Discurso do Acadêmico Prof. Dr. Pietro Novellino ao receber o título de Doutor Honoris Causa da Academia Brasileira de Filosofia Senhor Presidente que há 20 anos preside a luminosa Academia Brasileira de Filosofia, Senhoras e Senhores Acadêmicos, Neste momento sou invadido pelos sentimentos de júbilo e emoção havendo dupla razão para me sentir feliz. A primeira por ser distinguido pela prestigiosa Academia Brasileira de Filosofia por tão alta honraria e a outra por poder comemorar este momento no Templo da ciência, da cultura e da sabedoria médica, cujo pórtico atravessei há 34 anos. Portanto, Senhor Presidente, João Ricardo Moderno, se a gratidão é a memória do coração minhas primeiras palavras são de agradecimento, dirigidas a Vossa Excelência, sua Diretoria e demais Membros da Casa de Osório em cujas fileiras perfilam as mais insignes figuras da filosofia não só do nosso País, mas além de nossas fronteiras como a França, Portugal, Estados Unidos, Japão, Espanha e Itália. Já foi dito que “é próprio dos homens buscar as alturas e mais próprio dos homens de escol, especialmente dos médicos, buscar os píncaros mais altos onde floresceu Edelweiss”. Ao receber tão elevada honraria que ora me é outorgada sinto-me ter galgado mais um degrau na trajetória de 57 anos dedicados ao ensino e a prática da cirurgia e passando revista em minha vida, de uma coisa estou certo procurei exercê-la com competência e equilíbrio jamais traindo minha profissão. Permito-me enfatizar que não existe maior bem nesta vida do que labutar sempre e poder contemplar o dever cumprido e o sucesso, pois este é 10% de talento e 90% de trabalho. Os avanços dos conhecimentos biológicos do século XIX acrescidos dos tecnológicos do século XX geraram o consequente deslocamento ético da prática médica baseada nos princípios hipocráticos originais para um limbo filosófico considerado pouco prático diante das novas exigências sociais e de assistência à saúde. Se de um lado isso trouxe inegáveis benefícios para o desenvolvimento da medicina por outro lado o médico foi perdendo gradativamente um dos seus principais atributos que é o humanismo. Segundo a Enciclopédia Britânica, em sua edição abreviada, Humanidades é o ramo do conhecimento que se ocupa em investigar o ser humano em seus aspectos culturais, diversamente das ciências físicas e sociológicas e, frequentemente das ciências sociais. Assim, as humanidades incluem o estudo das línguas e da literatura, das artes, da história e da filosofia. Seu conceito moderno tem raízes na Paideia da Grécia Clássica que se destinava a preparar jovens para o exercício da cidadania. Por outro lado, a filosofia médica permite perceber e compreender o mundo que nos cerca através do pensamento filosófico e chegar até a ciência com perspectivas de atingir uma antropologia filosófica. Platão, o filósofo que mais influenciou a civilização ocidental considerava que a medicina deveria governar as paixões por meio da vontade, aquela qualidade consciente a visar o bem comum. Schopenhauer, o filósofo do romantismo, sustentou o papel da vontade como força irracional da natureza humana, porque a razão pode agir como guia da vontade, mas é esta que escolhe os fins. Abram Eksterman, nosso Acadêmico Honorário, lembra que a vontade é esse impulso vital, que vai além da explicação fisiológica sobre o desejo e a paixão, e às vezes até os contraria. A medicina surgiu como uma arte e não como uma ciência da forma como hoje concebemos aquilo que é cientifico e, por isso, não é extraordinário que ela sempre tenha estado ligado a todas as outras formas de arte desde sua origem. Esta relação tem sido parte de sua conexão com o campo das humanidades e nela também pode se incluir a história e a filosofia. Esse casamento é relatado até mesmo na mitologia, especialmente na grega, na qual Febo Apolo foi separado por Zeus como Deus da Medicina, da Música e da Poesia. Quando analisamos as propostas mais avançadas da arte de ensinar que vemos propagadas na contemporaneidade, é impossível deixar de constatar que a maioria delas tem forte inspiração na arte da maiêutica socrática. O pai da filosofia assim descrevia seu método de ensinar: “Minha arte maiêutica tem a mesma formação que a das parteiras, apenas com uma diferença, a pratico com homens e não com mulheres, pois o que busco fazer com meus alunos é verdadeiramente o parto de suas almas”. Hoje a empregamos exatamente como propôs Sócrates com a denominação de “a arte de deliberar” o que significa em outras palavras que não há mais lugar para longas e cansativas aulas expositivas. Minhas Senhoras e meus Senhores No século XX a primeira Escola Médica Europeia não foi organizada pela Igreja como era, até então, onde vários médicos eram sacerdotes, e se desenvolveu em Salerno, na Itália. O estudo da Medicina já incluía naquela época o estudo das artes. Em 1224, o imperador