PELAS ESQUINAS DOS ANOS 70 Utopia e poesia no Clube da Esquina por Francisco Carlos Soares Fernandes Vieira Dissertação de Mestrado em Poética apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientador: Prof. Dr. Frederico Augusto L. de Góes. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Faculdade de Letras – Julho de 1998 EXAME DE DISSERTAÇÃO VIEIRA, Francisco Carlos Soares Fernandes. Pelas esquinas dos anos 70: utopia e poesia no Clube da Esquina. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 1998, 132 fl. mimeo. Dissertação de mestrado em Poética. BANCA EXAMINADORA Professor Doutor Frederico Augusto Liberalli de Góes Orientador _______________________________________________________________ Professora Doutora Nízia Villaça Professor Doutor Antônio Lauro de Oliveira Góes _______________________________________________________________ Professor Doutor André Luiz Bueno Professora Doutora Ana Maria Alencar Defendida a Dissertação: Conceito: Em: / /1998 Para Maristela, minha estrela, e Clarice, minha pequena luz. A meu pai (in memoriam): “Longe, longe ouço essa voz que o tempo não vai levar”. À Minha mãe, Yvone, a meus irmãos Lygia Maria, Ana Cristina, Elisa Maria e José Alberto pela força, carinho e união. Aos sobrinhos Raphael, Guilherme, e “quem mais chegar”. A todas as crianças e jovens, principais responsáveis por novas utopias para o século XXI. A todas as pessoas que, como eu, apreciam a poesia, seja lida, recitada ou cantada. A todos que viveram e acreditaram (e aos que, apesar de tudo, ainda acreditam) se possível transformar a utopia em “topia”. A todos que, juntos comigo, passaram por esquinas, ruas, estradas de terra, vales, montanhas, avenidas, praias, pedras, rios, mares, marés e minas, contribuindo, direta ou indiretamente, para esta pesquisa. Agradecimentos especiais às pessoas que contribuíram mais concretamente: Professor Dr. Fred Góes, por ter aberto caminho para pesquisas referentes à canção na Faculdade de Letras e pela orientação segura e tranqüila; Professor Dr. André Bueno, pelo grande estímulo à pesquisa; Professor Dr. Lauro Góes, pelo redimensionamento da teoria literária através do teatro; Professora Doutora Beatriz Resende, pela contribuição para minha formação acadêmica; Professora Doutora Nizia Villaça, por ter aberto meus horizontes em relação à comunicação; Professora Doutora Maria da Graça Aziz Cretton, uma das maiores incentivadoras para o meu ingresso no mestrado; Professor Doutor Sérgio M. Gesteira, por me fazer gostar ainda mais da literatura brasileira; Professora Doutora Marta de Sena, pelo grande apoio quando era coordenadora de Ciência de Literatura na Pós-Graduação; Funcionários da Pós-Graduação que, nos momentos difíceis, sempre me deram força e resolveram problemas burocráticos; Maristela, pelas sugestões dadas para aperfeiçoamento do texto; Elisa, pelos “toques”, dicas, correções e revisões no texto; Toda a minha família, pelo apoio e compreensão em momentos nos que não pude estar presente; Rafael, amigo de tantas viagens e “pé na estrada”, pelas sugestões e socorros na luta com o computador; Luiz Carlos, compadre e amigo desde a graduação, pela força e incentivo ao ingresso na pós-graduação; Denise, por possibilitar o contato com os músicos e compositores Márcio Ramos e Ana Antoun e pela tradução do resumo; Marly, Márcio e Ana, pelas conversas agradáveis sobre o Clube da Esquina, sobre música e, ainda, por terem me apresentado a Nélson Ângelo; Nélson Ângelo, um dos músicos e compositores que passaram pelo Clube da Esquina, pelas agradáveis e elucidativas conversas sobre música, poesia e anos 70, registradas em fita cassete para esta pesquisa. SINOPSE A importância do Clube da Esquina como resistência cultural, através da música e poesia, durante os anos 70, período mais intenso da ditadura militar no Brasil. Poesia e utopia através das canções do Clube da Esquina, revelando a união fundamental de ambas para o homem. Revitalização da poesia cantada; MPB: Um dos principais veículos da poesia na atualidade. SUMÁRIO 1 – INTRODUÇÃO 1.1 – Nas esquinas da poesia .............................................................................8 1.2 – Minhas esquinas ......................................................................................11 2 – ESQUINA: CRUZAMENTO DA VIA POÉTICA E DA VIA MUSICAL.........16 2.1 – Semeando as canções no vento ..............................................................16 2.2 – De tudo se faz canção .............................................................................27 3 – ANTES DA ESQUINA ................................................................................41 3.1 – Pré-68: “de minha garganta as canções explodem” ................................41 3.2 – A travessia de Milton ................................................................................46 4 – O CLUBE DA ESQUINA.............................................................................65 4.1 – Da sombra eu tiro o meu sol.....................................................................65 4.2 – Nuvem Cigana..........................................................................................70 4.3 – Saídas e bandeiras...................................................................................74 5 – A NOITE E O SONHO NO CLUBE DA ESQUINA: RESISTÊNCIA CULTURAL PELAS ESQUINAS DOS ANOS 70.............................................92 5.1 – A noite.......................................................................................................92 5.2 – Milagre dos Peixes: censura nas esquina..............................................101 5.3 – O sonho não acabou..............................................................................109 6 – FIM DO MILÊNIO; FIM DAS UTOPIAS?..................................................119 7 – BIBLIOGRAFIA.........................................................................................126 8 – DISCOGRAFIA..........................................................................................131 A História é um carro alegre Cheio de um povo contente Que atropela indiferente Todo aquele que a negue É um trem riscando trilhos Abrindo novos espaços Acenando muitos braços Balançando nossos filhos (PABLO MILANES E CHICO BUARQUE – Canción por la unidad de Latino América) estão velhos ou mortos os homens que acreditam nos homens? Os justos estarão no fim? Não e não. Assim como a injustiça, a violência e o ódio se espalham e deixam seu rastro de miséria por onde passam – a semente de amor, dignidade e justiça que recebemos frutifica e também estende seus braços. Está plantada no coração dos jovens. (...) Debaixo de nosso abençoado sol tropical, junto com nossos maiores e nossa juventude (mãos dadas com nossa infância) apostamos tudo na utopia. (FERNANDO BRANT – “A caminho da utopia”) 1 – INTRODUÇÃO 1.1 – Nas esquinas da poesia O presente trabalho pretende analisar a produção poética do Clube da Esquina na década de 70, época em que o Brasil vive o momento do “milagre econômico” e sob intensa ditadura militar. Todavia, é um período em que, apesar das adversidades, surgem vários poetas, compositores, músicos, dos quais se destaca o grupo “mineiro”. O objeto central de estudo vai do disco Milton Nascimento (1969) até o de Lô Borges, A Via Láctea (1979), por ser o período compreendido por estas obras o mais intenso e o mais marcante de criação, produção, arranjo e execução coletiva dos principais participantes do Clube da Esquina. Antes, porém, será necessário voltar um pouco aos anos sessenta a fim de que se possa entender como surge este grupo “mineiro” e quais as relações existentes com movimentos importante dessa década, como a Bossa Nova, Tropicalismo, os festivais da canção, as canções de protesto, os CPCs. O ponto de partida será o ano de 1967, mesmo ano da explosão tropicalista, pois é quando se estabelece a união do “quinteto” central deste estudo: Milton Nascimento, Lô Borges, Márcio Borges, Ronaldo Bastos e Fernando Brant. Contudo, serão necessárias algumas referências aos anos antecessores que possibilitaram e desencadearam este frutífero encontro para podermos entender o ideal destes autores, relacionado-as com a produção poético-musical do “grupo”. O período de surgimento do grupo corresponde ao momento mais obscuro do regime militar instaurado em 1964, que não deixou opções para os opositores do regime e, principalmente, para jovens cheios de sonhos e idéias para mudar o mundo, como os compositores do Clube da Esquina e tantos outros da época. É bom lembrar que esse era o momento da contracultura e da ebulição do poder jovem em todo mundo, e que, no Brasil, apresentava uma especificidade devido ao endurecimento do regime em 1968. No entanto, havia uma tônica geral neste movimento, um inconsciente coletivo: a luta contra a falta de liberdade política, social, sexual, comportamental. Por isso, algumas das saídas possíveis para enfrentar tal situação foram usadas pelos jovens de então: a luta armada, as drogas, o “desbunde” (que é uma denominação específica do Brasil, é a contracultura aclimatada), muitas vezes de forma camuflada. Em alguns instantes, estas saídas aparecem lado a lado em pessoas que não concordavam com a truculência do regime militar e com a falta de liberdade política, cultural e artística. O ano de 1968 foi um ano marcante, um divisor de águas em nossa história recente. Não só aqui no Brasil, como na Europa, especialmente França e Inglaterra, nos Estados Unidos, na China e em outros países. Em matéria recente do jornal Folha de São Paulo, há uma série de artigos, cujo título principal é “A Última Utopia”,1 que reanalisaram e revêem o ano de 1968. em nosso estudo, também verificaremos se este movimento de 68 foi realmente o último momento utópico do século, principalmente agora que se fala em fim da história, fim do socialismo, fim da utopia, fim da poesia, fim de tudo. observaremos ainda a relação da produção poético-musical do Clube da Esquina com o ideal de 1968 e que conseqüências os movimentos da década de 60 geraram para estes autores. É justamente a partir deste ano (1968) que começaram a florescer as parcerias entre Milton, Fernando, Lô e Márcio, embora Milton e Márcio tenham iniciado a compor em 1963. A década de sessenta, período de grande efervescência política, social, cultura e artística, certamente influenciou e deixou marcas nas suas composições, assim como a década subseqüente de extremo cerceamento da liberdade de expressão fez com que estes outros autores tentassem fazer com que alguma contestação passasse “pela fresta”.2 Afinal de contas, utopia e poesia muitas vezes caminham juntas. Podemos até afirmar que uma não existe sem a outra, portanto, se a utopia acaba, a poesia acaba também. E se a poesia acaba, conforme disse Octavio Paz, o homem reduz-se à metade. “À medida que o poeta se desvanece como existência social e se torna mais rara a circulação em plena luz de suas obras, aumenta seu contato com isso que, à falta de menor expressão, chamaremos a metade perdida do homem”.3 Trinta anos se passaram. Esta poesia de esquina, logicamente sem valor pejorativo, deixou para a nossa cultura uma rica herança e, com certeza, contribuiu para o amadurecimento de nossa poesia, em especial, em sua modalidade cantada. Estas contribuições serão ressaltadas ao longo do trabalho. Para analise de nosso objeto, foram pesquisados e analisados, em primeira instância, os discos dos principais intérpretes das canções do Clube da Esquina – Milton Nascimento, Lô Borges, Beto Guedes – e ainda alguns dos 14 Bis, do Flávio Venturini, do Boca Livre, lançados, em sua maioria, no período de 1968-1980. Recorremos a alguns discos e cd’s lançados após esse período quando foi preciso estabelecer esta relação com a década de 70 e a vigente ou para ouvir regravações de canções do período assinalado acima. Para atingir os objetivos, foram consultados livros, jornais, revistas e entrevistas de rádio que se referiam diretamente ao objeto de estudo, tais como o livro Os Sonhos não Envelhecem4, um relato de histórias do Clube da Esquina feito por Márcio Borges, um de seus integrantes primordiais. Como embasamento teórico, devido ao tema, utilizamos uma biografia interdisciplinar com textos de Poética, Semiologia, Comunicação, História, Cultura, Música. Octavio Paz, Umberto Eco, Walter Benjamim e Heloísa Buarque de Hollanda são alguns dos estudiosos que mais deram sustentação às nossas reflexões. Outra fonte importante foi a entrevista realizada com um dos músicos e compositores que participou do Clube da Esquina, Nélson Ângelo. Devido à amplitude de temas e canções e para reforçar o caráter coletivo e de convergência de ideais nas composições dos autores em estúdio, optamos em centralizar a pesquisa em alguns núcleos teóricos mais relevantes e coincidentes, tais como: “noite”, “sonho”, utopia, resistência. Embora reconhecendo a especificidade da canção e que sua plena realização enquanto arte depende de sua audição, o enfoque predominante será o poético, já que consideramos a letra de música uma forma de poesia. Contudo, sempre que necessário e possível, iremos nos referir à parte musical, pois a canção é um conjunto letra/música. 1.2 – Minhas esquinas Apesar de já existirem outras pesquisas e trabalhos que consideram a letra de música uma manifestação literária, a destacar a Tese de Doutorado de Fred Góes5, ainda há preconceito, algumas vezes de forma direta; outras veladamente, de algumas pessoas da área de Literatura em aceita-la como uma forma poética. Contrariando estas últimas opiniões, também defendo a tese de que letra de música é, de fato, poesia. Esta polêmica me instiga e me mobiliza desde a época da graduação, quando pela primeira vez ensaiei discutir o assunto, ainda que de forma muito ingênua e simples, apresentando uma monografia intitulada “Letra de música é poesia” à professora Beatriz Resende, no final do curso de Teoria Literária IV. Dessa época de graduação, destaco como fundamentais, para o aprofundamento destas questões e para minha formação, os cursos optativos ministrados pelos professores Fred Góes e André Bueno nos quais elas sempre foram tratadas sem preconceitos e com muita discussão teórica e prática. Preconceitos de lado, hoje tenho certeza de que foram, principalmente, as letras de música que me levaram a gostar tanto de poesia e, posteriormente à Faculdade de Letras. Sempre gostei muito de música e, habitualmente, tinha (ainda tenho) o costume de ouví-las com atenção, analisando-as e não apenas consumindo-as como produtos industriais vazios e sem poeticidade. Percebia que várias canções possuía valor poético e foram, sem dúvida, as canções de Milton Nascimento, Lô Borges, Beto Guedes, Chico Buarque, Vinícius de Morais, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Alceu Valença, Geraldo Azevedo e tantos outros nomes da MPB que me levaram a gostar e querer conhecer outros poetas. Ou seja, foram estes que me levaram ao encontro de tantos outros poetas excelentes, como Vinícius de Morais, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Fernando Pessoa. Lembro-me de que, durante a década de 70, adorava ficar no meio das rodas de violão de meus irmãos mais velhos e seus amigos. Fui tendo um contato cada vez maior com a MPB: através do rádio, ouvia, de preferência, a FM-NACIONAL; através dos discos de minhas irmãs mais velhas; indo a vários shows no final dos anos setenta e início dos oitenta nos mais variados lugares. Isso sem falar nas inesquecíveis rodas de violão em 1982 com colegas da terceira série do segundo grau do Instituto Guanabara onde estudava e que aconteciam na hora do recreio, em passeios e em bares de Vila Isabel, Tijuca e adjacências. “Rolavam” músicas de cantores e compositores variados: Milton Nascimento, Chico Buarque (Já na época, para mim, um dos maiores poetas brasileiros), Lô Borges, Beto Guedes, Gilberto Gil, Zé Ramalho, Geraldo Azevedo, João Bosco, etc. Dentre as músicas que faziam parte do repertório, sempre eram pedidas e desde então ficaram em minha memória estão: Um Girassol da Cor de seu Cabelo (de Lô e Márcio Borges), Cais (de Milton Nascimento e Fernando Brant), Admirável Gado Novo (de Zé Ramalho), Andança (de Danilo Caymmi, Edmundo Souto e Paulinho Tapajós), Apesar de Você (de Chico Buarque), Não Chores Mais (Versão de Gilberto Gil), O Bêbado e a Equilibrista (de João Bosco e Aldir Blanc). Estas três últimas tidas como espécie de hinos pela liberdade democrática e pelo fim total da ditadura militar. Um sinal significativo de como o LP Clube da Esquina já me impressionava (e a outros de minha geração) pela sua qualidade poético-musical é a presença de duas músicas deste disco entre as minhas preferências de então. Já conhecendo este LP duplo, pois tínhamos o disco em casa, passei a me interessar cada vez mais pela obra de Milton e dos outros mineiros, destacando-se entre eles Lô Borges. Na verdade, esta questão da letra de música já me intrigava e me motivava antes de começar a Faculdade de Letras, pois via os compositores mencionados acima também como autênticos poetas e não entendia e nem aceitava essa discriminação pelo simples fato do veículo da poesia ser outro. A escolha de trabalhar com as canções dos participantes do Clube da Esquina se dá, então, por vários motivos: o prazer de ouvir e analisar seu conteúdo poético-musical, o grande interesse pelas manifestações culturais e artísticas da década de 70 e pela produção poética coletiva, uma das especificidades do texto poético-musical. Embora muitas das pessoas engajadas politicamente encarassem a contracultura e o ideal hippie como uma alienação, sempre vislumbrei ali um inconformismo com a situação vigente no país, mesmo sabendo que o movimento hippie vagava por vários países e não era só brasileiro. Na verdade, o ideal hippie e de contracultura encontra no Brasil um ambiente exatamente favorável para sua perpetuação, visto que as formas diretas de contestação política estavam fechadas. Temos, pois, uma série de grupos tentando viver e lutar contra o regime, uns mais e outros menos alternativos. O Clube da Esquina se insere neste contexto. NOTAS: 1 FOLHA DE SÃO PAULO. Caderno Mais. “A última utopia”. São Paulo. 10/05/1998. 2 VASCONCELLOS, G (1977). 3 PAZ, O. (1972) p.85. 4 BORGES, M (1996) 5 GÓES, F (1993) 2 – ESQUINA: CRUZAMENTO DA VIA POÉTICA E DA VIA MUSICAL O reaparecimento da palavra falada não implica numa volta ao passado: o espaço é outro, mais vasto, e, sobretudo em dispersão. A espaço em movimento, palavra em rotação; a espaço plural, uma nova frase que seja como um delta verbal, como mundo que explode em pleno céu. Palavra ao ar livre, pelos espaços exteriores e inferiores: nebulosa contida em uma pulsação, pestanejo de um sol. (OCTAVIO PAZ – Signos em rotação) 2.1 – Semeando as canções no vento* Como esta pesquisa pretende analisar a poesia produzida na década de 70 pelos letristas (ou melhor, poetas) integrantes do Clube da Esquina, quando o Brasil vivia o momento do “milagre econômico” e a ditadura militar, antes de iniciarmos propriamente o tema, fez-se necessário estabelecermos algumas diferenciações em relação a alguns termos que serão usados durante o desenvolvimento do texto. Em primeiro lugar, usaremos o termo poesia em seu sentido mais amplo, a arte poética. Por isso, mesmo sabendo das diferenças existentes entre poema e letra de música, assunto que será abordado adiante, esse termo será empregado ora para a letra de música, ora para o poema, pois todo o texto que trabalha artisticamente a palavra, privilegiando a função poética da linguagem, é um texto poético; daí a denominação genérica poesia. A questão letra/poesia será tratada, já que o âmago da pesquisa são letras de música e, embora com diferenças em relação aos poemas, estas são, como tentaremos demonstrar, formas poéticas, “e isso é inalienável, a canção que existe para ser cantada tem um texto: e é nele que está evidente a função poética da linguagem”.1 por isso chamaremos os ditos letristas de poetas por também considerá-los artistas da palavra. Não pretendemos, contudo, igualar poema e letra de música, nem estabelecer uma hierarquia de valores a afirmar que uma é superior à outra. Como foi muito bem definido por Fred Góes em sua Tese de Doutorado, a letra de música possui uma especificidade, não podendo ser analisada isoladamente da música. (...) Letra e música formam um contexto indissolúvel; não se trata de um texto subordinado à música (ou ao contrário disso). Há simultaneamente em sua produção e na perspectiva de suas relações, dada a necessidade de coadunar o ritmo, a melodia e a letra. 2 Então, se na letra de música há poeticidade, é evidente que ela também é uma forma poética. 