e nem é meu este lugar
estou só e não resisto
muito tenho pra falar
Solto a voz nas estradas
Já não quero parar
meu caminho é de pedra
como posso sonhar
sonho feito de brisa
vento vem terminar
vou fechar o meu pranto
vou querer me matar
Vou seguindo pela vida
me esquecendo de você
eu não quero mais a morte
tenho muito o que viver
vou querer amar de novo
e se não der não vou sofrer
já não sonho hoje faço
com meu braço meu viver
Embora frustrado por não ter conseguido classificar uma canção sua
com Milton para o Festival, Márcio concorre colocando letra numa melodia feita
por Toninho Horta: Correntes.
Contudo, as luzes do sucesso que incidiam sobre eles “não ofuscavam a
visão clara de que tempos difíceis eram aqueles e os que estariam por vir”.24 A
repressão aumentava, a liberdade cada vez mais ameaçada. Vários
freqüentadores do Ponto dos Músicos já haviam deixado ou deixariam Belo
Horizonte nessa época. A maioria, como Nélson Ângelo, Wagner Tiso, Nivaldo
Ornelas, tinha um destino em comum: Rio de Janeiro.
Ainda neste ano de 67, Milton, que também havia se mudado para o Rio
conhece outro futuro parceiro, Ronaldo Bastos (carioca de Niterói), num pésujo da rua Voluntários da Pátria, segundo o que o próprio Ronaldo conta em
entrevista a O Globo de 27/04/95.25
Após o festival em que Milton se consagra com Travessia, Márcio
Borges retorna à Belo Horizonte, depois de um período no Rio, quando a
família Borges está voltando para a casa da rua Divinópolis 89 em Santa
Tereza. Milton continuava no Rio, de onde mandava cartas para Márcio. “Numa
delas, Bituca me revelou que tinha conhecido um grande cara. A carta falava
de passeatas, líderes estudantis, organização de artistas, mas o que fascinou
Bituca foi que o rapaz além de tudo era um inspirado poeta”. Esse cara era o
Ronaldo Bastos que, no momento, recuperava-se de uma hepatite.
(...) [Ronaldo Bastos] aproveitava o tempo ocioso para ler
muito, criar novos poemas, roteiros, projetos gráficos – e
agora também letras de músicas com seu mais recente
amigo e parceiro, doravante companheiro de trincheira,
numa jornada destinada a durar anos e anos, iniciada ali,
doente na cama, com as primeiras composições da dupla,
Rio Vermelho (Co-autoria de Danilo Caymmi) e Três Pontas
(...)26
Rio vermelho foi a primeira parceria de Milton e Ronaldo Bastos e já
revelava um dos aspectos predominantes na poética de Ronaldo: o verso
transformado em arma de combate contra os desmandos da ditadura e
ajudando a luta dele, Márcio e Fernando, então estudantes, e a de tantos
outros da época:
De minha garganta as canções explodem
em pontas de faca rasgando espaço e vêm
minha luta ajudar, ê...
(...)
lutei e meu leito águas claras
se fez vermelho, o sangue tingia
mas não parei de lutar, perigo é meu guia
só me entrego pro mar, ê...
Está, então, construído o alicerce central do Clube da Esquina: Milton
Nascimento, Márcio Borges, Lô Borges, Fernando Brant e Ronaldo Bastos,
ressaltando que o enfoque central deste estudo são os textos poéticos e que
esta denominação inicialmente se referia ao grupo freqüentado por Lô, Beto
Guedes e outras pessoas da mesma faixa de idade.
Depois do festival, Milton assina contrato com uma gravadora
desconhecida chamada Codil e grava seu primeiro LP, reunindo as três
músicas do Festival Internacional da Canção; Paz do amor que vem (Novena),
Gira-girou, Crença, as três primeiras parcerias de Milton com Márcio Borges;
duas em parceria com Ronaldo Bastos e Outubro (de Milton e Fernando Brant),
a segunda parceria com Fernando Brant.
Em 1968, Milton grava seu primeiro LP nos Estados Unidos pela
gravadora A&M Records com quase todas as músicas do primeiro disco no
Brasil, porém com arranjos novos feitos por Eumir Deodato e com músicos
americanos; incluindo, ainda, Canção do Sal e Vera Cruz. Esta merece uma
atenção especial por ser a tentativa de Márcio Borges em realizar uma obraprima: “a tal idéia da mulher-país, linda e perdida”.27 Para este disco e
gravação, Ronaldo mexe na letra sem Márcio saber. Esta canção será
retomada no álbum duplo Clube da Esquina 2, como observaremos mais
adiante, a partir de uma pergunta colocada por Milton: “O que foi feito de
Vera?”.
VERA CRUZ (Milton Nascimento e Márcio Borges)
Hoje foi que perdi
Mas onde, já não sei
Me levou para o mar
Em Vera me larguei
E deito nessa dor
Meu corpo sem lugar
Ah! quisera esquecer
A moça que se foi
De nossa Vera Cruz
E o pranto que ficou
Da morte que sonhei
Nas coisas de um olhar
Ah! Nos rios me larguei
Correndo sem parar
Buscava Vera Cruz
Nos campos e no mar
Mas ela se soltou
No longe se perdeu
Ah! Quisera encontrar
A moça que se foi
No mar de Vera Cruz
E o pranto que ficou
Do norte que perdi
Nas coisas de um olhar.
A procura de Vera (o Brasil) parece refletir o inconsciente coletivo da
época em busca de um país mais livre, justo que “se solto e no longe se
perdeu”. É interessante notar como a letra retrata a idéia de frustração, de
utopia perdida, da falta de norte que ia se configurando devido ao
endurecimento do regime ditatorial.
Ainda nesse ano, vários fatos importantes acontecem no Brasil e no
mundo: os protestos estudantis em vários países, culminando no “maio de 68”
em Paris; o assassinato do estudante Édson Luís pelo regime militar; a
Passeata dos Cem Mil; o aumento da repressão e do cerco militar no Brasil,
culminando com a “bomba” do AI-5 que acaba com a liberdade democrática,
sindical, social, política, estudantil, artística, enfim, com a possibilidade de
pensar diferente a sociedade e o mundo. Antenado a estes e outros fatos,
Milton participada Passeata dos Cem Mil e, junto com Ronaldo Bastos, faz a
canção Menino, um tributo ao estudante Édson Luís, que só seria gravada em
1976 no disco Geraes, pois, segundo Márcio, “o tema era doloroso demais” e
eles não queriam parecer oportunistas.
MENINO (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos)
Quem cala sobre teu corpo
consente na tua morte
talhada a ferro e fogo
nas profundezas do corte
que a bala riscou no peito
quem cala morre contigo
mais morto que estás agora
relógio no chão da praça
batendo, avisando a hora
que a raiva traçou no tempo
no incêndio repetindo
o brilho do teu cabelo
quem grita vive contigo
Segundo Márcio Borges, os músicos dividiam-se em dois grupos nesta
época: os que ele conhecia e “preferiam ficar falando de jams, riffs, scats,
chorus, terças, quintas, sétima menor com nona, especialidades” apesar de
toda repressão militar, causas revolucionárias e estudantis; e “os que gostavam
de queimar um, freqüentavam as dunas do barato, território livre na área dos
tubulões que estavam sendo instalados na área de Ipanema”. Entretanto “em
Beagá o ‘desbunde’ era muito malvisto”, pois os jovens, em geral, queriam
mais compromisso e participação. Ainda sobre isso, Márcio diz: “tudo o que
pudesse ser qualificado de ‘desbunde’ era digno de reproches e, por extensão,
aquele lado Tomzé e Wally Sailormoon da Tropicália, aquele lado Navilouca e
Hélio Oiticica (...)”.28 No entanto, o “desbunde” também pode ser visto como
uma forma de revolta contra a tirania, embora isso não fosse aceito por setores
da esquerda que dizia ser um movimento importado dos Estados Unidos. Em
suma, “era uma contrapartida para aqueles jovens que não se exilaram (ou
foram exilados) nem tinham a coragem ou a insensatez de pegar em armas”.29
Falando sobre os efeitos do AI-5 sobre a sociedade brasileira, Márcio
diz: “Era o estilo, do guarda de rua ao servidor público, era a figura da
‘autoridade’, o vizinho delegado que passou a se sentir mais poderoso, o chefe
de repartição subitamente tornado ‘importante’.”30
No meio deste clima, em 1969, é lançado o primeiro LP pela
EMI/ODEON Milton Nascimento que reúne canções do próprio Milton, parcerias
entre ele e Fernando Brant, Márcio Borges, Nélson Ângelo, Ronaldo Bastos,
Toninho Horta, dentre as quais vale destacar: Sentinela (de Milton Nascimento
e Fernando Brant), Pai Grande (de Milton Nascimento) Tarde (de Milton
Nascimento e Márcio Borges), Aqui oh! (a primeira parceria de Toninho Horta e
Fernando Brant) e Quatro luas (de Nélson Ângelo e Ronaldo Bastos). Nesta
última, percebe-se o espírito revolucionário que norteava muitas pessoas no
fim dos anos 60. Contudo, esse “norte” havia se perdido em algum lugar, ou
melhor, barrado pelo AI-5 e pelos militares. Pode-se relacionar esta canção
com a imagem de perda de Vera Cruz delineada por Márcio Borges.31
QUATRO LUAS (Nélson Ângelo e Ronaldo Bastos)
... a violência, bandeira
que eu vou levar
pensei nunca mais voltar
pensei, pensei
no rumo incerto
mas certo de encontrar
meu sonho vivo
perdido em qualquer lugar
eu sei, não vou descansar
eu sei, eu sei...
Este disco já traz um pouco do clima de trabalho coletivo que viria a ser uma
marca registrada do Clube da Esquina. Isto pode ser comprovado na
contracapa do disco, onde há um texto de Milton que diz, entre outras coisas:
“... no Aqui Oh! A pá toda deu palpites”.32
Neste final dos anos sessenta, temos uma grande diversidade musical
sintetizando o que foi a década em termos de música brasileira: a Bossa Nova,
sempre e ainda em voga, a Jovem Guarda, o Tropicalismo, as canções de
protesto e engajadas, os festivais da canção. Na música mundial, temos os
Beatles, Jimi Hendrix, Rolling Stones. No meio de toda essa riqueza musical,
surge Milton Nascimento juntamente com outros compositores e músicos, que,
certamente, sofrem influências dessas variedades musicais. Para Eumir
Deodato, Milton era “uma coisa nova, misteriosa, intrigante e instigante”. Para
Márcio:
(...) a música de Bituca revelava sua qualidade única. Seu
som tinha uma força emotiva admirável. A vida de Minas, a
circunspecção do nosso povo, a herança cultural do interior,
o ritmo polidividido do ‘Vera Cruz’ deslizando sobre trilhos,
em compassos complexos, tal como tantas vezes eu e ele
ouvíramos naquela areazinha que existe atrás dos vagões
de passageiros, tantas vezes fomos ao Rio de trem, tudo se
encontrava e entornava na voz bailarina e no violão
pontilhado do meu bom Vituperatus, o nobre Ludwig Von
Betúcious. Para o mercado americano acostumado a por
rótulo debaixo de cada produto – jazz, rock, fusion, country –
, Bituca iria representar um desafio. (...)33
Enfim, a travessia de Milton, conforme se pode observar, tem como marca
fundamental o trabalho coletivo, a vivência em grupo, que vai se consolidar no
álbum duplo Clube da Esquina.
NOTAS:
*Verso da canção Rio vermelho de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos.
1
BORGES, M (1996) p.45.
2
HOLLANDA, H B de (1981) p18.
3
SCHWARZ, R (1978) p.62.
4
VASCONCELLOS, G. (1977) p.37.
5
HOLLANDA, H B de (1981) p32.
6
BORGES, M (1996) p.190.
7
VASCONCELLOS, G. (1977) p.37.
8
Ibidem, p.66.
9
As informações sobre a travessia de Milton foram recolhidas, principalmente,
de três fontes: Os sonhos não envelhecem, Nova história da música popular
brasileira/Milton Nascimento e Brasil Musical. Quando foi preciso, optou-se por
alguns trechos, em especial do primeiro, para passar o clima da época pela
visão de um dos principais integrantes do Clube da Esquina, Márcio Borges.
10
ÂNGELO, N. Depoimento do autor em 24/06/1998.
11
BORGES, M. (1996) p.46.
12
ANGELO, N. Depoimento do autor em 24/06/1998.
13
BORGES, M. (1996) p.55.
14
Ibidem, p.59.
15
Ibidem, p.60.
16
Ibidem, p.61.
17
Ibidem, p.65-67.
Dentre dezenas de músicos que freqüentaram o Ponto
Músicos, Chiquito Braga e Valtinho Batera eram os que, no
dizer do jovem saxofonista Nivaldo Ornelas, ‘detinham a
informação’, eram the best. Chiquito, guitarrista, ensinou
alguns dos melhores músicos que saíram do Ponto. Toninho
Horta vinha ver Chiquito tocar desde pequeno, trazido por
seu irmão contrabaixista, Paulo Horta, para ver como é que
devia ser.
18
Ibidem, p.69
19
Ibidem, p.88
20
Ibidem, p.100.
21
Ibidem, p.105-106
22
Ibidem, p.111.
23
Ibidem, p.115-116.
24
Ibidem, p.160.
25
O GLOBO (27/04/1995), Segundo caderno, “O Clube da Encruzilhada”.
26
BORGES, M. (1996) p.165-167
27
Ibidem, p.166.
28
Ibidem, p.195.
29
MACIEL, L, C (1996) p.121.
30
BORGES, M. (1996) p.121
31
Sobre Quatro luas, vale a pena ver o que Márcio Borges diz:
No Rio, aproximados e amigos, Nélson Ângelo e Ronaldo
Bastos haviam acabado de compor Quatro Luas, a cuja letra
não prestei atenção no momento, mas em que, depois,
diante dos fatos posteriores, Ronaldo tendo que sair de
circulação por uns tempos, indo viver em Londres, pude
perceber o reflexo de suas incertezas e angustias naquela
hora difícil...
32
NASCIMENTO, M. (1969), contracapa do disco.
(...) Aliás a pá é essa: Novelli, Mauricio, Robertinho, Luiz
Fernando, Helvius, Nélson Ângelo, Toninho Horta, Wagner
Tiso, que formam a “cozinha” e o coro. Fora os palpites,
confusões, imposições, poliritmias, bagunças, viagens a
Minas Gerais, garrafas esvaziadas de um indivíduo
chamado NANÁ e Fernando e Márcio, meus grandes
amigos. (...) Ainda tem: David, Ronaldo, Zé, Ricardo. A
colher de chá dos maestros Orlando Silveira e Gaya. E a voz
do Toninho no Aqui, oh!
