A Especificidade do Trabalho Filosófico no Ensino Secundário

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DIDACT_Santiago2006
A Especificidade do Trabalho Filosófico no Ensino Secundário
Joaquim Neves Vicente - Universidade de Coimbra
A matriz disciplinar da Filosofia enquanto área curricular da educação secundária há-de
ser determinada por três princípios constitutivos fundamentais que não podem deixar de
ser entre si compatibilizados: o princípio da especificidade científica, o princípio da
assimilação cognitiva e o princípio do valor ou interesse formativo.Em conformidade
com o princípio da especificidade científica, a disciplina de Filosofia há-de ser
determinada pelo que tem de ser ensinado/aprendido. E o que tem de ser
ensinado/aprendido em Filosofia só a filosofia ela mesma o poderá indicar, segundo
uma lógica epistemológica.
Em conformidade com o princípio da assimilação cognitiva, a disciplina de Filosofia
há-de ser determinada pelo que pode ser ensinado/aprendido, segundo uma lógica
pedagógico-didáctica.
Em conformidade com o princípio do valor ou interesse formativo que é solicitado
social e institucionalmente pelo currículo escolar, a disciplina de Filosofia há-de ser
determinada pelo que deve ser ensinado/aprendido, segundo uma lógica social e
política.
A compatibilização equilibrada dos três princípios revela-se com frequência muito
difícil e o triângulo em cujos vértices poderemos inscrever aqueles princípios raramente
escapa à deformação provocada por derivas e tentações diversas.
A compatibilização equilibrada não pode ceder ao desvio constituído pelo paradigma
magistral do “filósofo-mestre” que não distingue adequadamente ensino secundário de
ensino universitário. Os desabafos das vítimas eram (são?) frequentes: “O professor
falava para ele. Eu não compreendia nada. Era tudo muito abstracto para mim. Eu não
me atrevia a pôr questões. Passei o ano à deriva. Foi um ano perdido. Não conclui o
secundário por causa da Filosofia”.
A compatibilização equilibrada também não pode ceder ao desvio constituído pelas
“derivas pedagogistas” que querem, a todo o custo, tornar o ensino filosófico
interessante e divertido; desvio constituído também pelas “receitas de sobrevivência”
que eliminam a distância entre a conversa de café e o trabalho filosófico ou que
confunde técnicas de animação e comunicação grupal com reflexão filosófica. As
vítimas neste caso só mais tarde é que dão pela oportunidade perdida.
A compatibilização equilibrada também não pode ceder ao desvio constituído pela
requisição civil da Filosofia posta ao serviço de qualquer ideologia ou de qualquer
política. Há muito que a filosofia deixou de ser «serva da teologia». Não será agora que
se há-de transformar numa catequese laica, fazendo dos professores de filosofia
catequistas da educação anti-droga, da educação anti-tabágica, da educação sexual, da
educação anti-racista, da educação para os media, da educação nutricional, da educação
para a defesa dos animais, ou até da educação para a cidadania – preocupações
legítimas, sem dúvida, mas redutoras, com as quais viria a tornar-se a Filosofia uma
caixa de ressonância dos problemas sociais, cuja função seria a de terapeuta social ou de
ortopedia social.
A reflexão que me proponho fazer e as propostas didácticas que vou apresentar são uma
das respostas possíveis a esta questão geral: - Que pode a disciplina de Filosofia trazer
de específico à formação geral da educação secundária? Procurando ser ainda mais
preciso: - Que pode a disciplina de Filosofia trazer de mais-valia à formação geral que
outras disciplinas não estão (tão) habilitadas a trazer?
A pergunta releva, em particular, do referido princípio da especificidade científica.
Releva, também, como procurarei mostrar, do interesse formativo no quadro dos outros
saberes.
Em Filosofia não devemos dispersar-nos pelo que outros podem fazer tão bem como
nós ou até melhor. Devemos concentrar-nos no que nos cabe a nós e que outros não
estão em condições de fazer.
O campo da reflexão filosófica estende-se por um grande número de problemas
distribuídos por algumas áreas tradicionalmente delimitadas: Epistemologia,
Antropologia, Ética, Estética, Filosofia Social e Política... É no quadro destas áreas que
os programas de Filosofia no secundário têm procurado os problemas julgados de maior
interesse formativo. Seria um prejuízo fazer a economia de alguma dessas áreas,
encurtando ou cortando mesmo os horizontes.
Há, porém, uma outra área que tem sido um parente pobre do ensino filosófico no
secundário e no superior que não pode ser descurada dada a sua omnipresença no
trabalho filosófico de qualquer tema/problema. Refiro-me, como se adivinhará de
pronto, à Lógica entendida como ciência/arte/técnica do pensamento e (sublinhe-se) do
discurso.