3 Há críticos que consideram a letra de música um simples produto da indústria cultural, sendo algo que é feito para ser consumido superficialmente e sem qualquer análise ou discussão. Ou seja, descartam a possibilidade de uma letra de música vir a ser considerada uma forma literária. Na realidade, os que assim pensam produzem velhas estratificações da literatura e da arte: poema menor, poema maior; poeta maior e poeta menor; cultura superior e cultura inferior; nível alto, médio e baixo.4 Estes críticos não aceitam que a arte literária, no caso a palavra poética cantada, seja consumida por um grande número de pessoas ao mesmo tempo, independente de sua qualidade, pois desta forma não pode ser considerada literatura, sendo somente um produto da cultura de massa. Não podemos concordar com que pensa assim, pois o simples fato de ser largamente disseminado pelos meios de comunicação de massa não invalida poeticamente um texto. Será que todas as letras de música são meros produtos industriais sem valor estético? Quem pensa que sim esquece de uma coisa: da capacidade múltipla da arte, da possibilidade semiótica da arte. Ademais, classificações e estratificações como essas são variáveis no tempo e no espaço, como bem lembrou Teixeira Coelho: (...) frequentemente, na história, a passagem de um produto cultural de uma categoria inferior para outra superior é apenas questão de tempo. É o caso do jazz, que saiu dos bordéis e favelas negras para as platéias brancas dos teatros municipais. (...)5 Portanto não se pode rotular ou enquadrar definitivamente um texto em um nível sem refletir o que está por trás disso, pois o que determina se um texto é poesia não é a sua origem, classe social, meio de disseminação ou forma e sim um conjunto de valores tais como: grau de poeticidade, universalidade, ambigüidade que, como veremos a diante, estão presentes nos textos das canções do Clube da Esquina. Na verdade, estas tentativas de classificar e dividir os textos literários tem o objetivo de separar e ratificar a divisão clássica entre a arte erudita e a arte popular, onde a primeira sempre é vista como superior pela elite. Vale lembrar aqui a oposição estabelecida por Umberto Eco: de um lado, os “apocalípticos”; do outro, os “integrados”.6 É preciso considerar estas duas visões antagônicas para podermos tirar algumas conclusões. Não da para aceitar a posição dos “apocalípticos” que simplesmente atacam e desconsideram o valor artístico da poesia cantada, por acharem que as letras de músicas apenas repetem formulas e imagens, são meros produtos industriais que visam só ao lucro, estando a reboque das grandes empresas do disco e do entretenimento. O fato de reproduzir uma obra artística em série não tira seu valor estético, embora altere a concepção de arte. Caso contrário, desde que foram inventados os vários meios de reprodução de obras de arte em diferentes modalidades, não poderíamos mais falar em arte. Na era da “reprodutibilidade técnica”, segundo Benjamin, a concepção de arte altera-se e deixa de ter um valor apenas de culto. A arte perde sua aura primitiva e caráter de contemplação individual, assumindo um aspecto cada vez mais social e plural. A reprodução técnica da obra de arte, em suas diferentes formas, muda a relação do indivíduo com a obra. Em relação à canção, a pessoa pode ouvila em vários ligares e fruí-la de diversos modos. Ou seja, há uma “refuncionalização da arte”7 . No caso da literatura, esta teria acabado com a invenção da tipografia, depois com a invenção do fonógrafo e do gramofone; com a invenção do rádio, depois da televisão e, mais recentemente, a sua morte definitiva com a invenção do computador. Na realidade, o que temos são adaptações da literatura aos vários meios, sem, no entanto, uma ser melhor do que a outra; são formas diferentes que podem coexistir perfeitamente. Desde a Grécia antiga que a literatura manifestava-se principalmente pela via oral, só deixando de sêlo a partir da invenção da reprodução tipográfica. Hoje temos a literatura coligada a outros códigos, contudo, como já foi dito, isto não lhe tira o valor, ou melhor, não é este fato por si só que vai determinar se é ou não literatura. Por outro lado, não se pode também aceitar tudo passivamente como os “integrados” e achar que tudo que é transmitido pelos meios de comunicação de massa é poesia e literatura, porque é falado e usa linguagem poética. Se assim fosse, propaganda e outros textos que utilizam a função poética seriam textos literários. Não é isso que defendemos, pois é notório e sabido que estes textos e muitas letras de música realmente só visam ao consumo fácil e aceitação passiva dos ouvintes e leitores, por vezes, de fato, sem qualquer poeticidade. Ou seja, não pretendemos dizer que todas as letras de música são grandes obras literárias, visto que algumas realmente repetem chavões e fórmulas, mas boa parte o são. Contudo, estas redundâncias não são exclusividade dos textos das canções populares, podendo aparecer em outras modalidades literárias, como: romances, contos, poemas.8 Umberto Eco, no livro citado acima, elabora duas listas com possíveis ataques e defesas que a cultura de massas (ou como ele prefere: cultura dos “mass media” ou “comunicações de massa”) recebe. Estes dois pólos radicalmente contrários devem ser considerados em análises do fenômeno poético em canções, visto que é possível encontrarmos, entre estas, textos altamente poéticos ao lado de outros desprovidos ou com grau reduzido de poeticidade.9 Logicamente , não são estes textos o centro de nossa discussão e sim uma grande parte de textos da MPB que usam a palavra poeticamente sem repetir fórmulas. Ou seja, usando termos utilizados por Umberto Eco, temos de um lado as canções “gastronômicas” e de outro, as canções “diferentes”, entre as quais estão inseridas as canções do Clube da Esquina e de tantos outros nomes da MPB.10 É importante ressaltar quer o fato de uma canção “diferente” ser executada maciçamente não lhe tira o valor poético, pois o fator determinante deste valor não é a quantidade de vezes que uma música é tocada, e sim o seu grau de poeticidade, algo difícil de ser medido. Essa dualidade também é percebida por Geraldo Carneiro quando afirma que “é preciso distinguir pelo menos duas formas de utilização do texto na música popular”. Em relação ao primeiro tipo de música, ele diz que “o texto desempenha uma função industrial precisa” procurando “originalidade na banalidade”; enquanto no segundo grupo de canções, “o propósito do texto é a invenção”.11 É preciso apagar o preconceito existente que menospreza qualquer forma de literatura que não seja livresca e aceita pela elite. É o que pretendemos com uma análise poética das canções dos membros do Clube da Esquina, sempre que possível relacionando com a música já que são inseparáveis. Tudo depende da visão do que se considera arte e as suas funções. Por exemplo, Charles Lalo sugeria cinco funções possíveis da arte: função de diversão, função catártica, função técnica, função de idealização e função de reforço ou duplicação.12 No decorrer da história da literatura, algumas dessas funções eram valorizadas em detrimento de outras; depois, em outro momento, alterava-se a hierarquia. E, assim essas e outras funções foram revezando-se. Não cabe aqui nos estendermos neste assunto, mas apenas ressaltar que a arte pode ter várias funções simultâneas na sociedade moderna. Para provar que também a letra de música é um termo literário, estamos recorrendo a alguns teóricos da literatura, arte e cultura que, ao longo dos anos se preocuparam em discutir o texto poético, passando por Aristóteles, Octavio Paz, Umberto Eco, Massaud Moisés e outros. Observaremos se o que esses teóricos discutiam e disseram sobre a poesia também pode se aplicar à letra de música e de que maneiras. Por exemplo, seguindo a classificação dos gêneros proposta por Massaud Moisés, a Letra de Música, embora ressaltando seu caráter semiótico, pode ser considerada uma das formas poéticas do gênero literário Poesia, podendo aparecer nas duas espécies propostas pelo referido autor – Lírica e Épica – já que os autores destes tipos de textos também trabalham artisticamente com palavras, ora “alargando o eu até o limite do nós: na subjetividade do poeta se reflete um povo, uma raça e mesmo toda a humanidade” (o poeta épico); ora “desprezando ou amoldando a si o plano exterior, se dobra para dentro de si numa autocontemplação narcisista e solitária” (o poeta lírico).13 Para comprovar isso, podemos citar como exemplo deste a canção Um girassol da cor do seu cabelo e, do outro, San Vicente, conforme podemos perceber nos fragmentos abaixo: UM GIRASSOL DA COR DO SEU CABELO (Lô Borges e Márcio Borges) Vento solar e estrelas do mar a terra azul da cor do seu vestido Vento solar e estrelas do mar você ainda quer morar comigo Se eu cantar não chore não É só poesia Eu só preciso ter você por mais um dia (...) Vento solar e estrelas do mar Um girassol da cor do seu cabelo (...) SAN VICENTE (Milton Nascimento e Fernando Brant) Coração americano Acordei de um sonho estranho Um gosto de vidro e corte Um sabor de chocolate No corpo e na cidade Um sabor de vida e morte Coração americano (...) Por conseguinte, também podemos chamar os ditos letristas de poetas, uma vez que assim chamamos genericamente todos os autores de sonetos, odes, canções, rondeis, baladas, rondós, poemas, poemetos, epopéias. Isto, contudo, não descarta denominações específicas para o produtor de algumas dessas formas, como sonetista, poeta épico, menestrel, rapsodo, trovador, letrista. Ou seja, todo produtor de poesias é chamado genericamente de poeta; conseqüentemente, só por preconceito ou menosprezo por formas poéticas populares, com a letra de música, os letristas não são considerados poetas por boa parte dos teóricos da literatura que nem a consideram texto literário; quando muito, dizem que fazem parte do folclore, que é paraliteratura ou subliteratura. O próprio Massaud Moisés se contradiz, pois não considera a canção e outras manifestações orais literatura. Embora ele descarte o caráter oral da literatura ao afirmar que “somente procede falar em literatura quando possuímos documentos escritos ou impressos”, dizendo que “a rigor, trata-se de transmissão de comunicação oral do texto literário escrito ou impresso: depois que este surge, é que se processa a sua manifestação em voz alta”14, podemos subsidiar a defesa da letra de música como uma forma poética em seu próprio texto. Massaud, ao definir literatura, prende-se muito ao caráter escrito, deixando de lado o aspecto oral: (...) Por mais generosa que seja a idéia romântica duma literatura oral, popular, esta não passa de folclore, e só adquire status literário quando escrita, pelos próprios autores ou pelos interessados na matéria; em suma, quando oferecida à leitura. Esta é, inquestionavelmente, a primeira condição para que uma obra possua caráter literário.15 Depois, em nota ele cita dois autores em posições antagônicas, contudo, mais uma vez, desconsidera-as, tentando menosprezá-las. Alfonso Reyes16: “A rigor, [a literatura é] oral por essência (e não só por sua origem genérica) visto que o caráter gráfico se refere à palavra falada e nela cobra sentido, e a palavra só é escrita por acidente, para ajuda da memória”. Richard Chase17: “não há povo que não tenha literatura”. Após citar estes dois autores Massaud diz: “Parece que se confundem atividades limítrofes, mas não idênticas, o Folclore e a Literatura, e está-se conferindo a populações iletradas uma atividade que pressupõe, necessariamente, o ato de escrever”.18 Mais uma vez Massaud repete um preconceito existente desde que o homem associou a arte literária à letra, sinal gráfico, esquecendo-se de que esta não existe se o som; é apenas uma representação gráfica dos sons das palavras. E ainda ressalta o caráter elitista da arte literária ao dizer que esta não pode ser feita por iletrados. Parta ressaltar a posição aqui defendida, observamos o que diz McLuhan: “Dir-se-ia que a grande virtude da escrita é o poder de deter o veloz processo do pensamento para a contemplação e analises constantes. A escrita é a tradução do audível para o visual”. 19 Na verdade, o que Massaud diz ser inquestionável e primeira condição para uma obra ser literária é uma consolidação de uma postura elitista que desconsidera manifestações literárias orais e esquece o fato de que a literatura se faz com palavras. Estas não são apenas sinais impressos em papéis, são, acima de tudo, combinações de poemas, possuindo ritmo, intensidade, musicalidade. Aqui vale lembrar Fernando Paixão: “Ler com os ouvidos/ Ler com o nariz/ Ler com a boca/ Ler com a pele”.20 Não podemos, então, esquecer a capacidade múltipla da literatura, de se realizar de diferentes modos. Não pretendemos, contudo, retirar a importância da disposição espacial das palavras no papel, importantíssima para a poesia; nem esquecer que existem formas literárias contemporâneas que dependem fundamentalmente da escrita, como o romance; mas sim reiterar a possibilidade de definirmos Literatura de uma forma mais abrangente e “despreconceituosa”. Ademais, mesmo sem a presença do texto escrito, é possível realizarmos o ofício de críticos e fruidores do texto literário. Isto é possível ao ouvirmos um poema, um repente ou desafio, uma história, uma canção; ao assistir a uma peça de teatro e ao presenciarmos outras manifestações literárias orais. É óbvio que, se tivermos o texto em mãos, poderemos nos deter mais detalhadamente em aspectos não percebidos somente pela oralidade. Enfim, reiteramos o que disse Alfonso Reyes: a arte literária existia mesmo antes de haver a reprodução tipográfica e até antes de haver a escrita; por isso, a literatura é oral em sua essência, sendo a letra responsável, principalmente, pela perpetuação dos textos. A escrita tem a função essencial de registro, sendo impossível imaginar a literatura e a sociedade atual sem ela, porém o fato de tal texto não estar escrito não invalida seu caráter literário, nem impede sua fruição como arte. Apesar de reconhecida como forma autônoma e poética por alguns críticos, a letra de música ainda hoje é vista por muitos teóricos, professores, estudiosos de literatura como uma forma menor, sem valor estético, mero produto de massa, paraliteratura, fato abordado e discutido na Tese de Doutorado de Fred Góes: “...inúmeras classificações que aqui se sintetizam na de Jean Tortel – ‘paraliteratura’ – que pela própria etimologia, já deixa bem clara a posição defendida por muitos, isto é, má literatura, aquilo que está à margem do literário”.21 Vários teóricos procuram rotular e desqualificar modalidades literárias não convencionais, não livrescas como sendo formas menores, marginais. Foi assim com a poesia concreta, com a poesia produzida pelos poetas alternativos da década de 70, também chamados “marginais”, foi e é assim com os nossos letristas da MPB e tantos outros que não seguem o cânone literário. Trabalhar com um grupo de artistas literários que foram tachados de “desbundados” e que optaram em trabalhar a palavra poética na música durante a década de 70 é algo muito estimulante. Não pretendemos, contudo, inverter o preconceito e considerar a poesia cantada superior à poesia escrita ou falada, nem muito menos afirmar que toda letra de música é uma obra-prima. O objetivo é mostrar que a poesia cantada é literatura, visto que trabalha artisticamente a palavra. A canção é uma forma poética que apresenta diferenças em relação ao poema, pois, como vimos é a união de letra e música e, por isso, sua plena realização só acontece a partir da interação das duas. Assim como o gênero dramático só se realiza plenamente quando encenado e acrescido de elementos extraliterários (o palco, a encenação, o figurino, o cenário, as luzes, etc), a canção só se realiza plenamente quando a letra, parte literária, está associada à música. No caso da literatura brasileira deste século, é inconcebível imaginar uma antologia poética ou estudo sobre a poesia deste período que não contenha textos poéticos advindos da música popular. Um painel da poesia brasileira dos últimos trinta anos tem que conter textos de Milton Nascimento, Ronaldo Bastos, Márcio Borges, Fernando Brant, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Djavan, Capinam, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, entre tantos outros que trabalham poeticamente a palavra associada à música; assim como um amplo painel da literatura brasileira da primeira metade do século, sem preconceitos quanto ao meio de disseminação poética, deve conter textos de Noel Rosa, Dorival Caymmi, Orestes Barbosa, Cartola, Ari Barroso, Lamartine Babo, Braguinha, Luiz Gonzaga, Humberto Teixeira e muitos outros. Na verdade, o preconceito em relação à letra de música e outras manifestações poéticas mais populares data de muito tempo. Basta observarmos o preconceito que sofreram vários de nossos compositores populares da primeira metade deste século: “Ainda era muito forte o preconceito contra a música popular. Segundo os padrões moralistas da época, o mundo da música era ocupado por homens e mulheres que não mereciam, sequer, ser recebidos em casas de família”.22 Aqui se percebe claramente a oposição entre cultura popular e cultura erudita. A primeira seria uma “arte menor” e, por isso, não merecia uma boa aceitação por parte da sociedade da época, enquanto a segunda seria a “Arte”. Neste trecho de seu livro A MPB na era do rádio, Sérgio Cabral relata o episódio em que Carlos Alberto Ferreira Braga, o Braguinha, escondeu-se sob um pseudônimo para que os amigos não o identificassem como autor e cantor ao mesmo tempo, sendo um recurso utilizado por outros autores. Ou seja, se a sociedade da época não aceitava a música popular, considerando-a algo feito por malandros e pela classe mais baixa, como iria aceitar que alguém dissesse que textos das canções poderiam ser considerados poesia e, portanto literatura. Os compositores/poetas do Clube da Esquina deixaram músicas e versos inesquecíveis e belos, ao mesmo tempo em que nos dão uma síntese de como foi este período 68-80. Aqui vale lembrar Octavio Paz quando estabelece a relação entre poesia e história. Esta é uma das funções da poesia: o resgate de um período histórico, fazendo-nos reviver o momento. A poesia não descreve o momento ou relata-o como a história, revive-o, recria-o. Os textos das canções do Clube da Esquina fazem tão bem este papel, que, portanto, evidentemente são poesia.23 2.2 – De tudo se faz canção** O preconceito com a letra de música é o mesmo que, em geral, acompanhou e acompanha as formas literárias que não são da cultura letrada desde que a poesia deixou de ser predominantemente manifestada pela via oral. Podemos dizer que, após a Idade Média quando ainda era bastante valorizado o seu caráter oral, a literatura se elitiza, passando a se supervalorizar a modalidade escrita em detrimento da oral, seja falada, seja cantada. O século XX trouxe várias inovações que, no seu decorrer, foram acarretando mudanças na vida das pessoas e, dentre essas, alterações diversas na arte, e em especial, na literatura. Portanto a arte moderna incorporou e vem incorporando as inovações tecnológicas, utilizando-as como instrumentos. A poesia cantada começa a recuperar um pouco de espaço, não de seu valor, com a modernidade, quando os novos meios de reprodução fonográfica são criados e vão se sofisticando ao longo do século. Pode-se localizar esta tímida revitalização da poesia no início do século com o advento do modernismo, quando as audições de música começam a se deslocar do espaço privado para o espaço público, ainda que com um limite de propagação restrito às classes mais privilegiadas. Este aspecto é muito bem discutido por Nicolau Sevcenko em seu livro Orfeu extático na metrópole. Não foram só salões, clubes e bailes pagos que vieram mudar a cena. Por trás deles estava a universalização da indústria fonográfica, com o grande destaque das distribuidoras americanas. O ano de 1919 assinalou justamente a transição tecnológica do obtuso gramofone para a moderna vitrola: mais versátil, mais potente e sobretudo mais acessível. (...) Por isso, se o gramofone estivera associado com as audições privadas, no lar, em família, de música erudita ou óperas, a vitrola se oferecia para audições públicas de jovens excitados com o frenesi de bandas estridentes (...).24 As invenções do fonógrafo e do gramofone possibilitaram uma ampliação, ainda tímida, das audições musicais que antes era restrita aos concertos em teatros, às músicas tocadas pelas orquestras como fundo nos cinemas e em suas salas de espera ou em casa, principalmente, através do piano. Ainda no fim do século XIX, o fonógrafo já aparecia como a grande invenção que reproduzia sons variados: “Grande exposição da máquina norteamericana O fonógrafo – Que fala! Canta! Ri! Ladra! Mia! E toca solos de pistom!”25 Na década de 20, teremos o início das gravações elétricas e a evolução no rádio ampliando a audição de música popular, sendo, segundo Sergio Cabral, o símbolo deste novo modo o cantor Mário Reis (1907 – 1981). (...) Era algo muito novo para um público que se acostumara a ouvir a nossa música geralmente mais gritada do que propriamente cantada. Agora, dispondo de um sistema de som capaz de registrar qualquer tipo de voz, por meio de microfones, amplificadores e agulhas eletromagnéticas de leitura, ninguém precisava berrar mais. Cantando de maneira coloquial, muitas vezes quase recitando, Mário Reis tornouse o pai da moderna apresentação da música popular brasileira. (...)26 Temos ainda nesta época a instalação, modernização e evolução tecnológica das gravadoras no Brasil. Foram instaladas no Brasil as multinacionais Parlophon, Columbia, Brunswick e a Victor todas com equipamento elétrico. foi uma época de muitas gravações na música popular brasileira. Uma das conseqüências é a possibilidade de, assim como no poema, “acompanhar pelas letras das músicas a evolução dos acontecimentos políticos”27, ou seja, de revivermos a história de um período, algo que é uma das características fundamentais do texto literário. Esta é uma função muito bem desempenhada pela crônica e incorporada ao poema pelo Modernismo, que passa a apresentar uma linguagem mais próxima do cotidiano e temas do dia-adia. Dentre os compositores deste período podemos destacar Noel Rosa, um poeta e tanto que nos faz viver um momento histórico com belas imagens. E já na década de 30, segundo Sérgio Cabral, os aparelhos de reprodução fonográfica começam a ser adquiridos pela classe média, dando início a uma era em que o rádio se destacaria cada vez mais como o principal veículo da música popular brasileira e da poesia cantada: “O mercado foi contemplado com a venda a crédito, o que levou a classe média, já nos primeiros anos da década de 30, a substituir o velho piano da sala de visitas pelo aparelho de rádio e pela vitrola, ou pelo gramofone”.28 Após esta fase, teremos a canção popular cada vez mais ocupando espaço nos meios de comunicação, por meio dos programas de rádio e dos festejos de carnaval, que eram seus principais divulgadores. Posteriormente, além do rádio, que ocupa um espaço relevante na cultura brasileira desde os anos 30, embora a primeira estação brasileira de rádio – a Rádio Sociedade – tenha surgido em 20 de abril de 1922 no Rio de Janeiro, teremos a televisão, os festivais e shows difundindo a poesia cantada. O desenvolvimento da radiofonia foi o principal instrumento para revigorar a poesia em sua modalidade cantada. Sendo o elemento fundamental de divulgação de grandes mestres da nossa MPB, como Noel Rosa, Pixinguinha, Silvio Caldas, Orestes Barbosa e tantos outros, o rádio continua exercendo esta função, auxiliado pela televisão, sobretudo a partir dos anos 60. Embora Sergio Cabral marque como o “fim da era do rádio” o ano de 195829, o rádio continua fazendo parte do dia-a-dia do brasileiro, porém de outra forma. Não mais os músicos e cantores ai vivo nas rádios, embora isso tenha se prolongado pelo início da década de sessenta. A partir dos anos 60, temos uma nova era do rádio, cabendo a este veículo a propagação da poesia cantada através das músicas gravadas em LPs. Na verdade, não temos a morte deste veículo de comunicação, apenas uma alteração no seu modo de execução proporcionada pela chegada da televisão ao Brasil em 1950. É lógico que esta alteração não se dá repentinamente, mas sim de forma gradativa durante os anos 50. A frase que se ouvia na rádio Nacional-FM (décadas de 70 e 80) “brasileiro não vive sem rádio” expressa muito bem a relação que o brasileiro continuou tendo com este veículo de comunicação e a música popular propagada por ele. Assim como a rádio não acabou com a chegada da televisão, ele continua tendo seu espaço próprio após a chegada do computador e com um papel fundamental da propagação da música e da poesia cantada de hoje e de outros tempos. Assim como a poesia escrita tem e continuará a ter seu espaço mesmo com todas as inovações tecnológicas. Enfim, um meio não anula necessariamente outro, podem coexistir perfeitamente: reunião de “signos em rotação”, espaço plural.30 Através do rádio a poesia cantada se espalha por todo território nacional, colocando belos versos nos ouvidos e lábios de milhões de brasileiros, para desespero dos conservadores da literatura que valorizam somente a poesia escrita e não consideram a letra de música manifestação literária ou criam rótulos para diminuí-la, como, por exemplo, paraliteratura. Embora fazendo parte da vida brasileira desde que se popularizou nos anos 30, a MPB ganha fôlego novo a partis da década de 60 e 70 com a expansão dos meios de comunicação de massa e a poesia invade lares e bares via música popular brasileira. Temos, então, boa parte dos nossos melhores poetas produzindo poesia para ser cantada. Isso não quer dizer que não tenha existido poesia livresca neste período, porém boa parte dos textos poéticos da época estavam na música popular, seja na bossa nova, na canção de protesto, no tropicalismo, seja nas canções dos festivais ou, posteriormente, no Clube da Esquina e outros. (...) É importante salientar que, neste momento, a música se torna um item fundamental na pauta de consumo de boa parte da juventude das camadas médias das áreas urbanas. A música veiculava não apenas informação estritamente musical, mas