Frederico II publicou decretos regulando as condições médicas do seu Império e foi a primeira vez na história que o ensino e a prática da Medicina tornaram-se de fato regulamentadas por leis públicas. O currículo médico compreendia 3 anos obrigatórios do ensino da Filosofia, 5 de Medicina e 1 de prática. O movimento humanista atualizou e dinamizou os estudos tradicionais, baseado no programa “Studio Humanitatus” (Estudos Humanos) que incluía a poesia, a filosofia, a história, a matemática e a eloquência (resultante entre a retórica e a filosofia), como necessidades para a formação de profissionais. É de assinalar que os árabes criaram as bases para a prática médica europeia e ocidental. Os hospitais islâmicos originaram muitos dos conceitos que vemos hoje nos hospitais modernos. Ibn Sima ou Avicena, conhecido como o Príncipe dos Médicos, criou um sistema de medicina que hoje entendemos como holístico, no qual preocupado com a formação humanística e integral dos médicos, introduziu o conhecimento filosófico como uma base essencial para o tratamento. Este sistema perdurou durante séculos na Europa. Dom Gregório Maranön alertava que era preciso colocar o foco da atenção no paciente ao invés de colocá-lo na doença e passou para a história como protótipo de médico humanista, precursor do que hoje se denomina Medicina Personalizada, que centra o diagnóstico e o tratamento nas peculiaridades biológicas, fisiológicas e metabólicas de cada paciente. Até recentemente, portanto, os médicos receberam uma forma diferente de educação, incluindo os clássicos Greco-romanos e a Filosofia em sua formação. Todavia, gradativamente a partir do século XIX, as fontes humanísticas cederam espaço ao rápido desenvolvimento das ciências ditas biológicas: química, física e matemática influenciaram o desenvolvimento da fisiologia e da microbiologia determinando um novo conhecimento médico. Portanto, nunca é demais enfatizar que apesar das modificações profundas que a Sociedade e a Medicina a ela inerente vêm experimentando a partir da metade do século XX com a evolução avassaladora do binômio ciência/tecnologia, acarretando a perda do encanto da arte médica, compete a nós educadores transmitir aos nossos alunos desde os primeiros anos da sua formação médica os princípios fundamentais do humanismo, pois sem humanismo não há medicina. Destacar que é importante para o médico, além de se diferenciar em competências, ser humanista ao extremo no exercício de seu oficio, e que veja o paciente como pessoa e não como mais um caso médico, pois Platão já referia que “a medicina é uma arte que considera a constituição do paciente e possui princípio de ações e razões para cada caso”. Lembrar que “o que nos faz bons médicos não é somente a ciência, mas também a cultura, pois esta nos lapida e nos torna iluminados para o cotidiano”. Minhas Senhoras, meus Senhores, Recebo este Título de Doutor Honoris Causa graças a benevolência e a magnanimidade dos eminentes Acadêmicos da mais alta Corte da Filosofia do nosso País, pois como um operário de Asclépio, durante 57 anos de ensino e prática da arte e da ciência de curar nunca procurei buscar a própria glória, pois repetindo Salomão “buscar a própria glória não é glória”. Mantenho até agora o entusiasmo pelo ensino da Cirurgia, pois a palavra entusiasmo, que nos foi legada pelos gregos no dizer do genial Pasteur, significa um Deus Interior. A arte de ensinar aperfeiçoa o mestre, pois ensinar aos demais é, na verdade, uma grande lição que nos damos a nós mesmos; e os expectadores são como um espelho ativo que devolvem nossas ideias, afinadas, retificadas e confirmadas. Assim, continuo com o mesmo entusiasmo de anos atrás, ensinando e aprendendo inclusive com vários que ensinei, pois aprender não é um ato findo; aprender é um exercício constante de renovação e “a vida só é possível reinventada” nos ensina Cecília Meireles. Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Acadêmicos, chego ao vosso estar sempre ciente dos meus limites. Ficai seguros que vossa há de ser minha moderada posição: a daquele que permanecerá grato pela vossa gentil concessão quiçá semeada pela bondade ao receber-me no vosso seio. Certo é que no mais, às vezes, hei de permanecer mais aprendendo convosco do que trazendo contribuições valiosas, pois o mais agradecido mesmo permanecendo no silêncio respeitoso conveniente, não esquece o beneficio recebido e permanece solidário. Cito Omar da Rosa Santos quando me lembra que Douto não é apenas um homem que cresceu na proficuidade de uma obra, na profundidade dos conceitos exarados, na beleza das letras, na originalidade da ciência ou no estro poético. Doutor é também aquele, que, consultada a boa etimologia, é capaz de permanecer dócil; isto é: propenso a ser ensinado, tornar-se discente da vossa sábia orientação. – Só por isso, vós me haveis escolhido Doutor.