Carlos Magno: entre a cruz e a espada Carlos Magno, o rei dos francos, foi um guerreiro implacável. No fim do século 8, ele submeteu os vizinhos saxões, lombardos e bretões, impondo-se pelo poder de seus exércitos e pela força de sua fé: o catolicismo Isabelle Somma | 01/02/2004 00h00 Roma, Natal do ano 800. Excepcionalmente, o rei franco Carlos Magno passava o inverno fora de casa. Mas era uma emergência. Ele e seus homens foram à cidade eterna para reconduzir Leão III ao pontificado. Meses antes, o papa havia sofrido um sério atentado a mando da nobreza local. No ataque, perdeu a língua e ficou parcialmente cego devido a cortes feitos em suas pálpebras. Por isso, procurou abrigo na corte de Carlos, um fiel cristão que chegava a freqüentar a igreja três vezes por dia. O monarca chegou a Roma com suas tropas, puniu os inimigos do papa e botou ordem na cidade. Em agradecimento, Leão III organizou uma celebração natalina especial. Tinha de presentear seu protetor e, de quebra, garantir sua segurança e a posição da Santa Sé por mais tempo. Naquele 25 de dezembro, o papa coroou Carlos como novo imperador de Roma, algo que a Europa não via desde a queda do Império Romano, em 476. A cerimônia inaugurou um novo tempo. “É raro um único evento ser completamente crucial, mas a coroação de Carlos Magno como imperador foi realmente um divisor de águas. Pela primeira vez, havia uma visão da Europa Ocidental como uma entidade política única”, afirma Geoffrey Koziol, professor do departamento de história da Universidade da Califórnia, em Berkeley, nos Estados Unidos. “Não se tratava mais apenas do reino dos francos ou dos lombardos, saxões, bávaros ou aquitânios, mas de uma entidade política que englobava todos eles, implicando numa unidade que todos compartilhavam apesar de suas diferenças. A coroação de Carlos tornou possível uma identidade comum à toda a Europa.” A unificação de povos tão distintos se deu por meio da religião, o catolicismo romano. Antes da ascensão de Carlos Magno, a Europa central era tomada por povos bárbaros – leia-se não cristianizados e independentes. Ele os conquistou e os converteu mais pela força do que pela persuasão. E, com o poder conferido pelo líder da Igreja Católica Romana, o rei dos francos pôde justificar sua autoridade sobre aqueles que havia submetido – e que submeteria até sua morte, em 814. Morreu como soberano absoluto do que hoje corresponde a boa parte da Alemanha, Holanda e França, o norte da Itália, a totalidade da Bélgica e da Suíça e um pedacinho da Espanha e da Dinamarca. Carlos herdou parte de seu império, mas conquistou pelo menos a metade dele pela força da espada. E repeliu aqueles que o ameaçavam. Do lado leste, os temidos avaros. No oeste, os muçulmanos do reinado de Córdoba. O legado que Carlos Magno recebeu veio de ilustres ancestrais. Era neto de Carlos Martel, vencedor de uma das batalhas mais importantes da história da Europa, a de Poitiers, que em 732 barrou o avanço muçulmano. Era filho de Pepino, o Breve, que destituiu de vez os já enfraquecidos reis merovíngios e inaugurou uma nova dinastia entre os francos, a dos carolíngios – nome emprestado de Martel. Após a morte de Pepino, o reino dos francos foi dividido entre seus dois filhos. O primogênito, Carlos Magno, ficou com um pedaço ao norte. Carlomano, oito anos mais moço, ficou com a parte sul. Essa configuração não durou muito, pois Carlomano morreu três anos depois. O mais velho ignorou os direitos de seus sobrinhos e anexou as terras de seu irmão. Esse foi o primeiro passo para erguer o maior império na Europa desde o fim do Império Romano. À base de muito derramamento de sangue. Aliás, laços sanguíneos também não impediam que ele travasse guerras. Carlos havia se casado com a filha de Desidério, rei dos lombardos, para apaziguar desavenças que remontavam aos tempos de Pepino. De nada adiantou. Desidério recebeu os herdeiros de Carlomano em sua corte e pressionou o papa Adriano I a coroá-los