33
BORGES, M. (1996) p.175.
4 – O CLUBE DA ESQUINA
Porque se chamavam homens
também se chamavam sonhos
e sonhos não envelhecem
em meio de tantos gases lacrimogêneos
ficam calmos calmos calmos calmos calmos
(LÔ BORGES, MILTON NASCIMENTO
BORGES – Clube da Esquina 2)
E
MÁRCIO
4.1 – Da sombra eu tiro meu sol*
A denominação Clube da Esquina surge na metade da década de 60,
representando uma simples esquina do bairro de Santa Tereza em Belo
Horizonte, para onde a família Borges retornava depois de um período de três
anos morando no Edifício Levy, local que, conforme nos narra Márcio Borges
em seu livro Os sonhos não envelhecem, propiciou o encontro deste autor com
Milton Nascimento em 1963 e várias outras pessoas que integraram o Clube.
Sobre a esquina de Santa Tereza, Márcio diz que era apenas “uma pobre
esquina, um pedaço de calçada e um simples meio-fio onde adolescentes de
rua (...) costumavam vadiar, tocar violão, ficar de bobeira, no cruzamento das
ruas Divinópolis e Paraisópolis”.1
Na verdade, essa denominação Clube da Esquina era inicialmente uma
coisa mais do Lô, do Beto Guedes e de outros jovens de Belo Horizonte.2 É
curioso notar como esta singela esquina de Santa Tereza pôde reunir tanto
talento musical e poético em torno dela.
Em 1969, surge a canção Clube da Esquina: Lô havia criado uma
“seqüência harmônica ao violão, um conjunto de acordes que formava um todo
coerente” e a repetia exaustivamente. Milton, num de seus regressos a Belo
Horizonte encontra-se com Lô que lhe mostra a melodia. Então, “Bituca foi
estabelecendo uma linha melódica cada vez mais bem definida, a qual foi
repetindo com ênfase cada vez maior, com certeza”. Márcio presenciou o
surgimento da melodia que consagrou a primeira parceria ente eles e põe letra
na música. “Lá fora, a noite chegava. Lô, com certeza iria correndo para a
esquina, mostrar sua primeira composição para (...) o pessoal do Clube”. Esta
canção logo se tornou “uma espécie de hino” na casa dos Borges e
posteriormente, da geração Clube da Esquina. Segundo Márcio, a turma da
paraisópolis tomou conhecimento do hino que eles criaram e se incumbiram de
divulga-lo, “embora não fizesse idéia do quão famosa esta expressão ainda iria
se tornar: ‘Clube da Esquina’. É que nunca temos, nem podemos ter jamais,
idéia suficientemente clara desse aglomerado de desejos e temores a que
chamamos de futuro”.3
Esta canção inaugura a parceria entre Lô Borges e Milton Nascimento
sem qualquer pretensão de nomear um conjunto de músicos e compositores,
mas apenas refletindo as sensações do momento, seja na melodia de Lô e
Milton, seja na letra da canção que se encaixa perfeitamente nela revelando o
estado de ânimo em Márcio Borges se encontrava: “achava a letra, depois de
tudo, muito lunática e triste; eu próprio me sentia assim”.4 não foi mera
coincidência o fato desta letra revelar, além desta sensação particular de
tristeza, um estado geral de tristeza que reinava na época, reunindo o caráter
psicológico e social na mesma poesia.
Antes de se chegar ao LP Clube da Esquina, alguns fatos que trazem e
antecipam a marca do trabalho coletivo. Em 1970, Milton é convidado a fazer
um show no teatro Opinião com os músicos que o acompanhavam. A partir de
então, o grupo ganha nome: O Som Imaginário. O show fica mais de um ano
em cartaz, passando por Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. Fazem
parte do Som Imaginário músicos de excelente qualidade técnica que viriam a
se destacar cada vez mais ao longo da década e posteriormente: Wagner Tiso
(teclados e arranjos”, Zé Rodrix (órgão e flautas), Tavito (guitarra base e
violão), Frederyko (guitarra solo), Luiz Alves (baixo elétrico) e Robertinho Silva
(bateria). Apoiado pelo excelente e agressivo conjunto, Milton passa a se
apresentar com um visual tropicalista (descalço, cabelos eriçados, calças justas
e colete de couro com estrelas). Depois deste show, Milton diria sobre o
momento: “Foi uma revolução. Bicho, todo mundo, ou fugiu, ou está no exílio,
ou dançou. Ficamos nós, como resistência. Vamos levar isso em frente”.5
Neste mesmo ano, lança o LP Milton que inclui a música Para Lennon e
McCartney (de Lô Borges, Márcio Borges e Fernando Brant), composta durante
uma comemoração dos prêmios de um festival a partir de um tema feito no
piano por Lô que convida Fernando e Márcio para colocarem letra. Ambos
concordam, isolam-se no quarto e fazem a letra de Para Lennon e McCartney,
seguindo a sugestão de tema para a canção sugerida por Lô: “eu estava
pensando na parceria de John e Paul... nas parcerias, né. A gente aqui,
também fazendo as nossas... eles nunca vão saber. Mas pode ser outra coisa
qualquer que vocês sentirem”.6
PARA LENNO E MCCARTNEY (Lô Borges, Márcio Borges e
Fernando Brant)
Porque vocês não sabem
Do lixo ocidental
Não precisam mais temer
Não precisam da solidão
Todo dia é dia de viver
Porque você não verá
Meu lado ocidental
Não precisa medo não
Não precisa da timidez
Todo dia é dia de viver
Eu sou da América do Sul
Eu sei, vocês não vão saber
Mas agora sou “cowboy”
Sou do ouro, eu sou vocês
Sou do mundo, sou Minas Gerais.
Embora a letra não tendo sido feita pelos principais letristas do Clube,
destaca-se, ainda neste disco, a canção Canto Latino (de Milton Nascimento e
Ruy Guerra), por mostrar poeticamente uma das opções seguidas por vários
jovens brasileiros: a guerrilha. É interessante notar como a melodia e o arranjo,
no qual se destaca a percussão de Naná Vasconcelos, acompanham a letra e
vão se intensificando gradativamente a idéia de que “a calmaria é engano” e a
“primavera” latino-americana só seria conseguida através da guerrilha, palavra
que fica suspensa no último verso, quebrando a rima com “maravilha” e sendo
substituída por reticências. Recursos como estes teriam que ser utilizados por
vários de nossos compositores e poetas cada vez mais para evitar a censura.
Vale destacar também o contraste noite/dia que vai ser uma marca de várias
canções do Clube: “Da sombra eu tiro meu sol”.
CANTO LATINO (Milton Nascimento e Ruy Guerra)
Você que é tão avoada
Pousou em meu coração
Moça escuta essa toada
Cantada em sua intenção
Nasci com a minha morte
Dela não vou abrir mão
Não quero o azar da sorte
Nem da morte ser irmão
Da sombra eu tiro o meu sol
E do fio a canção
Amarro esta certeza de saber que cada passo
Não é fuga nem defesa
Não é ferrugem no aço
É uma outra beleza
Feita de talho e de corte
E a dor que agora traz
Aponta de ponta o norte
Crava no chão a paz
Sei a qual é fraco o forte
E a calmaria é engano
Para viver nesse chão duro
Tem que dar fora o fulano
Apodrecer o maduro pois esse canto latino
Canto para americano
E se morre vai menino
Montado na fome ufano
Tens poucos anos de vida
Valem mais do que cem anos
Quando a morte é vivida
E o corpo vira semente
De outra vida aguerrida
Que morre mais lá na frente
Da cor de ferro ou de escuro
Ou de verde ou de maduro
A primavera que espero
Por ti irmão e hermano
Só brota em porta de cano
Em brilho de punhal puro
Brota em guerra e maravilha
Na hora, dia e futuro
Da espera virar...
Integra este disco a primeira gravação de Clube da Esquina (de Milton,
Lô e Márcio Borges) e já temos uma formação prévia do Clube da Esquina que
conta neste disco com a participação do Som Imaginário, de Lô Borges
cantando e tocando em Clube da Esquina, com parcerias entre os integrantes
do Clube e ainda com Naná Vasconcelos – que despontava na época e seria
depois reconhecido mundialmente pelo seu talento e inovação na percussão –
e Dori Caymmi.
Embora a origem do nome Clube da Esquina venha do final dos anos 60
e, como já foi dito, representava inicialmente apenas uma esquina do bairro de
Santa Tereza em Belo Horizonte, onde a turma de Lô Borges, Beto Guedes e
outros se reuniam, esse nome passa a ser utilizado para denominar um grupo
eclético, compositores, instrumentistas, arranjadores e poetas que se
aglutinavam em torno de Milton Nascimento e ultrapassavam as fronteiras da
capital mineira. Partindo de uma esquina de Beagá, de várias outras esquinas
dessa cidade, cruzando com esquinas cariocas, pernambucanas, paulistas,
baianas, o Clube da Esquina apresenta um caráter universal.7
4.2 – Nuvem Cigana **
Na década de 70, o Clube da Esquina foi de extrema importância para o
desenvolvimento e amadurecimento da Moderna Poesia Brasileira. Como
defendemos a letra de música como forma literária associada a elementos
extra-literários, verificaremos a importância que teve para a nossa cultura e
literatura a poesia produzida por esse grupo de poetas, músicos e
compositores.
Após o “boom” na MPB ocorrido na década de 60, a década de 70 é o
momento de afirmação da MPB como um dos principais veículos da poesia
brasileira da atualidade, passando a ser o principal canal de expressão artística
para manifestar desagrado com a situação política vigente e apresentando-se
como um dos principais focos de resistência ao regime militar. Não
pretendemos, com isso, desprezar a poesia escrita, porém, num país de
analfabetos, onde quase não lê e menos ainda poesia, a poesia cantada via
meios de comunicação de massa passa a se destacar cada vez mais e a fazer
parte do dia-a-dia das pessoas em várias classes sociais. Pode-se afirmar,
inclusive, que o principal foco disseminador de poesia, neste momento, passa a
ser a música popular.
Enquanto o Tropicalismo estava situado no eixo São Paulo/Bahia, o
Clube da Esquina situava-se no eixo Rio/Minas, num movimento que descia os
rios de Minas em direção ao mar do Rio, descia e subia estradas de terra,
espalhando as idéias do desbunde e do pé na estrada aliadas à idéia de
resistência cultural possível e constituindo um movimento utópico em busca de
uma sociedade mais livre, justa e sem repressões. O ideal da contracultura, já
bastante difundido em outros países, vai assumir com os “mineiros” uma forma
de resistência ao regime vigente, contudo não uma resistência armada, direta
ou guerrilheira e sim uma resistência via cultura e poesia, através da música
popular. O movimento mineiro só podia desaguar no Rio, cidade que poderia
proporcionar um cenário ideal para a divulgação do projeto poético-musical do
Clube da Esquina, pelo fato de ser o Rio o principal centro cultural na época e
onde aconteciam os principais movimentos contrários à cultura oficial e ao
governo militar e, ainda, por se ser um pólo universalizador e disseminador de
várias práticas culturais.
A década de 70 – para alguns, um período de vazio cultural – foi um
momento extremamente fértil em vários setores da cultura e da arte. Apesar de
ser a época mais repressora e autoritária de nossa história recente, sob as
égides do regime militar, e por isso marcada por um individualismo crescente,
encontramos experiências de trabalhos artísticos e culturais, privilegiando o
convívio e a produção coletiva em vários ramos da cultura, como: Novos
Baianos e Clube da Esquina (música e poesia); Asdrúbal trouxe o trombone
(teatro); Navilouca e Nuvem Cigana (multicultural: música, literatura, em
especial poesia e performances poéticas, arte gráfica, etc.) e tantos outros.
Para fugir da falta de liberdade de organização política, havia uma
tendência na década de 70 para a formação de grupos que tentavam manter
acesa ao menos sua liberdade de criação, embora tantas obras tenham sido
censuradas e cortadas. Paradoxalmente, a repressão possibilitou o surgimento
destes alternativos que produziram grandes obras de arte, sendo uma válvula
de escape possível.
Para exemplificar o clima de coletividade e resistência cultural destes
grupos, podemos observar a proposta central do Almanaque Biotônico
Vitalidade que aparece na primeira página do Nº 1 da entrevista produzida pela
Nuvem Cigana e uma das mais importantes da época, na qual se destaca a
apresentação:
APRESENTAÇÃO:
Essência de energia pura o
BIOTÔNICO VITALIDADE é
composto de raízes, folhas
e frutos plenos. Sucesso
comprovado através dos
séculos.
Profilaxia
da
cegueira noturna. É muito
capaz
nos
casos
de
desânimo geral8
O Almanaque possuía ainda indicações, contra-indicações e posologia
como se fosse uma bula de remédio, ficando bem claro o mal a ser atacado: a
“cegueira noturna” e o “desânimo geral”, ou seja, a situação de sufoco, falta de
liberdade e “escuridão” que reinavam durante a década de 70. Ou seja, a linha
do almanaque é desenvolvida em cima destas orientações, porém com uma
diversidade de linguagens poéticas e grande riqueza de detalhes gráficos.
(...) garantia-se assim uma razoável unidade de orientação.
Além disso os diversos trabalhos individuais foram discutidos
por todo o grupo mais diretamente envolvido. Tratava-se,
portanto, de uma iniciativa cujo caráter coletivo estava
fortemente marcado. (...)9
Aqui se evidencia uma forte aproximação entre o trabalho desenvolvido pela
Nuvem Cigana e pelo Clube da Esquina. Embora este não tenha tido toda essa
fase de discussão que norteou o trabalho da Nuvem, tendo acontecido muito
em função do Milton, do Lô e de maneira não premeditada, ambos apresentam
muito forte a marca do trabalho coletivo. De um lado o LP Clube da Esquina no
qual a coletividade se da não só nas composições poético-musicais, como nos
arranjos, na produção, nas gravações, ensaios, etc. de outro, a Nuvem Cigana
com um trabalho coletivo marcado por reuniões, discussões, produções
poéticas, performances. Outro traço comum é o fato de ambos trabalhos serem
conceituais e possuírem uma unidade.