também poética e comportamental e, tudo isso, de modo especialmente integrado. (...)31 Originalmente, a literatura era iminentemente um ato social, passando depois a ser um ato predominantemente individual, mesmo considerando que continuaram existindo, como até hoje, audições públicas, recitais de poemas, histórias contadas em rodas familiares e de amigos. O enfoque principal passa a ser o texto escrito em detrimento da oralidade. Em sua origem, a poesia, a música e a dança eram um todo. A divisão das artes não impediu que durante muitos séculos o verso fosse ainda, com ou sem apoio musical, canto. Em Provença os poetas compunham as músicas de seus poemas. Essa foi a última ocasião em que a poesia do ocidente pôde ser música sem deixar de ser palavra. Desde então, toda vez que se tenta reunir ambas as artes, a poesia se perde como palavra, dissolvida nos sons. A invenção da imprensa não foi a causa do divórcio, mas acentuou-o de tal modo que a poesia em vez de ser algo que se diz e se ouve converteu-se em algo que escreve e se lê. Certo, a leitura do poema é uma operação particular: ouvimos mentalmente o que vemos. Não importa: a poesia nos entra pelos olhos, não pelos ouvidos. E ademais, lemos para nós mesmos, em silêncio. Trânsito do ato público ao privado: a experiência se torna solitária. (...)32 Realmente, a partir da invenção da reprodução tipográfica, a poesia afasta-se de suas origens e passa a ser mais vista e lida em silêncio do que ouvida, falada e cantada. Posteriormente, há uma mudança em seu formato proporcionada pelo século XX e a modernidade: a recuperação e a revalorização do som da poesia, principalmente através da música popular, contudo, agora, é um som amplificado. Na verdade, a poesia não se perde e fica “dissolvida nos sons” quando acompanhada da música, apenas há mudanças significativas no pronunciamento das palavras influenciadas pela melodia, ritmo, arranjo e harmonia da linguagem musical. A música reforça a palavra e seu conteúdo poético, obviamente de forma diferente do poema. Pode ser que antes que antes do advento do Modernismo houvesse isso, porém este começa a revitalizar a poesia cantada, ainda que de forma tímida. Todavia, a partir dos anos 60, esta revitalização torna-se irrevogável com a poesia cantada dominando, muitas vezes, a cena poética brasileira. Há, então, um revigoramento da poesia com seu deslocamento para o espaço público. (...) Hoje a situação transformou-se de novo: voltamos a ouvir o mundo, embora não possamos vê-lo. Graças aos novos meios de reprodução sonora da palavra, a voz e o ouvido recobram seu antigo lugar. Alguns anunciam o fim da era da imprensa. Não creio. Mas a letra deixará de ocupar um lugar central na vida dos homens. O espaço que a sustentava já não é esta superfície plana da física clássica, na qual se depositavam todas as coisas, desde os astros até as palavras. (...) hoje o espaço se move, incorpora-se e torna-se rítmico. Assim, o reaparecimento da palavra falada não implica numa volta ao passado: o espaço é outro, mais vasto, e, sobretudo, em dispersão. A espaço em movimento, palavra em rotação; a espaço plural, uma nova frase que seja como um delta verbal, como um mundo que explode em pleno céu. Palavra ao ar livre, pelos espaços exteriores e interiores: nebulosa contida em uma pulsação, pestanejo de um sol.33 Ainda sobre a relação música-poesia, podemos refletir sobre o que Octavio Paz diz: A poesia ocidental nasceu aliada à música; depois, as duas artes se separaram e cada vez que se tentou reuni-las o resultado foi a querela ou a absorção da palavra pelo som. Assim não penso em uma aliança entre as duas. A poesia tem a sua própria música: a palavra. E esta música, como Mallarmé demonstra, é mais vasta que a do verso e da prosa tradicionais. De uma maneira algo sumária, mas que é testemunho de sua lucidez, Apollinaire afirma que os dias do livro estão contados: “la typografye termine brillament as carrière, à l’aurore des moyens nouveaux de reproduction qui sont lê cinema et lê phonographe”. Não creio no fim da escritura; creio que cada vez mais o poema tenderá a ser uma partitura. A poesia voltará a ser palavra pronunciada.34 Há aqui duas posições aparentemente contraditórias, mas que, no fundo, não são excludentes. Primeiro, Paz afirma não crer numa aproximação da poesia com a música, defendendo que a poesia possui a sua própria música e que esta acaba por absorver a musicalidade latente do texto poético. Já Apollinaire dizia que a poesia escrita estava com os dias contados, devido aos novos meios de reprodução fonográfica que permitiriam uma divulgação muito maior da poesia cantada. O próprio Paz conclui dizendo que não crê no fim da escritura, mas que “a poesia voltará a ser a palavra pronunciada”. Ou seja, temos aqui o regresso da poesia às suas origens, quando era basicamente oral. Na verdade, como o próprio tempo já nos mostrou, a poesia escrita continua existindo, assim como a poesia falada e cantada. O que acontece é que, devido ao incremento dos meios de produção fonográfica e desenvolvimento dos meios de comunicação áudio-visuais, a poesia passa, cada vez mais, a se destacar em sua modalidade cantada. Para isso contribuíram, especificamente no Brasil, os movimentos culturais da década de 60, como a Bossa Nova, os CPCs, o Tropicalismo, a Jovem Guarda, os festivais de MPB, as canções de protesto; e a nível mundial, os Beatles, a contracultura, o maio de 1968 em Paris. Contudo, não podemos dizer que uma forma de poesia é melhor que outra ou que uma anula a outra. São formas poéticas que sobrevivem apesar de todo tecnicismo e têm seu espaço na atualidade. Com a difusão cada vez maior da poesia cantada via meios de comunicação de massa, temos, de certa forma, um regresso às origens da poesia quando esta acompanhava o homem em seus afazeres diários. Não queremos dizer com isso que a poesia de nossas canções tem a função exata que tinha na antigüidade. Nesta época, ela estava associada aos rituais, religiões, cultos e os homens é que entoavam e cantavam suas poesias, numa atitude ativa, enquanto os homens de hoje, na maioria das vezes, têm uma atitude passiva, pois só ouvem o que toca nas rádios, muitas vezes sem qualquer atitude crítica e aceitando o que as grandes indústrias fonográficas e a mídia “nos empurram com seus enlatados”.35 Hoje podemos confirmar o que Octavio Paz disse: a poesia é múltipla, está nos papéis (livros, jornais, cartas) nas músicas, nas falas e, ampliando as possibilidades, até nos computadores. Ou seja, “as obras do tempo que se nasce não estarão regidas pela idéia da sucessão linear e sim pela idéia de combinação: conjunção, dispersão, e reunião de linguagens, espaços e tempos . a festa e a contemplação. Arte da conjunção”. Partindo desta idéia de Octavio Paz, podemos afirmar que a canção – letra e música – é uma arte da conjugação”, pois reúne linguagens diferentes que, combinadas, representam uma revitalização da poesia, sendo uma forma de arte que renasce “como ação e representação coletivas e o de seu complemento contraditório, a meditação solitária”.36 Os meios de comunicação de massa conseguiram resgatar um pouco do espaço perdido pela poesia cantada através dos séculos em nossa cultura, ainda que com diferenças fundamentais em relação à poesia cantada época de Aristóteles, apesar de existirem letras de música sem conteúdo poético. Quando falamos desse resgate, não queremos dizer que os preconceitos e ataques a ela findaram ou que já é amplamente aceito o valor poético das letras de música, mas que, aos poucos, a poesia cantada vai encontrando o seu lugar, sendo discutida e analisada por teóricos mais abertos, conseguindo, inclusive entrar na faculdade de letras, ainda que de forma tênue e apesar das posições retrógradas. Também não pretendemos supervalorizar os meios de comunicação de massa e dizer que todas as canções apresentam conteúdo poético, já que várias simplesmente visam apenas a uma aceitação passiva do público, sendo “empacotadas” e massacradas diariamente através da maioria das rádios e tevês. NOTAS: *Verso da canção Sol de Primavera de Beto Guedes e Ronaldo Bastos. **Verso da canção Clube da Esquina 2 de Milton Nascimento, Lô Borges e Márcio Borges. 1 GÓES, F (1993) P. 77. 2 Ibidem, Ibidem 3 MOISÉS, M. (1993) p.125. Sobre o conceito de poeticidade, vale observar dois trechos abaixo recolhidos do livro A criação literária: Mas como a poeticidade se manifesta? Nisto: a palavra é experimentada como palavra, e não como simples substituto do objeto nomeado, nem como explosão de emoção. Nisto: as palavras e sua sintaxe, sua significação, sua forma externa e interna não são índices indiferentes da realidade, mas possuem seu próprio peso e seu próprio valor. (JAKOBSON, J) “Qu’est-ce que la poésie?”, Poétique, Paris, Seuil, 1971, número 7, pp.300, 307, e 307-308. (...) A função poética não é a única função da arte verbal, mas tão somente a função dominante, determinante, ao passo que, em todas as outras atividades verbais, ela funciona como um constituinte acessório, subsidiário. (...) Daí que, ao tratar da função poética, a Lingüística não possa limitar-se ao campo da poesia.” (Idem, Lingüística e Comunicação, tr. Brasileira, S. Paulo, Cultrix, 1969, pp. 127 – 128) 4 ECO, U. (1979), p.56. Umberto Eco apresenta muito bem uma crítica a estas estratificações: Os três níveis coincidem, portanto, com três níveis de validade estética. Pode-se ter produto high brow, que se recomende por suas qualidades de ‘vanguarda’, e reclama para ser fruído certo preparo cultural (...), e que, todavia no âmbito das apreciações próprias daquele nível, venha a ser julgado ‘feio’ (sem que, por isso, seja low brow). E pode haver produtos low brow, destinados a serem fruídos por um vastíssimo público, que apresentem características de originalidade estrutural tais e tamanha capacidade de superarem os limites impostos pelo circuito de produção e consumo em que estão inseridos, que nos permitam julga-los como obras de arte dotadas de absoluta validade. 5 COELHO, T. (1996), p.17. 6 ECO, U. (1979). 7 BENJAMIN, W. (1971) p. 172 – 176. 8 ECO, U. (1979). Umberto Eco analisa bem esta questão, ponderando os erros de cada lado: O erro dos apologistas é afirmar que a multiplicidade dos produtos da indústria seja boa em si, segundo uma ideal homeotase do livre mercado, e não deva submeter-se a uma crítica e a novas orientações. (p. 49) O erro dos apocalípticos-aristocráticos é pensar que a cultura de massa seja radicalmente má, justamente por ser um fato industrial, e que hoje se possa ministrar uma cultura subtraída ao condicionamento industrial. (p.49) O autor diz que a falha está em formular o problema assim: “é bom ou mau que exista a cultura de massa?”. Segundo Eco, o problema é: (...) do momento em que a presente situação de uma sociedade industrial torna ineliminável aquele tipo de relação comunicativa conhecida como conjunto dos meios de massa, qual a ação cultural possível a fim de permitir que esses meios de massa possam veicular valores culturais? (p.50) 9 ibidem, p 39-48 10 ibidem, p.295-299. 11 In: BHAIANA, A. (1980) p. 192-193. 12 ECO, U. (1979) p.305. 13 MOISÉS, M. (1993) p.70. 14 Ibidem, p.20. 15 Ibidem, p.21-22 16 REYES, A. Deslinde, Prolegómenos a la Teoria Literária. México: El Colégio de México, 1944. In: MOISÉS, M. (1993), p.22. 17 CHASE, R. In: Ibidem, p.22. 18 MOISÉS, M. (1993) p.18. 19 MCLUHAN, M. In: LIMA, L.C. (org.) (1969) p.145. 20 PAIXÃO, F (1991) p.102. 21 GÓES, F. (1993) p.73. 22 CABRAL, S. (1996) p.23. 23 PAZ, O. (1972). (...) A palavra poética é histórica em dois sentidos complementares, inseparáveis e contraditórios: no de construir um produto social e no de ser uma condição prévia à existência de toda sociedade. (p.52) (...) Embora comungue no altar social e comparta com inteira boa fé as crenças de sua época, o poeta é um ser à parte, um heterodoxo por fatalidade congênita: sempre diz outra coisa, inclusive quando diz as mesmas coisas que o resto dos homens de sua comunidade. A desconfiança dos Estados e das igrejas diante da poesia não nasce apenas do natural imperialismo destes poderes: a própria índole do dizer poético provoca o receio. Não é tanto aquilo que o poeta diz, mas o que vai implícito ao seu dizer, sua dualidade íntima e irredutível, o que outorga às suas palavras um gosto de liberação. (...) A palavra poética jamais é completamente deste mundo: sempre nos leva mais além, a outras terras, a outros céus, a outras verdades. A poesia parece escapar à lei de gravidade da história porque nunca é inteiramente histórica. Nunca a imagem quer dizer isto ou aquilo. Antes sucede o contrário, como já se viu: a imagem diz isto e aquilo ao mesmo tempo. E mais ainda: isto é aquilo. (pp.55-56) 24 SEVCENKO, N (1992) p.90. 25 CABRAL, S. (1996) p.7. Ibidem, P.18-19. 27 Ibidem, P.20. 28 Ibidem, P.19. 29 Ibidem, P.106. 30 PAZ, O (1972) p.119. 31 PEREIRA, C.A.M. (1981) p.39. 32 PAZ, O. (1972) p.116. 33 Ibidem, P.118-119. 34 Ibidem, P.26-27 35 RUSSO, R. (1984) GERAÇÃO COCA-COLA. In: Legião Urbana. Rio de Janeiro EMI/ODEON, LP 064 422944, 1984. 36 PAZ, O (1972) p.137. 26 3 – ANTES DA ESQUINA A idéia cardeal do movimento revolucionário da era moderna é a criação de uma sociedade universal que, ao as opressões, desenvolva simultaneamente a identidade ou semelhança original de todos os homens e a radical diferença ou singularidade de cada um. (OCTAVIO PAZ – Signos em rotação) 3.1 – Pré-68: “de minha garganta as canções explodem”* Antes de se chegar ao período de produção deste objeto de estudo, 6880, torna-se necessário um regresso aos anos anteriores para que se possa situar o grupo de músicos, compositores e poetas que constituem o Clube da Esquina, para entender como se deu a aproximação destes em torno de Milton Nascimento e como os fatos influenciaram a produção poético-musical do grupo. Fazer um breve histórico dos principais acontecimentos da década de 60 não é uma tarefa fácil, nem é nosso objetivo principal, visto que foi um período de transformações e possibilidades de transformações muito grandes, tanto na política, quanto nas artes e, ainda, no comportamento geral. Por isso nos limitaremos a citar alguns fatos e acontecimentos mais relevantes. Após um início promissor de década nas mais diversas áreas com as Reformas de Base reclamadas pela sociedade e pretendidas pelo Governo João Goulart, temos o primeiro golpe mais duro contra as transformações que vinham acontecendo ou que estavam por vir: a tomada do poder pelos militares em 31 de março de 1964, mesmo dia em que Milton estréia em uma boate. “Por questão de sobrevivência, Milton passa a tocar contrabaixo no conjunto Berimbau Trio (formado por ele, Wagner Tiso e Paulinho Braga) na boate Berimbau, inaugurada em 31 de março de 1964”.1 Neste inicio dos anos 60, temos uma “poesia de vanguarda ou de dicção populista”, quando é feito o anteprojeto do Centro Popular de Cultura que “postula o engajamento do artista “ e distribui os artistas e intelectuais em três grupos: “ou conformismo, ou inconformismo (“revolta dispersiva”) ou a atitude revolucionária conseqüente”.2 Após o golpe de 64, “apesar da ditadura há relativa hegemonia cultural da esquerda no país”, segundo Roberto Shuwarz.3 O golpe militar age mais drasticamente, neste primeiro momento, sobre os movimentos populares, sindicais e partidos políticos. Por isso, continua a predominância do ideário esquerdista na cultura, propagando-se, prioritariamente, entre professores e estudantes universitários e secundaristas, e intensificando-se cada vez mais até chegar o “dezembro negro” de 68. Então, a MPB, que já vinha sendo revalorizada e redimensionada pela Bossa Nova estreitando a inter-relação letra e música, exerce influência cada vez mais significativa na juventude brasileira, destacando-se, depois, o Tropicalismo, as Canções de Protesto, e os festivais de música. Ou seja, “a música popular emerge também como um importante veículo de poesia, domínio de pesquisas estéticas e campo de batalha entre as vanguardas artísticas”.4 No pós-64 há vários acontecimentos importantes, não necessariamente nesta ordem: a ilegalidade da UNE, os primeiros atos institucionais do General Castelo Branco, o fim da eleição direta, o show Opinião, o Cinema Novo, Terra em Transe, os festivais de música, “Geração Paissandu”, CPC X Vanguarda e, ainda, manifestações estudantis contra atitudes autoritárias e por reformas em vários países culminando no maio de 1968 na França. Estes fatos influenciaram com certeza os jovens da época, em especial aqueles que sonhavam um mundo melhor e começaram a produzir arte nesta época, como foi o caso de Milton Nascimento, Márcio Borges, Fernando Brant, Ronaldo Bastos, Lô Borges e outros. Em relação à literatura escrita deste período, Heloísa Buarque de Holanda diz que ela “aparece desarticulada, como se não tivesse encontrado a forma de adequar-se a essa efervescência”, ou seja, temos os poetas já conhecidos como João Cabral, Carlos Drummond e outros, contudo suas produções não estão diretamente ligadas à multiplicidade cultural requerida pelo público. 5 Destacam-se na segunda metade da década de 60 a explosão do Tropicalismo e os festivais de música promovidos pelas redes de televisão. O Tropicalismo (com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Net, Capinam e outros) misturando vários movimentos culturais e políticos da juventude (Beatles, o cinema de arte, destacando-se Godard e Truffaut, Bob Dylan, os hippies, contracultura) e valorizando entre outros elementos o fragmentário, a valorização do tempo presente, a construção literária das letras, a crítica de comportamento e, principalmente, o alegórico. Os festivais possibilitando o surgimento e/ou consagração de vários artistas de qualidade e com características variadas: Chico Buarque, Edu Lobo, Geraldo Vandré, Milton Nascimento, entre outros. Sem pretensão de estudar com minúcias a década de 60, mas apenas dar uma idéia da riqueza e diversidade de valores surgidos então, temos nomes como os citados acima e muitos outros, que não se esgotam nesta lista, como Nara Leão, Paulinho da Viola, Paulo César Pinheiro, Mutantes, o pessoal da Jovem Guarda. Ou seja, é um período extremamente rico para a nossa poesia cantada. Apesar de já estarmos num regime ditatorial, é em 1968 que ocorre o golpe fatal para a democracia e a liberdade no Brasil: AI-5 (Ato Institucional N.º 5). É o grande “divisor de águas” de nossa história recente e que decreta, entre outras medidas, a censura prévia aos meios de comunicação, o fechamento do Congresso, ou seja, o fechamento completo do regime. Isso acarretará reflexos evidentes na vida política, cultural e artística. Sobre o clima reinante nessa época, Márcio Borges sintetiza usando uma linguagem cinematográfica e comovente: (...) Estudantes são mortos em Ohio. São mortos no Rio. São mortos em toda parte, ah, look at all these lonely people… Galeno sumiu. Beto Freitas sumiu. Inês sumiu. Ricardo Vilas sumiu; os que não caíram ainda, ou não se exilaram viraram freaks nas ruas, na praia, no mato, que ninguém quer morrer e a morte agora ronda a juventude. A barra pesou. (...) Tudo acontece no seio da juventude, do terror ao êxtase, mas o globo terrestre continua dominado pelos gerontocratas (...) Doze artigos desabam sobre nós e tornam todos os brasileiros reféns indefesos da ditadura. (...) os atos institucionais da ditadura estão matando o que restava do belo de no horizonte perdido de nossos ideais. Agora é hora de muita paranóia. Deise se suicidou. Serginho do Levy se suicidou... (...) este dezembro negro vai ficar na memória de todo mundo... sem lenço, sem documento seria LSD? Onde andarão os que sumiram? Estão vivos? Ou mortos. O O DOPS empastelou a sede nova do CEC (...)6 Segundo Gilberto Vasconcellos, (...) depois de 1969, época em que a hegemonia cultural de esquerda sofre um golpe mortal com a implantação do AI-5 e a conseqüente despolitização vigente no país, a noção de vanguarda entendida em termos de grupo desaparece no cenário da MPB. (...)7 Entretanto, sem o intuito de enquadrá-los como vanguarda, o pessoal do Clube da Esquina representa um dos principais focos de produção poéticomusical coletiva da década de 70, período marcado de um lado pelo endurecimento do regime com prisões, torturas, mortes e intimidações para quaisquer tentativas de oposição e de outro pela tendência ao individualismo, surgimento de focos guerrilheiros em vários lugares e de grupos envoltos pelo “pé na estrada”, pelo pó na/da estrada. Ou seja, temos uma necessidade em vários jovens, já influenciados pelo ideal da contracultura disseminado em outros países e marcados direta ou indiretamente por todo passado recente do Brasil, da busca de convívios grupais que objetiva não só a fuga da triste realidade, mas também uma maneira de não apagar completamente suas idéias e seus sonhos. O desejo utópico realiza-se aqui em duas vertentes: ao mesmo tempo em que é fuga da triste realidade, transforma-se em algo de concreto: a organização de grupos. O Clube da Esquina representa a necessidade de convívio e criação coletiva como uma forma de resistência cultural, deixando-nos perceber vários elementos que refletem o período, além da visão geral já aceita para seus principais representantes que é a do “pé na estrada” e do “desbunde”. Sem querer negar estes dois elementos, muito pelo contrário, ampliaremos as conotações da obra do “grupo”, formando um painel da década de 70. Em suma, desde 1964, a MPB passa a exercer influência notável na juventude brasileira até a chegada à “cultura da depressão”, termo usado por Gilberto Vasconcellos para designar o período de 1969 a 1974, marcado por “variações no irracionalismo, no misticismo, no escapismo e sob o signo da ameaça”. 