como reis dos francos. Caso o pontífice se recusasse, o rei da Lombardia, região localizada ao norte da Itália atual, tomaria as terras que pertenciam à Igreja. Essas terras haviam sido conquistadas dos próprios lombardos e graciosamente doadas à Santa Sé. Irritado com a provocação do sogro, Carlos interveio. Atravessou os Alpes e destituiu o rei, mandandoo juntamente com o cunhado para o exílio em um mosteiro. Como era casado com a herdeira, achou muito natural declarar-se rei dos lombardos. E assim o fez. Com Desidério fora de combate, Carlos pôde se dedicar à verdadeira pedra em sua bota: a Saxônia, região que se localiza no noroeste da Alemanha de hoje. Os saxões não eram vizinhos civilizados: costumavam invadir e saquear vilarejos e plantações francas. O exército de Carlos Magno travou seu primeiro combate com os bárbaros saxões em 772. O rei franco utilizou-se de mecanismos pouco cristãos, como deportações, massacres e conversões em massa. Chegou a decapitar 4 500 inimigos e instalou uma série de leis marciais para quem desrespeitasse os preceitos cristãos. Quem matasse um padre, destruísse uma igreja, se recusasse a ser batizado, não obedecesse ao jejum nos feriados religiosos ou comesse carne às sextas-feiras era condenado à morte. Mesmo assim, a dominação completa demorou e só ocorreu em 804. Trinta e dois anos após o primeiro enfrentamento, Carlos finalmente submeteu os saxões. Os bretões, que viviam na região oeste da Gália, os benevantes, instalados ao sul da Península Itálica, e os bávaros, localizados no sul da atual Alemanha, também não resistiram ao exército franco. Em 45 anos de reinado, Carlos promoveu 54 guerras. Para administrar tantas conquistas, ele criou seu próprio sistema de governo. Distribuía terras entre condes e duques e, em troca, exigia lealdade na administração. Eles deviam fiscalizar a aplicação das leis carolíngias, julgar disputas, convocar homens para as mobilizações militares. Em suma, manter a lei e a ordem. Mas como Carlos era Magno e não Tolo, espalhou bispos e outros religiosos pelo império para servirem como olheiros ou fiscais dos fiscais. Todos os anos, o monarca promovia um grande congresso com todos eles para discutir os problemas do reino. E para lembrá-los de quem realmente mandava. Carlos também queria se livrar da constante preocupação que a fronteira dos Pirineus lhe trazia. Do outro lado da cadeia montanhosa, estavam os muçulmanos, que, mesmo após a batalha de Poitiers, continuavam sendo uma ameaça aos francos. Em 778, Carlos Magno atravessou as montanhas e partiu com seu temido exército para Saragoça. Lá, encontrou forte resistência e desistiu do cerco à cidade. Na volta, a retaguarda de seu exército foi alvejada de surpresa pelos bascos, cujo território fica na atual fronteira norte da Espanha com a França. A morte de um dos comandantes do exército franco virou um poema épico, a Canção de Rolando. Mesmo com a retumbante derrota, os francos não desistiriam. Apenas meses depois, Carlos voltou à região e submeteu Barcelona e as Ilhas Baleares. Para evitar novas surpresas, delimitou a fronteira, ao longo dos Pirineus, chamando-a de Marcas Espanholas. Carlos Magno, o Combatente, era insaciável. Como não dava descanso para seus inimigos, não tinha moradia fixa, apesar de seu palácio em Aaschen ser considerado a sede de seu reinado. O local, também conhecido como Aix-en-Chapelle, fica hoje na Alemanha, próximo à fronteira com a França. Lá, ele construiu uma belíssima igreja e uma escola. O palácio conta também com uma enorme piscina de mármore, que Carlos atravessava com enormes braçadas – tinha quase 2 metros de altura. “O biógrafo de Carlos Magno, o monge Einhard, relatou que ele era um homem alto com uma voz poderosa, que adorava carne assada e raramente bebia mais do que três taças de vinho”, afirma David Ganz, professor do Kings College, de Londres. Não era um entusiasta de festas e grandes recepções, mas adorava um farto banquete. O monarca fazia