Jorge Sampaio Presidente da República Portuguesa Notas sobre o debate constitucional europeu* Magnífico Reitor Senhores Ministros Senhores Professores Senhores Embaixadores Caros estudantes As minhas primeiras palavras são de agradecimento à Universidade de Atenas na pessoa do seu Reitor, o Professor George Babiniotis, pelo amável convite que me dirigiu para usar da palavra nesta prestigiada instituição. Agradeço-lhe, também, Senhor Reitor, as palavras que acaba de me dirigir, que muito me sensibilizam e que honram o país que aqui represento. É com emoção, respeito e, confesso, com grande humildade, que aceitei vir falar-vos sobre a Europa neste vosso belo país que, para o mundo, permanece precisamente como símbolo da cultura e da civilização europeia. No momento crucial que atravessamos da construção europeia e da definição do nosso destino comum, esta revisitação aos lugares das origens não podia ser mais oportuna. O conhecimento esclarecido do passado contribui sempre para exorcizar receios infundados e invalidar argumentos falaciosos que tolhem a liberdade dos povos e hipotecam o seu futuro; contribui também para esclarecermos interrogações e dúvidas que sempre suscitam os períodos de grandes transformações e mudança, como é o nosso. Por conseguinte, penso que, para o debate actual acerca do futuro da Europa, é útil fazermos uma breve digressão pela nossa história colectiva, a que se desenvolveu precisamente a partir deste espaço geográfico onde nos encontramos. Primeiro, porque foi no mundo grego que nasceu a chamada “civilização europeia” na qual assenta a unidade da Europa. Depois, porque não nos devemos esquecer de que a Europa é uma ideia e um projecto antes de ser uma realidade ou um dado geográfico, pelo que a sua dimensão histórica é fundamental. Em terceiro lugar, para percebermos que a construção europeia é um projecto inédito que configura uma ideia nova de Europa. Assim por exemplo, questões candentes, tal como a dos limites do continente europeu, a da unidade da civilização europeia contraposta à sua grande diversidade étnica, política, linguística e cultural ou ainda a questão das relações transatlânticas ganham em serem equacionadas à luz da história de que estão carregadas. Dividirei a minha exposição em duas partes. Na primeira, proponho-vos um sumaríssimo roteiro da história da Europa, como se Ulisses, o primeiro europeu moderno, em vez de se 161 encaminhar para Ítaca, navegasse rumo ao presente, no oceano da nossa memória colectiva; tratar-se-á de uma breve evocação histórica, em obediência ao lema délfico, que Sócrates ajudou a vulgarizar, do “Conhece-te a ti próprio”, na esperança de que possamos validar a hipótese de Freud, que atribuiu à prática deste preceito inegáveis virtudes terapêuticas... Na segunda parte, abordarei as dificuldades e as questões propriamente políticas que o futuro ordenamento constitucional da Europa coloca, bem como os desafios com que inelutavelmente nos confrontamos. 1. Do passado ao presente 162 Embora desenvolvendo-se em torno do Mediterrâneo, o universo greco-romano é, como sabemos, fundador da Europa. Devemos aos Gregos e aos Romanos a invenção da política, bem como da história enquanto história política. Também a ideia de império universal atravessa toda a história da Europa, desde sempre marcada por uma sucessão de ambições imperiais a que não são alheios propósitos universalistas. Aristóteles, que foi preceptor de Alexandre Magno, atribuía à organização política dos Helenos a sua capacidade de governar o mundo. O império romano acabou por ser uma expressão do sonho de Alexandre, que ambicionava fundir os povos num império universal. Para Atenas, símbolo da civilização grega, a questão política era essencialmente filosófica. Platão, ao reflectir sobre a cidade ideal, fundou-a na ideia de justiça. Aristóteles parte da noção de lei, liberdade e igualdade dos cidadãos para determinar a melhor forma de Governo. A democracia grega radica, não esqueçamos, no logos, na razão política e no debate que os representantes do povo travam com os seus eleitores na praça pública, a agora. Diferentemente desta civilização baseada no uso livre da palavra, a matriz da civilização romana radica na regra, ou no jus. A questão política é uma questão de direito. O direito regula o exercício do poder político, incluindo o do próprio imperador e exprime-se em instituições. Foi o carácter abstracto deste sistema, simples e rigoroso, que permitiu a sua aplicação generalizada ao conjunto das províncias do império. Por