Para ser mais preciso: é para as operações discursivas que quero focalizar a minha
intervenção. Devo acrescentar que não entendo a lógica formal e dedutiva como o
organon do trabalho filosófico; entendo-a tão-só como uma das suas partes. Incluo
nesse organon a lógica informal, a nova retórica, a nova dialéctica e as teorias da
argumentação que compõem o que, com muitos outros, denomino por lógica
discursiva.
Para precisar o interesse, a pertinência e a relevância formativa de uma lógica discursiva
não só para o trabalho filosófico mas também para todo o trabalho intelectual exigido
nas diversas áreas científicas formulo sob a forma de perguntas (retóricas) alguns dos
casos em que apoio a minha convicção do interesse, pertinência e relevância de uma
lógica discursiva.
Todos somos testemunhas na escola secundária e mesmo na universidade das muitas
dificuldades que um grande número de alunos tem em exprimir as suas ideias por
escrito (e oralmente) de maneira clara, precisa e coerente. Não é só porque têm
dificuldades com a ortografia ou com a gramática ou porque têm estilo pobre. O
problema principal é mais profundo; mergulha a sua raiz num pensamento mal
organizado e nebuloso que não percorreu ainda a via crucis do processamento
discursivo nas suas diversas dimensões: processamento conceptual, processamento
sintáctico, processamento semântico, processamento lógico e processamento
argumentativo.
Cá vão as perguntas com resposta óbvia:
Ø A quem compete senão à filosofia ensinar a definir, a distinguir, a relacionar e a
classificar os conceitos? É que há regras e critérios a respeitar em que mais ninguém
inicia os nossos alunos.
Ø A quem compete senão à filosofia ensinar a distinguir os diversos tipos de
proposições (enunciados de facto, juízos de valor, enunciados prescritivos) e avaliar
os critérios respectivos da sua comprovção e aceitabilidade?
Ø A quem compete senão à filosofia ensinar a avaliar os argumentos, a apreciar a sua
validade, a avaliar a pertinência e a relevância das premissas ou a correcção da sua
conclusão?
Ø A quem se há-de encarregar senão à filosofia a análise da consistência ou da
coerência de um discurso?
Ø A quem compete senão à filosofia fazer do discurso a expressão adequada do
pensamento? A substituição da expressão deficiente pela expressão adequada é
tarefa do professor de línguas, mas não o é menos do professor de Filosofia no que
esse trabalho tem de lógico.
Ø A quem vamos pedir no ensino secundário que ensine os alunos a identificar uma
definição ou um argumento circulares, a corrigir um enunciado ambíguo, a criticar
uma afirmação gratuita ou a desocultar uma contradição escondida?
Ø A quem vamos pedir ajuda para que o aluno aprenda a distinguir um indício fraco de
uma prova rigorosa ou uma simples opinião de um conhecimento fortemente
estabelecido?
Ø A quem vamos pedir senão à filosofia que ensine um aluno a analisar a estrutura
lógica de um texto argumentativo?
Ø A quem vamos pedir senão à filosofia que inicie um aluno na composição de uma
dissertação?
Ø A quem vamos pedir senão à filosofia ...
Há um lamento que se ouve com frequência entre os professores de Filosofia:
- Os alunos não sabem filosofia porque não sabem português ou galego.
E se invertêssemos os termos da afirmação?
- Os alunos não sabem galego ou português porque não sabem filosofia.
Seguem-se alguns dispositivos didácticos. Outros serão apresentados nas Jornadas.
ARTICULAÇÃO LÓGICO-SINTÁCTICA
INICIAÇÃO À DISCURSIVIDADE
EXERCÍ
es entre as seguintes ideias.
EXERCÍCIO.
CIO Estabeleça as seguintes relaçõ
relações
RELAÇÕES
causal
argumenta bem + sabe lógica
I D E I A S:
S:
porque sabe lógica.
Argumenta bem ________
consecutiva
por conseguinte argumenta bem.
Sabe lógica, ________________
concessiva
embora não argumente bem.
Sabe lógica, ________
condicional
Se argumenta bem, ______
então sabe lógica.
___
temporal
quando sabe lógica.
Argumenta bem, ________
J. Neves Vicente
PROPOSIÇÕES CONDICIONAIS
Exercí
Exercício
INICIAÇÃO À DISCURSIVIDADE
Considere a proposição «Se este anel é de ouro, então este anel é caro.»
Avalie as proposições seguintes e diga se SIM ou NÃO são proposições equivalentes.
1. Basta ser de ouro para este anel ser caro.
P Sim £Não
£
2. Basta ser caro para este anel ser de ouro.
P
£ Sim £Não
3. Não basta ser caro para este anel ser de ouro.
P Sim £Não
£
4. É suficiente este anel ser de ouro para ser caro.