pelo menos quatro refeições diárias, sendo que uma delas tinha de ter seu prato predileto: carne de caça. Mas a fome de Carlos era maior ainda por conquistas territoriais. Enquanto tivesse vizinhos, novas guerras seriam travadas. O próximo alvo foram os limites orientais de seu império. Lá, estavam os avaros, que também eram conhecidos como hunos. Em 791, Carlos derrota e saqueia seus inimigos, que são ancestrais dos húngaros. O exército franco trucidou toda a corte avara e tomou todos os bens do palácio real. Segundo Einhard, essa foi a guerra mais lucrativa para os francos. Arrasados, os avaros rapidamente pediram a paz. Em troca, mais uma vez, o rei franco exigiu que eles aceitassem o primeiro sacramento cristão, o batizado. Dessa forma, o império ganhou novos vassalos. E a Europa, mais cristãos. Depois de tantas vitórias, a cerimônia natalina realizada por Leão III coroou um rei que, na prática, já era um poderoso imperador. “A coroação de Carlos, naquela época, fez muito pouca diferença para seu poder até então”, afirma Rosamond McKitterick, professora da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e autora de vários livros sobre o período carolíngio. Na verdade, o título foi mais útil para quem o concedeu, ou seja, a Igreja. Os pontífices já vinham sendo hostilizados pela nobreza local e desafiados por seu antigo protetor, o Império Bizantino. Com a concessão do título ao rei dos francos, Leão III, arranjou um novo defensor, mas também criou uma rivalidade entre Carlos Magno e o rei Miguel I. O imperador bizantino reconheceu o título somente em 812, quando os dois impérios selaram a paz. Mas não foi de graça. Em troca, Carlos renunciou ao direito de governar a Ístria e a Dalmácia em favor dos bizantinos. O império erguido na ponta da espada por Carlos Magno cairia por terra em apenas uma geração. Um ano antes de morrer, ele indicou seu único filho legítimo vivo, Luís, o Piedoso, como herdeiro do vasto império. Com a morte de Luís, em 840, o território foi dividido entre seus três filhos. Carlos (xará do avô) ficou com a porção ocidental, que abrangia o que hoje é parte da França e da Catalunha, na Espanha. Lotário ficou com a terça parte central que hoje equivale à região ocidental da França e o norte da Itália. E Luís ficou com o restante, (o quinhão ocidental da Alemanha). Segundo Geoffey Koziol, a configuração da Europa de Carlos Magno não caiu totalmente em terra depois do loteamento realizado entre seus netos. Ele defende que a divisão da Europa após a Segunda Guerra Mundial era muito parecida com a de quando Carlos Magno morreu. Os países membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) ocupavam quase o mesmo território do império carolíngio, enquanto os signatários do Pacto de Varsóvia ocupavam a mesma fronteira oriental. “É difícil dizer exatamente como, mas, de alguma forma, os carolíngios eram tão importantes que 1 200 anos depois, o mapa da Europa carolíngia era o mapa da Europa moderna.” Santo latifúndio Além de proteção, os reis francos foram responsáveis pela transformação da Igreja em grande proprietária de terras. “A primeira doação foi realizada pelo pai de Carlos Magno, Pepino, após a campanha contra os lombardos. Carlos confirmou o presente criando os chamados Estados Pontifícios”, diz o historiador Ruy Andrade Filho, da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Durante a Idade Média, a Igreja Católica Romana recebeu ainda outras terras doadas por fiéis preocupados em entrar no reino dos céus. Como os religiosos não se casavam e não tinham filhos, as propriedades continuavam sempre na mão de uma só entidade: a própria Igreja. Que se tornou a maior proprietária de terras da Europa durante o período feudal. Mas o latifúndio papal acabou com a unificação italiana em 1870. Os revolucionários italianos ocuparam os chamados Estados Pontifícios e queriam a cidade de Roma como nova capital. O papa Pio IX recusou-se a negociar com o rei Vitor Emanuel. O