ter conseguido preservar a unidade e a diversidade, Roma permanece o paradigma do mito do império universal. Durante a Idade Média, a oposição até então prevalecente entre o Norte (bárbaro) e o Sul (greco-latino) atenua-se, o Mediterrâneo perde a sua centralidade e acentua-se a clivagem entre o Ocidente e o Oriente, agravada depois com a tomada de Constantinopla em 1453 e a sua integração no Império Otomano. A Europa passa, então, a ser identificada com o Ocidente, ao arrepio de qualquer razão de ordem geográfica, fazendo tábua rasa de uma leitura histórica mais atenta. Muitas das ambiguidades da Europa actual têm a sua origem nesta assimilação abusiva. Atribui-se a Carlos Magno o nascimento da Europa na acepção moderna, com a instalação da capital do seu império em Aix-la-Chapelle, bem longe do Mediterrâneo. A imagem do império, renovada pelo ideal da universalidade cristã e pela assimilação do direito romano, continuou a marcar o pensamento político medievo, que nunca chegou a resolver a questão, na altura crucial, de saber se a autoridade suprema cabia ao Papa ou ao Imperador. Sabemos que a Europa feudal dá progressivamente lugar à constituição de uma Europa de Estados soberanos e rivais. A partir do Renascimento, as transformações aceleram-se. Esmorece o projecto do império universal, a unidade católica é quebrada, emergindo uma Europa dos cristianismos: a oriente, os ortodoxos; a ocidente, os católicos, posteriormente divididos entre protestantes a norte e católicos a sul. A Reforma não é alheia à emergência das nações, entendidas como exercício de soberania, dotadas de uma religião e de uma língua nacional. As soberanias vão dividir a Europa do ponto de vista político. Com o correr do tempo, a noção de soberania deslocar-se-á do monarca para a nação e, com a Revolução Francesa, a nação apropria-se do poder político, tal como um século antes, em Inglaterra, o Estado havia sido já “nacionalizado”. A história moderna da Europa é marcada pela afirmação política dos Estados-nação, soberanos, zelosos das suas autoridade e independência, procurando manter um certo equilíbrio nas relações entre si. Já em 1648, o Tratado de Vestefália refere expressamente a necessidade de assegurar “um justo equilíbrio entre as potências”. Não obstante, a nossa história é uma sucessão de apetências hegemónicas, de rivalidades, de alianças e de coligações adversas, em que os grandes se opõem aos grandes e os pequenos servem de contrapeso, aliando-se a uns e outros, consoante os interesses em jogo. O princípio das nacionalidades, como expressão da vontade política de fazer coincidir Estado e nação, foi-se afirmando progressivamente no século XIX. A independência da Grécia em 1830 é disso um exemplo. Na sua versão moderna, corresponde ao direito dos povos a disporem de si mesmos, ou seja, ao direito a constituíremse como Estados independentes. O caso mais recente do exercício deste direito é precisamente Timor-Leste, que, como sabem, mobilizou tremendos esforços por parte da comunidade internacional e em que Portugal tanto se empenhou, com o apoio constante da Grécia. A Segunda Guerra Mundial e a descolonização põem fim ao apogeu da Europa, arruinando definitivamente as suas pretensões sobre o mundo. Desenvolvem-se novas dinâmicas a nível mundial, surgem forças e actores que assumem um protagonismo até então desconhecido, condicionando o exercício da soberania por parte dos Estados. Penso na emergência das opiniões públicas, na internacionalização acentuada das economias e na estruturação da sociedade internacional. Nada mais será como dantes. A Europa deixa de ser o centro do mundo para passar a ser um continente do mundo. Nos escombros da guerra, lutando contra o espectro da ideia do seu declínio, a Europa põe-se então à procura de uma unidade. Dá-se início ao processo de construção europeia. Nunca será de mais salientar que se tratou de um projecto inédito, destinado a reconciliar os povos e a impedir a guerra, tanto mais arrojado quanto a própria Europa se encontrava dividida em dois blocos antagónicos e que a paz então possível residia no equilíbrio bipolar da Guerra Fria que ensombrou o continente europeu durante quase meio século. É por isso que o ano de 1989, com a queda do Muro de Berlim e o início do reencontro da Europa Central e Oriental com a democracia, ficará na história como a grande oportunidade do nos- so continente. Apesar das incógnitas que permanecem, a Europa prepara-se agora para assumir a tarefa histórica da reunificação do continente europeu. A este objectivo, acrescem ainda o da consolidação dos seus fundamentos e o do aprofundamento do processo integrador, ou seja, o da redefinição da Europa como projecto vincadamente político. O desafio é duplo e incomensurável. Mas são tantas as razões de esperança! 