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ENSAIO
Ciências & Cognição 2014; Vol 19(3) 493-510 <http://www.cienciasecognicao.org>
© Ciências & Cognição
Submetido em 10/12/201X│Aceito em 29/12/2014
ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 01/12/2014
Desenvolvimento e evolução: paralelismo ou
transversalidade?
Development and evolution: parallelism or transversality?
Breno Pitol Trager, Carolina Laurenti *
Departamento de Psicologia, Laboratório de Filosofia e Metodologia da Psicologia, Universidade
Estadual de Maringá, Maringá, Paraná, Brasil.
Resumo
Este ensaio discute as relações entre evolução e
desenvolvimento, por meio da identificação de
algumas das diferentes acepções de organismo
e ambiente que emergiram na Biologia Evolutiva
e na Biologia do Desenvolvimento. Inicialmente,
duas acepções de organismo são examinadas no
contexto do desenvolvimento: uma delas é a préformacionista, reeditada na ideia contemporânea
de determinismo genético, a outra é epigenética.
Verifica-se, em seguida, como os conceitos de
organismo subjacentes a essas concepções
se articulam com a leitura neodarwinista do
processo evolutivo. Uma primeira decorrência
dessa análise é que o neodarwinismo subscreve
um paralelismo entre desenvolvimento e
evolução, a despeito da natureza do processo
desenvolvimental em questão. Examina-se,
então, uma alternativa a esse quadro presente
no paradigma epigenético, que encaminha
uma relação transversal entre desenvolvimento
e evolução, mediada pela centralidade da
experiência ambiental do organismo nessas duas
dimensões biológicas. Conclui-se que o paradigma
epigenético se encontra em melhor posição de
consolidar não só um programa unificante entre
as ciências desenvolvimental e evolutiva, como
também suscita uma discussão dos valores que
permeiam a práxis dessas ciências.
Abstract
This essay discusses the relationship between
evolution and development through the
identification of some of the different meanings
of organism and environment that emerged in the
Evolutionary Biology and Developmental Biology.
Initially, two meanings of organism are examined
in the developmental context: one of them is
the preformationist, reprinted in contemporary
idea of genetic determinism, and the other is the
epigenetics. It is verified, then, as the concepts of
the organism underlying these conceptions are
articulated with the neo-Darwinian interpretation
of the evolutionary process. A first result of this
analysis is that neo-Darwinism supports a parallel
between development and evolution, regardless
of the nature of the developmental process in
question. Then it examines an alternative to that
present in the epigenetic paradigm that forward
a tranversal relationship between development
and evolution, mediated by the centrality of
environmental experience of the organism in
these two dimensions biological. It is concluded
that the epigenetic paradigm is in a better position
to consolidate not only unifying program between
developmental and evolutionary sciences but also
raises a discussion of the values that permeate
the practice of these sciences.
Palavras-chave: organismo; ambiente; darwinis-
Keywords: organism; environment; Darwinism;
mo; epigenética; desenvolvimento; evolução.
Autores de Correspondência:
Epigenetics; development; evolution.
C. Laurent. – Departamento de Psicologia. Universidade Estadual de Maringá. Avenida Colombo,
5.790. Jardim Universitário. CEP: 87.020-900. Maringá, Paraná, Brasil. Secretaria do Departamento de
Psicologia, Bloco 118, sala 04. E-mail para correspondência: [email protected];
B.P. Trager - E-mail: [email protected]
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Ciências & Cognição 2014; Vol 19(3) 493-510
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1. Introdução
Um dos problemas centrais na Biologia
é explicar o fenômeno da vida sondando a
compatibilidade entre seres vivos e o mundo
circundante (Lewontin, 2002). Uma teoria
satisfatória sobre esse fenômeno deve evocar, pelo
menos, os conceitos de organismo e ambiente e o
processo pelo qual ambos interagem. A discussão
da relação entre organismo e ambiente em Biologia
revela diferentes concepções de organismo e,
consequentemente, distintas leituras do papel do
ambiente e da própria natureza da relação entre
eles. Algumas das questões que tangenciam essa
problemática são estas: os organismos é que
ocupam um território ou é papel do ambiente
moldar e constituir a existência dos seres vivos?