8 E com Caetano, Gil e Chico no exterior, o Clube da Esquina assume o movimento de resistência na MPB. 3.2 – A travessia de Milton 9 Antes de falar propriamente do surgimento do Clube da Esquina, é necessária uma retrospectiva do passado do elemento aglutinador do “grupo”: Milton Nascimento, ou, simplesmente, Bituca para os amigos mais íntimos. Segundo várias pessoas que passaram pelo “clube”, entre as quais Nélson Ângelo, foi ele quem juntou, “polarizou” essas pessoas todas por ser muito admirado, talentoso, carismático, no sentido de juntar gente, provocando “uma montanha de amizade”.10 é conveniente lembrar que o Clube nunca foi um grupo formalmente estruturado, embora estejamos utilizando esta terminologia desde o início. Na verdade, eles nunca constituíram um grupo nos moldes tradicionais, entretanto no período de 1970 a 1978 estão quase sempre juntos, inclusive no que se refere à participação nos discos dos diversos integrantes. Milton Nascimento nasce em 1942 e é carioca da Tijuca, embora “adotado” por Minas Gerais. Ele é levado ainda recém-nascido para Três Pontas (MG) por seus pais adotivos. Lá, por volta dos 15 anos, forma o seu primeiro conjunto musical – o “Luar de Prata” – com Wagner Tiso, mineiro, colega de infância e primeiro parceiro. Depois passa por algumas outras experiências em conjuntos e sai cantando e tocando por clubes de várias cidadezinhas. Em 1963, uma primeira guinada em sua vida. Decidido a seguir uma carreira artística e consciente de que esta não podia ser construída em Três Pontas, Milton muda-se para Belo Horizonte e logo conhece alguns de seus futuros parceiros, como Márcio Borges (mineiro nascido em 1946), seu irmão Lô Borges (mineiro nascido em 1952, um garoto ainda) e, posteriormente, Fernando Brant (mineiro nascido em 1946). Milton por um acaso vai morar também no edifício Levy, onde morava a família Borges, tornando-se amigo inicialmente de Marilton, que também era músico, e depois de todo o clã dos Borges, em especial de Márcio e Lô. O período em que moraram no Levy propiciou não só uma grande amizade entre Milton e os Borges a ponto de ser considerado o décimo segundo filho da família, como também o início de uma parceria com Márcio Borges e, posteriormente, já em Santa Tereza (Belo Horizonte), com Lô Borges. Desde então, Milton passa a tocar contrabaixo e a cantar em boates ao lado de seu amigo Wagner Tiso que também havia se transferido para Belo Horizonte. Os dois são convidados a integrar o conjunto Sambacana, com o qual viajam para o Rio de Janeiro em 1964, a fim de gravarem dois discos. Na verdade, Milton e Márcio Borges começam a se aproximar e tornamse amigos em 1964 quando passam a sair junto para conversar, beber, ir ao cinema, uma das paixões de Márcio Borges que sonhava ser cineasta com Milton fazendo a trilha sonora de seus filmes. Sobre as primeiras composições de Milton, Márcio diz: (...) Os arranjos que criava para músicas alheias eram algo inédito, profundamente original e estranho, não se pareciam com nada que alguém pudesse ter ouvido antes. Tinha de tudo ali, Yma Sumac, carro de boi, vento no cafezal, Miles Davis, Tamba Trio, Nelson Gonçalves, hino católico, trilha de faroeste, e ao mesmo tempo não tinha nada, só Bituca e sua voz retinida de taquara não-rachada, animal extraterreno enjaulado a força, e no entanto capaz de doçura de mangue, de fruto suculento. Original.11 De fato, a música de Milton, assim como a de vários outros “mineiros”, possui uma enorme universalidade aliada a um forte provincianismo. Segundo Nélson Ângelo, essa foi uma vantagem do local, pois “em Minas Gerais se ouvia de tudo, com a cabeça totalmente despretensiosa”. Ouvia-se congada, Bach, Chopin, Blues, Jazz, os Beatles (segundo ele, um capítulo à parte). Enfim, “época de uma grande riqueza” com “músicos que tocam bem, harmonias sofisticadas, composições sofisticadas” devido a essas e outras influências, como a bossa nova.12 É importante destacar o grande incentivo dado pelo amigo Márcio Borges à carreira de Milton Nascimento, que, na época, era também datilógrafo, ou melhor, como ele mesmo preferia dizer, escriturário, fazendo isso para se sustentar. Márcio foi o grande estimulador da carreira de Milton, de quem se tornou seu primeiro parceiro nas composições, após uma profunda amizade que consolidava entre ambos, cujo marco foi o filme Jules et Jim de François Truffaut. “No dia de ver Jules et Jim, estávamos felizes como dois meninos em férias deliciosas, Felizes porque fazia uma bela tarde ensolarada, éramos jovens e fortes e apesar da ditadura íamos ver um filme genial”.13 Após assistirem ao filme três vezes, surgem as primeiras “filhas” como passam a chamar as parcerias feitas por eles: (...) Fomos direto para o Levy, direto para o ‘quarto dos homens’. Sem delongas, Bituca pegou seu violão (...) e inventou um trema; melhor destilou tudo aqui, todas as emoções que andara sentindo nos últimos tempos, desde sua mudança para o Levy, culminando naquelas seis horas ininterruptas que passara concentrado na magia de uma linda história de amor escrita com luz e sombra (...) Por minha vez, eu rabiscava algumas palavras em torno do tema que descrevia a mim próprio como Paz do amor que vem.14 Márcio afirma que “as eras poderiam se dividir, a partir desse fato consumado, em A.J.J e D.J.J”, isto é, antes e depois de Jules et Jim.15 Nesta noite, sob efeito do filme e do momento, os dois compõem três músicas: Paz do amor que vem (Novena), Gira-girou e Crença. Podemos destacar Novena (nome que vai figurar sozinho nas gravações posteriores), que, além de estar no primeiro LP de Milton, é regravada duas vezes: primeiro, no LP de Beto Guedes Amor de Índio (1978) e depois no Ângelus (1993) de Milton. A canção lembra realmente uma novena, só que pelo amor, pelos “deserdados desse chão”, misturando ternura e preocupação social. NOVENA (Milton Nascimento e Márcio Borges) se digo um ai é por ninguém é pela certeza de saber que tudo tem tem sua vez de lá retornar ao lugar mais fundo fundo fundo mais que o mar se digo sol não tem vez não espero mais a chuva só preparo meu coração a explosão de toda luz a chama chama chama chama se digo amor só é por alguém é pelos malditos deserdados desse chão Depois desse dia, as canções continuam saindo. Milton criando temas musicais e Márcio criando letras, poesias. Havia todo um ritual, como Márcio relata, com os dois indo comemorar em um bar chamado Bigodoaldo’s. O proprietário ficava ao lado da mesa deles, escutando os poemas inéditos, “as filhas” recém-nascidas que eram criadas após os filmes que viam e reflexões sobre o momento histórico: (...) A gente se isolava, refletia sobre as mazelas que tinha diante dos olhos, representadas sobejamente pela barra pesada, pela repressão da ditadura, e criava uma representação musical da ternura, do amor e da ira que tais reflexões suscitavam. Alguns amigos da turma não viam com bons olhos aquele isolamento do resto da turma. (...)16 É importante ressaltar a existência de dois grupos freqüentados por Márcio e Milton nesta época em Belo Horizonte: o CEC (Centro de Estudos Cinematográficos) e o Ponto dos Músicos, “uma calçada da Avenida Afonso Pena onde os profissionais do ramo se encontravam para fechar contratos de bailes, arregimentar instrumentistas ou simplesmente confraternizar.” O primeiro confirma uma grande atração dos jovens de então pelo cinema, em especial os filmes de Godard e Truffaut que influenciaram a geração. O segundo era regularmente freqüentado pelos dois, onde conheceram algumas das pessoas que mais influência exerceram em suas vidas e carreiras naqueles dias. Algumas dessas pessoas que freqüentavam o Ponto dos Músicos e tocavam com os crooners Marilton Borges e Milton: Helvius Vilela, pianista; Wagner Tiso, pianista e arranjador; Pacífico Mascarenhas, o “mestre” que também incentivou muito a carreira de Milton, também ligado a outras pessoas da Bossa-Nova no Rio e autor de um método de ensino de violão; Paulo Horta, cantrabaixista; Nivaldo Ornelas, sax; além dos dois “papas” Chiquito Braga e Valtinho Batera.17 Esse ambiente de qualidade musical ao encontrar poetas talentosos e com aspirações políticas e artísticas comuns vai desaguar no trabalho coletivo poético-musical: Clube da Esquina. Mais um elemento importante ainda no ano de 1964: o grande desejo de modificar o mundo que já se delineava em ambos, apesar de sufocados pela recém instaurada ditadura militar – “poderíamos influir no destino dos seres humanos, uma verdadeira revolução aconteceria no planeta, conduzida pela juventude e pelo movimento estudantil, voltariam as emoções de 1917 na Rússia”.18 Há um relato interessante de um nova conversa de Márcio com Dickson, colega do Levy, em que este diz: “Nada é mais genial do que música. Cinema... tem música. Teatro... tem música, Balé... tem música. Não é a toa que Vinícius abandonou a diplomacia e a poesia literária para fazer música popular. Edu Lobo é genial, não acha não, Godard?” (Godard é como Dickson chamava Márcio.) Márcio responde: “Claro, genial”. Aí começa uma pequena discussão entre os dois, quando Dickson fala “O negócio é fazer poesia para ser cantada, que nem Vinícius”. Ao que Márcio responde, dizendo que Vinícius faz letra de música, assim como ele, reiterando isso. Na verdade ambos falam do mesmo tipo de texto, contudo esta divergência de denominação revela uma resistência incutida nas cabeças das pessoas a considerar a letra de música uma forma de poesia; por isso a insistência de Márcio em afirmar e reafirmar que aquilo que faz é letra de música.19 Embora ele próprio tenha dito que não gosta de ser chamado de letrista. Nesta época, Belo Horizonte, como outras cidades brasileiras, vivia uma agitação intensa: organização dos estudantes, reuniões acaloradas nas universidades, diretórios. Enquanto isso, “camburões se multiplicavam nas ruas. Soldados montados em cavalos moviam-se por entre os ônibus. Caminhões verde-oliva estacionados em cruzamentos. E, às vezes, noites estranhamente calmas e paradas”. Este clima parece anunciar outras tantas noites igualmente “calmas e paradas” que seriam retratadas nas canções feitas pela turma do Clube da Esquina nos anos subseqüentes.20 Em meio a esta situação, Milton conhece Fernando Brant através de Sérvulo Siqueira, um amigo comum que estudava com Fernando no Colégio Estadual e quem os apresentou. Eles inauguram a amizade “do melhor jeito que se conhecia: bebendo”, “Fernando gostava de poesia, sabia de cor versos inteiros de Garcia Lorca, Fernando Pessoa” e depois de conversarem, Milton convida Fernando, que até então não escrevia nada, para escrever no dia seguinte. Estava surgindo uma preciosa parceria deste encontro, que seria responsável por uma das melhores parcerias da MPB.21 Segundo Márcio Borges, eles criavam as canções estimulados pelas discussões sobre temas principais das conversas daquela época: socialismo, revolução, cinema, cultura, movimento estudantil, clandestinidade. Havia uma vontade muito grande de mudar o mundo e alguns jovens se dispunham de corpo e alma para isso. “Belo Horizonte, mais do que nunca, fazia parte integrante do mundo. Surgia pela primeira vez na província a consciência de pertencermos a uma civilização planetária”.22 Essa cidade, ao mesmo tempo provinciana, cada vez mais universal e sob o sufoco do regime, foi o local que possibilitou a aproximação desses compositores, poetas e músicos. Além desses acontecimentos, Belo Horizonte, como outras cidades brasileiras e do mundo, via explodir a “beatlemania”. Entretanto, essa “beatlemania” não atingiu os músicos do Levy que “continuavam preferindo jazz e bossa-nova, Os Cariocas, Johnny Alf, Tito Madi, Tamba Trio, Claudete Soares” e ainda Elis Regina que apareceu na época comandando o programa O Fino da Bossa. Sérvulo só falava deum trio chamado Jimi Hendrix Experience.23 No entanto, Milton estava levando muito a sério os Beatles e dizia que os meninos, Lô, Yé Borges, tinham que ver o primeiro filme dos Beatles, A Hard Day’s Night. Na época, tinham, respectivamente, doze e onze anos. Fascinados com os Beatles, os dois formam o conjunto com Beto Guedes e Márcio Moreira, treze anos: The Beavers, os castores. Eles ensaiavam as canções dos Beatles e se apresentavam em festinhas. Paralelamente, iam surgindo e se aprimorando novas gerações de compositores e músicos, a destacar: Nélson Ângelo (que acompanhou Milton durante dez anos), Sirlan, Murilo Antunes, Tavinho Moura, Toninho Horta, Flávio Venturini, Vermelho, Hely. Os três últimos, posteriormente, vão fundar o grupo 14 Bis juntamente com Cláudio Venturini, irmão de Flávio. Em 1965, a TV Excelsior paulista está à procura de jovens interpretes pra o I Festival de Música Popular e manda chamar Milton, que se classifica em terceiro lugar a música Cidade Vazia (de Baden Powell e Luís Fernando Freire) e conquista o prêmio Berimbau de Bronze (de interpretação). Neste ano, há dois outros acontecimentos que merecem ser citados: o fechamento do bar Bucheco, onde se reuniam clandestinamente jovens em Belo Horizonte e a mudança de Milton para São Paulo. Entretanto, esta fase em São Paulo não foi muito positiva para Milton. Já no ano seguinte, Elis Regina grava uma canção de sua autoria: Canção do Sal, uma canção de trabalho que inicialmente era um poema. Este foi um dos primeiros textos de Milton; o outro foi E a gente sonhando feito para Márcio Borges. Depois disso, há uma participação no festival Berimbau de Ouro com a canção Irmão de Fé, de Milton e Márcio, porém esta é desclassificada logo na primeira eliminatória e Milton jura que não se inscreverá mais em festivais. Entretanto, Agostinho dos Santos, que resolvera apadrinha-lo, havia inscrito, sem o conhecimento de Milton, Três músicas no II Festival Internacional da Canção, que aconteceria brevemente no Rio de Janeiro. O ano de 67 é marcante, pois Milton consegue classificar estas três músicas entre quinze finalistas do Festival Internacional da Canção da Rede Globo, obtendo o segundo lugar com Travessia, marcando o início da frutífera parceria com Fernando Brant. As outras músicas foram Morro Velho, (sétima colocada) e Maria, minha fé de Milton. Destas três, vale a pena destacar Travessia, não só por ser a primeira música de Milton que realmente estoura a nível nacional, mas também por ter sido a primeira parceria dele com Fernando Brant e primeira letra de música deste, que se tornaria seu principal parceiro no futuro. Travessia, inicialmente, tinha o nome de Vendedor de Sonhos. Na época em que os dois mostraram a canção para Márcio Borges, este só não gosta do primeiro verso “Quem quer comprar meus sonhos?”, dizendo achar “esquisito esse negócio de comprar sonhos”. De fato, a sua sugestão foi aceita e a canção ficou melhor sem este verso: TRAVESSIA (Milton Nascimento e Fernando Brant) Quando você foi embora fez-se noite em meu viver forte sou mas não tem jeito hoje eu tenho que chorar minha casa não é minha e nem é meu este lugar estou só e não resisto muito tenho pra falar Solto a voz nas estradas Já não quero parar meu caminho é de pedra como posso sonhar sonho feito de brisa vento vem terminar vou fechar o meu pranto vou querer me matar Vou seguindo pela vida me esquecendo de você eu não quero mais a morte tenho muito o que viver vou querer amar de novo e se não der não vou sofrer já não sonho hoje faço com meu braço meu viver Embora frustrado por não ter conseguido classificar uma canção sua com Milton para o Festival, Márcio concorre colocando letra numa melodia feita por Toninho Horta: Correntes. Contudo, as luzes do sucesso que incidiam sobre eles “não ofuscavam a visão clara de que tempos difíceis eram aqueles e os que estariam por vir”.24 A repressão aumentava, a liberdade cada vez mais ameaçada. Vários freqüentadores do Ponto dos Músicos já haviam deixado ou deixariam Belo Horizonte nessa época. A maioria, como Nélson Ângelo, Wagner Tiso, Nivaldo Ornelas, tinha um destino em comum: Rio de Janeiro. Ainda neste ano de 67, Milton, que também havia se mudado para o Rio conhece outro futuro parceiro, Ronaldo Bastos (carioca de Niterói), num pésujo da rua Voluntários da Pátria, segundo o que o próprio Ronaldo conta em entrevista a O Globo de 27/04/95.25 Após o festival em que Milton se consagra com Travessia, Márcio Borges retorna à Belo Horizonte, depois de um período no Rio, quando a família Borges está voltando para a casa da rua Divinópolis 89 em Santa Tereza. Milton continuava no Rio, de onde mandava cartas para Márcio. “Numa delas, Bituca me revelou que tinha conhecido um grande cara. A carta falava de passeatas, líderes estudantis, organização de artistas, mas o que fascinou Bituca foi que o rapaz além de tudo era um inspirado poeta”. Esse cara era o Ronaldo Bastos que, no momento, recuperava-se de uma hepatite. (...) [Ronaldo Bastos] aproveitava o tempo ocioso para ler muito, criar novos poemas, roteiros, projetos gráficos – e agora também letras de músicas com seu mais recente amigo e parceiro, doravante companheiro de trincheira, numa jornada destinada a durar anos e anos, iniciada ali, doente na cama, com as primeiras composições da dupla, Rio Vermelho (Co-autoria de Danilo Caymmi) e Três Pontas (...)26 Rio vermelho foi a primeira parceria de Milton e Ronaldo Bastos e já revelava um dos aspectos predominantes na poética de Ronaldo: o verso transformado em arma de combate contra os desmandos da ditadura e ajudando a luta dele, Márcio e Fernando, então estudantes, e a de tantos outros da época: De minha garganta as canções explodem em pontas de faca rasgando espaço e vêm minha luta ajudar, ê... (...) lutei e meu leito águas claras se fez vermelho, o sangue tingia mas não parei de lutar, perigo é meu guia só me entrego pro mar, ê... Está, então, construído o alicerce central do Clube da Esquina: Milton Nascimento, Márcio Borges, Lô Borges, Fernando Brant e Ronaldo Bastos, ressaltando que o enfoque central deste estudo são os textos poéticos e que esta denominação inicialmente se referia ao grupo freqüentado por Lô, Beto Guedes e outras pessoas da mesma faixa de idade. Depois do festival, Milton assina contrato com uma gravadora desconhecida chamada Codil e grava seu primeiro LP, reunindo as três músicas do Festival Internacional da Canção; Paz do amor que vem (Novena), Gira-girou, Crença, as três primeiras parcerias de Milton com Márcio Borges; duas em parceria com Ronaldo Bastos e Outubro (de Milton e Fernando Brant), a segunda parceria com Fernando Brant. Em 1968, Milton grava seu primeiro LP nos Estados Unidos pela gravadora A&M Records com quase todas as músicas do primeiro disco no Brasil, porém com arranjos novos feitos por Eumir Deodato e com músicos americanos; incluindo, ainda, Canção do Sal e Vera Cruz. Esta merece uma atenção especial por ser a tentativa de Márcio Borges em realizar uma obraprima: “a tal idéia da mulher-país, linda e perdida”.27 Para este disco e gravação, Ronaldo mexe na letra sem Márcio saber. Esta canção será retomada no álbum duplo Clube da Esquina 2, como observaremos mais adiante, a partir de uma pergunta colocada por Milton: “O que foi feito de Vera?”. VERA CRUZ (Milton Nascimento e Márcio Borges) Hoje foi que perdi Mas onde, já não sei Me levou para o mar Em Vera me larguei E deito nessa dor Meu corpo sem lugar Ah! quisera esquecer A moça que se foi De nossa Vera Cruz E o pranto que ficou Da morte que sonhei Nas coisas de um olhar Ah! Nos rios me larguei Correndo sem parar Buscava Vera Cruz Nos campos e no mar Mas ela se soltou No longe se perdeu Ah! Quisera encontrar A moça que se foi No mar de Vera Cruz E o pranto que ficou Do norte que perdi Nas coisas de um olhar. A procura de Vera (o Brasil) parece refletir o inconsciente coletivo da época em busca de um país mais livre, justo que “se solto e no longe se perdeu”. É interessante notar como a letra retrata a idéia de frustração, de utopia perdida, da falta de norte que ia se configurando devido ao endurecimento do regime ditatorial. Ainda nesse ano, vários fatos importantes acontecem no Brasil e no mundo: os protestos estudantis em vários países, culminando no “maio de 68” em Paris; o assassinato do estudante Édson Luís pelo regime militar; a Passeata dos Cem Mil; o aumento da repressão e do cerco militar no Brasil, culminando com a “bomba” do AI-5 que acaba com a liberdade democrática, sindical, social, política, estudantil, artística, enfim, com a possibilidade de pensar diferente a sociedade e o mundo. Antenado a estes e outros fatos, Milton participada Passeata dos Cem Mil e, junto com Ronaldo Bastos, faz a canção Menino, um tributo ao estudante Édson Luís, que só seria gravada em 1976 no disco Geraes, pois, segundo Márcio, “o tema era doloroso demais” e eles não queriam parecer oportunistas. MENINO (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos) Quem cala sobre teu corpo consente na tua morte talhada a ferro e fogo nas profundezas do corte que a bala riscou no peito quem cala morre contigo mais morto que estás agora relógio no chão da praça batendo, avisando a hora que a raiva traçou no tempo no incêndio repetindo o brilho do teu cabelo quem grita vive contigo Segundo Márcio Borges, os músicos dividiam-se em dois grupos nesta época: os que ele conhecia e “preferiam ficar falando de jams, riffs, scats, chorus, terças, quintas, sétima menor com nona, especialidades” apesar de toda repressão militar, causas revolucionárias e estudantis; e “os que gostavam de queimar um, freqüentavam as dunas do barato, território livre na área dos tubulões que estavam sendo instalados na área de Ipanema”. Entretanto “em Beagá o ‘desbunde’ era muito malvisto”, pois os jovens, em geral, queriam mais compromisso e participação. Ainda sobre isso, Márcio diz: “tudo o que pudesse ser qualificado de ‘desbunde’ era digno de reproches e, por extensão, aquele lado Tomzé e Wally Sailormoon da Tropicália, aquele lado Navilouca e Hélio Oiticica (...)”.28 No entanto, o “desbunde” também pode ser visto como uma forma de revolta contra a tirania, embora isso não fosse aceito por setores da esquerda que dizia ser um movimento importado dos Estados Unidos. Em suma, “era uma contrapartida para aqueles jovens que não se exilaram (ou foram exilados) nem tinham a coragem ou a insensatez de pegar em armas”.29 Falando sobre os efeitos do AI-5 sobre a sociedade brasileira, Márcio diz: “Era o estilo, do guarda de rua ao servidor público, era a figura da ‘autoridade’, o vizinho delegado que passou a se sentir mais poderoso, o chefe de repartição subitamente tornado ‘importante’.”30 No meio deste clima, em 1969, é lançado o primeiro LP pela EMI/ODEON Milton Nascimento que reúne canções do próprio Milton, parcerias entre ele e Fernando Brant, Márcio Borges, Nélson Ângelo, Ronaldo Bastos, Toninho Horta, dentre as quais vale destacar: Sentinela (de Milton Nascimento e Fernando Brant), Pai Grande (de Milton Nascimento) Tarde (de Milton Nascimento e Márcio Borges), Aqui oh! (a primeira parceria de Toninho Horta e Fernando Brant) e Quatro luas (de Nélson Ângelo e Ronaldo Bastos). Nesta última, percebe-se o espírito revolucionário que norteava muitas pessoas no fim dos anos 60. Contudo, esse “norte” havia se perdido em algum lugar, ou melhor, barrado pelo AI-5 e pelos militares. Pode-se relacionar esta canção com a imagem de perda de Vera Cruz delineada por Márcio Borges.31 QUATRO LUAS (Nélson Ângelo e Ronaldo Bastos) ... a violência, bandeira que eu vou levar pensei nunca mais voltar pensei, pensei no rumo incerto mas certo de encontrar meu sonho vivo perdido em qualquer lugar eu sei, não vou descansar eu sei, eu sei... Este disco já traz um pouco do clima de trabalho coletivo que viria a ser uma marca registrada do Clube da Esquina. Isto pode ser comprovado na contracapa do disco, onde há um texto de Milton que diz, entre outras coisas: “... no Aqui Oh! A pá toda deu palpites”.32 Neste final dos anos sessenta, temos uma grande diversidade musical sintetizando o que foi a década em termos de música brasileira: a Bossa Nova, sempre e ainda em voga, a Jovem Guarda, o Tropicalismo, as canções de protesto e engajadas, os festivais da canção. Na música mundial, temos os Beatles, Jimi Hendrix, Rolling Stones. No meio de toda essa riqueza musical, surge Milton Nascimento juntamente com outros compositores e músicos, que, certamente, sofrem influências dessas variedades musicais. Para Eumir Deodato, Milton era “uma coisa nova, misteriosa, intrigante e instigante”. Para Márcio: (...) a música de Bituca revelava sua qualidade única. Seu som tinha uma força emotiva admirável. A vida de Minas, a circunspecção do nosso povo, a herança cultural do interior, o ritmo polidividido do ‘Vera Cruz’ deslizando sobre trilhos, em compassos complexos, tal como tantas vezes eu e ele ouvíramos naquela areazinha que existe atrás dos vagões de passageiros, tantas vezes fomos ao Rio de trem, tudo se encontrava e entornava na voz bailarina e no violão pontilhado do meu bom Vituperatus, o nobre Ludwig Von Betúcious. Para o mercado americano acostumado a por rótulo debaixo de cada produto – jazz, rock, fusion, country – , Bituca iria representar um desafio. (...)33 Enfim, a travessia de Milton, conforme se pode observar, tem como marca fundamental o trabalho coletivo, a vivência em grupo, que vai se consolidar no álbum duplo Clube da Esquina. NOTAS: *Verso da canção Rio vermelho de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos. 1 BORGES, M (1996) p.45. 