2. Do presente ao futuro No quadro do debate sobre o futuro da Europa coloca-se uma série de questões de fundo que, a meu ver, ganham em ser elucidadas. São elas, designadamente: a questão dos limites da União Europeia; a questão das relações transatlânticas; a questão das finalidades da União Europeia; a questão da natureza política da União Europeia. Abordá-las-ei sucessivamente. a) A questão dos limites da União Europeia Se, como acabámos de ver, a geografia por si só não basta para determinar os limites da Europa de que a história e a política são indissociáveis, também parece óbvio que os não podemos afastar indefinidamente no espaço. Na delimitação da Europa, os seus limites orientais são os mais polémicos. Primeiro, porque encontramos na charneira da Europa e da Ásia dois vastos países – a Rússia e a Turquia – cujos territórios, embora se situem essencialmente no continente asiático, estão profundamente ligados à Europa por uma história secular comum. Depois, porque, embora revestindo um grande interesse estratégico, as suas vastidão e especificidades têm sido fonte de inesgotáveis polémicas. A meu ver, na inclusão ou na exclusão de um determinado Estado, como a Turquia e a Rússia, que a geografia situa nos confins do continente europeu, devem intervir essencialmente razões de ordem histórica, política e estratégica. É, de resto, este o significado das palavras do general de Gaulle ao afirmar que a Europa se estendia do Atlântico aos Urais. Actualmente, é a questão da Turquia que alimenta mais polémicas, dado o empenho reno- 163 164 vado que as autoridades de Ancara têm manifestado em relação à adesão do seu país à União Europeia enquanto prioridade de política externa turca e motivação decisiva de política interna. É certo que a União Europeia está agora a braços com o incomensurável desafio que o próximo alargamento representa, totalmente absorvida com a sua preparação e também com a reforma constitucional interna que se pretende levar a cabo, cuja necessidade decorre, em parte, do próprio alargamento. A União atravessa, assim, um momento de viragem na sua história, anunciam-se grandes mudanças que são também portadoras de receios e de algumas hesitações. Estou em crer que algumas reacções menos favoráveis à perspectiva da futura adesão da Turquia se devem a esta conjuntura extremamente exigente em que nos encontramos. Mas não devemos ignorar também que alguns receios se prendem com a ideia errónea de que a matriz judaico-cristã da civilização europeia exclui irremediavelmente do projecto europeu uma nação preponderantemente islâmica, como a Turquia. Ora, estamos a meu ver perante um grave preconceito. Sem negar a importância do Cristianismo enquanto factor de unidade da civilização europeia ocidental, a herança greco-latina, raiz do pensamento político ocidental, parece-me tão ou ainda mais determinante, com as suas noções de liberdade, direito, justiça e democracia. Acresce que não nos podemos esquecer de que as relações com o “Império do Levante” são uma componente importante da história e da política da Europa. De resto, César e Deus sempre se reclamaram de cidades diferentes. Por conseguinte, o ponto crítico da questão da integração da Turquia no projecto europeu não reside no facto de a maioria da sua população ser de confissão muçulmana. A questão está em verificar se a Turquia é de jure et de facto um Estado laico, de direito, democrático, respeitador dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. Mas, para verificar esta hipótese, existem precisamente os critérios políticos fixados em 1993 em Copenhaga, à luz dos quais se deve aferir, juntamente com os restantes parâmetros, da capacidade de um Estado europeu para aderir à União Europeia. Não cabe formular, no caso vertente, exigências adicionais. Mas também não podem fazer-se transigências, sob pena de comprometer toda a União Europeia. É, por outro lado, minha profunda convicção que, sem um forte e amplo consenso nacional em torno do projecto de adesão, este processo não tem condições de sucesso. Representando a União Europeia uma comunidade de valores e de destino, é necessária uma “vontade comum de viver em conjunto, de fazer valer uma herança comum e indivisa”, para parafrasear Renan. A meu ver, esta, sim, é