A década de 70 não deixava muitas alternativas para quem não
concordava com o regime militar, ou melhor, este procurava fechar todas as
saídas para qualquer forma de contestação, fosse esta a organização política,
a luta armada, músicas “subversivas”, atos e apresentações que atentassem
contra a moral (como os “Secos e molhados”). Então, uma das principais
formas de tentar fugir desse sistema opressor era através da metáfora, daí a
grande profusão de autores que tentavam fazer alguma coisa passar “pela
fresta”, como fez tantas vezes Márcio Borges que, em entrevista ao jornal
Folha de São Paulo, afirmou o seguinte ao responder à pergunta se o regime
militar havia marcado a música dos mineiros:
Toda época tem sua figura de linguagem. Se não fosse a
ditadura, a censura, não teríamos tantas metáforas.
Tínhamos muito medo. E provocávamos ele, como seguir de
carro um camburão, fumando um baseado. Era difícil a
opção ser herói ou viver em paranóia. Decidi viver na
paranóia.10
Parece que, naturalmente, nada premeditado, esses e outros fatos iam
caminhando em uma direção: a realização de uma obra poético-musical
coletiva.tendo que cumprir contrato com a Odeon e gravar um disco, Milton
sugere à empresa a realização de álbum duplo que seria o primeiro neste
formato no Brasil se Gal costa não tivesse se adiantado e gravado um antes.
Conforme o próprio Ronaldo Bastos insistia e Márcio relata em seu livro: “um
disco com princípio, meio e fim, que não seja só um apanhado de canções. Um
disco conceitual”.11 Ronaldo tinha uma importância que não era somente
compor letras para as canções, mas também trabalhar a unidade dos discos
talvez influenciado pelo seu trabalho junto com outros poetas e artistas da
“Nuvem Cigana” que também era uma produção bem planejada, conceitual e,
ainda, contemporânea deste LP. Então, Milton convida Lô para dividir com ele
o álbum duplo Clube da Esquina.
4.3 – Saídas e Bandeiras ***
Como estamos trabalhando com um grupo de autores, priorizando os
principais letristas/poetas do Clube da Esquina, ressaltadas diferenças
evidentes na poética de cada um, iremos aborda questões e temas recorrentes
e comuns na obra poético-musical do grupo.
Focalizaremos alguns aspectos comuns nas produções poético-musicais
dos principais participantes do Clube da Esquina, “fundado” informalmente por
Milton Nascimento em seu LP de 1970, visto que, neste disco, já tinha havido
uma participação grande de pessoas que viriam a fazer parte nas gravações do
álbum duplo de 1972 e continha a primeira gravação da canção Clube da
Esquina, e iniciado de fato com o LP Clube da Esquina (1972).
Na produção dos autores e músicos do grupo, percebemos dois elementos
presentes em várias das canções que representam bem a década de 70 e a
poesia do Clube da Esquina: a noite (simbolizando o período de “escuridão”
das liberdades individuais e coletivas que tiveram reflexos indiscutíveis nas
criações) e o sonho (partindo de “o sonho acabou” de John Lennon e de toda
uma geração, relacionando-o ao fim do sonho de um país mais justo e
democrático e abordando também a necessidade vital do homem na
continuação do sonho, tanto individual como coletivamente). Estes elementos
serão desdobrados e vistos separadamente no próximo capítulo por simples
questão organizativa, visto que aparecem muitas vezes intercalados.
A canção Clube da Esquina instaura o que vem a ser este clube e vai ao
encontro da primeira definição para a palavra clube encontrada no “Dicionário
Aurélio: “local de reuniões políticas, literárias ou recreativas”.12 É justamente
esta a grande função do Clube da Esquina: inicialmente apenas um espaço de
lazer e recreação de jovens de Belo Horizonte até se transformar em um
símbolo de espaços onde as pessoas se reuniam para beber, se divertir, criar
canções, poesia, realizando talvez o único ato político possível para a época.
Na canção citada, percebemos os dois elementos centrais mencionados, a
noite e o sonho, com ênfase no primeiro: “noite chegou outra vez”,
representando o momento do dia durante o qual grupos de jovens se
encontravam para conversar, como também um momento de escuridão,
quando não havia espaço para opiniões contrárias e contestações. Então, o
Clube funciona como um espaço onde seus participantes podem dividir a
solidão e sonhar um grande país para quando acabar a “noite”, na certeza de
que “no claro do dia um novo” encontrarão.
CLUBE DA ESQUINA (Milton Nascimento, Lô Borges e
Márcio Borges)
Noite chegou outra vez
De novo na esquina os homens estão
Todos se acham mortais
Dividem a noite, a lua, até solidão
Neste clube a gente sozinho se vê
Pela última vez
À espera do dia naquela calçada
Fugindo pra outro lugar
Perto da noite estou
O rumo encontro nas pedras
Encontro de vez
Um grande país eu espero
Espero do fundo da noite chegar
Mas agora eu quero tomar suas mãos
Vou buscar aonde for
Venha até a esquina
Você não conhece o futuro que tenho nas mãos
Agora as portas vão todas se fechar
No claro do dia o novo encontrarei
E no curral D’El Rey
Janelas se abram ao negro do mundo lunar
Mas eu não me acho perdido
Do fundo da noite partiu minha voz
Já é hora do corpo vencer a manhã
Outro dia já vem
E a vida se cansa na esquina
Fugindo, fugindo para outro lugar
Esta canção, gravada pela primeira vez no LP Milton de 1970, Já
antecipava o clima que predominaria no LP Clube da Esquina de 1972.
Sobre esta canção, Alberto Moby faz as seguintes indagações: “Qual o
sentido da canção? Reflexão pessoal/existencial? Análise de conjuntura?”13 De
fato, estas questões são procedente e não apresentam uma única resposta, já
que ela reflete tanto o lado individual, como a conjuntura do momento, fatos
que são confirmados pela melodia melancólica. E, como já foi citado, era o
estado em que o próprio Márcio se sentia quando fez a letra: triste e lunático.
“Dividir a solidão”, esta era uma questão central de tantos grupos de jovens
que buscavam um espaço para expressar sua vontade de um mundo melhor.
Eu 1971, após um ano fazendo show, Milton propõe um álbum duplo à
sua gravadora, uma obra coletiva. A princípio, contudo, esta reluta e só aceita a
idéia após muita insistência de Milton e seus companheiros, discussões com a
diretoria da Odeon e a interferência de Adail Lessa, diretor de elenco da
gravadora. Por fim, vencidos os obstáculos, começam os preparativos para a
gravação do álbum duplo Clube da Esquina, um trabalho de criação coletiva
que pode ser visto como resistência à extrema solidão a que as pessoas
estavam obrigadas a viver.
Junto com seus inseparáveis companheiros, Milton aluga uma casa na
praia de Piratininga em Niterói para os ensaios do LP Clube da Esquina, pois
os vizinhos ao apartamento do Jardim Botânico, onde morava com Lô e Beto
Guedes e Jacaré, “se tornaram abertamente hostis àquele bando de malucos”,
chegando ao cúmulo de fazer ligações anônimas à polícia com denuncias
absurdas”.14
Então foram chegando para os ensaios em Piratininga outros músicos e
pessoas que participaram do LP, como: Rubinho e Sirlan, de Belo Horizonte;
Wagner Tido, Tavito, Robertinho Silva e Luís Alves, que estavam no Rio; além
de Ronaldo Bastos e Cafi.
Num clima de grande descontração, coletividade, o álbum duplo é
concebido e lançado em 1972, sendo, todavia, desconsiderado por alguns
críticos da época.
(...) as primeiras críticas do disco não foram nada boas. Os
resenhistas tinham achado tudo muito pobre e descartável e
sem ter muito o que dizer, e coisas desse tipo. Um chamou a
voz de Lô de “chinfrim”. Outro escreveu que meu amigo era
compositor de uma música só (referia-se a travessia) e que
determinados versos meus (...) “rolavam como pedras dentro
do ouvido”, de tão desagradáveis e malfeitos. Um outro
decretou: “Milton Nascimento está acabado” (...)15
Através destes comentários da época reproduzidos por Márcio Borges, fica
evidente que parte considerada da crítica não percebeu a grande obra de arte
poético-musical coletiva que tinha sido realizada por aquele grupo de músicos,
compositores e poetas.
Das 16 músicas que fazem parte dos dois discos , apenas duas não
foram compostas pelos componentes do Clube: Me deixa em paz (de
Mansueto C. Menezes e Ayrton Amorim) e Dos cruces (de Carmelo Larrea),
esta última, antecipando um traço que vai marcar a carreira de Milton, a
conexão com a música latino-americana. As demais foram compostas pelo
“quinteto” principal do Clube da Esquina: melodias criadas por Milton e Lô;
letras criadas por Márcio, Fernando e Ronaldo. As músicas são cantadas pela
dupla Milton e Lô Borges, ora juntos, ora separados. Contudo é importante é
importante registrar a participação de outro integrante do Clube: Beto Guedes
que canta em três faixas com Milton e a participação de Wagner Tiso nos
arranjos e teclados.
Neste álbum duplo, que por pouco não foi o primeiro deste tipo na história da
MPB (só não foi devido a gravadora que não acreditou no projeto), temos
belíssimas e consagradas canções, como Cais (Milton e Ronaldo Bastos), O
trem azul (Lô Borges e Ronaldo Bastos), Um girassol da cor de seu cabelo (Lô
Borges e Márcio Borges), San Vicente (Milton e Fernando Brant), Trem de
doido (Lô e Márcio Borges), Cravo e canela (Milton e Ronaldo Bastos), Tudo o
que você podia ser (Lô e Márcio Borges) e outras que marcaram a época e
serão analisadas adiante.
Cais sintetiza um grupo de canções estradeiras deste disco. São
canções que se referem a trens, viagens em busca da liberdade, o sonho de
uma sociedade mais livre e com menos amarras. Este grupo de canções está
intimamente ligado ao ideal jovem da época, não só brasileiro, mas de várias
partes do mundo. A canção revela, ainda, um pensamento paradoxal e
constante no homem: livrar-se dos “cais”, viver sem amarras que a sociedade
impõe. Esta foi uma das principais bandeiras dos movimentos jovens de 68: a
luta contra qualquer sistema opressor.
CAIS (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos)
Para quem quer se soltar
Invento o cais
Invento mais que a solidão me da
Invento lua nova a clarear
Invento o amor
E sei a dor de me lançar
Eu queria ser feliz
Invento o mar
Invento em mim
Um sonhador
Para quem quer me seguir
Eu quero mais
Tenho o caminho do que sempre quis
E um saveiro pronto pra partir
Invento o cais
E sei a vez de me lançar
Saídas e bandeiras nº 1 fala de um tema bastante comum nas canções: o “pé
na estrada”, a fuga para um local junto a natureza, o pó, a poeira da estrada.
Como “essa coisa não da mais pé” (a ditadura militar), uma solução é sair da
cidade para poder viver com mais liberdade e dignidade.
SAÍDAS E BANDEIRAS Nº 1 (Milton Nascimento e Fernando
Brant)
O que vocês diriam
Dessa coisa que não da mais pé
O que vocês fariam pra sair dessa maré
O que era sonho virou terra
Quem vai ser o primeiro a me responder
Sair dessa cidade
Ter a vida como ela é
Subir novas montanhas
Diamantes procurar
O fim da estrada e da poeira
O rio com seus frutos me alimentar
Esta canção apresenta um ideal presente em várias outras dos
integrantes do Clube: a fuga em direção a natureza; já que a “maré” vinda do
governo militar não estava para peixes, as pessoas não admitiam ficar
aprisionadas pelo sistema, buscavam uma das soluções possíveis para quem
não queria apagar suas utopias: uma vida alternativa longe das cidades. O
“sonho virou terra” apresenta pelo menos dois sentidos: a busca de novas
utopias através das estradas de terras ou o fato do sonho, em geral uma idéia
altívaga, ter despencado das alturas e ter vindo ao chão.
Temos ainda a canção saídas e bandeiras nº 2, dos mesmos autores,
com a mesma melodia e alterações na letra, em que há a repetição da
pergunta “o que vocês fariam para sair dessa maré”, porém a resposta é outra
e o segundo a responder diz:
Andar por avenidas
Enfrentado o que não da mais pé
Juntar todas as forças
Para vencer essa maré
O que era pedra vira homem
E o homem é mais sólido que a maré.
Aqui é colocada outra saída possível para a época: continuar na cidade
lutando contra o sistema opressor, juntando todas as forças e apostando na
unidade e no ânimo dos homens para derrubar a ditadura. (este último
reforçado aqui por seu sentido original de alma, vitalidade, pois o homem não
pode ficar inanimado como uma pedra, tem que ser homem de fato).
Resumindo, os autores colocam duas saídas para enfrentar a situação
do momento: já que o sonho de mudar o país virou terra e não da mais para
continuar lutando, o jeito é pegar a estrada e fugir da cidade; ou então ficar na
cidade e enfrentar o regime, juntando todas as nossas forças, pois “o homem é
mais sólido que a maré” que não estava para “peixes”. Esta idéia vai ser
desenvolvida por Fernando Brant, posteriormente, em Milagre dos peixes.
Outro dado interessante destas duas composições foi muito bem
assinalado por Charles A. Perrone16. “o título da canção alude aos
exploradores pioneiros das terras de Minas Gerais, mas o texto diz respeito à
qualidade de vida atual”, ou seja, o texto na realidade fala de exploradores
atuais. Vale ressaltar que o movimento dos exploradores da época do Brasil colônia tinha o nome de Entradas e Bandeiras e a música fala em saídas,
opções possíveis para as pessoas diante de tal situação: pegar a estrada e
fugir da cidade ou ficar na cidade e enfrentar o regime.para demonstrar como
havia essa preocupação na cabeça de muitos jovens que não concordavam
com o regime e imaginavam um país livre e democrático observemos a
declaração de Márcio Borges:
Quanto a mim, senti Bituca triste, mas andava eu próprio
meio deprimido e esmorecido, me prometendo fazer mil
coisas, mas incapaz de sair do lugar, bebendo demais,
sufocado dentro de uma revolta que não tinha como
exteriorizar diante da gigantesca muralha do medo, divido
entre duas vontades, dois sentimentos contraditórios de
missão e predestinação, duas opções abertas naquele
momento na frente do jovem de 23 anos que eu era: a luta
armada e seu conseqüente purgatório de clandestinidade e
tensão, opção de Ricardo Vilas, que desaparecera logo
depois de tocar com Bituca, ou a luta desarmada e seu
conseqüente purgatório de paranóia de vazio e tédio que
vinha a ser a vida de poeta errante, dirigindo shows aqui e
fazendo letras acolá, com noitadas nos bares, sessões de
ensaios, conversas técnicas, especializadas.16
Podemos relacionar a “pedra” da canção com “a gigantesca muralha do medo”
com que Márcio se refere à ditadura. As palavras de Márcio, escritas na
década de 90 recontando os fatos e impressões da época, reforçam as dúvidas
e conteúdo dos textos analisados, dando-nos uma idéia de como as dúvidas e
as opções a escolher eram freqüentes entre os jovens na época (como em
todas as épocas, porém aqui a questão assumia um caráter gigantesco e
assustador) e nada fáceis.