Ou ainda: o organismo participa ativamente das
mudanças no curso de sua existência? Ou ele é
um lócus das determinações do ambiente ao seu
entorno?
Responder a essas questões tem
implicações não só para pensar como áreas
específicas da Biologia lidam com o fenômeno da
vida, mas também para avaliar as possibilidades
de intercâmbio entre essas áreas. Este ensaio
pauta-se na ideia de que diferentes concepções
de organismo estão arroladas em uma discussão
mais ampla sobre dois ramos das ciências
biológicas: Biologia do Desenvolvimento e
Biologia Evolutiva. Mais especificamente, o
objetivo deste ensaio é discutir a natureza da
relação entre desenvolvimento e evolução por
meio de um exame das diferentes acepções de
organismo que surgiram no contexto da Biologia.
O texto apresenta, então, três concepções de
organismo: pré-formacionista1, adaptacionista e
epigenética2, situando-as no contexto das relações
entre desenvolvimento e evolução. Com efeito,
este texto pretende lançar luz sobre as interfaces
entre desenvolvimento e evolução, mostrando
possibilidades contemporâneas de uma relação
transversal e não paralela entre elas.
2. Pré-formacionismo à luz do neodarwinismo
Desenvolvimento é o termo técnico para
as mudanças pelas quais um ovo fertilizado
passa até se tornar um organismo completo. Não
obstante, o próprio conceito já é questionável,
pois subscreve uma metáfora quanto à natureza
desse processo. Trata-se da etimologia de
desenvolver, que remete às noções de desdobrar
ou desenrolar de um início pré-formatado. Um
exemplo bem conhecido do pré-formacionismo
clássico aparece na noção de homúnculo, como
se houvesse um pequeno ser em miniatura no ovo
fertilizado, pronto para se manifestar na medida
em que crescesse.
Essa
lógica
pré-formacionista,
amplamente consistente com a metáfora do
desdobrar, tem ressonâncias contemporâneas
na noção de determinismo genético, segundo
a qual os organismos são classificáveis em tipos
com propriedades universais, com mecanismos
que seguem leis causais bem específicas. A teoria
clássica que busca explicar essas leis é denominada
teoria transformacional da mudança, de acordo
com a qual, no curso do desenvolvimento, um
indivíduo é efeito de um mesmo processo geral e
universal, tal como o processo de constituição das
estrelas, explicado pelas propriedades de massa
e leis termodinâmicas (Lewontin, 2002). Nessa
linha de raciocínio, os organismos mudam porque
ocorre um mesmo processo causal.
Essa atualização desenvolvimentista da
teoria transformacional encontra guarida no
mecanismo genético – ou genes – para afirmar
leis universais. Esse é o compromisso filosófico
presente na ideia de que todas as informações
necessárias para a formação do organismo já
estão codificadas nos genes. Afirma-se, mais
especificamente, que o DNA é uma molécula
autorreprodutora, capaz de produzir cópias de si
mesma, bem como produzir todos os elementos
necessários e constituintes do organismo, além
de conter toda a informação de sua especificação.
Um conceito que subscreve a noção de informação
genética é o de estágio de desenvolvimento,
designando as etapas pelas quais os organismos
precisam passar até completar o seu processo
biológico, sendo que o desenrolar de um estágio é
a condição e o sinal para o desenrolar do próximo.
Ainda que seja comum encontrar
teorias remetendo a estágios, na perspectiva
desenvolvimentista, eles são entendidos de
modo linear e mecanicista, priorizando os genes
em detrimento do ambiente (Lewontin, 2002). De
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acordo com essa teoria, uma parte – os genes – do
organismo é o início causal das mudanças pelas
quais ele passa, apenas no sentido de carregar
as forças latentes para a ocorrência do processo.