uma condição prévia à do preenchimento dos critérios de Copenhaga. Mas a sua ponderação é eminentemente interna ao país candidato, o que explica, por exemplo, que a Noruega nunca tenha chegado a aderir à União ou que a Suíça se tenha mantido à margem deste projecto. Complementarmente, há que salientar também que a decisão da fixação de uma data para o início das negociações de adesão de um novo candidato implica igualmente a ponderação da capacidade da própria União para assumir, numa determinada altura, as responsabilidades que sobre ela recaem. Mas trata-se de uma mera avaliação de oportunidade ou de possibilidade prática, não é uma questão de princípio. A meu ver, a integração da Turquia na União Europeia é uma aposta promissora de interesse mútuo: por um lado, permitirá reforçar o consenso nacional em torno da laicidade do Estado turco; por outro, contribuirá certamente, no mundo conturbado em que vivemos após o 11 de Setembro, para uma melhor percepção da Europa por parte dos países muçulmanos, invalidando a ideia, falsa e perigosa, da tão propalada “guerra de civilizações”. Na junção entre dois mundos, sendo a Turquia já membro do Conselho da Europa, da OCDE e da NATO, a sua integração na União Europeia ancorá-la-á definitivamente à Europa, consolidando o espaço de liberdade, democracia, justiça e segurança a que aspiramos para a humanidade. São estes os valores que, independentemente dos seus credos, todos os povos reivindicam como seus. Neste contexto, não posso deixar de referir a questão de Chipre, que, após décadas de impasse e de tensões entre a Grécia e a Turquia, parece estar agora em vias de solução desde que todas as partes mostrem um idêntico sentido de compromisso e indispensáveis cedências recíprocas. É um exemplo encorajador, que revela como a integração dos povos e dos Estados é uma aposta certa na unidade, na paz e na estabilidade. Faço votos para que, no âmbito da próxima presidência grega da União, Atenas possa ser o testemunho privilegiado deste cabo histórico que representa a reunificação da ilha e a sua integração na União Europeia. De resto, a questão que agora se levanta em relação à Turquia colocar-se-á provavelmente, daqui por algum tempo, em relação à Rússia e quiçá no que respeita a alguns países da orla mediterrânica. Mas é certo também que, tal como a noção de “acordo de associação” surgiu de um acaso, precisamente no contexto da adesão da Grécia à então CEE, poder-se-á, se for caso disso, forjar uma nova categoria de parceria privilegiada com estes países por forma a criar um espaço de proximidade e de sinergias acrescidas em que ninguém se sinta injustamente excluído. b) A questão das relações transatlânticas Nesta questão estão em causa as noções ambíguas de “Europa” e “Ocidente”, mais determinadas pela história do que condicionadas pela geografia. Durante a Guerra Fria, a matriz do “Ocidente”, que abrangia também os Estados Unidos e o Canadá, repousava no sistema de defesa da NATO. Com a queda do Muro de Berlim e a dissolução do bloco socialista, desapareceu a ameaça soviética, que cimentava a unidade do “Ocidente”, criando uma indefinição quanto às finalidades da parceria atlântica. Desta forma, a dependência militar e política das democracias ocidentais em relação aos Estados Unidos perdeu em larga medida a sua razão de ser. A partir de então, a Europa empenhou-se em desenvolver uma autonomia estratégica própria, intuito, de resto, já de alguma maneira presente na criação anterior da União da Europa Ocidental. Como se sabe, o Tratado de Maastricht consagrará definitivamente esta ambição, que não é alheia ao propósito de prosseguir com a integração política da Europa, também firmemente reiterado em Maastricht. As incertezas que têm marcado o desenvolvimento de uma política externa e de segurança comum, bem como as dificuldades da definição de uma política de defesa ao nível da União Europeia, devem-se em grande parte à preponderância da afirmação das soberanias nacionais neste domínio e dos seus jogos de alianças e de afinidades electivas. Mas prendem-se também com uma certa ambiguidade que enforma as relações transatlânticas. Para que a União Europeia se possa afirmar como uma potência mundial credível, tem de dispor de operacionalidade militar, capacidade autónoma, armamentos e equipamentos adequados, bem como um sistema de informação próprio, no quadro de uma autonomia política em relação aos Estados Unidos. Pessoalmente, não concebo uma política de defesa europeia que não seja articulada em