Nuvem Cigana (de Lô Borges e R. Bastos) é uma canção de extrema
importância dentro do Clube não só por sintetizar bem a idéia já mencionada
do “pé na estrada”, do “pó, poeira, ventania”, mas também por estabelecer um
ponto de contato entre a poesia cantada e a poesia falada, a poesia alternativa
que era produzida pelo grupo “Nuvem Cigana”. Este grupo é criado e
idealizado por Ronaldo Bastos com o objetivo de lançar trabalhos variados e
reúne além de poetas, músicos, arquitetos, desenhistas, até um bloco de
carnaval: o “Charme e Simpatia”. Dentre as várias realizações do grupo, podese citar: as revistas alternativas, produção de cartazes, entre os quais um
pôster de Milton, produção de shows, as famosas “artimanhas” nos
lançamentos de livros, revistas.
O surgimento da “Nuvem” aproxima-se muito dos ideais do Clube da
Esquina, não apenas pelo ano de sua criação (1972), mas principalmente pelo
seu objetivo central: “a criação de um espaço coletivo que canaliza e
instrumentaliza a ‘energia’ de pessoas que, naquele momento (início dos anos
70), se viam diante de barreiras institucionais fortes”.18 Ronaldo Bastos escolhe
o nome “Nuvem Cigana” por achar o nome interessante e também que seria
uma marca incrível, selo comparável à marca “Apple” dos Beatles, que foram
alguns dos que mais influenciaram as produções do grupo. Só para ilustrar,
alguns dos principais participantes deste trabalho alternativo além do próprio
Bastos: Ronaldo Santos, Cafí, Jorge Ladeira, Charles, Chacal, Guilherme
Mandaro. Vale registrar que em quase todos os discos do Milton da década de
70 consultados e pesquisados a capa foi idealizada por Ronaldo Bastos e Cafi
do “Nuvem Cigana”. Recentemente, um sonho se realizou para Milton e sua
turma, com a remasterização e transposição e transposição para cd de seus
primeiros discos em Abbey Road, o mesmo onde os Beatles gravavam..
NUVEM CIGANA (Lô Borges e Ronaldo Bastos)
Se você quiser eu danço com você
No pó da estrada
Pó, poeira, ventania
Se você soltar o pé na estrada
Pó, poeira
Eu danço com você o que você dançar
Se você deixar
O sol bater nos seus cabelos verdes
Sol, sereno, ouro e prata
Sai e vem comigo
Sol, semente, madrugada
Eu vivo em qualquer parte do seu coração
Se você quiser eu danço com você
Meu nome é nuvem
Pó, poeira, movimento
O meu nome é nuvem
Ventania, flor de vento
Eu vivo em qualquer parte do seu coração
Se você deixar o coração bater sem medo
Se você deixar o coração bater sem medo
Esta canção apresenta uma série de palavras que indicam movimento –
nuvem, poeira, pó, vento, ventania, estrada – contrapondo-se ao período de
inércia vivido e imposto pelo regime militar. É interessante notar como este
ideal de “pé na estrada” contracultura e desbunde, presentes na música,
assumem uma postura que, longe de ser alienada, era uma forma de
contestação ao sistema. Era uma forma de se manter em movimento, agir.
Outro lado interessante a ser comentado é o fato do primeiro trabalho a
ser impresso em mimeógrafo, com ilustrações de Cafi, e com o símbolo da
nuvem cigana ser também de 1972. Mais do que coincidências de datas e de
autores, a música Nuvem Cigana e os textos de Canção de Búzios, ambos de
Ronaldo Bastos, expressam um sentimento comum, uma grande afinidade de
“tom” e “espírito”.
CANÇÃO DE BÚZIOS (Ronaldo Bastos)
Se eu passar por você
e falar de estrelas]
não ligue não
são estrelas do mar
não ligue não
são recados do vento
espumas do vento
canção das ondas
se eu passar por você
não ligue não
são estrelas do mar
Mais do que produtos de um mesmo autor – (...) – os
poemas e a canção são produtos de um mesmo momento,
de uma mesma situação de uma geração, ou ainda de uma
parcela de uma geração, para quem “pé na estrada, cabelos
ao vento e pés no chão” não era uma expressão vazia de
significado mas, ao contrário, expressava todo um
sentimento de inconformismo diante de uma ordem social
dominante, estabelecida e, paralelamente, todo um estilo
próprio de enfrentar esta mesma ordem (ponto que, já foi
levantado no capítulo anterior).19
Esta citação respalda nossa afirmação de que, além de não ter sido um
vazio cultural, a década de 70 e o desbunde, embora muitas vezes vistos como
formas alienadas, representam uma das formas possíveis de contestação
durante os chamados “anos de chumbo”. Nada como uma postura contrária
aos padrões culturais vigentes para demonstrar o inconformismo.
Depois da nuvem, olhemos a paisagem da janela e o que ela nos
oferece neste período. Como na música de mesmo nome, a paisagem da
década
de
70
não
nos
fornece
algo
animador.
Mostra-nos
coisas
aparentemente normais como uma igreja, um muro branco, um vôo pássaro,
um velho sinal, uma grade, mas também cores mórbidas, homens sórdidos,
temporal, cemitérios, velórios. Isto revela a paisagem densa e triste reinante,
apesar da insistência do destinatário da canção em não querer acreditar no que
está acontecendo no país (reparar a repetição do verso “Você não quer
acreditar”). “Mas isso é tão normal” não acreditar que a realidade política seja
essa: o regime caça, prende, tortura, mata e existem vários cavaleiros
marginais fugindo “sem querer descanso nem dominical”. É interessante notar
como de uma simples paisagem citadina interiorana Fernando Brant passa
atitudes humanas deploráveis de caráter universal, ao mesmo tempo em que
reflete o período “mórbido” e “sórdido” vivido por qualquer cidade brasileira da
década de 70.
PAISAGEM DA JANELA (Lô Borges e Fernando Brant)
Da janela lateral do quarto de dormir
Vejo uma igreja, um sinal de glória
Vejo um muro branco e um vôo pássaro
Vejo uma grade e um velho sinal
Mensageiro natural de coisas naturais
Quando eu falava dessas cores mórbidas
Quando eu falava desses homens sórdidos
Quando eu falava desse temporal
Você não escutou
Você não quer acreditar
Mas isso é tão normal
Você não quer acreditar
E eu apenas era
Cavaleiro marginal lavado em ribeirão
Cavaleiro negro que viveu mistérios
Cavaleiro e senhor de casa e árvores
Sem querer descanso nem dominical
Cavaleiro marginal banhado em ribeirão
Conheci a torre e os cemitérios
Conheci as torres e os seus velórios
Quando olhava da janela lateral do quarto de dormir
Você não quer acreditar
Mas isso é tão normal
Você não quer acreditar
Mas isso é tão normal
Um cavaleiro marginal banhado em ribeirão
Você não quer acreditar
Esta canção foi feita em diamantina. Fernando escreveu a letra de
Paisagem da janela, sobre um tema de Lô, inspirado pelo cenário do hotel
onde estavam: quarto de Fernando “tinha janelas que se abriam para uma
igreja e o cemitério da cidade”20 Embora represente um cenário em especial,
esta canção parece representar um cenário de qualquer cidade em qualquer
época ao mesmo tempo em que guarda um tom do momento em que foi
criada. Eis uma qualidade intrínseca do texto literário presente nesta letra: a
multiplicidade de sentimentos aliada a um universalismo. Nada impede que
possamos fruir deste texto sem estas referências históricas, contudo a
possibilidade de interpretação amplia-se com elas.
Clube da Esquina nº 2 (de Lô Borges, Milton Nascimento e Márcio Borges) é
considerado por vários integrantes do “grupo” um hino da geração. É
importante lembrar que a música citada aparece no LP Clube da Esquina numa
versão instrumental, sendo a letra feita posteriormente por Márcio Borges em
1978, à revelia de Lô e Milton que achavam que não cabia letra nela, sendo só
uma música instrumental, conforme Márcio Borges nos relata. Nana Caymmi
queria gravar Clube da Esquina 2, porém como esta não possuía letra, ela
pediu a Márcio que colocasse letra. Ele fez a letra no dia seguinte e a entregou
para Nana. “Ela foi para o estúdio e gravou. Só depois do fato consumado é
que Bituca e Lô se rendem à evidência: Clube da Esquina 2 tinha letra”.21
Graças a Nana e ao talento de Márcio , podemos fruir deste texto poético
musical que possui uma das mais belas imagens da poesia brasileira. Esta
canção é gravada por Nana Caymmi e depois por Lô em LP de 1979, A via
láctea. Depois disso, confirmando a idéia de Clube da Esquina, ela é gravada
pelo próprio Milton e por Flávio Venturini, fazendo algum sucesso na década
vigente.
CLUBE DA ESQUINA Nº 2 (Lô Borges, Milton Nascimento e
Márcio Borges)
Porque se chamava moço
também se chamava estrada
viagem de ventania
nem lembra se olhou pra trás
ao primeiro passo aço aço aço
porque se chamavam homens
também se chamavam sonhos
e sonhos não envelhecem
em meio a tantos gases lacrimogêneos
ficam calmos calmos calmos calmos calmos
e lá se vai mais um dia
e basta contar compasso
e basta contar consigo
que a chama não tem pavio
de tudo se faz canção
e o coração na curva de um rio rio rio
e o coração na curva de um rio
e lá se vai mais um dia
e o rio de asfalto e gente
entorna pelas ladeiras
entope o meio fio
esquina mais de um milhão quer ver então
A gente gente gente gente gente gente
Essa letra reúne novamente alguns elementos constantes nos autores
em estudo, fazendo um resumo da estrada percorrida por seus participantes e
por quem viveu na época: estrada, ventania, sonhos, rio. Na primeira estrofe, a
imagem da fuga, do “pé na estrada” e ao primeiro passo já temos o aço
(foneticamente, a palavra passo contém a palavra aço) que pode simbolizar o
aço dos canhões, armas e balas usadas pela ditadura militar para reprimir
qualquer suspeito.
Na segunda estrofe, uma imagem belíssima relacionando o homem com
seus sonhos e mostrando que o máximo que os gases lacrimogêneos podem
fazer é adormecer os sonhos, pois estes nunca envelhecem e nem acabam por
uma ação violenta e brutal. Aqui vale lembrar Octavio Paz quando diz que a
imagem poética não pode ser dita de outra maneira. Esta imagem revive, recria
o clima da época de forma que não dá para trocar as palavras por outras
achando que se está dizendo o mesmo. Esta é uma das funções essenciais da
poesia que aparece no texto reforçado pela melodia e arranjo que destacam no
meio da canção o verso “e lá se vai mais um dia”, que tanto pode representar o
passar da vida, o passar dos dias comuns, como também o passar de mais um
dia na mesma situação, à espera de um amanhã melhor. Este verso, isolado no
meio da canção, revelando a importância existente no passar do dia, visto que
o dia seguinte pode trazer o novo e acabar com o período de escuridão. Este
verso retorna na quarta estrofe intensificando mais ainda a idéia desenvolvida.
Esta canção, sem dúvida, apresenta características fundamentais do
texto poético, como já foi dito, possuindo duplo sentido: tanto pode se referir ao
momento de viagens, sonhos e gases lacrimogêneos da década de 70, como
também estes vocábulos podem apresentar outros sentidos. Por exemplo,
“gases lacrimogêneos” podem simbolizar obstáculos que a vida apresenta para
podar sonhos e utopias.
Por fim, podemos ver a última estrofe como uma antevisão através da
poesia cantada do que iria acontecer em 1984: um milhão de pessoas nas
esquinas da Presidente Vargas com Rio Branco no Rio de Janeiro gritando
“diretas já”, justamente num dos locais onde aconteceram alguns dos mais
cruéis momentos proporcionados pela ditadura militar, como o avanço dos
cavalos do exército em direção das pessoas que saíam de missa realizada pela
morte do estudante Édson Luiz na Candelária. Neste grande evento, a poesia
cantada é entoada por vários artistas e pelo milhão de pessoas que ali estavam
clamando por democracia e eleições diretas. E Milton não podia faltar: estava
lá com outros grandes nomes da MPB, como Chico Buarque, MPB-4, Francis
Hime.
NOTAS:
*Verso da canção Canto Latino de Milton Nascimento e Rio Guerra
**Título da canção de Lô Borges e Ronaldo Bastos e nome do selo responsável
por várias publicações e performances durante a década de 70.
***Título da canção de Milton Nascimento e Fernando Brant.
1
BORGES, M. (1996) p.167.
2
ÂNGELO, N. Depoimento ao autor em 24/06/1998.
A coisa era mais um negócio de bairro lá em Belo Horizonte,
de garotada e que o Milton veio também passando por ali e
trouxe pra cá e depois simbolizou o negócio, porque quem
articulou, na verdade, de uma maneira mais flagrante foi o
Milton.
3
BORGES, M. (1996) p.217-221
4
Ibidem, p.221.
5
Ibidem, p.230.
6
Ibidem, p.239.
7
Por isso, estamos usando a palavra mineiros entre aspas, pois muitos que
fizeram parte do Clube da Esquina são cariocas, como Ronaldo Bastos, o
próprio Milton, embora se considere mineiro, Robertionho Silva, Luís Alves, Zé
Rodrix; Novelli é pernambucano, etc.
8
ALMANAQUE BIOTÔNICO VITALIDADE (1976), p.1.
9
PEREIRA, C.A.M (1981) p.273-274.
10
FOLHA DE SÃO PAULO (1996), ILUSTRADA p.5-1 Edição: Nacional Jul 31,
1996.
11
BORGES, M. (1996) p.256.
12
FERREIRA, A.B DE H./s.d./, 1.ed.
13
MOBY, A. (1994) p.137.
14
BORGES, M. (1996) p.263.
15
Ibidem, p 270.
16
PERRONE, C (1988) p.155.