£
P Sim £Não
5. É suficiente este anel ser caro para ser de ouro.
£ Sim £Não
P
6. É necessário ser de ouro para este anel ser caro.
P
£ Sim £Não
7. Não é necessário ser de ouro para este anel ser caro.
P Sim £Não
£
8. É uma condição necessária este anel ser de ouro para ser caro.
£ Sim £Não
P
9. Não é uma condição necessária este anel ser de ouro para ser caro.
£
P Sim £Não
10. Não é uma condição necessária este anel ser caro para ser de ouro.
£ Sim £Não
P
11. É uma condição suficiente este anel ser de ouro para ser caro.
£
P Sim £Não
12. É uma condição suficiente este anel ser caro para ser de ouro.
£ Sim £Não
P
J.Neves Vicente
Argumentos
de Criton no
Criton de Platã
Platão
Análise lógicoargumentativa
1.1
AP1
1.2
1.2.1
1.2.2
AP2
3.1
Tese
AP3
3.1.1
AP5
4.1
AP4 – Para onde quer que fujas serás sempre amado
5.1
AP5 – Não é justo não fugires, pois que podes e deves
5.2
5.3
4.1. tenho anfitriões amigos na Tessália
5.2.1
5.3.1
5.3.2
AP
Argumento Principal
AP2 – É justo que corramos esse risco
AP3 – Há dinheiro para pagar a fuga; não te preocupes
3.1. o dinheiro pedido para te deixar sair não é muito
3.1.1. os delatores não exigem muito dinheiro
3.2. a minha fortuna está ao teu dispor
3.3. muitos em Atenas estão dispostos também a pagar
3.2
3.3
AP4
TESE DE CRITON – É preciso fugir da prisã
prisão (Sócrates)
ARGUMENTOS
AP1 – Porque seria grande mal para mim (Criton)
1.1. perderia um amigo insubstituível, como não há outro
1.2. seria negligência da minha parte não te salvar
1.2.1. é vergonha amar mais o dinheiro que um amigo
1.2.2. ninguém acreditaria que tu, Sócrates, recusaste
5.1. de contrário, favoreces os teus inimigos
5.2. abandonas e trais os teus filhos
5.2.1. por quem és responsável e precisam de ti
5.3. seria uma fraqueza e uma vergonha
5.3.1. tomar o partido mais fácil e não o mais corajoso
5.3.2. os amigos passariam por frouxos aos olhos de todos.
EXERCÍCIOS DE CONCEPTUALIZAÇÃO
Definição substancial
HIERARQUIZAÇÃ
O ONTOLÓ
HIERARQUIZAÇÃO
ONTOLÓGICA
(a partir da esquerda e a subir)
O primeiro (de)grau do ser é o do simples
ser (É). O exemplo deste "reino mineral" é
o da pedra inerte e inorgânica.
O segundo nível é o do ser que vive
(VIVE
VIVE), representado pela árvore que
integra o reino vegetal.
O terceiro grau é o do ser, que à vida
acrescenta o sentir (SENTE), agora
representado pelo cavalo.
Por fim, o ser que ao viver e ao sentir
acrescenta a inteligência racional
(PENSA
PENSA), atributo específico do ser
humano.
Charles de Bovelles - De Sapiente, 1510.
Os (de)graus ascendentes do ser
EXERCÍCIOS DE CONCEPTUALIZAÇÃO
DEFINIÇÃO. Como definir um conceito?
conceito?
Regras da boa definiçã
o
definição
1. Deve começar por indicar o género pró
próximo ou categoria relevante a que a coisa a
definir pertence.
2. Deve enunciar, depois, os atributos ou predicados essenciais da espécie (as
diferenç
diferenças especí
específicas).
ficas
3. A extensão da definição não pode ser maior nem menor que a do definido.
4. Não deve ser circular. O termo do conceito em definição não pode entrar na definição
5. Não deve ser nem muito ampla nem muito específica.
6. Não deve expressar-se em linguagem ambígua, obscura ou figurativa.
7. Não se deve dar uma definição negativa se se pode dar uma definição afirmativa.
Vícios capitais
1.º Não explicitar o género próximo, dizendo, por exemplo, é aquela coisa que ...
2.º Não explicitar as diferenças específicas necessárias e suficientes.
3.º Confundir características individuais ou acidentais (acidentes) com atributos
ou predicados (substanciais).
J.Neves Vicente
EXERCÍCIOS DE CONCEPTUALIZAÇÃO
Definir: género + especificações - oposições
Conceitos
a definir =
género próximo
+ diferenças específicas
- por oposição a:
é um ser vivo
animado,
dotado de sensibilidade,
desprovido de razão.