2 HOLLANDA, H B de (1981) p18. 3 SCHWARZ, R (1978) p.62. 4 VASCONCELLOS, G. (1977) p.37. 5 HOLLANDA, H B de (1981) p32. 6 BORGES, M (1996) p.190. 7 VASCONCELLOS, G. (1977) p.37. 8 Ibidem, p.66. 9 As informações sobre a travessia de Milton foram recolhidas, principalmente, de três fontes: Os sonhos não envelhecem, Nova história da música popular brasileira/Milton Nascimento e Brasil Musical. Quando foi preciso, optou-se por alguns trechos, em especial do primeiro, para passar o clima da época pela visão de um dos principais integrantes do Clube da Esquina, Márcio Borges. 10 ÂNGELO, N. Depoimento do autor em 24/06/1998. 11 BORGES, M. (1996) p.46. 12 ANGELO, N. Depoimento do autor em 24/06/1998. 13 BORGES, M. (1996) p.55. 14 Ibidem, p.59. 15 Ibidem, p.60. 16 Ibidem, p.61. 17 Ibidem, p.65-67. Dentre dezenas de músicos que freqüentaram o Ponto Músicos, Chiquito Braga e Valtinho Batera eram os que, no dizer do jovem saxofonista Nivaldo Ornelas, ‘detinham a informação’, eram the best. Chiquito, guitarrista, ensinou alguns dos melhores músicos que saíram do Ponto. Toninho Horta vinha ver Chiquito tocar desde pequeno, trazido por seu irmão contrabaixista, Paulo Horta, para ver como é que devia ser. 18 Ibidem, p.69 19 Ibidem, p.88 20 Ibidem, p.100. 21 Ibidem, p.105-106 22 Ibidem, p.111. 23 Ibidem, p.115-116. 24 Ibidem, p.160. 25 O GLOBO (27/04/1995), Segundo caderno, “O Clube da Encruzilhada”. 26 BORGES, M. (1996) p.165-167 27 Ibidem, p.166. 28 Ibidem, p.195. 29 MACIEL, L, C (1996) p.121. 30 BORGES, M. (1996) p.121 31 Sobre Quatro luas, vale a pena ver o que Márcio Borges diz: No Rio, aproximados e amigos, Nélson Ângelo e Ronaldo Bastos haviam acabado de compor Quatro Luas, a cuja letra não prestei atenção no momento, mas em que, depois, diante dos fatos posteriores, Ronaldo tendo que sair de circulação por uns tempos, indo viver em Londres, pude perceber o reflexo de suas incertezas e angustias naquela hora difícil... 32 NASCIMENTO, M. (1969), contracapa do disco. (...) Aliás a pá é essa: Novelli, Mauricio, Robertinho, Luiz Fernando, Helvius, Nélson Ângelo, Toninho Horta, Wagner Tiso, que formam a “cozinha” e o coro. Fora os palpites, confusões, imposições, poliritmias, bagunças, viagens a Minas Gerais, garrafas esvaziadas de um indivíduo chamado NANÁ e Fernando e Márcio, meus grandes amigos. (...) Ainda tem: David, Ronaldo, Zé, Ricardo. A colher de chá dos maestros Orlando Silveira e Gaya. E a voz do Toninho no Aqui, oh! 33 BORGES, M. (1996) p.175. 4 – O CLUBE DA ESQUINA Porque se chamavam homens também se chamavam sonhos e sonhos não envelhecem em meio de tantos gases lacrimogêneos ficam calmos calmos calmos calmos calmos (LÔ BORGES, MILTON NASCIMENTO BORGES – Clube da Esquina 2) E MÁRCIO 4.1 – Da sombra eu tiro meu sol* A denominação Clube da Esquina surge na metade da década de 60, representando uma simples esquina do bairro de Santa Tereza em Belo Horizonte, para onde a família Borges retornava depois de um período de três anos morando no Edifício Levy, local que, conforme nos narra Márcio Borges em seu livro Os sonhos não envelhecem, propiciou o encontro deste autor com Milton Nascimento em 1963 e várias outras pessoas que integraram o Clube. Sobre a esquina de Santa Tereza, Márcio diz que era apenas “uma pobre esquina, um pedaço de calçada e um simples meio-fio onde adolescentes de rua (...) costumavam vadiar, tocar violão, ficar de bobeira, no cruzamento das ruas Divinópolis e Paraisópolis”.1 Na verdade, essa denominação Clube da Esquina era inicialmente uma coisa mais do Lô, do Beto Guedes e de outros jovens de Belo Horizonte.2 É curioso notar como esta singela esquina de Santa Tereza pôde reunir tanto talento musical e poético em torno dela. Em 1969, surge a canção Clube da Esquina: Lô havia criado uma “seqüência harmônica ao violão, um conjunto de acordes que formava um todo coerente” e a repetia exaustivamente. Milton, num de seus regressos a Belo Horizonte encontra-se com Lô que lhe mostra a melodia. Então, “Bituca foi estabelecendo uma linha melódica cada vez mais bem definida, a qual foi repetindo com ênfase cada vez maior, com certeza”. Márcio presenciou o surgimento da melodia que consagrou a primeira parceria ente eles e põe letra na música. “Lá fora, a noite chegava. Lô, com certeza iria correndo para a esquina, mostrar sua primeira composição para (...) o pessoal do Clube”. Esta canção logo se tornou “uma espécie de hino” na casa dos Borges e posteriormente, da geração Clube da Esquina. Segundo Márcio, a turma da paraisópolis tomou conhecimento do hino que eles criaram e se incumbiram de divulga-lo, “embora não fizesse idéia do quão famosa esta expressão ainda iria se tornar: ‘Clube da Esquina’. É que nunca temos, nem podemos ter jamais, idéia suficientemente clara desse aglomerado de desejos e temores a que chamamos de futuro”.3 Esta canção inaugura a parceria entre Lô Borges e Milton Nascimento sem qualquer pretensão de nomear um conjunto de músicos e compositores, mas apenas refletindo as sensações do momento, seja na melodia de Lô e Milton, seja na letra da canção que se encaixa perfeitamente nela revelando o estado de ânimo em Márcio Borges se encontrava: “achava a letra, depois de tudo, muito lunática e triste; eu próprio me sentia assim”.4 não foi mera coincidência o fato desta letra revelar, além desta sensação particular de tristeza, um estado geral de tristeza que reinava na época, reunindo o caráter psicológico e social na mesma poesia. Antes de se chegar ao LP Clube da Esquina, alguns fatos que trazem e antecipam a marca do trabalho coletivo. Em 1970, Milton é convidado a fazer um show no teatro Opinião com os músicos que o acompanhavam. A partir de então, o grupo ganha nome: O Som Imaginário. O show fica mais de um ano em cartaz, passando por Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. Fazem parte do Som Imaginário músicos de excelente qualidade técnica que viriam a se destacar cada vez mais ao longo da década e posteriormente: Wagner Tiso (teclados e arranjos”, Zé Rodrix (órgão e flautas), Tavito (guitarra base e violão), Frederyko (guitarra solo), Luiz Alves (baixo elétrico) e Robertinho Silva (bateria). Apoiado pelo excelente e agressivo conjunto, Milton passa a se apresentar com um visual tropicalista (descalço, cabelos eriçados, calças justas e colete de couro com estrelas). Depois deste show, Milton diria sobre o momento: “Foi uma revolução. Bicho, todo mundo, ou fugiu, ou está no exílio, ou dançou. Ficamos nós, como resistência. Vamos levar isso em frente”.5 Neste mesmo ano, lança o LP Milton que inclui a música Para Lennon e McCartney (de Lô Borges, Márcio Borges e Fernando Brant), composta durante uma comemoração dos prêmios de um festival a partir de um tema feito no piano por Lô que convida Fernando e Márcio para colocarem letra. Ambos concordam, isolam-se no quarto e fazem a letra de Para Lennon e McCartney, seguindo a sugestão de tema para a canção sugerida por Lô: “eu estava pensando na parceria de John e Paul... nas parcerias, né. A gente aqui, também fazendo as nossas... eles nunca vão saber. Mas pode ser outra coisa qualquer que vocês sentirem”.6 PARA LENNO E MCCARTNEY (Lô Borges, Márcio Borges e Fernando Brant) Porque vocês não sabem Do lixo ocidental Não precisam mais temer Não precisam da solidão Todo dia é dia de viver Porque você não verá Meu lado ocidental Não precisa medo não Não precisa da timidez Todo dia é dia de viver Eu sou da América do Sul Eu sei, vocês não vão saber Mas agora sou “cowboy” Sou do ouro, eu sou vocês Sou do mundo, sou Minas Gerais. Embora a letra não tendo sido feita pelos principais letristas do Clube, destaca-se, ainda neste disco, a canção Canto Latino (de Milton Nascimento e Ruy Guerra), por mostrar poeticamente uma das opções seguidas por vários jovens brasileiros: a guerrilha. É interessante notar como a melodia e o arranjo, no qual se destaca a percussão de Naná Vasconcelos, acompanham a letra e vão se intensificando gradativamente a idéia de que “a calmaria é engano” e a “primavera” latino-americana só seria conseguida através da guerrilha, palavra que fica suspensa no último verso, quebrando a rima com “maravilha” e sendo substituída por reticências. Recursos como estes teriam que ser utilizados por vários de nossos compositores e poetas cada vez mais para evitar a censura. Vale destacar também o contraste noite/dia que vai ser uma marca de várias canções do Clube: “Da sombra eu tiro meu sol”. CANTO LATINO (Milton Nascimento e Ruy Guerra) Você que é tão avoada Pousou em meu coração Moça escuta essa toada Cantada em sua intenção Nasci com a minha morte Dela não vou abrir mão Não quero o azar da sorte Nem da morte ser irmão Da sombra eu tiro o meu sol E do fio a canção Amarro esta certeza de saber que cada passo Não é fuga nem defesa Não é ferrugem no aço É uma outra beleza Feita de talho e de corte E a dor que agora traz Aponta de ponta o norte Crava no chão a paz Sei a qual é fraco o forte E a calmaria é engano Para viver nesse chão duro Tem que dar fora o fulano Apodrecer o maduro pois esse canto latino Canto para americano E se morre vai menino Montado na fome ufano Tens poucos anos de vida Valem mais do que cem anos Quando a morte é vivida E o corpo vira semente De outra vida aguerrida Que morre mais lá na frente Da cor de ferro ou de escuro Ou de verde ou de maduro A primavera que espero Por ti irmão e hermano Só brota em porta de cano Em brilho de punhal puro Brota em guerra e maravilha Na hora, dia e futuro Da espera virar... Integra este disco a primeira gravação de Clube da Esquina (de Milton, Lô e Márcio Borges) e já temos uma formação prévia do Clube da Esquina que conta neste disco com a participação do Som Imaginário, de Lô Borges cantando e tocando em Clube da Esquina, com parcerias entre os integrantes do Clube e ainda com Naná Vasconcelos – que despontava na época e seria depois reconhecido mundialmente pelo seu talento e inovação na percussão – e Dori Caymmi. Embora a origem do nome Clube da Esquina venha do final dos anos 60 e, como já foi dito, representava inicialmente apenas uma esquina do bairro de Santa Tereza em Belo Horizonte, onde a turma de Lô Borges, Beto Guedes e outros se reuniam, esse nome passa a ser utilizado para denominar um grupo eclético, compositores, instrumentistas, arranjadores e poetas que se aglutinavam em torno de Milton Nascimento e ultrapassavam as fronteiras da capital mineira. Partindo de uma esquina de Beagá, de várias outras esquinas dessa cidade, cruzando com esquinas cariocas, pernambucanas, paulistas, baianas, o Clube da Esquina apresenta um caráter universal.7 4.2 – Nuvem Cigana ** Na década de 70, o Clube da Esquina foi de extrema importância para o desenvolvimento e amadurecimento da Moderna Poesia Brasileira. Como defendemos a letra de música como forma literária associada a elementos extra-literários, verificaremos a importância que teve para a nossa cultura e literatura a poesia produzida por esse grupo de poetas, músicos e compositores. Após o “boom” na MPB ocorrido na década de 60, a década de 70 é o momento de afirmação da MPB como um dos principais veículos da poesia brasileira da atualidade, passando a ser o principal canal de expressão artística para manifestar desagrado com a situação política vigente e apresentando-se como um dos principais focos de resistência ao regime militar. Não pretendemos, com isso, desprezar a poesia escrita, porém, num país de analfabetos, onde quase não lê e menos ainda poesia, a poesia cantada via meios de comunicação de massa passa a se destacar cada vez mais e a fazer parte do dia-a-dia das pessoas em várias classes sociais. Pode-se afirmar, inclusive, que o principal foco disseminador de poesia, neste momento, passa a ser a música popular. Enquanto o Tropicalismo estava situado no eixo São Paulo/Bahia, o Clube da Esquina situava-se no eixo Rio/Minas, num movimento que descia os rios de Minas em direção ao mar do Rio, descia e subia estradas de terra, espalhando as idéias do desbunde e do pé na estrada aliadas à idéia de resistência cultural possível e constituindo um movimento utópico em busca de uma sociedade mais livre, justa e sem repressões. O ideal da contracultura, já bastante difundido em outros países, vai assumir com os “mineiros” uma forma de resistência ao regime vigente, contudo não uma resistência armada, direta ou guerrilheira e sim uma resistência via cultura e poesia, através da música popular. O movimento mineiro só podia desaguar no Rio, cidade que poderia proporcionar um cenário ideal para a divulgação do projeto poético-musical do Clube da Esquina, pelo fato de ser o Rio o principal centro cultural na época e onde aconteciam os principais movimentos contrários à cultura oficial e ao governo militar e, ainda, por se ser um pólo universalizador e disseminador de várias práticas culturais. A década de 70 – para alguns, um período de vazio cultural – foi um momento extremamente fértil em vários setores da cultura e da arte. Apesar de ser a época mais repressora e autoritária de nossa história recente, sob as égides do regime militar, e por isso marcada por um individualismo crescente, encontramos experiências de trabalhos artísticos e culturais, privilegiando o convívio e a produção coletiva em vários ramos da cultura, como: Novos Baianos e Clube da Esquina (música e poesia); Asdrúbal trouxe o trombone (teatro); Navilouca e Nuvem Cigana (multicultural: música, literatura, em especial poesia e performances poéticas, arte gráfica, etc.) e tantos outros. Para fugir da falta de liberdade de organização política, havia uma tendência na década de 70 para a formação de grupos que tentavam manter acesa ao menos sua liberdade de criação, embora tantas obras tenham sido censuradas e cortadas. Paradoxalmente, a repressão possibilitou o surgimento destes alternativos que produziram grandes obras de arte, sendo uma válvula de escape possível. Para exemplificar o clima de coletividade e resistência cultural destes grupos, podemos observar a proposta central do Almanaque Biotônico Vitalidade que aparece na primeira página do Nº 1 da entrevista produzida pela Nuvem Cigana e uma das mais importantes da época, na qual se destaca a apresentação: APRESENTAÇÃO: Essência de energia pura o BIOTÔNICO VITALIDADE é composto de raízes, folhas e frutos plenos. Sucesso comprovado através dos séculos. Profilaxia da cegueira noturna. É muito capaz nos casos de desânimo geral8 O Almanaque possuía ainda indicações, contra-indicações e posologia como se fosse uma bula de remédio, ficando bem claro o mal a ser atacado: a “cegueira noturna” e o “desânimo geral”, ou seja, a situação de sufoco, falta de liberdade e “escuridão” que reinavam durante a década de 70. Ou seja, a linha do almanaque é desenvolvida em cima destas orientações, porém com uma diversidade de linguagens poéticas e grande riqueza de detalhes gráficos. (...) garantia-se assim uma razoável unidade de orientação. Além disso os diversos trabalhos individuais foram discutidos por todo o grupo mais diretamente envolvido. Tratava-se, portanto, de uma iniciativa cujo caráter coletivo estava fortemente marcado. (...)9 Aqui se evidencia uma forte aproximação entre o trabalho desenvolvido pela Nuvem Cigana e pelo Clube da Esquina. Embora este não tenha tido toda essa fase de discussão que norteou o trabalho da Nuvem, tendo acontecido muito em função do Milton, do Lô e de maneira não premeditada, ambos apresentam muito forte a marca do trabalho coletivo. De um lado o LP Clube da Esquina no qual a coletividade se da não só nas composições poético-musicais, como nos arranjos, na produção, nas gravações, ensaios, etc. de outro, a Nuvem Cigana com um trabalho coletivo marcado por reuniões, discussões, produções poéticas, performances. Outro traço comum é o fato de ambos trabalhos serem conceituais e possuírem uma unidade. A década de 70 não deixava muitas alternativas para quem não concordava com o regime militar, ou melhor, este procurava fechar todas as saídas para qualquer forma de contestação, fosse esta a organização política, a luta armada, músicas “subversivas”, atos e apresentações que atentassem contra a moral (como os “Secos e molhados”). Então, uma das principais formas de tentar fugir desse sistema opressor era através da metáfora, daí a grande profusão de autores que tentavam fazer alguma coisa passar “pela fresta”, como fez tantas vezes Márcio Borges que, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, afirmou o seguinte ao responder à pergunta se o regime militar havia marcado a música dos mineiros: Toda época tem sua figura de linguagem. Se não fosse a ditadura, a censura, não teríamos tantas metáforas. Tínhamos muito medo. E provocávamos ele, como seguir de carro um camburão, fumando um baseado. Era difícil a opção ser herói ou viver em paranóia. Decidi viver na paranóia.10 Parece que, naturalmente, nada premeditado, esses e outros fatos iam caminhando em uma direção: a realização de uma obra poético-musical coletiva.tendo que cumprir contrato com a Odeon e gravar um disco, Milton sugere à empresa a realização de álbum duplo que seria o primeiro neste formato no Brasil se Gal costa não tivesse se adiantado e gravado um antes. Conforme o próprio Ronaldo Bastos insistia e Márcio relata em seu livro: “um disco com princípio, meio e fim, que não seja só um apanhado de canções. Um disco conceitual”.11 Ronaldo tinha uma importância que não era somente compor letras para as canções, mas também trabalhar a unidade dos discos talvez influenciado pelo seu trabalho junto com outros poetas e artistas da “Nuvem Cigana” que também era uma produção bem planejada, conceitual e, ainda, contemporânea deste LP. Então, Milton convida Lô para dividir com ele o álbum duplo Clube da Esquina. 4.3 – Saídas e Bandeiras *** Como estamos trabalhando com um grupo de autores, priorizando os principais letristas/poetas do Clube da Esquina, ressaltadas diferenças evidentes na poética de cada um, iremos aborda questões e temas recorrentes e comuns na obra poético-musical do grupo. Focalizaremos alguns aspectos comuns nas produções poético-musicais dos principais participantes do Clube da Esquina, “fundado” informalmente por Milton Nascimento em seu LP de 1970, visto que, neste disco, já tinha havido uma participação grande de pessoas que viriam a fazer parte nas gravações do álbum duplo de 1972 e continha a primeira gravação da canção Clube da Esquina, e iniciado de fato com o LP Clube da Esquina (1972). Na produção dos autores e músicos do grupo, percebemos dois elementos presentes em várias das canções que representam bem a década de 70 e a poesia do Clube da Esquina: a noite (simbolizando o período de “escuridão” das liberdades individuais e coletivas que tiveram reflexos indiscutíveis nas criações) e o sonho (partindo de “o sonho acabou” de John Lennon e de toda uma geração, relacionando-o ao fim do sonho de um país mais justo e democrático e abordando também a necessidade vital do homem na continuação do sonho, tanto individual como coletivamente). Estes elementos serão desdobrados e vistos separadamente no próximo capítulo por simples questão organizativa, visto que aparecem muitas vezes intercalados. A canção Clube da Esquina instaura o que vem a ser este clube e vai ao encontro da primeira definição para a palavra clube encontrada no “Dicionário Aurélio: “local de reuniões políticas, literárias ou recreativas”.12 É justamente esta a grande função do Clube da Esquina: inicialmente apenas um espaço de lazer e recreação de jovens de Belo Horizonte até se transformar em um símbolo de espaços onde as pessoas se reuniam para beber, se divertir, criar canções, poesia, realizando talvez o único ato político possível para a época. Na canção citada, percebemos os dois elementos centrais mencionados, a noite e o sonho, com ênfase no primeiro: “noite chegou outra vez”, representando o momento do dia durante o qual grupos de jovens se encontravam para conversar, como também um momento de escuridão, quando não havia espaço para opiniões contrárias e contestações. Então, o Clube funciona como um espaço onde seus participantes podem dividir a solidão e sonhar um grande país para quando acabar a “noite”, na certeza de que “no claro do dia um novo” encontrarão. CLUBE DA ESQUINA (Milton Nascimento, Lô Borges e Márcio Borges) Noite chegou outra vez De novo na esquina os homens estão Todos se acham mortais Dividem a noite, a lua, até solidão Neste clube a gente sozinho se vê Pela última vez À espera do dia naquela calçada Fugindo pra outro lugar Perto da noite estou O rumo encontro nas pedras Encontro de vez Um grande país eu espero Espero do fundo da noite chegar Mas agora eu quero tomar suas mãos Vou buscar aonde for Venha até a esquina Você não conhece o futuro que tenho nas mãos Agora as portas vão todas se fechar No claro do dia o novo encontrarei E no curral D’El Rey Janelas se abram ao negro do mundo lunar Mas eu não me acho perdido Do fundo da noite partiu minha voz Já é hora do corpo vencer a manhã Outro dia já vem E a vida se cansa na esquina Fugindo, fugindo para outro lugar Esta canção, gravada pela primeira vez no LP Milton de 1970, Já antecipava o clima que predominaria no LP Clube da Esquina de 1972. Sobre esta canção, Alberto Moby faz as seguintes indagações: “Qual o sentido da canção? Reflexão pessoal/existencial? Análise de conjuntura?”13 De fato, estas questões são procedente e não apresentam uma única resposta, já que ela reflete tanto o lado individual, como a conjuntura do momento, fatos que são confirmados pela melodia melancólica. E, como já foi citado, era o estado em que o próprio Márcio se sentia quando fez a letra: triste e lunático. “Dividir a solidão”, esta era uma questão central de tantos grupos de jovens que buscavam um espaço para expressar sua vontade de um mundo melhor. Eu 1971, após um ano fazendo show, Milton propõe um álbum duplo à sua gravadora, uma obra coletiva. A princípio, contudo, esta reluta e só aceita a idéia após muita insistência de Milton e seus companheiros, discussões com a diretoria da Odeon e a interferência de Adail Lessa, diretor de elenco da gravadora. Por fim, vencidos os obstáculos, começam os preparativos para a gravação do álbum duplo Clube da Esquina, um trabalho de criação coletiva que pode ser visto como resistência à extrema solidão a que as pessoas estavam obrigadas a viver. Junto com seus inseparáveis companheiros, Milton aluga uma casa na praia de Piratininga em Niterói para os ensaios do LP Clube da Esquina, pois os vizinhos ao apartamento do Jardim Botânico, onde morava com Lô e Beto Guedes e Jacaré, “se tornaram abertamente hostis àquele bando de malucos”, chegando ao cúmulo de fazer ligações anônimas à polícia com denuncias absurdas”.14 Então foram chegando para os ensaios em Piratininga outros músicos e pessoas que participaram do LP, como: Rubinho e Sirlan, de Belo Horizonte; Wagner Tido, Tavito, Robertinho Silva e Luís Alves, que estavam no Rio; além de Ronaldo Bastos e Cafi. Num clima de grande descontração, coletividade, o álbum duplo é concebido e lançado em 1972, sendo, todavia, desconsiderado por alguns críticos da época. (...) as primeiras críticas do disco não foram nada boas. Os resenhistas tinham achado tudo muito pobre e descartável e sem ter muito o que dizer, e coisas desse tipo. Um chamou a voz de Lô de “chinfrim”. Outro escreveu que meu amigo era compositor de uma música só (referia-se a travessia) e que determinados versos meus (...) “rolavam como pedras dentro do ouvido”, de tão desagradáveis e