Já o ambiente é apenas um gatilho disparador
das mudanças, uma vez que é preciso condições
mínimas sem as quais os estágios não podem se
suceder. Se no desenvolvimentismo os organismos
seguem leis causais pretensamente universais,
como explicar a existência do indivíduo? A
variação, nessa teoria, envolve sutis diferenças
nos próprios genes. Não obstante, a própria
variação não é alvo de interesse dessa teoria,
perdendo lugar para a busca de regularidades
universais. Lewontin (2002, p. 16) esclarece esse
ponto:
“A biologia do desenvolvimento não se
preocupa em explicar as extraordinárias
variações de anatomia e comportamento,
inclusive entre os descendentes de um
mesmo casal, que nos permitem reconhecer
os indivíduos como seres diferentes. Nem
as grandes diferenças entre as espécies
integram o campo de interesse dessa ciência.
Nenhum biólogo do desenvolvimento
pergunta por que os seres humanos e os
chimpanzés têm aparências tão distintas,
a não ser para dizer o óbvio: que eles têm
genes distintos. A agenda atual da biologia
do desenvolvimento ocupa-se em explicar
como se processa a diferenciação de um
ovo fertilizado em um embrião com uma
cabeça em um extremo e um ânus no outro,
porque ele tem exatamente dois braços
adiantes e duas pernas atrás, em vez de seis
ou oito apêndices que se projetassem do
meio do corpo, e por que o estômago fica
do lado interno e olhos, do lado externo”.
Na passagem supracitada é evidente um
distanciamento entre leis causais e variação,
sendo pertinente, na ciência desenvolvimentista,
abstrair a variação sempre que possível. O
estatuto que a variação ocupa nessa concepção
parece ecoar uma visão tipológica da vida,
presente desde a Biologia pré-moderna (século
XVII), calcada na ideia de que existem padrões
ideais de eventos materiais e qualquer desvio
desse padrão é entendido como imperfeições
acidentais (Lewontin, 2002; Mayr, 2005). Como
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se reeditasse esse pensamento tipológico, o
desenvolvimentismo não nega a existência de
variação, apenas não atribui a ela status de
fenômeno a ser investigado. O que, de fato,
vigora como centro de interesse a essa teoria
são as regularidades universais, atestadas pelo
determinismo genético, segundo o qual os
genes, de origem evolutiva, sinalizam estágios de
desenvolvimento disparados de modo mecânico
e sequencial pelo ambiente. Desse modo, o
desenvolvimentismo pressupõe a ideia de
informação genética como resultado do processo
evolutivo.
Passando para o segundo nível de análise,
a evolução, é possível notar outra prioridade.
Embora a etimologia do termo evolução sugira
aperfeiçoamento, por meio de Darwin esse
fenômeno apresenta um novo sentido. Em linhas
gerais, Jablonka e Lamb (2010), citando Maynard
Smith, definem evolução por seleção natural como
um processo contínuo que ocorre caso exista no
mundo uma estrutura com a propriedade de se
reproduzir e gerar outras estruturas. Além disso,
é necessário que nem todas as unidades sejam
iguais, mas que haja diferenças entre elas. Com
efeito, entidades de um tipo A gerarão novas do
tipo A; e entidades de um tipo B produzirão outras
do tipo B. Em última análise, a evolução será
inevitável se as variantes apresentarem melhores
condições de sobrevivência e de reprodução.
Ou seja, em contraposição à visão tipológica,
no darwinismo o modelo de pensamento é o
populacional, considerando população uma classe
de indivíduos com possibilidade de evolução por
seleção natural.