Matéria
Vegetal
Homem
é uma narrativa
fictícia,
anónima,
sem conclusão moral.
Narrativa histórica
"Alegoria" platónica
fábula
realizado pelo ser humano
de forma intencional
livremente / voluntariamente
com conhecimento dos resultados
premeditado
Acontecimento natural
Algo que nos acontece
Acto sob coacção
Acto equivocado
Acto inadvertido
categoria relevante
Exemplo 1
Animal
Exemplo 2
Mito
Acção
é um acto
Exemplo 4
é um raciocínio
ou argumento
com três proposições categóricas
com três termos (S, M, P)
Silogismo condicional
Lógica proposicional
é uma morte
violenta
voluntária
causada sobre si
Morte natural
Morte acidental
Assassínio
Silogismo
categórico
Exemplo 5
Suicídio
Definir: género + especificações - oposições
VERDADE
CONCEPTUALIZAR
oposição de conceitos
© Éditions Magnard
Exemplo 3
opõ
opõe-se
EVIDÊNCIA
opõ
opõe-se
CERTEZA
opõe-se
OPINIÃO
DÚVIDA
DÚVIDA
ERRO
ERRO
IGNORÂNCIA
Relação entre conceitos
ALGUNS TIPOS POSSÍVEIS DE RELAÇÕES
Tipos de relações entre conceitos
uGénero - Espécie
u Identidade - Diferença
u Oposição: contrária - contraditória
u Compatibilidade - Incompatibilidade - Complementaridade
u Conciliação - Inconciliação
u Anterioridade - Posteridade
u Causa - Efeito
u Fim - Meio
u Relativos - Correlativos
u Dependência - Independência
u Inclusão - Exclusão
u Condição: necessária - suficiente
u Possibilidade - Impossibilidade
uAntecedente - Consequente
uIdentidade / Diferença
uOposição: contrária
contraditória
uCompatibilidade /
Incompatibilidade /
Complementaridade
uConciliação /
Inconciliação
uAnterioridade /
Posteridade
uCausa / efeito
uFim / meio
uRelativos /
Correlativos
uDependência /
Independência
uInclusão /
Exclusão
uCondição: necessária
suficiente
uPossibilidade /
Impossibilidade
uAntecedente /
Consequente
Relações
EXERCÍCIOS DE CONCEPTUALIZAÇÃO
prazer e felicidade:
felicidade
identidade ou diferença?
ser branco e ser preto:
preto
contrários ou contraditórios?
justiç
justiça e caridade:
caridade
complementares ou (in)compatíveis?
paixã
paixão e razã
razão:
conciliáveis ou inconciliáveis?
existê
existência e essê
essência:
ncia:
A existência precede a essência?Sartre
raio e trovão:
trovão
causa ou efeito?
ensinar e aprender:
aprender:
relativos ou correlativos?
InfraInfra-estrutura e supersuper-estrutura:
estrutura
dependência ou independência?
A arte é uma linguagem?
linguagem
inclusão ou exclusão?
ser lógico e argumentar bem:
bem
cond. necessária ou suficiente?
objectividade em histó
história?
ria
possibilidade ou impossibilidade?
entre conceitos
J. Neves Vicente
Usar a ló
lógica para descobrir hipó
hipóteses e ordenar ideias
1. Duas soluções extremas
P
P∧Q? ~(P∧Q)?
P∨Q? ~(P∨Q)?
P↔Q? P w Q?
P→Q? Q→P?
Q
1.1. Uma correlaçã
o estrita ou uma implicaçã
o recí
bicondicional)
correlação
implicação
recíproca (bicondicional
«Onde há lei, há liberdade; e onde há liberdade há lei.»
(Lei ↔ Lib)
1.2. Uma estrita incompatibilidade
[ (Lei → ~Lib) ∧(Lib → ~Lei)] ou ~(Lei ∧ Lib)
«Onde há lei, não há liberdade; e onde há liberdade não há lei.»
2. Soluções intermédias
2.1. Nem implicação recíproca nem incompatibilidade
(Lei ∨ Lib)
«Todas as soluções possíveis: a liberdade s/ a lei; a lei s/ a liberdade; a liberdade c/ a lei.»
2.2. A Lei é condição necessária mas não suficiente da liberdade. (Lib → Lei)
«A lei não é condição suficiente, pois há leis injustas.» [pelo menos em Estados não republicanos]
2.3. A Lei é condição suficiente mas não necessária da liberdade. (Lei → Lib)
«Todas as leis, quaisquer que fossem, dariam a liberdade.»
J. Neves Vicente
Formular Problemas
© Éditions Magnard,343
Problematização / Formulação das hipóteses
Exemplo de dissertação: - Pode existir liberdade sem lei?
hipóteses
DISSERTAÇÃO
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