malfeitos. Um outro decretou: “Milton Nascimento está acabado” (...)15 Através destes comentários da época reproduzidos por Márcio Borges, fica evidente que parte considerada da crítica não percebeu a grande obra de arte poético-musical coletiva que tinha sido realizada por aquele grupo de músicos, compositores e poetas. Das 16 músicas que fazem parte dos dois discos , apenas duas não foram compostas pelos componentes do Clube: Me deixa em paz (de Mansueto C. Menezes e Ayrton Amorim) e Dos cruces (de Carmelo Larrea), esta última, antecipando um traço que vai marcar a carreira de Milton, a conexão com a música latino-americana. As demais foram compostas pelo “quinteto” principal do Clube da Esquina: melodias criadas por Milton e Lô; letras criadas por Márcio, Fernando e Ronaldo. As músicas são cantadas pela dupla Milton e Lô Borges, ora juntos, ora separados. Contudo é importante é importante registrar a participação de outro integrante do Clube: Beto Guedes que canta em três faixas com Milton e a participação de Wagner Tiso nos arranjos e teclados. Neste álbum duplo, que por pouco não foi o primeiro deste tipo na história da MPB (só não foi devido a gravadora que não acreditou no projeto), temos belíssimas e consagradas canções, como Cais (Milton e Ronaldo Bastos), O trem azul (Lô Borges e Ronaldo Bastos), Um girassol da cor de seu cabelo (Lô Borges e Márcio Borges), San Vicente (Milton e Fernando Brant), Trem de doido (Lô e Márcio Borges), Cravo e canela (Milton e Ronaldo Bastos), Tudo o que você podia ser (Lô e Márcio Borges) e outras que marcaram a época e serão analisadas adiante. Cais sintetiza um grupo de canções estradeiras deste disco. São canções que se referem a trens, viagens em busca da liberdade, o sonho de uma sociedade mais livre e com menos amarras. Este grupo de canções está intimamente ligado ao ideal jovem da época, não só brasileiro, mas de várias partes do mundo. A canção revela, ainda, um pensamento paradoxal e constante no homem: livrar-se dos “cais”, viver sem amarras que a sociedade impõe. Esta foi uma das principais bandeiras dos movimentos jovens de 68: a luta contra qualquer sistema opressor. CAIS (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos) Para quem quer se soltar Invento o cais Invento mais que a solidão me da Invento lua nova a clarear Invento o amor E sei a dor de me lançar Eu queria ser feliz Invento o mar Invento em mim Um sonhador Para quem quer me seguir Eu quero mais Tenho o caminho do que sempre quis E um saveiro pronto pra partir Invento o cais E sei a vez de me lançar Saídas e bandeiras nº 1 fala de um tema bastante comum nas canções: o “pé na estrada”, a fuga para um local junto a natureza, o pó, a poeira da estrada. Como “essa coisa não da mais pé” (a ditadura militar), uma solução é sair da cidade para poder viver com mais liberdade e dignidade. SAÍDAS E BANDEIRAS Nº 1 (Milton Nascimento e Fernando Brant) O que vocês diriam Dessa coisa que não da mais pé O que vocês fariam pra sair dessa maré O que era sonho virou terra Quem vai ser o primeiro a me responder Sair dessa cidade Ter a vida como ela é Subir novas montanhas Diamantes procurar O fim da estrada e da poeira O rio com seus frutos me alimentar Esta canção apresenta um ideal presente em várias outras dos integrantes do Clube: a fuga em direção a natureza; já que a “maré” vinda do governo militar não estava para peixes, as pessoas não admitiam ficar aprisionadas pelo sistema, buscavam uma das soluções possíveis para quem não queria apagar suas utopias: uma vida alternativa longe das cidades. O “sonho virou terra” apresenta pelo menos dois sentidos: a busca de novas utopias através das estradas de terras ou o fato do sonho, em geral uma idéia altívaga, ter despencado das alturas e ter vindo ao chão. Temos ainda a canção saídas e bandeiras nº 2, dos mesmos autores, com a mesma melodia e alterações na letra, em que há a repetição da pergunta “o que vocês fariam para sair dessa maré”, porém a resposta é outra e o segundo a responder diz: Andar por avenidas Enfrentado o que não da mais pé Juntar todas as forças Para vencer essa maré O que era pedra vira homem E o homem é mais sólido que a maré. Aqui é colocada outra saída possível para a época: continuar na cidade lutando contra o sistema opressor, juntando todas as forças e apostando na unidade e no ânimo dos homens para derrubar a ditadura. (este último reforçado aqui por seu sentido original de alma, vitalidade, pois o homem não pode ficar inanimado como uma pedra, tem que ser homem de fato). Resumindo, os autores colocam duas saídas para enfrentar a situação do momento: já que o sonho de mudar o país virou terra e não da mais para continuar lutando, o jeito é pegar a estrada e fugir da cidade; ou então ficar na cidade e enfrentar o regime, juntando todas as nossas forças, pois “o homem é mais sólido que a maré” que não estava para “peixes”. Esta idéia vai ser desenvolvida por Fernando Brant, posteriormente, em Milagre dos peixes. Outro dado interessante destas duas composições foi muito bem assinalado por Charles A. Perrone16. “o título da canção alude aos exploradores pioneiros das terras de Minas Gerais, mas o texto diz respeito à qualidade de vida atual”, ou seja, o texto na realidade fala de exploradores atuais. Vale ressaltar que o movimento dos exploradores da época do Brasil colônia tinha o nome de Entradas e Bandeiras e a música fala em saídas, opções possíveis para as pessoas diante de tal situação: pegar a estrada e fugir da cidade ou ficar na cidade e enfrentar o regime.para demonstrar como havia essa preocupação na cabeça de muitos jovens que não concordavam com o regime e imaginavam um país livre e democrático observemos a declaração de Márcio Borges: Quanto a mim, senti Bituca triste, mas andava eu próprio meio deprimido e esmorecido, me prometendo fazer mil coisas, mas incapaz de sair do lugar, bebendo demais, sufocado dentro de uma revolta que não tinha como exteriorizar diante da gigantesca muralha do medo, divido entre duas vontades, dois sentimentos contraditórios de missão e predestinação, duas opções abertas naquele momento na frente do jovem de 23 anos que eu era: a luta armada e seu conseqüente purgatório de clandestinidade e tensão, opção de Ricardo Vilas, que desaparecera logo depois de tocar com Bituca, ou a luta desarmada e seu conseqüente purgatório de paranóia de vazio e tédio que vinha a ser a vida de poeta errante, dirigindo shows aqui e fazendo letras acolá, com noitadas nos bares, sessões de ensaios, conversas técnicas, especializadas.16 Podemos relacionar a “pedra” da canção com “a gigantesca muralha do medo” com que Márcio se refere à ditadura. As palavras de Márcio, escritas na década de 90 recontando os fatos e impressões da época, reforçam as dúvidas e conteúdo dos textos analisados, dando-nos uma idéia de como as dúvidas e as opções a escolher eram freqüentes entre os jovens na época (como em todas as épocas, porém aqui a questão assumia um caráter gigantesco e assustador) e nada fáceis. Nuvem Cigana (de Lô Borges e R. Bastos) é uma canção de extrema importância dentro do Clube não só por sintetizar bem a idéia já mencionada do “pé na estrada”, do “pó, poeira, ventania”, mas também por estabelecer um ponto de contato entre a poesia cantada e a poesia falada, a poesia alternativa que era produzida pelo grupo “Nuvem Cigana”. Este grupo é criado e idealizado por Ronaldo Bastos com o objetivo de lançar trabalhos variados e reúne além de poetas, músicos, arquitetos, desenhistas, até um bloco de carnaval: o “Charme e Simpatia”. Dentre as várias realizações do grupo, podese citar: as revistas alternativas, produção de cartazes, entre os quais um pôster de Milton, produção de shows, as famosas “artimanhas” nos lançamentos de livros, revistas. O surgimento da “Nuvem” aproxima-se muito dos ideais do Clube da Esquina, não apenas pelo ano de sua criação (1972), mas principalmente pelo seu objetivo central: “a criação de um espaço coletivo que canaliza e instrumentaliza a ‘energia’ de pessoas que, naquele momento (início dos anos 70), se viam diante de barreiras institucionais fortes”.18 Ronaldo Bastos escolhe o nome “Nuvem Cigana” por achar o nome interessante e também que seria uma marca incrível, selo comparável à marca “Apple” dos Beatles, que foram alguns dos que mais influenciaram as produções do grupo. Só para ilustrar, alguns dos principais participantes deste trabalho alternativo além do próprio Bastos: Ronaldo Santos, Cafí, Jorge Ladeira, Charles, Chacal, Guilherme Mandaro. Vale registrar que em quase todos os discos do Milton da década de 70 consultados e pesquisados a capa foi idealizada por Ronaldo Bastos e Cafi do “Nuvem Cigana”. Recentemente, um sonho se realizou para Milton e sua turma, com a remasterização e transposição e transposição para cd de seus primeiros discos em Abbey Road, o mesmo onde os Beatles gravavam.. NUVEM CIGANA (Lô Borges e Ronaldo Bastos) Se você quiser eu danço com você No pó da estrada Pó, poeira, ventania Se você soltar o pé na estrada Pó, poeira Eu danço com você o que você dançar Se você deixar O sol bater nos seus cabelos verdes Sol, sereno, ouro e prata Sai e vem comigo Sol, semente, madrugada Eu vivo em qualquer parte do seu coração Se você quiser eu danço com você Meu nome é nuvem Pó, poeira, movimento O meu nome é nuvem Ventania, flor de vento Eu vivo em qualquer parte do seu coração Se você deixar o coração bater sem medo Se você deixar o coração bater sem medo Esta canção apresenta uma série de palavras que indicam movimento – nuvem, poeira, pó, vento, ventania, estrada – contrapondo-se ao período de inércia vivido e imposto pelo regime militar. É interessante notar como este ideal de “pé na estrada” contracultura e desbunde, presentes na música, assumem uma postura que, longe de ser alienada, era uma forma de contestação ao sistema. Era uma forma de se manter em movimento, agir. Outro lado interessante a ser comentado é o fato do primeiro trabalho a ser impresso em mimeógrafo, com ilustrações de Cafi, e com o símbolo da nuvem cigana ser também de 1972. Mais do que coincidências de datas e de autores, a música Nuvem Cigana e os textos de Canção de Búzios, ambos de Ronaldo Bastos, expressam um sentimento comum, uma grande afinidade de “tom” e “espírito”. CANÇÃO DE BÚZIOS (Ronaldo Bastos) Se eu passar por você e falar de estrelas] não ligue não são estrelas do mar não ligue não são recados do vento espumas do vento canção das ondas se eu passar por você não ligue não são estrelas do mar Mais do que produtos de um mesmo autor – (...) – os poemas e a canção são produtos de um mesmo momento, de uma mesma situação de uma geração, ou ainda de uma parcela de uma geração, para quem “pé na estrada, cabelos ao vento e pés no chão” não era uma expressão vazia de significado mas, ao contrário, expressava todo um sentimento de inconformismo diante de uma ordem social dominante, estabelecida e, paralelamente, todo um estilo próprio de enfrentar esta mesma ordem (ponto que, já foi levantado no capítulo anterior).19 Esta citação respalda nossa afirmação de que, além de não ter sido um vazio cultural, a década de 70 e o desbunde, embora muitas vezes vistos como formas alienadas, representam uma das formas possíveis de contestação durante os chamados “anos de chumbo”. Nada como uma postura contrária aos padrões culturais vigentes para demonstrar o inconformismo. Depois da nuvem, olhemos a paisagem da janela e o que ela nos oferece neste período. Como na música de mesmo nome, a paisagem da década de 70 não nos fornece algo animador. Mostra-nos coisas aparentemente normais como uma igreja, um muro branco, um vôo pássaro, um velho sinal, uma grade, mas também cores mórbidas, homens sórdidos, temporal, cemitérios, velórios. Isto revela a paisagem densa e triste reinante, apesar da insistência do destinatário da canção em não querer acreditar no que está acontecendo no país (reparar a repetição do verso “Você não quer acreditar”). “Mas isso é tão normal” não acreditar que a realidade política seja essa: o regime caça, prende, tortura, mata e existem vários cavaleiros marginais fugindo “sem querer descanso nem dominical”. É interessante notar como de uma simples paisagem citadina interiorana Fernando Brant passa atitudes humanas deploráveis de caráter universal, ao mesmo tempo em que reflete o período “mórbido” e “sórdido” vivido por qualquer cidade brasileira da década de 70. PAISAGEM DA JANELA (Lô Borges e Fernando Brant) Da janela lateral do quarto de dormir Vejo uma igreja, um sinal de glória Vejo um muro branco e um vôo pássaro Vejo uma grade e um velho sinal Mensageiro natural de coisas naturais Quando eu falava dessas cores mórbidas Quando eu falava desses homens sórdidos Quando eu falava desse temporal Você não escutou Você não quer acreditar Mas isso é tão normal Você não quer acreditar E eu apenas era Cavaleiro marginal lavado em ribeirão Cavaleiro negro que viveu mistérios Cavaleiro e senhor de casa e árvores Sem querer descanso nem dominical Cavaleiro marginal banhado em ribeirão Conheci a torre e os cemitérios Conheci as torres e os seus velórios Quando olhava da janela lateral do quarto de dormir Você não quer acreditar Mas isso é tão normal Você não quer acreditar Mas isso é tão normal Um cavaleiro marginal banhado em ribeirão Você não quer acreditar Esta canção foi feita em diamantina. Fernando escreveu a letra de Paisagem da janela, sobre um tema de Lô, inspirado pelo cenário do hotel onde estavam: quarto de Fernando “tinha janelas que se abriam para uma igreja e o cemitério da cidade”20 Embora represente um cenário em especial, esta canção parece representar um cenário de qualquer cidade em qualquer época ao mesmo tempo em que guarda um tom do momento em que foi criada. Eis uma qualidade intrínseca do texto literário presente nesta letra: a multiplicidade de sentimentos aliada a um universalismo. Nada impede que possamos fruir deste texto sem estas referências históricas, contudo a possibilidade de interpretação amplia-se com elas. Clube da Esquina nº 2 (de Lô Borges, Milton Nascimento e Márcio Borges) é considerado por vários integrantes do “grupo” um hino da geração. É importante lembrar que a música citada aparece no LP Clube da Esquina numa versão instrumental, sendo a letra feita posteriormente por Márcio Borges em 1978, à revelia de Lô e Milton que achavam que não cabia letra nela, sendo só uma música instrumental, conforme Márcio Borges nos relata. Nana Caymmi queria gravar Clube da Esquina 2, porém como esta não possuía letra, ela pediu a Márcio que colocasse letra. Ele fez a letra no dia seguinte e a entregou para Nana. “Ela foi para o estúdio e gravou. Só depois do fato consumado é que Bituca e Lô se rendem à evidência: Clube da Esquina 2 tinha letra”.21 Graças a Nana e ao talento de Márcio , podemos fruir deste texto poético musical que possui uma das mais belas imagens da poesia brasileira. Esta canção é gravada por Nana Caymmi e depois por Lô em LP de 1979, A via láctea. Depois disso, confirmando a idéia de Clube da Esquina, ela é gravada pelo próprio Milton e por Flávio Venturini, fazendo algum sucesso na década vigente. CLUBE DA ESQUINA Nº 2 (Lô Borges, Milton Nascimento e Márcio Borges) Porque se chamava moço também se chamava estrada viagem de ventania nem lembra se olhou pra trás ao primeiro passo aço aço aço porque se chamavam homens também se chamavam sonhos e sonhos não envelhecem em meio a tantos gases lacrimogêneos ficam calmos calmos calmos calmos calmos e lá se vai mais um dia e basta contar compasso e basta contar consigo que a chama não tem pavio de tudo se faz canção e o coração na curva de um rio rio rio e o coração na curva de um rio e lá se vai mais um dia e o rio de asfalto e gente entorna pelas ladeiras entope o meio fio esquina mais de um milhão quer ver então A gente gente gente gente gente gente Essa letra reúne novamente alguns elementos constantes nos autores em estudo, fazendo um resumo da estrada percorrida por seus participantes e por quem viveu na época: estrada, ventania, sonhos, rio. Na primeira estrofe, a imagem da fuga, do “pé na estrada” e ao primeiro passo já temos o aço (foneticamente, a palavra passo contém a palavra aço) que pode simbolizar o aço dos canhões, armas e balas usadas pela ditadura militar para reprimir qualquer suspeito. Na segunda estrofe, uma imagem belíssima relacionando o homem com seus sonhos e mostrando que o máximo que os gases lacrimogêneos podem fazer é adormecer os sonhos, pois estes nunca envelhecem e nem acabam por uma ação violenta e brutal. Aqui vale lembrar Octavio Paz quando diz que a imagem poética não pode ser dita de outra maneira. Esta imagem revive, recria o clima da época de forma que não dá para trocar as palavras por outras achando que se está dizendo o mesmo. Esta é uma das funções essenciais da poesia que aparece no texto reforçado pela melodia e arranjo que destacam no meio da canção o verso “e lá se vai mais um dia”, que tanto pode representar o passar da vida, o passar dos dias comuns, como também o passar de mais um dia na mesma situação, à espera de um amanhã melhor. Este verso, isolado no meio da canção, revelando a importância existente no passar do dia, visto que o dia seguinte pode trazer o novo e acabar com o período de escuridão. Este verso retorna na quarta estrofe intensificando mais ainda a idéia desenvolvida. Esta canção, sem dúvida, apresenta características fundamentais do texto poético, como já foi dito, possuindo duplo sentido: tanto pode se referir ao momento de viagens, sonhos e gases lacrimogêneos da década de 70, como também estes vocábulos podem apresentar outros sentidos. Por exemplo, “gases lacrimogêneos” podem simbolizar obstáculos que a vida apresenta para podar sonhos e utopias. Por fim, podemos ver a última estrofe como uma antevisão através da poesia cantada do que iria acontecer em 1984: um milhão de pessoas nas esquinas da Presidente Vargas com Rio Branco no Rio de Janeiro gritando “diretas já”, justamente num dos locais onde aconteceram alguns dos mais cruéis momentos proporcionados pela ditadura militar, como o avanço dos cavalos do exército em direção das pessoas que saíam de missa realizada pela morte do estudante Édson Luiz na Candelária. Neste grande evento, a poesia cantada é entoada por vários artistas e pelo milhão de pessoas que ali estavam clamando por democracia e eleições diretas. E Milton não podia faltar: estava lá com outros grandes nomes da MPB, como Chico Buarque, MPB-4, Francis Hime. NOTAS: *Verso da canção Canto Latino de Milton Nascimento e Rio Guerra **Título da canção de Lô Borges e Ronaldo Bastos e nome do selo responsável por várias publicações e performances durante a década de 70. ***Título da canção de Milton Nascimento e Fernando Brant. 1 BORGES, M. (1996) p.167. 2 ÂNGELO, N. Depoimento ao autor em 24/06/1998. A coisa era mais um negócio de bairro lá em Belo Horizonte, de garotada e que o Milton veio também passando por ali e trouxe pra cá e depois simbolizou o negócio, porque quem articulou, na verdade, de uma maneira mais flagrante foi o Milton. 3 BORGES, M. (1996) p.217-221 4 Ibidem, p.221. 5 Ibidem, p.230. 6 Ibidem, p.239. 7 Por isso, estamos usando a palavra mineiros entre aspas, pois muitos que fizeram parte do Clube da Esquina são cariocas, como Ronaldo Bastos, o próprio Milton, embora se considere mineiro, Robertionho Silva, Luís Alves, Zé Rodrix; Novelli é pernambucano, etc. 8 ALMANAQUE BIOTÔNICO VITALIDADE (1976), p.1. 9 PEREIRA, C.A.M (1981) p.273-274. 10 FOLHA DE SÃO PAULO (1996), ILUSTRADA p.5-1 Edição: Nacional Jul 31, 1996. 11 BORGES, M. (1996) p.256. 12 FERREIRA, A.B DE H./s.d./, 1.ed. 13 MOBY, A. (1994) p.137. 14 BORGES, M. (1996) p.263. 15 Ibidem, p 270. 16 PERRONE, C (1988) p.155. 17 BORGES, M. (1996) p.215. 18 PEREIRA, C.A.M. (1981) p.230-231 19 Ibidem, p.133. 20 BORGES, M. (1996) p.258. 21 Ibidem, p.336-337. 5 – A NOITE E O SONHO NO CLUBE DA ESQUINA: RESISTÊNCIA CULTURAL PELAS ESQUINAS DOS ANOS 70 5.1 – A noite Senhor, a noite veio e alma é vil. Tanta foi a tormenta e a vontade! Restam-nos hoje, no silêncio hostil, O mar universal e a saudade. (FERNANDO PESSOA, Prece)* Como já foi mencionado, a noite tem extrema importância no processo criativo do Clube da Esquina, pois representa o momento dos encontros e, sobretudo, o do cerceamento das liberdades individuais e coletivas. Tal qual em Mensagem de Fernando Pessoa, a noite veio, tendo aqui seu início em 1968. Em ambos, o sentido é semelhante, de um momento obscuro, em que as pessoas perdem o direito de ser homens integralmente, já que não lhes é permitido discutir sobre política, opinar, discordar e até pensar e sonhar, como se fosse possível algum regime impedi-los disso, qualidades inerentes ao ser humano e que nenhum sistema conseguirá impedir. Em Mensagem, este poema “Prece” é o último da II parte, Mar Portuguez, fechando um período áureo da história de Portugal, o das grandes descobertas, e prenunciando uma fase ruim da história de Portugal, que é o centro da III parte, o Encoberto, na qual há vários poemas com referências noturnas, sombrias. É este teor – obviamente com diferenças que não cabem ser discutidas nesta pesquisa – com inúmeras palavras e passagens do campo semântico de noite, escuridão, encoberto, que se assemelha ao encontrado em várias das canções do Clube da Esquina, em especial no fim dos anos 60 e no início da década de 70, refletindo o o início da longa noite brasileira. Prece inaugura esta fase em Mensagem, enquanto Clube da Esquina a inaugura aqui. Lá, “a noite veio e a alma é vil”, aqui, “noite chegou outra vez”. Vale lembrar que este vocábulo noite tem sido usado para representar momentos em que regimes ditatoriais se instalam acabando com a possibilidade de liberdade e, ainda, que foi também utilizado por muitos outros poetas e/ou letristas brasileiros deste período, como Capinam: “Antes que a definitiva noite/Se espalhe em Latino América”.1 Esta situação tente a levar as pessoas a um isolamento natural, a um individualismo, já que estão em constante ameaça. É o que percebemos em Os Povos (de Milton e Márcio Borges), canção incluída no LP Clube da Esquina, onde percebemos a insistência dos autores em reforçar esta idéia, reiterando as palavras solidão e só, como em “a gente aprende a viver só”, uma obrigatoriedade imposta pelo regime. A letra representa bem a idéia de “noite”, destacando-se a terceira estrofe. OS POVOS (Milton Nascimento e Márcio Borges) À beira do mundo Portão de ferro, aldeia morta, multidão Meu povo, meu povo Não quis saber do que é novo Nunca mais É minha cidade, aldeia morta, anel de ouro, meu amor Na beira da vida a gente torna a se encontrar só Casa iluminada, portão de ferro, cadeado coração E eu reconquistado Vou passeando, passeando ir morrer Perto de seus olhos, anel de ouro Aniversário, meu amor Em minha cidade A gente aprende a viver só Ah! Um dia, qualquer dia de calor É sempre mais um dia de lembrar A cordilheira de sonhos que a noite apagou É minha cidade Portão de ouro, aldeia morta solidão Meu povo, meu povo Aldeia morta, cadeado coração E eu reconquistado Vou caminhando, caminhando ir morrer Dentro de seus braços A gente aprende a morrer só Meu povo, meu povo Pela cidade a viver só Nestes versos, a noite aparece apagando a enorme quantidade de sonhos imaginados para o nosso país, sendo reforçados pela melodia e o arranjo que nos dão a sensação de um momento doloroso, tenso, torturante, marcado muito bem por acordes repetitivos do violão. É uma construção musical que dá a impressão de um momento angustiante e até mesmo