17
BORGES, M. (1996) p.215.
18
PEREIRA, C.A.M. (1981) p.230-231
19
Ibidem, p.133.
20
BORGES, M. (1996) p.258.
21
Ibidem, p.336-337.
5 – A NOITE E O SONHO NO CLUBE DA ESQUINA: RESISTÊNCIA
CULTURAL PELAS ESQUINAS DOS ANOS 70
5.1 – A noite
Senhor, a noite veio e alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.
(FERNANDO PESSOA, Prece)*
Como já foi mencionado, a noite tem extrema importância no processo
criativo do Clube da Esquina, pois representa o momento dos encontros e,
sobretudo, o do cerceamento das liberdades individuais e coletivas.
Tal qual em Mensagem de Fernando Pessoa, a noite veio, tendo aqui
seu início em 1968. Em ambos, o sentido é semelhante, de um momento
obscuro, em que as pessoas perdem o direito de ser homens integralmente, já
que não lhes é permitido discutir sobre política, opinar, discordar e até pensar e
sonhar, como se fosse possível algum regime impedi-los disso, qualidades
inerentes ao ser humano e que nenhum sistema conseguirá impedir.
Em Mensagem, este poema “Prece” é o último da II parte, Mar
Portuguez, fechando um período áureo da história de Portugal, o das grandes
descobertas, e prenunciando uma fase ruim da história de Portugal, que é o
centro da III parte, o Encoberto, na qual há vários poemas com referências
noturnas, sombrias. É este teor – obviamente com diferenças que não cabem
ser discutidas nesta pesquisa – com inúmeras palavras e passagens do campo
semântico de noite, escuridão, encoberto, que se assemelha ao encontrado em
várias das canções do Clube da Esquina, em especial no fim dos anos 60 e no
início da década de 70, refletindo o o início da longa noite brasileira. Prece
inaugura esta fase em Mensagem, enquanto Clube da Esquina a inaugura
aqui. Lá, “a noite veio e a alma é vil”, aqui, “noite chegou outra vez”. Vale
lembrar que este vocábulo noite tem sido usado para representar momentos
em que regimes ditatoriais se instalam acabando com a possibilidade de
liberdade e, ainda, que foi também utilizado por muitos outros poetas e/ou
letristas brasileiros deste período, como Capinam: “Antes que a definitiva
noite/Se espalhe em Latino América”.1
Esta situação tente a levar as pessoas a um isolamento natural, a um
individualismo, já que estão em constante ameaça. É o que percebemos em Os
Povos (de Milton e Márcio Borges), canção incluída no LP Clube da Esquina,
onde percebemos a insistência dos autores em reforçar esta idéia, reiterando
as palavras solidão e só, como em “a gente aprende a viver só”, uma
obrigatoriedade imposta pelo regime. A letra representa bem a idéia de “noite”,
destacando-se a terceira estrofe.
OS POVOS (Milton Nascimento e Márcio Borges)
À beira do mundo
Portão de ferro, aldeia morta, multidão
Meu povo, meu povo
Não quis saber do que é novo
Nunca mais
É minha cidade, aldeia morta, anel de ouro, meu amor
Na beira da vida a gente torna a se encontrar só
Casa iluminada, portão de ferro, cadeado coração
E eu reconquistado
Vou passeando, passeando ir morrer
Perto de seus olhos, anel de ouro
Aniversário, meu amor
Em minha cidade
A gente aprende a viver só
Ah! Um dia, qualquer dia de calor
É sempre mais um dia de lembrar
A cordilheira de sonhos que a noite apagou
É minha cidade
Portão de ouro, aldeia morta solidão
Meu povo, meu povo
Aldeia morta, cadeado coração
E eu reconquistado
Vou caminhando, caminhando ir morrer
Dentro de seus braços
A gente aprende a morrer só
Meu povo, meu povo
Pela cidade a viver só
Nestes versos, a noite aparece apagando a enorme quantidade de
sonhos imaginados para o nosso país, sendo reforçados pela melodia e o
arranjo que nos dão a sensação de um momento doloroso, tenso, torturante,
marcado muito bem por acordes repetitivos do violão. É uma construção
musical que dá a impressão de um momento angustiante e até mesmo de uma
câmara de tortura auditiva.
Ainda sobre a canção vale a pena observar o relato de Márcio Borges,
no qual ele reproduz um comentário de um garoto venezuelano que ouvira a
música:
Os povos, aliás, proporcionou a meu parceiro uma das
grandes emoções de sua vida. (...) um deles (um garoto)
tomou a palavra e deu uma explicação totalmente
revolucionária para as metáforas de minha letra. Bituca ficou
abismado com a profundidade das idéias contidas na cabeça
daquele garoto. (...) Pouco tempo depois, o garoto mandou
notícias: tinha pegado em armas, ido ser guerrilheiro,
desaparecendo nas montanhas de sua pátria.
No primeiro disco solo de Lô Borges, o do tênis na capa, de 1972, temos
também a presença insistente da noite. Neste LP, todas as músicas são de sua
autoria, algumas em parceria com Márcio Borges, uma com Ronaldo Bastos e
uma com Tavinho Moura, destacando-se ainda a participação de integrantes do
Clube da Esquina, tocando algum instrumento e até participando do vocal,
como: Beto Guedes, Toninho Horta, Nélson Ângelo, Novelli, Robertinho, Zé
Geraldo, Flávio.
A maior parte das canções deste disco fala de noite, escuro, tristeza, o
que revela o momento pelo qual os autores e todo o país passavam. Este clima
é acompanhado e reforçado pelas melodias. Começando pelo Caçador (de Lô
e Márcio Borges) que no fim da noite quer caçar o poeta. Este caçador é uma
metáfora que representa o regime ditatorial ou seu instrumento concreto de
intimidação – a polícia – que pretende acabar com qualquer reação contrária,
inclusive o sonho, aqui representado pela palavra “lua”. É interessante notar a
certeza do homem de que o sistema está atrás dele (“sei que ele vem me
procurar”), mas mesmo assim procura manter a calma para poder fugir e não
deixar o caçador acertar o seu coração, que possui um duplo sentido: a morte
real com um tiro no ração, mas também a morte de seus ideais e seus sonhos.
E a fuga é necessária, pois, de repente amanhece, a luz apaga a escuridão e
não há mais tempo de ser pego. O “caçador” com o “revolver apontado para a
lua!” pode representar ainda a perseguição do sistema aos idealistas, utópicos,
representados pela palavra lua.
O CAÇADOR (Lô Borges e Márcio Borges)
No fim da noite eu escuto o caçador
Com seu revolver apontado para a lua
O meu cabelo
Preciso me esconder na tempestade ou no chão
Sei que ele vem me procurar
Não tenho medo
Eu só quero ir em paz com minha sombra
Eu só quero aquela lua no fim da rua
Não deixe o caçador
Mirar em cima de você
Ele quer achar seu coração
Talvez o caçador não tenha tempo
De atirar
Quando, de repente, amanhecer
Em Homem da rua (de Lô Borges) temos “sonho no chão” que pode
representar tanto o “pé na estrada”, quanto o sonho lá em baixo, o fim do
sonho, imagem semelhante à usada por Fernando Brant nas canções Saídas e
Bandeiras. É importante observar como esta dualidade sonho X terra/chão
aparece mais uma vez em canções deste período. Além de representar o
conflito da época, é uma questão que sempre acompanhou o homem e, por
isso, constante na poesia de diferentes períodos, dentre os quais podemos
destacar o Barroco, que por sinal teve um grande destaque nas artes de Minas
Gerais. Esta música mostra bem o perfil da época numa oposição entre noite e
dia, apagar e não apagar e o quanto era importante manter-se aceso, apesar
da triste situação. Nada, nem uma festa apaga o “estranho silêncio da rua” e o
“incêndio calado no homem que passa por mim”, reforçando o que já foi dito
sobre solidão, ao mesmo tempo em que simboliza muito bem a autocensura a
que muitas pessoas viam-se obrigadas a submeter-se. Enfim, é uma letra
construída em cima de antíteses e paradoxos, sendo seu auge o verso “um
incêndio calado no homem” que causa um estranhamento inicial, revelando-se
depois uma imagem forte, na qual, “incêndio” pode referir-se à vontade grande
de se mudar a situação, ao mesmo tempo em que também pode estar
relacionado à vontade de grito e protesto sufocados, ao “grito contido” de
Apesar de você.3
HOMEM DA RUA (Lô Borges)
Sonho no chão
E um dia, uma estrada
Um estranho silêncio na rua
Um incêndio calado no homem
Que passa por mim
Toda manhã acredito nas histórias
Em todas as histórias do mundo
E toda vez que o velho sol se apaga
Preciso e procuro não me apagar
E quando chego na minha cama
Eu te imagino melhor
Sonho no chão
Uma festa não apaga
O estranho silêncio da rua
O estranho silêncio da rua
Por tudo isso, o homem tem que aprender “a ser como o machado que
despreza o perfume do sândalo”, pois é impossível aceitar tudo calado diante
de realidade tão negra. Nos versos de Como o machado, Lô altera
radicalmente o sentido original do provérbio que diz: “Sê como o sândalo que
perfuma o machado que o fere”. Não da para ficar “perfumando” quem está te
ferindo, entretanto o momento requer cuidado, como está nítido nos dois
últimos versos na comparação feita com o gato.
COMO O MACHADO (Lô Borges)
Porque ando triste eu sei
É que eu vivo na rua
Espero um pouco mais este frio
Espero um pouco mais, e aprendi
A ser como o machado
Que despreza o perfume do sândalo!
A verdade é negra, eu sei
E o homem é mau
Espero um pouco mais este ódio
Espero um pouco mais e aprendi
A ser como o meu gato
Que descansa com os olhos abertos!
Podemos ainda relacionar o “machado” desta canção com a “faca
amolada” da parceria de Milton com Ronaldo Bastos feita anos depois. Ambos,
elementos de corte, simbolizam “armas” de enfrentamento ao regime, ainda
que situado apenas no campo da poesia cantada e da imaginação.
Outra canção, Eu sou como você é, mostra a mesma situação:
noite/escuro X amanhã. A noite, o momento presente; o amanhã, o sonho de
mudança. Ressalta-se aqui um termo bastante usado pelos aparelhos de
guerrilha quando um dos companheiros de um grupo era capturado pela
repressão: “cair”. E Lô incorpora-o ao seu texto, dando-nos uma visão, um
“flash” do período.
EU SOU COMO VOCÊ É (Lô Borges)
Meu irmão eu sou como você é
Saí do mesmo escuro e ando por aí
Toda noite eu sei que amanhã tem mais
Que a gente muda e continua a sonhar
Aprendendo
De manhã não sei como começar
Tantas emoções contidas no mesmo lugar
Ando devagar para não cair
Mais de mil abismos me esperam no jantar
Aprendendo
Resumindo, este disco de Lô, apesar de uma simplicidade aparente nas
letras, oferece-nos um bom retrato da época através da poesia cantada, sendo
um dos melhores retratos poético-musicais dos anos 70. o tom triste e noturno
do disco proporcionado pelas melodias aliadas a letras aparentemente
ingênuas e despretensiosas reflete muito bem este período escuro e obscuro
de nossa história. Na verdade, podem ter sido feitas despretensiosamente,
mas, como vimos, no fundo, confirmam poética e musicalmente o período de
escuridão.
Também podemos relacionar este disco com uma temática que era
constante nos poetas “marginais” da década de 70: o cotidiano das ruas, o diaa-dia. As letras nos revelam o clima de apreensão, cautela e medo que reinava
nas ruas das cidades e ainda a violência. Contudo, esta referência não é direta,
é feita de metáforas e comparações, como “caçador”, “cair”, “abismo”,
“machado”, “revolver”, “o meu cabelo”.
É exatamente no dia-a-dia, no cotidiano da ‘rua’ – (...) – que
os diversos autores vão se defrontar com um dado que
percorre boa parte dos textos: a violência. Tanto uma
violência mais abstrata, menos diretamente voltada para um
ponto específico, quanto uma outra concreta, como a
violência policial, p. ex. (...)4
Falando sobre a década de 70, Ronaldo Bastos faz uma declaração
interessante ao jornal “O Globo” de 27/04/95: “confesso que me falta o talento
de memorialista para captar o cheiro daqueles tempos e traduzi-los para os
narizes de agora”.5 E precisa ser memorialista? Ele, Lô, Márcio, Milton,
Fernando Brant com suas canções conseguem, de maneira poética, passar o
“cheiro daqueles tempos” para quem não viveu ou era muito pequeno na
época.
“Nada será como antes” e “amanhã ou depois de amanhã resistindo na
boca da noite” esta fase obscura passará e poderemos viver em paz e com
liberdade. Além desta oposição noite X amanhã, vale registrar que, em Nada
será como antes (de Milton e Ronaldo Bastos) aparecem duas perguntas muito
freqüentes na época em relação aos amigos “sumidos” pelo regime militar:
“Que notícias me dão dos amigos?/que notícias me dão de você?”.
NADA SERÁ COMO ANTES (Milton Nascimento e Ronaldo
Bastos)
Eu já estou com o pé nessa estrada
Qualquer dia a gente se vê
Sei que nada será como antes, amanhã
Que notícias me dão dos amigos?
Que notícias me dão de você?
Alvoroço em meu coração
Amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite
Um gosto de sol
Num domingo qualquer, qualquer hora
Ventania em qualquer direção
Sei que nada será como antes, amanhã
Que notícias me dão dos amigos?
Que notícias me dão de você
Sei que nada será como está
Amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite
Um gosto de sol
Ronaldo Bastos e Milton Nascimento nos passam mais um pouco do
cheiro daqueles tempos: a fé, a crença em seus ideais, a paixão por eles de
maneira impulsiva; já a faca tem que estar amolada, pronta para o corte,
representando a luta e os instrumentos concretos ou abstratos para o
enfrentamento. Esta faca amolada significa estar pronto para cortar, ir a luta e
não ficar passivo. Aqui já um certo prenuncio do dia, da luz tão sonhada; a
palavra de ordem é não esperar mais aquela madrugada. Esta música faz parte
do LP Minas de Milton Nascimento (1975) que pode ser visto como uma
continuidade do trabalho coletivo do Clube da Esquina, visto que há várias
participações de músicos e compositores do LP de 1972. Este disco, assim
como o subseqüente Geraes, apresenta uma marca mineira muito grande,
encaixando-se no grupo de discos conceituais.