complementaridade com o quadro da NATO. Afinal, a maior parte dos países da União Europeia são também membros da Aliança Atlântica, e todos os seus membros coincidem na defesa dos valores e princípios em que assenta a nossa civilização. O alargamento da NATO, recentemente decidido na Cimeira de Praga, constitui um passo, a meu ver decisivo, para o reforço do pilar europeu da Aliança, contribuindo para a consolidação da política europeia de segurança e defesa. Assegurar a defesa do Ocidente não é, no entanto, o mesmo que construir a Europa. Por isso, na sua componente de política externa de segurança e defesa, a Europa também não se esgota de forma alguma no quadro da NATO. Entendo que, na perspectiva da realização a prazo de uma unidade política da Europa e da sua afirmação como potência mundial, é imprescindível que esta disponha de uma voz própria e de uma presença forte, que desenvolva uma acção autónoma na cena internacional, complementar, concorrente ou antagónica à de outras potências, segundo as vicissitudes da história e as correlações variáveis das forças em causa. c) A questão das finalidades da União Europeia A construção europeia assenta em três pressupostos: no plano filosófico, na liberdade e na cidadania; no plano das instituições políticas, na democracia; no plano económico, numa economia de mercado. 165 166 O método de Jean Monnet, que consistiu em fixar progressivamente as sucessivas etapas da construção europeia, sem prejudicar os objectivos últimos do processo, deu os seus frutos. No entanto, depois de acumulados 50 anos de sucessos, depois de realizados o mercado único e a união económica e monetária, depois de introduzida a cidadania europeia, de registados alguns progressos consideráveis em matéria de justiça e de assuntos internos, depois das iniciativas tomadas no âmbito da política externa e de segurança comum, bem como das tentativas de definição de uma política de defesa europeia, mesmo se as podemos considerar insuficientes, a União Europeia não se pode eximir a redefinir mais claramente os contornos do projecto que quer prosseguir. Perante a iminência da reunificação do continente europeu, que fará com que a União Europeia mude de escala, perante um contexto internacional caracterizado pela globalização, carregada de oportunidades acrescidas mas também de ameaças novas, perante um mundo marcado pela instabilidade e a eclosão de crises de toda a ordem, o aprofundamento do projecto europeu torna-se irrecusável. Foi nesta convicção de que não se tratava agora de proceder a uma mera revisão dos tratados e de introduzir apenas mais algumas reformas no seio da União que os próprios chefes de Estado e de Governo dos Quinze decidiram convocar não uma conferência intergovernamental ordinária, mas uma Convenção. O significado e o alcance desta decisão não devem ser menosprezados. A convocação inédita da Convenção, que tem funcionado à imagem de uma quase assembleia constituinte, parece justamente ter obedecido ao propósito de a União se repensar a ela própria, redefinindo os seus objectivos e finalidades. No fundo, o que está em causa é a clarificação das finalidades políticas da União Europeia, sempre pressupostas, jamais explicitadas. A inexistência da Europa política neste novo século é, sem dúvida, matéria para amplas reflexões, obrigando os Europeus a pensarem no que querem para a Europa, no que esperam dela e no que estão dispostos a arriscar e a investir para alcançar esses objectivos. Cabe-nos, não tenho dúvidas, a histórica tarefa de redefi- nir um novo conceito do exercício da soberania nacional dos Estados que, sem a abolir, implicará, no entanto, novos modelos de decisão política e uma partilha acrescida de competências, designadamente nos domínios diplomático e, a prazo, militar. Resta saber se conseguiremos ultrapassar as divergências que têm marcado o meio século de história de integração europeia durante o qual se têm afrontado duas visões da Europa: por um lado, a concepção da Europa enquanto zona de comércio livre, dotada de algumas políticas comuns e de uma moeda única, mas com ambições políticas limitadas; por outro, uma concepção da Europa dispondo de uma unidade política, dotada de meios adequados para prosseguir as suas finalidades e vocacionada para se tornar uma potência mundial. Pessoalmente, penso que, para vencermos os desafios do século XXI, teremos de apostar forte nesta segunda via, sob pena de ficarmos prisioneiros de uma noção estática de soberania do Estado Nação ultrapassada pela história. A meu