Desse modo, desde Darwin, a diversidade
é o objeto de estudo da evolução, sendo cabal na
medida em que as similaridades são abstrações do
que, para essa teoria, se trata da realidade a ser
explicada: a própria variação. Nessa perspectiva,
uma das metáforas importantes para entender
a diversidade gerada no processo evolutivo é a
de adaptação3. Afirma-se que a diversidade das
espécies seria gerada pela adequação aleatória
do organismo ao ambiente, de modo que, ao
longo da evolução, os organismos ramificaram-se
em espécies que melhor apresentaram variações
com condições de crescer e se reproduzir,
perpetuando essas variantes por meio de sua
descendência (Lewontin, 2002).
Em Origem das Espécies, Darwin não
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apresentou uma teoria que explicasse de modo
satisfatório a hereditariedade, ou seja, como as
variações sobre as quais a seleção operava eram
transmitidas aos descendentes. Tal explicação
foi oferecida pelo neodarwinismo, que agregou
à teoria darwiniana da evolução pela seleção
natural as descobertas da Genética e da
Sistemática (Jablonka & Lamb, 2010; Mayr, 2005).
Nessa perspectiva, as variações que importam
à evolução são as variações genéticas aleatórias
(Jablonka & Lamb, 2010), que são transmitidas
à prole no cruzamento reprodutivo. Com efeito,
a teoria variacional da mudança, na tendência
neodarwinista, busca explicar a diversidade das
espécies por meio da identificação dos fatores
responsáveis pela variação genética.
A despeito dos inegáveis avanços
proporcionados pela metáfora da adaptação
darwiniana, e pela teoria genética da
hereditariedade neodarwinista no tocante à
compreensão da diversidade das espécies, a
metáfora adaptativa subjacente a essas teorias
pode obscurecer outros aspectos importantes do
processo evolutivo. A noção de adaptação propõe
que os organismos se ajustam a certas condições
ambientais que preexistem à própria inter-relação
com organismo. Explicando de outra forma, na
explicação dominante neodarwinista, pressupõese uma independência causal entre organismo
e ambiente, pois as variações genéticas não são
produzidas pelo ambiente vigente, elas ocorrem
de modo aleatório em comparação às condições
de seleção (Lewontin, 2002).
O darwinismo, a despeito de enfatizar a
variação, considera a semelhança orgânica um
fenômeno retrospectivamente esperado em uma
linhagem histórica, assim como se espera haver
atributos comuns em descendentes pertencentes
a um mesmo ancestral. Em contraste, o
desenvolvimentismo não se preocupa em explicar
a individualidade anatomofisiológica no interior
de uma espécie, pois o interesse reside em
encontrar as leis causais supostamente universais
do desenvolvimento, pautando-se na ideia de gene
como unidades de estabilidade e confiabilidade
inesgotáveis, iniciadoras do desenvolvimento,
conforme sugere a ideia de seleção natural para
estabilidade (Keller, 2002; Lewontin, 2002). Ainda
que existam essas tensões devido à concepção de
variação que perpassa as explicações darwiniana
e desenvolvimentista, respectivamente, as teorias
variacional e transformacional da mudança, a
impressão após um exame mais atento é de
que elas não são incompatíveis, pois ambas as
teorias comungam da centralidade no gene: os
genes seriam responsáveis pelos estágios, sutis
mudanças nos próprios genes alterariam não
só a espécie, mas também sua expressão no
desenvolvimento.
A despeito de organismo-indivíduo
ser entendido como pré-formação, e o
organismo-espécie como lócus adaptativo,
desenvolvimentismo e neodarwinismo se
aproximam neste ponto: reduzem o organismo
à sua constituição genética. No caso do
desenvolvimentismo, o reducionismo é físicoquímico, entendendo o organismo como
carga de forças genéticas explicadas por
uma visão mecanicista de desenvolvimento,
pautada nos estágios. Já a redução genética
na tendência neodarwinista é encorajada pela
metáfora adaptacionista, cujos pilares são a
independência entre a produção de variações
genéticas e a seleção ambiental e a eliminação de
possibilidades de atuação do organismo no curso
evolutivo, pois a evolução aconteceria nos termos
de um ambiente selecionador em comparação às
variantes genéticas aleatórias (Jablonka & Lamb,
2010; Lewontin, 2002).