FÉ CEGA FACA AMOLADA (Milton Nascimento e Ronaldo
Bastos)
Agora não pergunto mais aonde vai a estrada
Agora não espero mais aquela madrugada
Vai ser, vai ser, vai ter que ser, vai ser, faca amolada
O brilho cego de paixão e fé faca amolada
Deixar a sua luz brilhar e ser muito tranqüilo
Deixar o seu amor crescer e ser muito tranqüilo
Brilhar, brilhar, acontecer, brilhar faca amolada
Irmão, irmã, irmã, irmão de fé faca amolada
Plantar o trigo e refazer o pão de cada dia
Beber o vinho e renascer na luz de todo dia
A fé, a fé, paixão e fé, a faca amolada
O chão, o chão, o sal da terra, o chão faca amolada
Deixar a sua luz brilhar no pão de todo dia
Deixar o seu amor crescer na luz de cada dia
Vai ser, vai ser, vai ter que ser, vai ser muito tranqüilo
O brilho cego de paixão e fé faca amolada
5.2 – Milagre dos peixes: censura nas esquinas
Você me corta um verso, eu escrevo outro
Você me prende vivo, eu escapo morto
(MAURÍCIO TAPAJÓS E PAULO CÉSAR PINHEIRO,
Pesadelo)
Os versos desta canção sintetizam bem o clima do início da décasa de
70, em especial a censura e a perseguição que vários de nossos
compositores/poetas populares sofreriam, muitas vezes sendo intimados a
depor, como foi o caso de Chico Buarque e tantos outros. O Clube da Esquina
não escaparia da censura e intimações.
Todavia, curiosamente, esta letra passou pelas “garras” da censura e foi
cantada por Chico Buarque e MPB-4 no histórico Banquete de Mendigos,
evento organizado por Jards Macalé em comemoração ao 25º ano da
Declaração Universal dos Direitos Humanos realizado no MAM (Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro) em dezembro de 1973, transformando-se num “ato
de resistência musical à ditadura”.6 Outros shows ocorridos na década de 70
também funcionaram como atos de resistência musical e poética à ditadura,
dentre os quais destaca-se o Milagre dos Peixes de Milton Nascimento e Som
Imaginário, que, para este show, sofre alterações em sua formação: entram
Toninho Horta e Nivaldo Ornelas e saem Tavito e Zé Rodrix.
Paralelamente, a televisão brasileira, ou melhor, a Rede Globo se
expande com a ajuda do regime militar. Para provar isto, pode-se citar as
relações entre a Globo e a Time-Life, empresa americana, que foram objeto de
uma CPI instaurada pelo congresso, mas arquivada pelo governo Costa e
Silva.
(...) Quatro anos depois [1966], era instaurada uma CPI
sobre as relações Globo-Time-Life. E ficou-se sabendo que
homens da influência dos ministros Carlos Medeiros e Silva,
da justiça, e Luiz Gonzaga Nascimento e Silva, do trabalho,
participaram das negociações. A CPI decidiu que os acordos
feriam a Constituição. A interferência de um grupo
estrangeiro na orientação de uma empresa de comunicação
era frontalmente contrária aos interesses nacionais,
entendiam os deputados. (...) Na ocasião do escândalo
Time-Life, a Globo era uma emissora fraca, pouco rentável,
de baixa audiência. Seu crescimento se dá, justamente, a
partir de 69, junto com o “boom” da telecomunicação no
país. (...)
Durante o período do “milagre brasileiro”, a televisão funciona como o
principal instrumento de comunicação do governo, corroborando a Política de
Integração Nacional, através do programa como “Amaral Neto, o Repórter”. O
governo, por sua vez, facilita as condições para este padrão global e incentivo
à sua ideologia. Na verdade, há uma ajuda recíproca que pode ser comprovada
no seguinte trecho da série Anos 70 – Televisão, fonte importante para
aprofundamento deste aspecto:
Durante a convenção das emissoras da Rede Globo de
Televisão, em 1971, Walter Clarck através de um discurso,
“elogia o governo Médici pela disposição em compor, via
Embratel, novas tarifas para Estações. Assim, a Política de
Integração Nacional poderá ter melhor colaboração da iniciativa
privada no setor de comunicações”.8
A televisão inova-se tecnicamente, chegam os primeiros televisores a
cores em 1971, os primeiros programas coloridos, contrastando com a
realidade em preto e branco: os homens não têm liberdade, a censura continua
nos meios de comunicação, os últimos focos guerrilheiros são dizimados.
Faltam cores na realidade brasileira; daí a explicação para tantas letras do
grupo insistirem em imagens sem cores, com grande incidência nas letras de
palavras do campo semântico de “noite” e “escuridão”. Enfim, falta liberdade
política, social, cultural, artística; tudo escamoteado por telas que falam
colorido.
MILAGRE DOS PEIXES (Milton Nascimento e Fernando
Brant)
Eu vejo esses peixes e dou de coração
Eu vejo essas matas e dou de coração
À natureza
Telas falam colorido
De crianças coloridas
De um gênio, televisor
O sinal de velhos tempos:
Morte, morte, morte ao amor
Eles não falam do mar e dos peixes
Nem deixam ver a moça, pura canção
Nem ver nascer a flor
Nem ver nascer o sol
Eu apenas sou um a mais, um a mais
A falar dessa dor, a dessa dor
Desenhando nessas pedras
Tenho em mim todas as cores
Quando falo coisas reais
E num silêncio dessa natureza
Eu que amo meus amigos
Livre, quero poder dizer:
Eu tenho esses peixes e dou de coração
Eu tenho essas matas e dou de coração
Nesta
canção,
Milagre
dos
Peixes,
temos
uma
bela
imagem
contestatória do regime que, entretanto, passou despercebido pela ditadura,
visto que há outras músicas do disco de mesmo nome que foram censuradas.
Mar e peixes podem representar a vida e os homens, elementos que não eram
considerados na época. E, no final do texto uma esperança de liberdade.
Contrapondo-se a idéia do “milagre econômico”, os autores apresentam
o “milagre dos peixes”, da vida, da natureza, do amor, da vida. Enquanto o
governo militar vendia a imagem de desenvolvimento econômico e de “ame-o
ou deixe-o”, anulando através da repressão armada idéias contrárias e
deixando de lado os verdadeiros problemas nacionais de fome, pobreza; a
canção mostra através de imagens poéticas a preocupação dos autores em
falar da “nossa dor” em meio a um “silêncio dessa natureza”, “um incêndio
calado” (da canção Homem da rua de Lô) dos homens, procurando mostrar
que a realidade apregoada e disseminada pelas tevês não era boa assim. Ou
seja, as telas coloridas procuravam passar uma imagem amena e de perfeição
do regime.
O início da década de 70 foi um dos períodos em que a censura mais agiu e
censurou os artistas brasileiros, em especial, os compositores e cantores. O
governo militar vetava músicas de vários deles, sendo um dos campeões de
obras censuradas e/ou mutiladas Chico Buarque. Os compositores do Clube da
Esquina não escaparam dos vetos e intimações da Censura Federal, sendo o
melhor exemplo o disco Milagre dos Peixes de 1973, que teve três faixas
censuradas. E, não por mera coincidência, este também foi o ano em que
Chico, já conhecido da Censura, teve seu disco que se chamaria Calabar,
incluindo músicas da peça de mesmo nome, todo mutilado: letras vetadas na
íntegra ou alteradas forçosamente. Do disco de Milton, foram censuradas as
letras de Os escravos de jô de (de Milton Nascimento e Fernando Brant), Hoje
é dia de El Rey (de Milton Nascimento e Márcio Borges) e Cadê (de Milton
Nascimento e Ruy Guerra). No entanto, a censura deixou passar talvez a letra
mais contestatória ao regime: a faixa que deu nome a esse disco lançado em
73 e depois ao álbum duplo gravado ao vivo no Teatro Municipal de São Paulo
nos dia s 07 e 08 de 1974.
Hoje é dia de El Rey talvez tenha sido censurada por apresentar
referências mais diretas e contundentes ao regime, sob o nome El Rey e com
versos como “jogai soldados na rua”, enquanto Milagre dos peixes explorava
mais uma linguagem simbólica, a linguagem, a linguagem da “fresta”. A
começar do título que remete à religião, à bíblia, mas aqui se refere aos
homens. Depois, o contraste “andor de nossos novos santos” e “o sinal de
velhos tempos”. Os “novos santos” tanto podem ser as imagens televisivas,
como o próprio governo e os militares que prometiam uma grande nação, um
desenvolvimento monstruoso: o “milagre econômico”. Entretanto, eles deixaram
de lado os “peixes”, os homens, esqueceram a realidade dos homens, a dor, o
sofrimento da maior parte dos brasileiros. As conseqüências desse “milagre” e
suas obras faraônicas são sentidas até hoje com o aprofundamento das
desigualdades sociais e aumento da dívida externa do país. Eis a letra
censurada:
HOJE É DIA DE EL REY (Milton Nascimento e Márcio
Borges)
Filho – Não pode o noivo mais ser feliz
Não pode viver em paz com seu amor
Não pode o justo sobreviver
Se hoje esqueceu o que é bem-querer
Rufai tambores saudando El Rey
Nosso amo e senhor e dono da lei
Soai clarins pois o dia do ódio
E o dia do não são por El Rey
Pai – Filho meu ódio você tem
Mas El Rey quer viver só de amor
Sem clarins e sem mais tambor
Vá dizer: nosso dia é de amor
Filho – Juntai as muitas mentiras
Jogai os soldados na rua
Nada sabeis desta terra
Hoje é o dia da lua
Pai – Filho meu cadê teu amor
Nosso Rey está sofrendo a sua dor
Filho – Leva daqui tuas armas
Então cantar poderia
Mas nos teus campos de guerra
Hoje morreu a poesia
Ambos – El Rey virá salvar...
Pai – meu filho você tem razão
Mas acho que não é em tudo
Se o mundo fosse o que pensa
Estava no mesmo lugar
Pai você não tinha agora
E hoje pior ia estar
Filho – Matai o amor, pouco importa
Mas outro haverá de surgir
O mundo é pra frente que anda
Mas tudo está como está
Hoje então e agora
Pior não podia ficar
Ambos – Largue seu dono e procure nova alegria
Se hoje é triste e saudade pode matar
Vem, amizade não pode ser com maldade
Se hoje é triste a verdade
Procure nova poesia
Procure nova alegria
Para amanhã...
É uma letra construída em forma de diálogo que revela um conflito de
idéias quase sempre entre pai e filho. Todavia assume uma significação toda
especial neste momento em que a juventude traz para si responsabilidade e a
missão de mudar o mundo. Pai e filho também podem se referir,
respectivamente, a gerações ou pessoas que apoiaram o golpe militar em 64 e
aos filhos dessa geração ou pessoas que se opuseram ao golpe. Enquanto
isso, El Rey apresenta o poder absoluto e autoritário do governo militar. É
interessante notar como o filho se expressa em relação ao “dono da lei”:
usando os verbos na segunda pessoa do plural como, geralmente, se dirige a
reis ou personalidade “em sinal de cortesia ou de respeito, ou a um santo”.10
Este uso do verbo reforça o caráter absolutista do governo. Os momentos em
que ambos falam juntos, demonstrando concordar um com o outro, revelam, na
primeira fala, uma crença na salvação através de um ser que virá,
aproximando-se do que na História de Portugal chama-se de sebastianismo, a
eterna espera da volta do Rei D. Sebastião para a nação reviver seus dias de
glória. Contudo, a última estrofe revela a coincidência final, simbolizando o
descontentamento geral com os arbítrios e desmandos da ditadura militar por
pessoas de gerações diferentes e até entre as que, inicialmente, apoiaram o
golpe de 64.
Ainda sobre a censura à letra dessa música, vale ressaltar que, além de
ser vetada na íntegra, Milton é chamado a depor no DOPS. Na gravação,
aparecem apenas fragmentos de versos como a denunciar a censura à letra:
“Filho meu...(...) Meu filho...” Confirmando a disposição de passar isso na
gravação Milton dizia: “Vou gravar de qualquer jeito. Vou botar no som tudo o
que eles tiraram na letra. Eles vão ver comigo...” A “teimosia” e a “raiva” de
Milton fizeram com que esta e as outras canções permanecessem no
repertório.11
Os Escravos de Jô (Milton Nascimento e Fernando Brant) é outra das
censuradas. No encarte do cd, não aparece a letra e, na gravação, há
pequenas partes onde a letra é cantada por Clementina de Jesus com coro de
Milton, Naná, Sirlan, Nico Borges e Telo Borges.
Saio do trabalho é
Volto para casa ê
Não lembro de canseira maior
Em tudo é o mesmo suor
Em tudo é o mesmo suor
(...)
Em tudo é o mesmo suor (...)12
Efeitos vocais de Naná e Milton juntamente com a música tentam cobrir
as lacunas da letra censurada, conseguindo em parte, pois a audição da
música passa uma revolta através do arranjo vocal, musical e da percussão. É
impressionante como a música, apenas com estas pequenas inserções da
letra, consegue passar a essência do conteúdo poético e político da letra.
Outro detalhe importante é que, mesmo as letras tendo sido censuradas,
no encarte aparecem as indicações separadas: Os escravos de Jó – Música de
Milton Nascimento, letra de Fernando Brant; Hoje é dia de El Rey – Música de
Milton Nascimento e letra de Márcio Borges; Cadê – Música de Milton
Nascimento e letra de Ruy Guerra e Milton Nascimento. Este vazio e letra
registrado no encarte também diz muito, podendo ser visto como uma forma de
denunciar os cortes feitos.
Enfim, é um disco em que os sons não-verbais (notas musicais, gritos,
efeitos vocais e sonoros, percussão, instrumentos) têm um destaque especial e
parecem dizer tudo aquilo que não foi permitido através de palavras. Pequenas
inserções das letras incorporam-se ao protesto musical, ratificando-o, como,
por exemplo, na sugestiva canção A chamada (de Milton Nascimento) que não
possui letra, mas traz no meio da música a seguinte seqüência verbal
suplicante: “Eu to cansado, me salva, tô cansado”.13
5.3 – O sonho não acabou
Ó nem o tempo, amigo
Nem a força bruta pode um sonho apagar
(BETO GUEDES E RONALDO BASTOS, Canção do novo
mundo)
John Lennon diz que o sonho acabou no início da década de 70 e inicia
carreira solo, contudo temos no Brasil um grupo de jovens envoltos pelo pó da
estrada, sonhando juntos um país, uma vida melhor: o Clube da Esquina.