status da cidade foi finalmente resolvido em 1929, por meio do Tratado de Latrão, firmado entre Benito Mussolini e Pio XI. Pelo acordo, a Igreja ficou com o Estado do Vaticano, que ocupa menos de 5 quilômetros quadrados. Renascimento medieval As guerras foram a principal atividade de Carlos, mas não a única. O monarca, que falava alemão e era analfabeto, dedicou-se à promoção de uma modesta, porém importante, renascença cultural. Ele não apenas criou uma escola em seu palácio reunindo os melhores acadêmicos da época, mas promoveu uma retomada da atividade intelectual em mosteiros. Graças a esse período, hoje, temos acesso a obras da Antiguidade, como Cícero e Virgílio, que foram copiadas no período carolíngio. “Em seu reinado, um grande número de manuscritos foi copiado. Desses, existem ainda 7 mil livros, incluindo os autores clássicos e os primeiros cristãos. Essas obras lançaram os padrões para a escrita latina, para a arte e a arquitetura”, diz David Ganz. Outra contribuição do Império de Carlos Magno foi a própria idéia de história. “Antes, a história era quase totalmente baseada em crônicas de eventos recentes ou contemporâneos, e não um registro de continuidade”, afirma Geoffrey Koziol. “Foi nesse período que se introduziu as siglas a.C. (antes de Cristo) e d.C. (depois de Cristo).” Origens do feudalismo Para muitos historiadores, a coroação de Carlos Magno no ano 800 marcou a real transição entre a Antiguidade e a Idade Média e não a queda de Roma, em 476. A explicação é que Carlos teria fundado os princípios feudais que norteariam a Europa até o fim do período medieval. “As instituições fundamentais da sociedade medieval e a incorporação da tradição clássica à cultura da Idade Média têm suas bases no período carolíngio”, diz o historiador Christopher Dawson, no livro The Making of Europe. O rei dos francos utilizou como ninguém as relações de vassalagem e a influência da Igreja para manter e propagar seu poder. ”Essas são características marcantes que se estenderiam pela Idade Média e sobreviveram à divisão de poder que se sucedeu à sua morte”, afirma Dawson. Segundo Ruy Andrade, professor da Unesp, o feudalismo é fruto de elementos estruturais e conjunturais. Dentre os conjunturais, existem os oriundos do Império Romano, como a ruralização da economia e da sociedade a partir do século 3. Entre os estruturais, a expansão do Islã, a derrocada do Império e as invasões de sarracenos, normandos, húngaros e eslavos. “Dessa forma, a formação do Império Carolíngio é apenas um dos componentes que irão gerar a sociedade feudal.”Carlos Magno não é ´fundador` do feudalismo. Seu império é uma das características de um todo sistêmico.” Saiba mais Livros Einhard and Notker: Two Lives of Charlemagne, Lewis Thorpe (org.), Penguin Books, 1969 Maomé e Carlos Magno, Henri Pirenne, Edições Asa, 1992 The Frankish Kingdoms Under the Caroligians, 751-987, Rosamond McKitterick, Addison-Wesley Publications, 1982 The Origins of France: From Clovis to the Capetians 500-1000, Edward James, Macmillan, 1982, O relato do monge Einhard – Vita Caroli – foi concluído em 836, 22 anos após a morte de Carlos Magno. O autor conviveu com o rei em sua corte, talvez por isso seja muito pouco crítico. A edição da Penguin traz uma introdução em que os exageros do monge são atenuados, e o relato de Notker, outro religioso que escreveu seu relato em 884. O livro de Pirenne é um clássico de 1925 que abrange do século 5 ao 11. A principal tese de que a invasão muçulmana da Europa fez com que o continente se fechasse é ultrapassada. Apesar disso, o livro oferece uma ótima análise sobre as reformas econômicas durante o período carolíngio.O livro de McKitterick relata todo o período da dinastia e oferece boas informações sobre o renascimento cultural. O de James abrange um período maior e é um pouco menos específico, mas igualmente interessante. http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/calos-magno-cruz-espada433514.shtml