ver, será pela integração política da Europa, pela construção da Europa como unidade política que rumaremos, definitivamente, para o futuro. d) A questão da natureza política da União Europeia Atravessamos um período de mutações fundamentais. Para que se possa proceder à refundação da União Europeia, há que esclarecer que tipo de unidade política se pretende para a Europa. Ou seja, não nos podemos esquivar mais à questão da natureza política da “Federação de Estados-Nação” que queremos construir. O ponto fulcral do próximo tratado constitucional residirá, sem dúvida, no tipo de modelo político que aí será apresentado, não só a nível da configuração das relações entre os Estados-membros e a União, mas também no plano do exercício do poder pela própria União. Ninguém ignora que, numa perspectiva da Europa alargada, o extenso número de Estados, a diversidade acrescida de sensibilidades e de culturas em presença serão, como aquando do Império Romano, factor potenciador de dissolução ou, pelo menos, de diluição do projecto europeu. A extrema diversidade que resultará do alargamento e as enormes disparidades de desenvolvimento dos Estados entre si tornarão absolutamente necessário um reforço da solidariedade e dos elementos que asseguram a coesão. A meu ver, a ideia da conclusão de um pacto constitucional é, em si, já um bom princípio, porque permitirá reforçar a confiança entre os povos e os Estados. Mas, obviamente, não bastará. O modelo de União aí proposto, bem como a forma de governação europeia apresentada, serão determinantes para o sucesso ou o fracasso da Europa. Permitam-me, a este respeito, que evoque Tucídides. Na análise que nos apresenta das causas da Guerra do Peloponeso, refere as pretensões hegemónicas de Atenas e a quebra do equilíbrio de poderes até então prevalecente entre as diferentes cidades. Recorro a este exemplo para pôr em destaque que o princípio da igualdade entre os Estados me parece absolutamente basilar na construção europeia. Mas não basta a igualdade jurídica. Terão também de se assegurar, na arquitectura institucional e no modelo funcional da União, as condições efectivas de um equilíbrio de poder entre os Estados, sob pena de a Europa renunciar à sua ambição propriamente federadora. De facto, seria utópico pensar que, no quadro da futura federação, deixarão de existir relações de poder entre os seus Estados-nação, deixarão de contar a sua dimensão, o seu peso específico e poder próprio. No seio da União, continuarão a produzir-se jogos de poder, tentativas hegemónicas, afrontamentos e alianças entre os Estados-membros. Mas a novidade reside precisamente no facto de esta geometria variável de coligações estar agora inscrita num quadro de regulação sujeito a normas bem definidas. A título de exemplo, vale a pena lembrar o caso significativo da reformulação, em Nice, dos critérios de cálculo das maiorias qualificadas, que passaram a incluir, como se sabe, uma componente demográfica. A meu ver, é fundamental que na futura arquitectura institucional da União se acautelem mecanismos que impeçam a configuração a priori de situações de hegemonia e de constituição de directórios, da mesma forma que é indispensável preservar os elementos valorizadores da igualdade entre os Estados. Duas palavras sobre o regime das presidências rotativas do Conselho: por um lado, não deve confundir-se a discussão da rotatividade com a da figura de presidente da União porque são duas questões distintas, que devem permanecer separadas; por outro, a ideia da insustentabilidade das presidências rotativas é uma mera pressuposição, que falta demonstrar, embora pessoalmente reconheça as dificuldades de que o actual regime se revestirá numa Europa alargada. Dito isto, entendo que o próprio lado simbólico do exercício das presidências rotativas é politicamente importante, numa União que, aos olhos dos cidadãos, parece tão abstracta e desprovida de símbolos e de carga afectiva. Acresce que é também uma ocasião privilegiada da expressão do compromisso europeu de um Estado-membro, do reforço das suas credibilidade e capacidade de liderança no âmbito da Europa, que mobiliza também toda a sociedade civil e a opinião pública interna. Considero um erro acabar, sem mais, com as presidências rotativas. Entendo, ao invés, que o regime de rotatividade deveria ser mantido, podendo ser adaptado e melhorado. Há várias possibilidades de o fazer, por forma a levar em consideração o elevado número de Estados com que a União Europeia passará a contar, mas também para melhorar