de uma câmara de tortura auditiva. Ainda sobre a canção vale a pena observar o relato de Márcio Borges, no qual ele reproduz um comentário de um garoto venezuelano que ouvira a música: Os povos, aliás, proporcionou a meu parceiro uma das grandes emoções de sua vida. (...) um deles (um garoto) tomou a palavra e deu uma explicação totalmente revolucionária para as metáforas de minha letra. Bituca ficou abismado com a profundidade das idéias contidas na cabeça daquele garoto. (...) Pouco tempo depois, o garoto mandou notícias: tinha pegado em armas, ido ser guerrilheiro, desaparecendo nas montanhas de sua pátria. No primeiro disco solo de Lô Borges, o do tênis na capa, de 1972, temos também a presença insistente da noite. Neste LP, todas as músicas são de sua autoria, algumas em parceria com Márcio Borges, uma com Ronaldo Bastos e uma com Tavinho Moura, destacando-se ainda a participação de integrantes do Clube da Esquina, tocando algum instrumento e até participando do vocal, como: Beto Guedes, Toninho Horta, Nélson Ângelo, Novelli, Robertinho, Zé Geraldo, Flávio. A maior parte das canções deste disco fala de noite, escuro, tristeza, o que revela o momento pelo qual os autores e todo o país passavam. Este clima é acompanhado e reforçado pelas melodias. Começando pelo Caçador (de Lô e Márcio Borges) que no fim da noite quer caçar o poeta. Este caçador é uma metáfora que representa o regime ditatorial ou seu instrumento concreto de intimidação – a polícia – que pretende acabar com qualquer reação contrária, inclusive o sonho, aqui representado pela palavra “lua”. É interessante notar a certeza do homem de que o sistema está atrás dele (“sei que ele vem me procurar”), mas mesmo assim procura manter a calma para poder fugir e não deixar o caçador acertar o seu coração, que possui um duplo sentido: a morte real com um tiro no ração, mas também a morte de seus ideais e seus sonhos. E a fuga é necessária, pois, de repente amanhece, a luz apaga a escuridão e não há mais tempo de ser pego. O “caçador” com o “revolver apontado para a lua!” pode representar ainda a perseguição do sistema aos idealistas, utópicos, representados pela palavra lua. O CAÇADOR (Lô Borges e Márcio Borges) No fim da noite eu escuto o caçador Com seu revolver apontado para a lua O meu cabelo Preciso me esconder na tempestade ou no chão Sei que ele vem me procurar Não tenho medo Eu só quero ir em paz com minha sombra Eu só quero aquela lua no fim da rua Não deixe o caçador Mirar em cima de você Ele quer achar seu coração Talvez o caçador não tenha tempo De atirar Quando, de repente, amanhecer Em Homem da rua (de Lô Borges) temos “sonho no chão” que pode representar tanto o “pé na estrada”, quanto o sonho lá em baixo, o fim do sonho, imagem semelhante à usada por Fernando Brant nas canções Saídas e Bandeiras. É importante observar como esta dualidade sonho X terra/chão aparece mais uma vez em canções deste período. Além de representar o conflito da época, é uma questão que sempre acompanhou o homem e, por isso, constante na poesia de diferentes períodos, dentre os quais podemos destacar o Barroco, que por sinal teve um grande destaque nas artes de Minas Gerais. Esta música mostra bem o perfil da época numa oposição entre noite e dia, apagar e não apagar e o quanto era importante manter-se aceso, apesar da triste situação. Nada, nem uma festa apaga o “estranho silêncio da rua” e o “incêndio calado no homem que passa por mim”, reforçando o que já foi dito sobre solidão, ao mesmo tempo em que simboliza muito bem a autocensura a que muitas pessoas viam-se obrigadas a submeter-se. Enfim, é uma letra construída em cima de antíteses e paradoxos, sendo seu auge o verso “um incêndio calado no homem” que causa um estranhamento inicial, revelando-se depois uma imagem forte, na qual, “incêndio” pode referir-se à vontade grande de se mudar a situação, ao mesmo tempo em que também pode estar relacionado à vontade de grito e protesto sufocados, ao “grito contido” de Apesar de você.3 HOMEM DA RUA (Lô Borges) Sonho no chão E um dia, uma estrada Um estranho silêncio na rua Um incêndio calado no homem Que passa por mim Toda manhã acredito nas histórias Em todas as histórias do mundo E toda vez que o velho sol se apaga Preciso e procuro não me apagar E quando chego na minha cama Eu te imagino melhor Sonho no chão Uma festa não apaga O estranho silêncio da rua O estranho silêncio da rua Por tudo isso, o homem tem que aprender “a ser como o machado que despreza o perfume do sândalo”, pois é impossível aceitar tudo calado diante de realidade tão negra. Nos versos de Como o machado, Lô altera radicalmente o sentido original do provérbio que diz: “Sê como o sândalo que perfuma o machado que o fere”. Não da para ficar “perfumando” quem está te ferindo, entretanto o momento requer cuidado, como está nítido nos dois últimos versos na comparação feita com o gato. COMO O MACHADO (Lô Borges) Porque ando triste eu sei É que eu vivo na rua Espero um pouco mais este frio Espero um pouco mais, e aprendi A ser como o machado Que despreza o perfume do sândalo! A verdade é negra, eu sei E o homem é mau Espero um pouco mais este ódio Espero um pouco mais e aprendi A ser como o meu gato Que descansa com os olhos abertos! Podemos ainda relacionar o “machado” desta canção com a “faca amolada” da parceria de Milton com Ronaldo Bastos feita anos depois. Ambos, elementos de corte, simbolizam “armas” de enfrentamento ao regime, ainda que situado apenas no campo da poesia cantada e da imaginação. Outra canção, Eu sou como você é, mostra a mesma situação: noite/escuro X amanhã. A noite, o momento presente; o amanhã, o sonho de mudança. Ressalta-se aqui um termo bastante usado pelos aparelhos de guerrilha quando um dos companheiros de um grupo era capturado pela repressão: “cair”. E Lô incorpora-o ao seu texto, dando-nos uma visão, um “flash” do período. EU SOU COMO VOCÊ É (Lô Borges) Meu irmão eu sou como você é Saí do mesmo escuro e ando por aí Toda noite eu sei que amanhã tem mais Que a gente muda e continua a sonhar Aprendendo De manhã não sei como começar Tantas emoções contidas no mesmo lugar Ando devagar para não cair Mais de mil abismos me esperam no jantar Aprendendo Resumindo, este disco de Lô, apesar de uma simplicidade aparente nas letras, oferece-nos um bom retrato da época através da poesia cantada, sendo um dos melhores retratos poético-musicais dos anos 70. o tom triste e noturno do disco proporcionado pelas melodias aliadas a letras aparentemente ingênuas e despretensiosas reflete muito bem este período escuro e obscuro de nossa história. Na verdade, podem ter sido feitas despretensiosamente, mas, como vimos, no fundo, confirmam poética e musicalmente o período de escuridão. Também podemos relacionar este disco com uma temática que era constante nos poetas “marginais” da década de 70: o cotidiano das ruas, o diaa-dia. As letras nos revelam o clima de apreensão, cautela e medo que reinava nas ruas das cidades e ainda a violência. Contudo, esta referência não é direta, é feita de metáforas e comparações, como “caçador”, “cair”, “abismo”, “machado”, “revolver”, “o meu cabelo”. É exatamente no dia-a-dia, no cotidiano da ‘rua’ – (...) – que os diversos autores vão se defrontar com um dado que percorre boa parte dos textos: a violência. Tanto uma violência mais abstrata, menos diretamente voltada para um ponto específico, quanto uma outra concreta, como a violência policial, p. ex. (...)4 Falando sobre a década de 70, Ronaldo Bastos faz uma declaração interessante ao jornal “O Globo” de 27/04/95: “confesso que me falta o talento de memorialista para captar o cheiro daqueles tempos e traduzi-los para os narizes de agora”.5 E precisa ser memorialista? Ele, Lô, Márcio, Milton, Fernando Brant com suas canções conseguem, de maneira poética, passar o “cheiro daqueles tempos” para quem não viveu ou era muito pequeno na época. “Nada será como antes” e “amanhã ou depois de amanhã resistindo na boca da noite” esta fase obscura passará e poderemos viver em paz e com liberdade. Além desta oposição noite X amanhã, vale registrar que, em Nada será como antes (de Milton e Ronaldo Bastos) aparecem duas perguntas muito freqüentes na época em relação aos amigos “sumidos” pelo regime militar: “Que notícias me dão dos amigos?/que notícias me dão de você?”. NADA SERÁ COMO ANTES (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos) Eu já estou com o pé nessa estrada Qualquer dia a gente se vê Sei que nada será como antes, amanhã Que notícias me dão dos amigos? Que notícias me dão de você? Alvoroço em meu coração Amanhã ou depois de amanhã Resistindo na boca da noite Um gosto de sol Num domingo qualquer, qualquer hora Ventania em qualquer direção Sei que nada será como antes, amanhã Que notícias me dão dos amigos? Que notícias me dão de você Sei que nada será como está Amanhã ou depois de amanhã Resistindo na boca da noite Um gosto de sol Ronaldo Bastos e Milton Nascimento nos passam mais um pouco do cheiro daqueles tempos: a fé, a crença em seus ideais, a paixão por eles de maneira impulsiva; já a faca tem que estar amolada, pronta para o corte, representando a luta e os instrumentos concretos ou abstratos para o enfrentamento. Esta faca amolada significa estar pronto para cortar, ir a luta e não ficar passivo. Aqui já um certo prenuncio do dia, da luz tão sonhada; a palavra de ordem é não esperar mais aquela madrugada. Esta música faz parte do LP Minas de Milton Nascimento (1975) que pode ser visto como uma continuidade do trabalho coletivo do Clube da Esquina, visto que há várias participações de músicos e compositores do LP de 1972. Este disco, assim como o subseqüente Geraes, apresenta uma marca mineira muito grande, encaixando-se no grupo de discos conceituais. FÉ CEGA FACA AMOLADA (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos) Agora não pergunto mais aonde vai a estrada Agora não espero mais aquela madrugada Vai ser, vai ser, vai ter que ser, vai ser, faca amolada O brilho cego de paixão e fé faca amolada Deixar a sua luz brilhar e ser muito tranqüilo Deixar o seu amor crescer e ser muito tranqüilo Brilhar, brilhar, acontecer, brilhar faca amolada Irmão, irmã, irmã, irmão de fé faca amolada Plantar o trigo e refazer o pão de cada dia Beber o vinho e renascer na luz de todo dia A fé, a fé, paixão e fé, a faca amolada O chão, o chão, o sal da terra, o chão faca amolada Deixar a sua luz brilhar no pão de todo dia Deixar o seu amor crescer na luz de cada dia Vai ser, vai ser, vai ter que ser, vai ser muito tranqüilo O brilho cego de paixão e fé faca amolada 5.2 – Milagre dos peixes: censura nas esquinas Você me corta um verso, eu escrevo outro Você me prende vivo, eu escapo morto (MAURÍCIO TAPAJÓS E PAULO CÉSAR PINHEIRO, Pesadelo) Os versos desta canção sintetizam bem o clima do início da décasa de 70, em especial a censura e a perseguição que vários de nossos compositores/poetas populares sofreriam, muitas vezes sendo intimados a depor, como foi o caso de Chico Buarque e tantos outros. O Clube da Esquina não escaparia da censura e intimações. Todavia, curiosamente, esta letra passou pelas “garras” da censura e foi cantada por Chico Buarque e MPB-4 no histórico Banquete de Mendigos, evento organizado por Jards Macalé em comemoração ao 25º ano da Declaração Universal dos Direitos Humanos realizado no MAM (Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro) em dezembro de 1973, transformando-se num “ato de resistência musical à ditadura”.6 Outros shows ocorridos na década de 70 também funcionaram como atos de resistência musical e poética à ditadura, dentre os quais destaca-se o Milagre dos Peixes de Milton Nascimento e Som Imaginário, que, para este show, sofre alterações em sua formação: entram Toninho Horta e Nivaldo Ornelas e saem Tavito e Zé Rodrix. Paralelamente, a televisão brasileira, ou melhor, a Rede Globo se expande com a ajuda do regime militar. Para provar isto, pode-se citar as relações entre a Globo e a Time-Life, empresa americana, que foram objeto de uma CPI instaurada pelo congresso, mas arquivada pelo governo Costa e Silva. (...) Quatro anos depois [1966], era instaurada uma CPI sobre as relações Globo-Time-Life. E ficou-se sabendo que homens da influência dos ministros Carlos Medeiros e Silva, da justiça, e Luiz Gonzaga Nascimento e Silva, do trabalho, participaram das negociações. A CPI decidiu que os acordos feriam a Constituição. A interferência de um grupo estrangeiro na orientação de uma empresa de comunicação era frontalmente contrária aos interesses nacionais, entendiam os deputados. (...) Na ocasião do escândalo Time-Life, a Globo era uma emissora fraca, pouco rentável, de baixa audiência. Seu crescimento se dá, justamente, a partir de 69, junto com o “boom” da telecomunicação no país. (...) Durante o período do “milagre brasileiro”, a televisão funciona como o principal instrumento de comunicação do governo, corroborando a Política de Integração Nacional, através do programa como “Amaral Neto, o Repórter”. O governo, por sua vez, facilita as condições para este padrão global e incentivo à sua ideologia. Na verdade, há uma ajuda recíproca que pode ser comprovada no seguinte trecho da série Anos 70 – Televisão, fonte importante para aprofundamento deste aspecto: Durante a convenção das emissoras da Rede Globo de Televisão, em 1971, Walter Clarck através de um discurso, “elogia o governo Médici pela disposição em compor, via Embratel, novas tarifas para Estações. Assim, a Política de Integração Nacional poderá ter melhor colaboração da iniciativa privada no setor de comunicações”.8 A televisão inova-se tecnicamente, chegam os primeiros televisores a cores em 1971, os primeiros programas coloridos, contrastando com a realidade em preto e branco: os homens não têm liberdade, a censura continua nos meios de comunicação, os últimos focos guerrilheiros são dizimados. Faltam cores na realidade brasileira; daí a explicação para tantas letras do grupo insistirem em imagens sem cores, com grande incidência nas letras de palavras do campo semântico de “noite” e “escuridão”. Enfim, falta liberdade política, social, cultural, artística; tudo escamoteado por telas que falam colorido. MILAGRE DOS PEIXES (Milton Nascimento e Fernando Brant) Eu vejo esses peixes e dou de coração Eu vejo essas matas e dou de coração À natureza Telas falam colorido De crianças coloridas De um gênio, televisor O sinal de velhos tempos: Morte, morte, morte ao amor Eles não falam do mar e dos peixes Nem deixam ver a moça, pura canção Nem ver nascer a flor Nem ver nascer o sol Eu apenas sou um a mais, um a mais A falar dessa dor, a dessa dor Desenhando nessas pedras Tenho em mim todas as cores Quando falo coisas reais E num silêncio dessa natureza Eu que amo meus amigos Livre, quero poder dizer: Eu tenho esses peixes e dou de coração Eu tenho essas matas e dou de coração Nesta canção, Milagre dos Peixes, temos uma bela imagem contestatória do regime que, entretanto, passou despercebido pela ditadura, visto que há outras músicas do disco de mesmo nome que foram censuradas. Mar e peixes podem representar a vida e os homens, elementos que não eram considerados na época. E, no final do texto uma esperança de liberdade. Contrapondo-se a idéia do “milagre econômico”, os autores apresentam o “milagre dos peixes”, da vida, da natureza, do amor, da vida. Enquanto o governo militar vendia a imagem de desenvolvimento econômico e de “ame-o ou deixe-o”, anulando através da repressão armada idéias contrárias e deixando de lado os verdadeiros problemas nacionais de fome, pobreza; a canção mostra através de imagens poéticas a preocupação dos autores em falar da “nossa dor” em meio a um “silêncio dessa natureza”, “um incêndio calado” (da canção Homem da rua de Lô) dos homens, procurando mostrar que a realidade apregoada e disseminada pelas tevês não era boa assim. Ou seja, as telas coloridas procuravam passar uma imagem amena e de perfeição do regime. O início da década de 70 foi um dos períodos em que a censura mais agiu e censurou os artistas brasileiros, em especial, os compositores e cantores. O governo militar vetava músicas de vários deles, sendo um dos campeões de obras censuradas e/ou mutiladas Chico Buarque. Os compositores do Clube da Esquina não escaparam dos vetos e intimações da Censura Federal, sendo o melhor exemplo o disco Milagre dos Peixes de 1973, que teve três faixas censuradas. E, não por mera coincidência, este também foi o ano em que Chico, já conhecido da Censura, teve seu disco que se chamaria Calabar, incluindo músicas da peça de mesmo nome, todo mutilado: letras vetadas na íntegra ou alteradas forçosamente. Do disco de Milton, foram censuradas as letras de Os escravos de jô de (de Milton Nascimento e Fernando Brant), Hoje é dia de El Rey (de Milton Nascimento e Márcio Borges) e Cadê (de Milton Nascimento e Ruy Guerra). No entanto, a censura deixou passar talvez a letra mais contestatória ao regime: a faixa que deu nome a esse disco lançado em 73 e depois ao álbum duplo gravado ao vivo no Teatro Municipal de São Paulo nos dia s 07 e 08 de 1974. Hoje é dia de El Rey talvez tenha sido censurada por apresentar referências mais diretas e contundentes ao regime, sob o nome El Rey e com versos como “jogai soldados na rua”, enquanto Milagre dos peixes explorava mais uma linguagem simbólica, a linguagem, a linguagem da “fresta”. A começar do título que remete à religião, à bíblia, mas aqui se refere aos homens. Depois, o contraste “andor de nossos novos santos” e “o sinal de velhos tempos”. Os “novos santos” tanto podem ser as imagens televisivas, como o próprio governo e os militares que prometiam uma grande nação, um desenvolvimento monstruoso: o “milagre econômico”. Entretanto, eles deixaram de lado os “peixes”, os homens, esqueceram a realidade dos homens, a dor, o sofrimento da maior parte dos brasileiros. As conseqüências desse “milagre” e suas obras faraônicas são sentidas até hoje com o aprofundamento das desigualdades sociais e aumento da dívida externa do país. Eis a letra censurada: HOJE É DIA DE EL REY (Milton Nascimento e Márcio Borges) Filho – Não pode o noivo mais ser feliz Não pode viver em paz com seu amor Não pode o justo sobreviver Se hoje esqueceu o que é bem-querer Rufai tambores saudando El Rey Nosso amo e senhor e dono da lei Soai clarins pois o dia do ódio E o dia do não são por El Rey Pai – Filho meu ódio você tem Mas El Rey quer viver só de amor Sem clarins e sem mais tambor Vá dizer: nosso dia é de amor Filho – Juntai as muitas mentiras Jogai os soldados na rua Nada sabeis desta terra Hoje é o dia da lua Pai – Filho meu cadê teu amor Nosso Rey está sofrendo a sua dor Filho – Leva daqui tuas armas Então cantar poderia Mas nos teus campos de guerra Hoje morreu a poesia Ambos – El Rey virá salvar... Pai – meu filho você tem razão Mas acho que não é em tudo Se o mundo fosse o que pensa Estava no mesmo lugar Pai você não tinha agora E hoje pior ia estar Filho – Matai o amor, pouco importa Mas outro haverá de surgir O mundo é pra frente que anda Mas tudo está como está Hoje então e agora Pior não podia ficar Ambos – Largue seu dono e procure nova alegria Se hoje é triste e saudade pode matar Vem, amizade não pode ser com maldade Se hoje é triste a verdade Procure nova poesia Procure nova alegria Para amanhã... É uma letra construída em forma de diálogo que revela um conflito de idéias quase sempre entre pai e filho. Todavia assume uma significação toda especial neste momento em que a juventude traz para si responsabilidade e a missão de mudar o mundo. Pai e filho também podem se referir, respectivamente, a gerações ou pessoas que apoiaram o golpe militar em 64 e aos filhos dessa geração ou pessoas que se opuseram ao golpe. Enquanto isso, El Rey apresenta o poder absoluto e autoritário do governo militar. É interessante notar como o filho se expressa em relação ao “dono da lei”: usando os verbos na segunda pessoa do plural como, geralmente, se dirige a reis ou personalidade “em sinal de cortesia ou de respeito, ou a um santo”.10 Este uso do verbo reforça o caráter absolutista do governo. Os momentos em que ambos falam juntos, demonstrando concordar um com o outro, revelam, na primeira fala, uma crença na salvação através de um ser que virá, aproximando-se do que na História de Portugal chama-se de sebastianismo, a eterna espera da volta do Rei D. Sebastião para a nação reviver seus dias de glória. Contudo, a última estrofe revela a coincidência final, simbolizando o descontentamento geral com os arbítrios e desmandos da ditadura militar por pessoas de gerações diferentes e até entre as que, inicialmente, apoiaram o golpe de 64. Ainda sobre a censura à letra dessa música, vale ressaltar que, além de ser vetada na íntegra, Milton é chamado a depor no DOPS. Na gravação, aparecem apenas fragmentos de versos como a denunciar a censura à letra: “Filho meu...