Falando pelo grupo, Ronaldo Bastos diz em entrevista a “O Globo”: “Nós
éramos jovens e somente nos interessava a revolução. Abominávamos a
ignorância da direita e a burrice de certos setores da esquerda. Queríamos
mudar o mundo e estivemos perto de mudá-lo em 1968”.14
Retomando a Canção do novo mundo, feita em homenagem ao ídolo de
alguns dos participantes do Clube – John Lennon – após sua morte, podemos
ampliar o sentido da força bruta, a que os autores se referem. Não só a que
matou Lennon, mas também a força bruta dos regimes autoritários,
antidemocráticos e repressores. No caso brasileiro, o regime militar instaurado
em 1964 e endurecido em 68 fez com que o sonho ficasse adormecido, porém
ela não morre e retoma.
“Segue a vida a rolar”, “pé na estrada”, “pó de estrelas” e o sonho
contínuo pela via-láctea movendo o homem. Percebemos a continuidade dos
ideais do Clube na música Via-láctea (de Lô Borges e Ronaldo Bastos),
segundo LP solo de Lô Borges de mesmo nome da canção. Esta letra tem uma
particularidade interessante: uma estrutura entrecortada, fragmentada que dá a
impressão de serem vários “flashes” de todo um período vivido por pessoas
que acreditaram ser possível sonhar um país diferente e melhor.
VIA-LÁCTEA (Lô Borges e Ronaldo Bastos)
Vendaval
Carrossel
Segue a vida a rolar
Pé na estrada
Pó de estrelas
Coração vulgar
Que navega no céu
E navega no ar
Grão de areia vagar
Caravela
Pão e mel
Segue o circo a rolar
Picadeiros
Primaveras
Coração vulgar
Que navega no céu
E navega no ar
Grão de areia a viver na espuma do mar
O grão de tão pequeno ser tão grande o que a gente é
Ter esse destino de pessoa que sonhou
Que navega no céu
E navega no ar
Grão de areia a bailar no fundo do azul
E anda que nem bola, como a vida quando quer brotar
Rola como anda, que nem fonte de calor
Barricadas
Cordilheiras
Coração vulgar
Que navega no céu
E navega no ar
Grão de areia no ar
Aventuras
Cicatrizes
Segue o mundo a rodar
Diamantes
Universo
Coração vulgar
Que navega no céu
E navega no ar
Grão de areia a vagar na espuma do mar
A utopia prossegue no LP Clube da Esquina 2, de Milton Nascimento,
com a ampliação do Clube de 72. embora um disco de Milton, conta com a
participação dos companheiros iniciais, juntamente com outros que ou
participaram do primeiro LP Clube da Esquina, ou entraram depois nesse
grupo. Era um novo projeto de Milton: ”juntar todos os seus amigos no estúdio
para outra celebração”.15 Esta celebração reuniu um grupo bem variado de
pessoas, a começar das autorias das canções. Enquanto o LP Clube da
Esquina de 1972, tinha canções quase que exclusivamente do “quinteto”, o
Clube da Esquina 2 apresenta também canções de outras pessoas que ao
longo da década de 70 estiveram junto com Milton (alguns desses até
participando do primeiro Clube da Esquina tocando), como Beto Guedes,
Nélson Ângelo, Toninho Horta, Novelli, Flávio Venturini, Murilo Antunes,
Tavinho Moura, Joyce, Mauricio Maestro e Ruy Guerra. Nas autorias das
músicas há ainda nomes como os de: Paulo Jobim, Chico Buarque, Danilo
Caymmi, Ana Terra, Violeta Parra e Pablo Milanes e até um poema de Carlos
Drummond de Andrade – Canção Amiga – musicado por Milton Nascimento.
Participam dele tocando ou cantando – além de Milton, Lô e Beto Guedes –
entre outros: Wagner Tiso, Flávio Venturini, Murilo Antunes, Nélson Ângelo,
Toninho Horta, Tavinho Moura, Novelli. Enfim, a ampliação conta com várias
participações importantes, seja na autoria das músicas, seja cantando,
tocando, ou ainda as três opções. Há uma grande participação de músicos,
compositores e cantores que não faziam parte do “Clube”, seja tocando,
cantando, fazendo parte dos coros, etc. Alguns destes são: Chico Buarque,
Francis Hime, Elis Regina, Ruy Guerra, Danilo Caymmi, Paulo Jobim, Joyce,
Maurício Maestro, Gonzaguinha, Boca, Livre, César Camargo Mariano.
Este álbum duplo marca também a ampliação do intercâmbio poético
musical e cultural latino-americano com duas músicas: Casamiento de Negros
(música recolhida e adaptada do folclore chileno por Violeta Parro, última
estrofe de Polo Cabrera) e Cancion por la unidad de Latino America (de Pablo
Milanes e Chico Buarque). Esta última simboliza muito bem o espirito deste
disco, que tinha o objetivo de re-unir as pessoas que durante os anos setenta
estiveram quase sempre juntas, compondo, tocando, resistindo contra o regime
através das canções, ao mesmo tempo em que propunha uma união maior da
arte, da música, da poesia, da cultura e da política, em seu sentido maior, dos
povos latino-americanos. A tão sonhada unidade política e cultural realiza-se,
de certa forma, no Clube da Esquina 2.
Este disco já apresenta um tom diferente em relação à noite. A primeira
canção do álbum duplo, Credo (de Milton Nascimento e Fernando Brant),
marca o início de “um sonho que vai ter de ser real” e também um novo período
nas composições e quem sabe no país. Consultando o Novo Dicionário Aurélio,
podemos verificar a definição que melhor se encaixa para credo na música:
“preceitos ou normas por que se rege uma pessoa, um partido, uma seita,
etc”16. O preceito que as pessoas devem seguir agora é acender a esperança e
apagar a escuridão, espalhar as sementes da liberdade e ter fé no nosso povo
que está acordando de uma longa noite, para que possamos construir um
mundo novo e sem repressão. Percebe-se uma nítida mudança no enfoque
dado à noite. Aqui ela aparece ao lado da esperança, da juventude, do novo,
diferentemente de Os povos onde o povo tem medo do novo, e representa o
início do despertar, o começo de uma nova fase. Enfim, retrata um astral mais
positivo que vai ao encontro histórico de tímido afrouxamento do regime (final
dos anos 70).
CREDO (Milton Nascimento e Fernando Brant)
Caminhando pela noite de nossa cidade
Acendendo a esperança e apagando a escuridão
Vamos, caminhando pelas ruas de nossa cidade
Viver derramando a juventude pelos corações
Tenha fé no nosso povo que ele resiste
Tenha fé no nosso povo que ele insiste
E acorda novo, forte, alegre, cheio de paixão
Vamos, caminhando de mãos dadas com a alma nova
Viver semeando a liberdade em cada coração
Tenha fé no nosso povo que ele acorda
Tenha fé no nosso povo que ele assusta
Caminhando e vivendo com a alma aberta
Aquecidos pelo sol que vem depois do temporal
Vamos, companheiro pelas ruas de nossa cidade
Cantar semeando um sonho que vai ter de ser real
Caminhemos pela noite com a esperança
Caminhemos pela noite com a juventude
Esta canção contrasta com outras anteriores pelo fato de apresentar
uma série de vocábulos do campo semântico de luz, energia, vitalidade:
juventude, fé, alegre, paixão, forte, novo. Isto reforça o que foi dito acima,
mostrando que seria possível uma mudança de tal quadro. Outro aspecto
importante é a citação na gravação de outra canção do álbum duplo Cube da
Esquina, San Vicente, que ressalta o contraste entre o início da década e o
final.
Para terminar, duas canções do mesmo LP que possuem a mesma
melodia com pequenas alterações no arranjo, mas com letras diferentes. Vale a
pena recontar o processo de criação destas canções: Milton havia feito uma
melodia e a entregara a Fernando e a Márcio, dizendo que era para eles
refletirem sobre “o que foi feito devera”.17 É uma citação da própria obra, Vera
Cruz (de Milton e Márcio), feita no fim da década de 60 e tentativa de obraprima por parte de Márcio. O resultado foi a criação de duas obras de arte: a
primeira, O que foi feito deverá (de Milton e Fernando Brant) e a Segunda O
que foi feito de vera (de Milton e Márcio Borges), cantadas por Milton e Elis
Regina com vocal de Lô Borges e Gonzaguinha. São duas canções que fazem
uma retrospectiva da trajetória percorrida pelo Clube da Esquina de 68 a 78.
Na primeira temos a indagação sobre o que foi feito com tudo o que foi
sonhado, com a vida e com o amor. E o “verso menino” fica em nossa cabeça
para manter vivas para sempre as sensações da época e como foi duro este
período. Não esquecer jamais que “se muito vale o já feito/ mas vale o que
será”, ou seja, não esquecer de viver o presente, porém sempre com a imagem
do passado a nos fazer lembrar que “outras manhãs plenas de sol e de luz
virão”. E a imagem diz muito mais que as palavras. Como já foi dito, retomando
Octavio Paz, a imagem revive, recria, nos coloca diante do fato, passado,
presente ou futuro. Esta idéia pode ser resumida com uma frase de Augusto
Boal ouvida num programa de televisão que dizia mais ou menos: “A gente
deve olhar/conhecer o passado para melhor viver o presente e inventar o
futuro”.18
O QUE FOI FEITO DEVERÁ (Milton Nascimento e Fernando
Brant)
O que foi feito amigo
De tudo que a gente sonhou
O que foi feito da vida
O que foi feito do amor
Quisera encontrar
Aquele verso menino
Que escrevi a tantos anos atrás
Falo assim sem saudade
Falo assim por saber
Se muito vale o já feito
Mas vale o que será
E o que foi feito
É preciso conhecer
Para melhor prosseguir
Falo assim sem tristeza
Falo por acreditar
Que é cobrado o que fomos
Que nós iremos crescer
Outros outubros virão
Outras manhãs plenas de sol e de luz
Na segunda, temos um duplo sentido logo no título, precisamente na
expressão ”de vera”. Um sentido é o que foi feito de Vera Cruz, primeiro nome
dado ao Brasil; o outro significa para valer, deveras. Podemos ainda juntar os
dois: o que foi feito deveras do Brasil? Na realidade, já falamos bastante sobre
o que fizeram: ameaçaram, mataram, esquartejaram, durante um longo tempo,
a nossa liberdade. Nos versos desta canção há ainda o ressurgimento do
homem íntegro, “o homem que eu era voltou”, podendo não só pensar, sentir e
sonhar, como também se reunir livremente, falar, opinar, manifestar-se.
O QUE FOI FEITO DE VERA (Milton Nascimento e Márcio
Borges)
Alertem todos alarmas
Que o homem que eu era voltou
A tribo toda reunida
Ração repartida ao sol
De nossa Vera Cruz
Quando o descanso era luta pelo pão
E aventura sem par
Quando o cansaço era rio
E rio qualquer dava pé
E a cabeça rodava
Num gira-girar de amor
E até mesmo a fé
Não era sega nem nada
Era só nuvem céu e raiz
Hoje essa vida só cabe
Na alma da minha paixão
De Vera nunca se acabe
Abelha fazendo seu mel
No canto que eu criei
Nem vá dormir como pedra
E esquecer o que foi feito de nós
Enfim, estas duas canções fazem o retrospecto do que o “grupo”viveu e
escreveu: “quando o descanso era luta pelo pão e aventura sem par”, “abelha
fazendo o seu mel” e “até mesmo a fé não era cega nem nada era só nuvem,
céu e raiz”. Neste último trecho há inclusive uma revisão de valores em relação
a “fé cega” cantada antes (música de Milton e Ronaldo Bastos): na verdade
não era uma fé irracional e sim uma fé que misturava “nuvem” (simbolizando
paixão, sonho, ideal) e “raiz”(“pé no chão”, realidade, racionalidade). E “o que
foi feito deverá” sempre ser lembrado para que não se repita jamais. E não
podemos também dormir “como pedra e esquecer que foi feito” de Vera.
A antinomia “nuvem”/”raiz” apontada acima é um dos elementos
presentes neste segundo texto revela seu alto grau de poeticidade, visto que,
segundo Massaud Moisés, “a tensão decisiva para o fenômeno poético ser a
que se organiza entre o sentir e o pensar, entre a emoção e o pensamento, não
raro num mesmo verso ou imagem”.19 no entanto, vale lembrar que o referido
autor não reconhece, ou pelo menos não deixa isso evidente, a letra de música
como uma forma poética. Para provar que a letra de música pode ser
considerada poesia, recorramos mais uma vez a esse mesmo crítico: “O
encontro entre as duas esferas – a emoção e a intelectualização – manifestase como tensão: a poesia é sinônimo de tensão, de conflito, de antinomia”.20
Dez anos depois do AI-5, quatorze depois do golpe, o LP Clube da
Esquina 2 marca o fim de um ciclo na produção poético-musical dos autores
em estudo quando há um início tímido de afrouxamento do regime e fortalecese o movimento “pró-anistia”, embora o fantasma da ditadura e da repressão
ainda não estivesse totalmente afastado, conforme episódios posteriores, como
o atentado à bomba no Riocentro durante a comemoração do 1º de maio de
1980, iriam demonstrar.
A obra-prima imaginada por Márcio Borges é finalmente composta
quando põe letra em melodia de Milton (O que foi feito de vera) e,
magistralmente, transforma em imagens poéticas a história pessoal dele,
Milton, do pessoal do Clube da Esquina, ao mesmo tempo em que também é
um “revival” imagético da década de 70 e das pessoas que a viveram. Para os
que não viveram ou eram pequenos na época, recria e revive, através destas
imagens, tudo aquilo por que passaram e sonharam. E a utopia prossegue na
poesia, pois “se o poeta é o que sonha o que vai ser real/ bom sonhar coisas
boas que o homem nem faz/e esperar pelos frutos no quintal”.21
NOTAS:
* PESSOA, F. (1986) p.17.
1
CAPINAM, FOL G., (1990), reprodução do disco original em cd.
2
BORGES, M. (1996) p.309.
3
HOLLANDA, Chico B. de. (1970). IN:________, (1989), p.92.
4
PEREIRA, C.A.M. (1981) p.275-276.
5
O GLOBO (1995), 27/04/1995.
6
SOUZA, Tárik de. “A polifonia dos anos 70 e 80”. In: SALAZAR, A. (s.n.t)
p.270.
7
CARVALHO, Elizabeth. “O mundo econômico: uma só nação, um só mercado
consumidor” (A ascensão do império global – um casamento perfeito) In: ANOS
70. (1979-1980), v.5 – Televisão, p.105.