o seu desempenho. Quanto à questão da eventual instituição da figura de um presidente da União, parece-me uma ideia que vai ao arrepio do princípio da economia que deve governar o bom funcionamento de qualquer sistema. A meu ver, não é a multiplicação de cargos, nem o desdobramento de figuras e funções que permitirão melhorar a eficácia da União, torná-la mais coerente ou reforçar a sua imagem. A futura federação de Estados-nação não será nunca uma federação à imagem dos Estados Unidos, pelo que a figura do presidente da União não me parece nem necessária, nem, quiçá, desejável. A questão da desejável credibilidade e da afirmação externa da União poderá ser resolvida noutros termos. Como sabemos, para além das presidências rotativas do Conselho Europeu, a União Europeia dispõe já das figuras permanentes de um presidente da Comissão e de um secretário-geral do Conselho que é também o alto representante para a política externa e de segu- 167 168 rança comum, para além do comissário para as relações externas. A meu ver, seria preferível rever a atribuição das respectivas competências, articular conjuntamente as funções de uns e outros e reforçar o papel do presidente da Comissão Europeia, dotando-o de legitimidade democrática acrescida. Seriam estas, certamente, medidas que iriam no sentido que desejamos, sem afectar princípios e equilíbrios indispensáveis para que todos os Estados se reconheçam na arquitectura institucional da União. Para consolidar a unidade política da União, precisamos de desenvolver a sua componente supra-estadual. Isto significa não só o reforço da Comissão, que deverá consolidar a sua credibilidade e força política, como também uma generalização das decisões por maioria qualificada. Na impossibilidade de se poder abolir desde já a estrutura em pilares da União e de comunitarizar todas as matérias, o método de coordenação aberta poderia, pelo menos, passar a ser aplicado à área da actual cooperação política. Nesta perspectiva, a Comissão e o Conselho Europeu poderiam desenvolver novas relações de trabalho, em estreita sinergia com o alto representante para as relações externas e de segurança comum e o envolvimento activo das estruturas militares já criadas no seio da União. O investimento futuro nas áreas da política externa, de segurança e defesa da União deverá constituir a principal transformação da Europa pós-alargamento. Este é, a meu ver, o correlato da refundação política da União. Mas traduz também a ambição de dar à Europa o estatuto de potência mundial que legitimamente tem de reivindicar. Acresce que me parece bem provável que a opção pelo investimento na dimensão externa da União produza inevitavelmente uma outra alteração que, para países como Portugal e a Grécia, terá de imediato um efeito negativo: a de um menor peso acordado às políticas de coesão, num cenário de manutenção do nível de recursos disponíveis. Para não assistirmos à renacionalização destas políticas será necessário aumentar os recursos disponíveis. Mas, para isso, é necessário demonstrar às opiniões públicas europeias que se trata de uma decisão legítima, fundada numa política de redistribuição justa, em prol da independência da Europa e em nome da afirmação de uma identidade europeia partilhada por todos os europeus. Nesta conformidade, não devemos descurar a Europa dos cidadãos, alfa e ómega da construção europeia. Sem a sua adesão, sem a sua participação activa, sem a sua responsabilização, a Europa será uma casa vazia num continente deserto. Há pois que manter a chama da Europa acesa no coração dos cidadãos, tornando-os solidários neste destino comum. Meus amigos, da mesma forma que o regresso de Ulisses a Ítaca pode ser interpretado como uma gesta do Europeu à procura de si próprio, também a nossa aventura da construção europeia se tem desenvolvido como uma descoberta da unidade da Europa, apesar do mosaico étnico, linguístico, político e cultural de que é feita. O caminho que percorremos tem sido, tal como o de Ulisses nas palavras de Cavafy, “longo, cheio de aventuras e recheado de descobertas”. Possamos também nós, Europeus, como Ulisses, “manter sempre Ítaca na nossa mente”, deixando que a “lenda entre na realidade”, como sugestivamente nos propõe Fernando Pessoa. * Alocução proferida por S. Exa. o Presidente da República na Universidade de Atenas, por ocasião da sua visita oficial à Grécia, e que, pelas suas relevância e oportunidade, foi solicitada, e gentilmente cedida, para publicação neste número da revista Europa: Novas Fronteiras.