(...) Meu filho...” Confirmando a disposição de passar isso na gravação Milton dizia: “Vou gravar de qualquer jeito. Vou botar no som tudo o que eles tiraram na letra. Eles vão ver comigo...” A “teimosia” e a “raiva” de Milton fizeram com que esta e as outras canções permanecessem no repertório.11 Os Escravos de Jô (Milton Nascimento e Fernando Brant) é outra das censuradas. No encarte do cd, não aparece a letra e, na gravação, há pequenas partes onde a letra é cantada por Clementina de Jesus com coro de Milton, Naná, Sirlan, Nico Borges e Telo Borges. Saio do trabalho é Volto para casa ê Não lembro de canseira maior Em tudo é o mesmo suor Em tudo é o mesmo suor (...) Em tudo é o mesmo suor (...)12 Efeitos vocais de Naná e Milton juntamente com a música tentam cobrir as lacunas da letra censurada, conseguindo em parte, pois a audição da música passa uma revolta através do arranjo vocal, musical e da percussão. É impressionante como a música, apenas com estas pequenas inserções da letra, consegue passar a essência do conteúdo poético e político da letra. Outro detalhe importante é que, mesmo as letras tendo sido censuradas, no encarte aparecem as indicações separadas: Os escravos de Jó – Música de Milton Nascimento, letra de Fernando Brant; Hoje é dia de El Rey – Música de Milton Nascimento e letra de Márcio Borges; Cadê – Música de Milton Nascimento e letra de Ruy Guerra e Milton Nascimento. Este vazio e letra registrado no encarte também diz muito, podendo ser visto como uma forma de denunciar os cortes feitos. Enfim, é um disco em que os sons não-verbais (notas musicais, gritos, efeitos vocais e sonoros, percussão, instrumentos) têm um destaque especial e parecem dizer tudo aquilo que não foi permitido através de palavras. Pequenas inserções das letras incorporam-se ao protesto musical, ratificando-o, como, por exemplo, na sugestiva canção A chamada (de Milton Nascimento) que não possui letra, mas traz no meio da música a seguinte seqüência verbal suplicante: “Eu to cansado, me salva, tô cansado”.13 5.3 – O sonho não acabou Ó nem o tempo, amigo Nem a força bruta pode um sonho apagar (BETO GUEDES E RONALDO BASTOS, Canção do novo mundo) John Lennon diz que o sonho acabou no início da década de 70 e inicia carreira solo, contudo temos no Brasil um grupo de jovens envoltos pelo pó da estrada, sonhando juntos um país, uma vida melhor: o Clube da Esquina. Falando pelo grupo, Ronaldo Bastos diz em entrevista a “O Globo”: “Nós éramos jovens e somente nos interessava a revolução. Abominávamos a ignorância da direita e a burrice de certos setores da esquerda. Queríamos mudar o mundo e estivemos perto de mudá-lo em 1968”.14 Retomando a Canção do novo mundo, feita em homenagem ao ídolo de alguns dos participantes do Clube – John Lennon – após sua morte, podemos ampliar o sentido da força bruta, a que os autores se referem. Não só a que matou Lennon, mas também a força bruta dos regimes autoritários, antidemocráticos e repressores. No caso brasileiro, o regime militar instaurado em 1964 e endurecido em 68 fez com que o sonho ficasse adormecido, porém ela não morre e retoma. “Segue a vida a rolar”, “pé na estrada”, “pó de estrelas” e o sonho contínuo pela via-láctea movendo o homem. Percebemos a continuidade dos ideais do Clube na música Via-láctea (de Lô Borges e Ronaldo Bastos), segundo LP solo de Lô Borges de mesmo nome da canção. Esta letra tem uma particularidade interessante: uma estrutura entrecortada, fragmentada que dá a impressão de serem vários “flashes” de todo um período vivido por pessoas que acreditaram ser possível sonhar um país diferente e melhor. VIA-LÁCTEA (Lô Borges e Ronaldo Bastos) Vendaval Carrossel Segue a vida a rolar Pé na estrada Pó de estrelas Coração vulgar Que navega no céu E navega no ar Grão de areia vagar Caravela Pão e mel Segue o circo a rolar Picadeiros Primaveras Coração vulgar Que navega no céu E navega no ar Grão de areia a viver na espuma do mar O grão de tão pequeno ser tão grande o que a gente é Ter esse destino de pessoa que sonhou Que navega no céu E navega no ar Grão de areia a bailar no fundo do azul E anda que nem bola, como a vida quando quer brotar Rola como anda, que nem fonte de calor Barricadas Cordilheiras Coração vulgar Que navega no céu E navega no ar Grão de areia no ar Aventuras Cicatrizes Segue o mundo a rodar Diamantes Universo Coração vulgar Que navega no céu E navega no ar Grão de areia a vagar na espuma do mar A utopia prossegue no LP Clube da Esquina 2, de Milton Nascimento, com a ampliação do Clube de 72. embora um disco de Milton, conta com a participação dos companheiros iniciais, juntamente com outros que ou participaram do primeiro LP Clube da Esquina, ou entraram depois nesse grupo. Era um novo projeto de Milton: ”juntar todos os seus amigos no estúdio para outra celebração”.15 Esta celebração reuniu um grupo bem variado de pessoas, a começar das autorias das canções. Enquanto o LP Clube da Esquina de 1972, tinha canções quase que exclusivamente do “quinteto”, o Clube da Esquina 2 apresenta também canções de outras pessoas que ao longo da década de 70 estiveram junto com Milton (alguns desses até participando do primeiro Clube da Esquina tocando), como Beto Guedes, Nélson Ângelo, Toninho Horta, Novelli, Flávio Venturini, Murilo Antunes, Tavinho Moura, Joyce, Mauricio Maestro e Ruy Guerra. Nas autorias das músicas há ainda nomes como os de: Paulo Jobim, Chico Buarque, Danilo Caymmi, Ana Terra, Violeta Parra e Pablo Milanes e até um poema de Carlos Drummond de Andrade – Canção Amiga – musicado por Milton Nascimento. Participam dele tocando ou cantando – além de Milton, Lô e Beto Guedes – entre outros: Wagner Tiso, Flávio Venturini, Murilo Antunes, Nélson Ângelo, Toninho Horta, Tavinho Moura, Novelli. Enfim, a ampliação conta com várias participações importantes, seja na autoria das músicas, seja cantando, tocando, ou ainda as três opções. Há uma grande participação de músicos, compositores e cantores que não faziam parte do “Clube”, seja tocando, cantando, fazendo parte dos coros, etc. Alguns destes são: Chico Buarque, Francis Hime, Elis Regina, Ruy Guerra, Danilo Caymmi, Paulo Jobim, Joyce, Maurício Maestro, Gonzaguinha, Boca, Livre, César Camargo Mariano. Este álbum duplo marca também a ampliação do intercâmbio poético musical e cultural latino-americano com duas músicas: Casamiento de Negros (música recolhida e adaptada do folclore chileno por Violeta Parro, última estrofe de Polo Cabrera) e Cancion por la unidad de Latino America (de Pablo Milanes e Chico Buarque). Esta última simboliza muito bem o espirito deste disco, que tinha o objetivo de re-unir as pessoas que durante os anos setenta estiveram quase sempre juntas, compondo, tocando, resistindo contra o regime através das canções, ao mesmo tempo em que propunha uma união maior da arte, da música, da poesia, da cultura e da política, em seu sentido maior, dos povos latino-americanos. A tão sonhada unidade política e cultural realiza-se, de certa forma, no Clube da Esquina 2. Este disco já apresenta um tom diferente em relação à noite. A primeira canção do álbum duplo, Credo (de Milton Nascimento e Fernando Brant), marca o início de “um sonho que vai ter de ser real” e também um novo período nas composições e quem sabe no país. Consultando o Novo Dicionário Aurélio, podemos verificar a definição que melhor se encaixa para credo na música: “preceitos ou normas por que se rege uma pessoa, um partido, uma seita, etc”16. O preceito que as pessoas devem seguir agora é acender a esperança e apagar a escuridão, espalhar as sementes da liberdade e ter fé no nosso povo que está acordando de uma longa noite, para que possamos construir um mundo novo e sem repressão. Percebe-se uma nítida mudança no enfoque dado à noite. Aqui ela aparece ao lado da esperança, da juventude, do novo, diferentemente de Os povos onde o povo tem medo do novo, e representa o início do despertar, o começo de uma nova fase. Enfim, retrata um astral mais positivo que vai ao encontro histórico de tímido afrouxamento do regime (final dos anos 70). CREDO (Milton Nascimento e Fernando Brant) Caminhando pela noite de nossa cidade Acendendo a esperança e apagando a escuridão Vamos, caminhando pelas ruas de nossa cidade Viver derramando a juventude pelos corações Tenha fé no nosso povo que ele resiste Tenha fé no nosso povo que ele insiste E acorda novo, forte, alegre, cheio de paixão Vamos, caminhando de mãos dadas com a alma nova Viver semeando a liberdade em cada coração Tenha fé no nosso povo que ele acorda Tenha fé no nosso povo que ele assusta Caminhando e vivendo com a alma aberta Aquecidos pelo sol que vem depois do temporal Vamos, companheiro pelas ruas de nossa cidade Cantar semeando um sonho que vai ter de ser real Caminhemos pela noite com a esperança Caminhemos pela noite com a juventude Esta canção contrasta com outras anteriores pelo fato de apresentar uma série de vocábulos do campo semântico de luz, energia, vitalidade: juventude, fé, alegre, paixão, forte, novo. Isto reforça o que foi dito acima, mostrando que seria possível uma mudança de tal quadro. Outro aspecto importante é a citação na gravação de outra canção do álbum duplo Cube da Esquina, San Vicente, que ressalta o contraste entre o início da década e o final. Para terminar, duas canções do mesmo LP que possuem a mesma melodia com pequenas alterações no arranjo, mas com letras diferentes. Vale a pena recontar o processo de criação destas canções: Milton havia feito uma melodia e a entregara a Fernando e a Márcio, dizendo que era para eles refletirem sobre “o que foi feito devera”.17 É uma citação da própria obra, Vera Cruz (de Milton e Márcio), feita no fim da década de 60 e tentativa de obraprima por parte de Márcio. O resultado foi a criação de duas obras de arte: a primeira, O que foi feito deverá (de Milton e Fernando Brant) e a Segunda O que foi feito de vera (de Milton e Márcio Borges), cantadas por Milton e Elis Regina com vocal de Lô Borges e Gonzaguinha. São duas canções que fazem uma retrospectiva da trajetória percorrida pelo Clube da Esquina de 68 a 78. Na primeira temos a indagação sobre o que foi feito com tudo o que foi sonhado, com a vida e com o amor. E o “verso menino” fica em nossa cabeça para manter vivas para sempre as sensações da época e como foi duro este período. Não esquecer jamais que “se muito vale o já feito/ mas vale o que será”, ou seja, não esquecer de viver o presente, porém sempre com a imagem do passado a nos fazer lembrar que “outras manhãs plenas de sol e de luz virão”. E a imagem diz muito mais que as palavras. Como já foi dito, retomando Octavio Paz, a imagem revive, recria, nos coloca diante do fato, passado, presente ou futuro. Esta idéia pode ser resumida com uma frase de Augusto Boal ouvida num programa de televisão que dizia mais ou menos: “A gente deve olhar/conhecer o passado para melhor viver o presente e inventar o futuro”.18 O QUE FOI FEITO DEVERÁ (Milton Nascimento e Fernando Brant) O que foi feito amigo De tudo que a gente sonhou O que foi feito da vida O que foi feito do amor Quisera encontrar Aquele verso menino Que escrevi a tantos anos atrás Falo assim sem saudade Falo assim por saber Se muito vale o já feito Mas vale o que será E o que foi feito É preciso conhecer Para melhor prosseguir Falo assim sem tristeza Falo por acreditar Que é cobrado o que fomos Que nós iremos crescer Outros outubros virão Outras manhãs plenas de sol e de luz Na segunda, temos um duplo sentido logo no título, precisamente na expressão ”de vera”. Um sentido é o que foi feito de Vera Cruz, primeiro nome dado ao Brasil; o outro significa para valer, deveras. Podemos ainda juntar os dois: o que foi feito deveras do Brasil? Na realidade, já falamos bastante sobre o que fizeram: ameaçaram, mataram, esquartejaram, durante um longo tempo, a nossa liberdade. Nos versos desta canção há ainda o ressurgimento do homem íntegro, “o homem que eu era voltou”, podendo não só pensar, sentir e sonhar, como também se reunir livremente, falar, opinar, manifestar-se. O QUE FOI FEITO DE VERA (Milton Nascimento e Márcio Borges) Alertem todos alarmas Que o homem que eu era voltou A tribo toda reunida Ração repartida ao sol De nossa Vera Cruz Quando o descanso era luta pelo pão E aventura sem par Quando o cansaço era rio E rio qualquer dava pé E a cabeça rodava Num gira-girar de amor E até mesmo a fé Não era sega nem nada Era só nuvem céu e raiz Hoje essa vida só cabe Na alma da minha paixão De Vera nunca se acabe Abelha fazendo seu mel No canto que eu criei Nem vá dormir como pedra E esquecer o que foi feito de nós Enfim, estas duas canções fazem o retrospecto do que o “grupo”viveu e escreveu: “quando o descanso era luta pelo pão e aventura sem par”, “abelha fazendo o seu mel” e “até mesmo a fé não era cega nem nada era só nuvem, céu e raiz”. Neste último trecho há inclusive uma revisão de valores em relação a “fé cega” cantada antes (música de Milton e Ronaldo Bastos): na verdade não era uma fé irracional e sim uma fé que misturava “nuvem” (simbolizando paixão, sonho, ideal) e “raiz”(“pé no chão”, realidade, racionalidade). E “o que foi feito deverá” sempre ser lembrado para que não se repita jamais. E não podemos também dormir “como pedra e esquecer que foi feito” de Vera. A antinomia “nuvem”/”raiz” apontada acima é um dos elementos presentes neste segundo texto revela seu alto grau de poeticidade, visto que, segundo Massaud Moisés, “a tensão decisiva para o fenômeno poético ser a que se organiza entre o sentir e o pensar, entre a emoção e o pensamento, não raro num mesmo verso ou imagem”.19 no entanto, vale lembrar que o referido autor não reconhece, ou pelo menos não deixa isso evidente, a letra de música como uma forma poética. Para provar que a letra de música pode ser considerada poesia, recorramos mais uma vez a esse mesmo crítico: “O encontro entre as duas esferas – a emoção e a intelectualização – manifestase como tensão: a poesia é sinônimo de tensão, de conflito, de antinomia”.20 Dez anos depois do AI-5, quatorze depois do golpe, o LP Clube da Esquina 2 marca o fim de um ciclo na produção poético-musical dos autores em estudo quando há um início tímido de afrouxamento do regime e fortalecese o movimento “pró-anistia”, embora o fantasma da ditadura e da repressão ainda não estivesse totalmente afastado, conforme episódios posteriores, como o atentado à bomba no Riocentro durante a comemoração do 1º de maio de 1980, iriam demonstrar. A obra-prima imaginada por Márcio Borges é finalmente composta quando põe letra em melodia de Milton (O que foi feito de vera) e, magistralmente, transforma em imagens poéticas a história pessoal dele, Milton, do pessoal do Clube da Esquina, ao mesmo tempo em que também é um “revival” imagético da década de 70 e das pessoas que a viveram. Para os que não viveram ou eram pequenos na época, recria e revive, através destas imagens, tudo aquilo por que passaram e sonharam. E a utopia prossegue na poesia, pois “se o poeta é o que sonha o que vai ser real/ bom sonhar coisas boas que o homem nem faz/e esperar pelos frutos no quintal”.21 NOTAS: * PESSOA, F. (1986) p.17. 1 CAPINAM, FOL G., (1990), reprodução do disco original em cd. 2 BORGES, M. (1996) p.309. 3 HOLLANDA, Chico B. de. (1970). IN:________, (1989), p.92. 4 PEREIRA, C.A.M. (1981) p.275-276. 5 O GLOBO (1995), 27/04/1995. 6 SOUZA, Tárik de. “A polifonia dos anos 70 e 80”. In: SALAZAR, A. (s.n.t) p.270. 7 CARVALHO, Elizabeth. “O mundo econômico: uma só nação, um só mercado consumidor” (A ascensão do império global – um casamento perfeito) In: ANOS 70. (1979-1980), v.5 – Televisão, p.105. 8 RIBEIRO, Santuza Naves, BOTELHO, Isaura. “A televisão e a política de integração nacional”. In: ANOS 70. (1979-1980), v.5, Televisão, p.94. 9 BORGES, M. (1996) p.305-306 10 FERREIRA, A.B. de, FEREIRA, M.B. 2.ed. (AURÉLIO ELETRÔNICO) 11 BORGES, M. (1996) p. 305-306 12 Versos escritos a partir da audição da gravação. In: NASCIMENTO, M. Milagre dos Peixes. (1995). 13 Ibidem. 14 O GLOBO (27/04/95). 15 BORGES, M. (1996) p.327. 16 FERREIRA, A.B. de. /s.d/ 1.ed. 17 BORGES, M. (1996) p.326-327. 18 BOAL, ª In: “Conexão Roberto D`Ávila de 11/06/1998 – TV-E. 19 MOISÉS, M. (1993) p.171. 20 Ibidem, p.170. 21 NASCIMENTO, M., BRANT, F. Coração Civil. In Nascimento.: Caçador de mim (1981). 6 – FIM DO MILÊNIO; FIM DAS UTOPIAS? Quando o sonho acabou Continuamos a sonhar Com os olhos bem abertos pra ver O inverno que chegou Uma andorinha não faz verão Mas em duas voam sonhos reais (LÔ BORGES E MÁRCIO BORGES – Vertigem) Muito tem se falado, neste fim de século, em fim das utopias. Fala-se, por exemplo, que o último movimento utópico do século aconteceu em 1968, ano tido como marco da última grande utopia do século durante o qual ocorreram rebeliões, revoltas, greves, manifestações, principalmente de estudantes, em todos os continentes do mundo. Já vimos também que este ano foi um “divisor de águas” na história brasileira, influenciando toda uma geração e outras posteriores, em especial o grupo de compositores e poetas que são o âmago deste trabalho. Vale lembrar, ainda uma vez, que as canções e parcerias entre eles começaram a surgir entre 1964 e 1968, intensificando-se a partir de 69, com a canção que viria a nomear, posteriormente, uma geração de compositores, músicos e poetas: Clube da Esquina. Embora esta canção já tenha sido comentada e discutida anteriormente, é importante ressaltarmos que ela, de fato, além de ser um hino desta geração específica, representa poeticamente o clima e o ritmo daqueles anos sombrios, conforme podemos comprovar relacionando-a com a seguinte narrativa escrita em 98 a partir de jornais da época e de depoimentos dados ao jornal Folha de São Paulo: Noite de um dia qualquer de maio de 1968. Todos os envolvidos no dia de hoje viverão na clandestinidade, serão perseguidos ou presos, passarão anos numa solitária, fugirão do país ou viverão escondidos aqui mesmo, cm nomes falsos, pulando de um estado para outro, de uma cidade para outra. Antes disso, nas noites de maio de 68, eles se reuniam em bares, restaurantes e nas casas uns dos outros para conversar, ler, discutir, debater, planejar os comícios, os congressos e as passeatas do dia seguinte. Reuniam-se ainda para ir ao cinema, ao teatro e namorar – “para essa geração, a noite era dia; um dia contava um mês; um mês contava um ano”.1 Embora a canção Clube da Esquina tenha sido feita após 68 e refletisse o clima de então, poderia perfeitamente referi-se a noites anteriores. Outros aspectos que aparece no trecho citado nos remete para a letra de Clube da Esquina 2, em especial para o verso “e lá se vai mais um dia”, onde cada dia que se passava representava uma eternidade, ao mesmo tempo em que era necessário se fazer em um dia algo que precisaria de um mês, um ano, uma década. Relacionando o material poético dos autores do período estudado, 19681980, com a década de 90, pode-se concluir que a utopia não desapareceu de suas obras. Ou seja, utopia e poesia, além de estarem extremamente relacionadas, não acabam, visto que essenciais para o ser humano, contudo podem sofrer alterações de rota. Há uma manifestação intrínseca entre as manifestações e os anseios da juventude pelo mundo inteiro e a produção poético musical do Clube da Esquina. Como já foi visto podemos observar através das canções e das declarações de membros do Clube da Esquina, havia um desejo forte de mudar o mundo através da revolução. Frustrada essa via, o que podemos perceber é toda uma canalização destes anseios para uma revolução cultural, influenciada pelas idéias da contracultura cindas de outros países. Este desejo utópico era uma constante nas letras e também nas conversas, pelo que pudemos observar através das fontes de pesquisa (canções, jornais, livros, depoimentos, entrevistas em rádio, etc.). este desejo é uma característica nata e constante no homem “ainda não embrutecido pela própria fraqueza ou pela realidade tremenda, é a liberdade que ele se reserva de opor ao evento defeituoso, à situação decepcionante, uma força contraditória”.2 Contra o regime autoritário brasileiro, uma sociedade diferente era imaginada utopicamente através das canções. É importante destacar que a utopia revela não só um desejo individual, mas também pode representar o desejo coletivo de mudanças de uma época. É o caso das canções do Clube da Esquina que se contrapunham, ainda que, às vezes, de forma não direta, mas subentendida pelo público que, ao longo da década de 70, cada vez mais ia se inteirando e entendendo o conteúdo político e de resistência em seu sentido mais amplo. (...) Antes de mais nada, deve-se considerar que, embora uma ou outra utopia possa ser fruto meramente de uma única vontade individual, a maior parte delas na verdade representa a cristalização das aspirações, senão do todo, pelo menos de parte do grupo social onde aparecem, mesmo quando surgem na forma de um livro assinado por uma única pessoa. (...)3 Duas questões abordadas por Teixeira Coelho merecem ser abordadas e consideradas: O desejo da utopia transforma-se em algo de preciso, tende a concretizar-se? Ou a imaginação utópica é cultivada pelo homem apenas como meio de fuga, como válvula de escape interior diante da triste realidade? Uma postura diletante e acadêmica diante da questão optaria pela Segunda proposição. Mas o fato é que a força básica da imaginação utópica está exatamente em sua propriedade de levar o homem a procurar sua transformação em algo concreto. (...)4 Embora, às vezes, parecessem mera fuga da triste realidade, as canções do Clube da Esquina tentavam levar os homens a utopia (o lugar imaginado) em “topia” (o lugar real). Enfim, o projeto utópico alterou-se, porém ainda resiste nas pessoas que passaram pelo Clube da Esquina. Houve mudanças de rotas, como podemos observar, por exemplo, em Milton que, embora envolvido com a “world music”, tem canalizado seus últimos trabalhos numa utopia fundamental para o homem na entrada do terceiro milênio: a defesa do planeta Terra e dos povos oprimidos, como os índios brasileiros; e em Márcio Borges que, atualmente leva uma vida “alternativa” longe do show business e das cidades grandes, um dos ideais presentes nas canções dos anos 70. NOTAS: 1 FOLHA DE SÃO PAULO (Caderno Mais – Edição de 10/05/1998) p.5. narrativa feita a partir de jornais da época e dos depoimentos dados à folha por César Benjamin, Doralina Carvalho, José Dirceu, José Genoíno, Olga Matos e Valdemir Bargiere. 2 COELHO, T. (1985) p.7. 3 Ibidem, p.48. 4 Ibidem, P.68. RESUMO Esta dissertação analisa a poesia produzida na década de 70 pelos letristas/poetas do Clube da Esquina, período em que o Brasil vive o momento do “milagre econômico”, sob intensa ditadura militar e chamado por alguns de “vazio cultural”. Contrariando esta posição, demonstra-se que houve grandes acontecimentos culturais e artísticos, apesar da aparente tranqüilidade. É um período marcado pelo aparecimento e amadurecimento de vários poetas da MPB, quando a poesia da censura invade lares e bares via meio de comunicação de massa e, apesar da censura, muita contestação passou “pela fresta”. A década de 70 é o momento de afirmação da MPB como um dos principais veículos da poesia brasileira na atualidade e, ainda, de resistência cultural, destacando-se no contexto o Clube da Esquina. Partindo do caminho percorrido pelos integrantes do Clube da Esquina desde a década de 60, época efervescente na literatura, na política e na música popular brasileira, até chegar os anos 70, observa-se e analisa-se, através das letras das canções, sua relação com o momento histórico, sonho e utopia e como as transformações ocorridas no campo histórico-político-social alteram ou não a visão e o sonho de transformações da sociedade no Brasil. Para isso, elegemos como corpo central da pesquisa os compositores/poetas Milton Nascimento, Lô Borges, Márcio Borges, Ronaldo Bastos e Fernando Brant, principais criadores das canções do Clube da Esquina. Neste fim de século, fala-se de fim da história, fim das utopias, fim das ideologias (e até do fim da poesia), globalização, fim de tudo. Então, “o que foi feito amigo/De tudo que a gente sonhou”. ABSTRACT This dissertation analyses the poetry produced during the seventies by thje song writers/poets from the Clube da Esquina, a period when Brazil lives the moment of the “economical miracle”, under a violent military dictatorship. It was called “cultural void”. Refuting this position, it can be showed that there were a lot of cultural and artistic events un spite of apparebt calm. It`s a period marked by the appearing and matureness of a seneral poets of MPB (Brazilian popular music), when poetry invades homes and bars through mass media and despite the censorship, a lot of protest could pass through “the breach”. The seventies are the moment of affirmation of MPB as one of the principal vehicles of Brazilian poetry nowadays and it was also a time of great opposition to dictatoship through culture. The importance of Clube da Esquina can be pointed out in this context. From the way trawelled by the members of the Clube da Esquina since the sixties, an effervescent period in leterature, politcs and in Brazilian Popular Music (MPB), until the seventies, one can observe and analyse, through the lyrics of the songs, their relationship with the historical moment, dream and utopia and how transformation that ocurred in the historical-political-social field changed or not the view and the dream of transforming society in Brazil. In order to do it, it was elected as the central corpus of the research the composers/poets Milton Nascimento, Lô Borges, Márcio Borges, Ronaldo Bastos e Fernando Brant, main creators of the songs of the Clube da Esquina. In this end of century, people talk about the end of History, end of utopias, end of ideology (and even end of poetry), “globalization”, end of everything. So, “what happened friend/to everything which we dreamed”. 7 – BIBLIOGRAFIA 1. ANDRADE, Mário. Dicionário musical brasileiro. 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ERRATAS E CORRIGENDAS: Pág. 11 Pág. 100 Onde se lê leia-se Alguns núcleos teóricos alguns núcleos temáticos Onde se lê Leia-se Aqui já um certo prenúncio Aqui já há um certo prenuncio