8
RIBEIRO, Santuza Naves, BOTELHO, Isaura. “A televisão e a política de
integração nacional”. In: ANOS 70. (1979-1980), v.5, Televisão, p.94.
9
BORGES, M. (1996) p.305-306
10
FERREIRA, A.B. de, FEREIRA, M.B. 2.ed. (AURÉLIO ELETRÔNICO)
11
BORGES, M. (1996) p. 305-306
12
Versos escritos a partir da audição da gravação. In: NASCIMENTO, M.
Milagre dos Peixes. (1995).
13
Ibidem.
14
O GLOBO (27/04/95).
15
BORGES, M. (1996) p.327.
16
FERREIRA, A.B. de. /s.d/ 1.ed.
17
BORGES, M. (1996) p.326-327.
18
BOAL, ª In: “Conexão Roberto D`Ávila de 11/06/1998 – TV-E.
19
MOISÉS, M. (1993) p.171.
20
Ibidem, p.170.
21
NASCIMENTO, M., BRANT, F. Coração Civil. In Nascimento.: Caçador de
mim (1981).
6 – FIM DO MILÊNIO; FIM DAS UTOPIAS?
Quando o sonho acabou
Continuamos a sonhar
Com os olhos bem abertos pra ver
O inverno que chegou
Uma andorinha não faz verão
Mas em duas voam sonhos reais
(LÔ BORGES E MÁRCIO BORGES – Vertigem)
Muito tem se falado, neste fim de século, em fim das utopias. Fala-se, por
exemplo, que o último movimento utópico do século aconteceu em 1968, ano
tido como marco da última grande utopia do século durante o qual ocorreram
rebeliões, revoltas, greves, manifestações, principalmente de estudantes, em
todos os continentes do mundo. Já vimos também que este ano foi um “divisor
de águas” na história brasileira, influenciando toda uma geração e outras
posteriores, em especial o grupo de compositores e poetas que são o âmago
deste trabalho. Vale lembrar, ainda uma vez, que as canções e parcerias entre
eles começaram a surgir entre 1964 e 1968, intensificando-se a partir de 69,
com a canção que viria a nomear, posteriormente, uma geração de
compositores, músicos e poetas: Clube da Esquina. Embora esta canção já
tenha sido comentada e discutida anteriormente, é importante ressaltarmos que
ela, de fato, além de ser um hino desta geração específica, representa
poeticamente o clima e o ritmo daqueles anos sombrios, conforme podemos
comprovar relacionando-a com a seguinte narrativa escrita em 98 a partir de
jornais da época e de depoimentos dados ao jornal Folha de São Paulo:
Noite de um dia qualquer de maio de 1968. Todos os
envolvidos no dia de hoje viverão na clandestinidade, serão
perseguidos ou presos, passarão anos numa solitária,
fugirão do país ou viverão escondidos aqui mesmo, cm
nomes falsos, pulando de um estado para outro, de uma
cidade para outra. Antes disso, nas noites de maio de 68,
eles se reuniam em bares, restaurantes e nas casas uns dos
outros para conversar, ler, discutir, debater, planejar os
comícios, os congressos e as passeatas do dia seguinte.
Reuniam-se ainda para ir ao cinema, ao teatro e namorar –
“para essa geração, a noite era dia; um dia contava um mês;
um mês contava um ano”.1
Embora a canção Clube da Esquina tenha sido feita após 68 e refletisse
o clima de então, poderia perfeitamente referi-se a noites anteriores. Outros
aspectos que aparece no trecho citado nos remete para a letra de Clube da
Esquina 2, em especial para o verso “e lá se vai mais um dia”, onde cada dia
que se passava representava uma eternidade, ao mesmo tempo em que era
necessário se fazer em um dia algo que precisaria de um mês, um ano, uma
década.
Relacionando o material poético dos autores do período estudado, 19681980, com a década de 90, pode-se concluir que a utopia não desapareceu de
suas obras. Ou seja, utopia e poesia, além de estarem extremamente
relacionadas, não acabam, visto que essenciais para o ser humano, contudo
podem sofrer alterações de rota.
Há uma manifestação intrínseca entre as manifestações e os anseios da
juventude pelo mundo inteiro e a produção poético musical do Clube da
Esquina. Como já foi visto podemos observar através das canções e das
declarações de membros do Clube da Esquina, havia um desejo forte de mudar
o mundo através da revolução. Frustrada essa via, o que podemos perceber é
toda uma canalização destes anseios para uma revolução cultural, influenciada
pelas idéias da contracultura cindas de outros países.
Este desejo utópico era uma constante nas letras e também nas
conversas, pelo que pudemos observar através das fontes de pesquisa
(canções, jornais, livros, depoimentos, entrevistas em rádio, etc.). este desejo é
uma característica nata e constante no homem “ainda não embrutecido pela
própria fraqueza ou pela realidade tremenda, é a liberdade que ele se reserva
de opor ao evento defeituoso, à situação decepcionante, uma força
contraditória”.2 Contra o regime autoritário brasileiro, uma sociedade diferente
era imaginada utopicamente através das canções.
É importante destacar que a utopia revela não só um desejo individual,
mas também pode representar o desejo coletivo de mudanças de uma época.
É o caso das canções do Clube da Esquina que se contrapunham, ainda que,
às vezes, de forma não direta, mas subentendida pelo público que, ao longo da
década de 70, cada vez mais ia se inteirando e entendendo o conteúdo político
e de resistência em seu sentido mais amplo.
(...) Antes de mais nada, deve-se considerar que, embora
uma ou outra utopia possa ser fruto meramente de uma
única vontade individual, a maior parte delas na verdade
representa a cristalização das aspirações, senão do todo,
pelo menos de parte do grupo social onde aparecem,
mesmo quando surgem na forma de um livro assinado por
uma única pessoa. (...)3
Duas questões abordadas por Teixeira Coelho merecem ser abordadas
e consideradas:
O desejo da utopia transforma-se em algo de preciso, tende
a concretizar-se? Ou a imaginação utópica é cultivada pelo
homem apenas como meio de fuga, como válvula de escape
interior diante da triste realidade? Uma postura diletante e
acadêmica diante da questão optaria pela Segunda
proposição. Mas o fato é que a força básica da imaginação
utópica está exatamente em sua propriedade de levar o
homem a procurar sua transformação em algo concreto. (...)4
Embora, às vezes, parecessem mera fuga da triste realidade, as
canções do Clube da Esquina tentavam levar os homens a utopia (o lugar
imaginado) em “topia” (o lugar real).
Enfim, o projeto utópico alterou-se, porém ainda resiste nas pessoas que
passaram pelo Clube da Esquina. Houve mudanças de rotas, como podemos
observar, por exemplo, em Milton que, embora envolvido com a “world music”,
tem canalizado seus últimos trabalhos numa utopia fundamental para o homem
na entrada do terceiro milênio: a defesa do planeta Terra e dos povos
oprimidos, como os índios brasileiros; e em Márcio Borges que, atualmente
leva uma vida “alternativa” longe do show business e das cidades grandes, um
dos ideais presentes nas canções dos anos 70.
NOTAS:
1
FOLHA DE SÃO PAULO (Caderno Mais – Edição de 10/05/1998) p.5.
narrativa feita a partir de jornais da época e dos depoimentos dados à folha por
César Benjamin, Doralina Carvalho, José Dirceu, José Genoíno, Olga Matos e
Valdemir Bargiere.
2
COELHO, T. (1985) p.7.
3
Ibidem, p.48.
4
Ibidem, P.68.
RESUMO
Esta dissertação analisa a poesia produzida na década de 70 pelos
letristas/poetas do Clube da Esquina, período em que o Brasil vive o momento
do “milagre econômico”, sob intensa ditadura militar e chamado por alguns de
“vazio cultural”. Contrariando esta posição, demonstra-se que houve grandes
acontecimentos culturais e artísticos, apesar da aparente tranqüilidade.
É um período marcado pelo aparecimento e amadurecimento de vários
poetas da MPB, quando a poesia da censura invade lares e bares via meio de
comunicação de massa e, apesar da censura, muita contestação passou “pela
fresta”. A década de 70 é o momento de afirmação da MPB como um dos
principais veículos da poesia brasileira na atualidade e, ainda, de resistência
cultural, destacando-se no contexto o Clube da Esquina.
Partindo do caminho percorrido pelos integrantes do Clube da Esquina
desde a década de 60, época efervescente na literatura, na política e na
música popular brasileira, até chegar os anos 70, observa-se e analisa-se,
através das letras das canções, sua relação com o momento histórico, sonho e
utopia e como as transformações ocorridas no campo histórico-político-social
alteram ou não a visão e o sonho de transformações da sociedade no Brasil.
Para isso, elegemos como corpo central da pesquisa os compositores/poetas
Milton Nascimento, Lô Borges, Márcio Borges, Ronaldo Bastos e Fernando
Brant, principais criadores das canções do Clube da Esquina.
Neste fim de século, fala-se de fim da história, fim das utopias, fim das
ideologias (e até do fim da poesia), globalização, fim de tudo. Então, “o que foi
feito amigo/De tudo que a gente sonhou”.
ABSTRACT
This dissertation analyses the poetry produced during the seventies by
thje song writers/poets from the Clube da Esquina, a period when Brazil lives
the moment of the “economical miracle”, under a violent military dictatorship. It
was called “cultural void”. Refuting this position, it can be showed that there
were a lot of cultural and artistic events un spite of apparebt calm.
It`s a period marked by the appearing and matureness of a seneral poets
of MPB (Brazilian popular music), when poetry invades homes and bars through
mass media and despite the censorship, a lot of protest could pass through “the
breach”. The seventies are the moment of affirmation of MPB as one of the
principal vehicles of Brazilian poetry nowadays and it was also a time of great
opposition to dictatoship through culture. The importance of Clube da Esquina
can be pointed out in this context.
From the way trawelled by the members of the Clube da Esquina since
the sixties, an effervescent period in leterature, politcs and in Brazilian Popular
Music (MPB), until the seventies, one can observe and analyse, through the
lyrics of the songs, their relationship with the historical moment, dream and
utopia and how transformation that ocurred in the historical-political-social field
changed or not the view and the dream of transforming society in Brazil. In
order to do it, it was elected as the central corpus of the research the
composers/poets Milton Nascimento, Lô Borges, Márcio Borges, Ronaldo
Bastos e Fernando Brant, main creators of the songs of the Clube da Esquina.
In this end of century, people talk about the end of History, end of
utopias, end of ideology (and even end of poetry), “globalization”, end of
everything. So, “what happened friend/to everything which we dreamed”.
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5. ______. Sonho real. Rio de Janeiro: Barclay/Ariola, LP 823 170-1, 1984.
6. ______. Solo. Rio de Janeiro: SBK Songs, LP 320.038, 1987.
7. ______. Meu Filme. São Paulo: EMI/ODEON, cd 838354-2, 1996.
8. GUEDES, Beto. A página do relâmpago elétrico. São Paulo: EMI/ODEON,
LP EMCB 7021, 1977.
9. ______. Amor de índio. São Paulo: EMI/ODEON, Lp064 422837, 1978.
10. ______. Contos da lua vaga. São Paulo: EMI/ODEON, LP 064 422897,
1981.
11. ______. Alma de borracha. Rio de Janeiro: EMI/ODEON, LP 064 422964,
1986.
12. NASCIMENTO, Milton. Courage. São Paulo: A&M Records, LP SA&M
2037, 1969.
13. _______. Milton Nascimento. São Paulo: EMI/ODEON, LP SMOFB 3592,
1969.
14. _______. Milton. São Paulo: EMI/ODEON, LP SMOAB 6004, 1970.
15. _______. Minas. Rio de Janeiro: EMI/ODEON, LP 064 823325, 1975.
16. _______. Geraes. Rio de Janeiro: EMI/ODEON, LP 064 422806D, 1976.
17. _______. Milton Nascimento/Nova História da Música Popular Brasileira.
São Paulo: Abril Cultural, HMPB-06, 1976.
18. ______. Clube da Esquina 2. Rio de Janeiro: EMI/ODEON, LP 164 422831
e LP 422832, 1978.
19. ______. Sentinela. Rio de Janeiro: Barclay, LP 201610, 1980.
20. ______. Caçador de mim. São Paulo: Ariola, LP 201909, 1982.
21. ______. Anima. Rio de Janeiro: Barclay, LP 201909, 1982.
22. ______. Encontros e despedidas. Rio de Janeiro: Barclay, LP 827638,
1985.
23. ______. A Barca dos Amantes. Rio de Janeiro: Barclay, LP 831349, 1986.
24. ______. Yauretê. Rio de Janeiro: CBS, LP 231023, 1987.
25. ______. Txai. Rio de Janeiro: CBS, LP 177238 (1-464138), 1990.
26. ______. Angelus. São Paulo: BMG Ariola, LP duplo 945501-1, 1993.
27. ______. MPB-Compositores (Nº 19-Milton Nascimento) Rio de Janeiro:
Globo, 1997.
28. ______. Nascimento. /s.l/Warner Music Brasil, cd 936246492-2, 1997.
29. ______, BORGES, Lô. Clube da Esquina. Rio de Janeiro: EMI/ODEON, LP
164 422901 E LP 164 422902, 1972.
30. ______, SOM IMAGINÁRIO. Milagre dos Peixes. São Paulo: EMI/ODEON,
cd (remasterizado – Gravado em 1973) 790790-2 1995.
31. ______, SOM IMAGINÁRIO. Milagre dos Peixes – Show ao vivo. São
Paulo: EMI/ODEON, LP 164 422802 E LP 164 422803, 1974.
32. 14 BIS. 14 Bis. Rio de Janeiro: EMI/ODEON, LP, LP 064 422850, 1979.
33. ______. 14 Bis II. Rio de Janeiro: EMI/ODEON, LP 064 422870, 1980.
34. VENTURINI, Flávio. Nascente. Rio de Janeiro: EMI/ODEON, LP 064
422911, 1981.
35. _____. O Andarilho. Rio de Janeiro: EMI/ODEON, LP 064 422713, 1984.
36. _____. Beija-flor. São Paulo: Velas, CD 11-v162, 1996.
ERRATAS E CORRIGENDAS:
Pág. 11
Pág. 100
Onde se lê
leia-se
Alguns núcleos teóricos
alguns núcleos temáticos
Onde se lê
Leia-se
Aqui já um certo prenúncio
Aqui já há um certo prenuncio
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