Em suma, com a teoria desenvolvimentista,
ambiente e organismo como um todo funcional
ocupam papel secundário no processo evolutivo.
Ambos são secundários em comparação às prédeterminações genéticas: o organismo carrega
os genes, e o ambiente age como disparador
do código genético, cujo enredo pré-existente
seria observado na replicação do DNA e síntese
das proteínas constituintes da morfologia e
das funções orgânicas (Lewontin, 2002). Já na
origem evolutiva desses mecanismos genéticos,
a despeito do movimento darwiniano na teoria
variacional da mudança ter atribuído ao ambiente
um papel selecionador na evolução, a sua vertente
neodarwinista, que centraliza a variação em
fenômenos genéticos aleatórios, acaba também
outorgando ao organismo o papel de mero lócus de
variação genética. Por fim, mais uma semelhança
se destaca: ambas as teorias compartilham a tese
da pré-existência do organismo com respeito ao
ambiente. O organismo, entendido em termos
de constituição genética, tem uma existência
independente do ambiente, não importando
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aqui, se esse último exerce um papel secundário
ou definidor no processo evolutivo. Abstraindo
as divergências e ressaltando o aspecto comum
da centralidade no gene, uma teoria geral
desenvolvimentista e neodarwinista versaria
sobre os organismos individuais como veículos
de um processo continuado de ajustamento
aleatório ao ambiente.
Articulando o desenvolvimentismo e o
neodarwinismo, os processos descritos na história
ontogenética figuram como um desdobramento
linear e mecânico dos processos determinados
na história filogenética. Explicando de outra
forma, cada organismo pertencente à classe de
uma espécie se desdobra em uma ontogênese
rígida fixada geneticamente, mas em cuja história
evolutiva são admitidas variações genéticas
aleatórias, alvos não só das mudanças que
acontecem na espécie, bem como desencadeiam
adições ou supressões nos estágios de
desenvolvimento correlacionados a esses genes.
Embora os biólogos dificilmente assumam
posições datadas como o pré-formacionismo
clássico, Lewontin (2002) aposta que essa lógica
explicativa ainda se faz presente em algumas
versões contemporâneas do determinismo
genético. A crítica do biólogo aos estudos de
nocaute gênico, por exemplo, parece captar bem
como a mentalidade mecanicista ainda é forte
na Biologia do Desenvolvimento. Nesse tipo de
estudo, ignorando um aspecto bem conhecido de
que os organismos caracterizam-se por não ficar
sob controle de apenas uma via causal genética,
mas por redes complexas que integram vários
genes, pesquisadores tentam nocautear alguma
via de modo a determinar sua influência final.
Esse tipo de estudo mostrou-se problemático
não apenas porque uma via genética tem
efeitos em cascata sobre o processo final de
desenvolvimento, mas também porque processos
básicos de desenvolvimento, como a síntese de
proteínas, extrapolam o âmbito exclusivamente
genético.
Diante dessas relações conflitosas entre
desenvolvimentismo e neodarwinismo, seria
possível a defesa de uma relação entre a tendência
neodarwinista e os programas em Biologia do
Desenvolvimento em melhor posição de captar
a ideia de estabilidade no desenvolvimento
e variação na evolução? Em outros termos: o
neodarwinismo implica determinismo genético?
3. Epigênese e neodarwinismo
Historicamente, a noção de epigênese
contrasta com as teses pré-formacionistas,
pois argumenta que alguns elementos do
organismo completo não se fazem presentes
no ovo fertilizado, mas são construídos no
desenvolvimento,
entendido
aqui
como
conjugação de variações genéticas, epigenéticas
celulares, comportamentais e, no caso dos seres
humanos, simbólicas (Jablonka & Lamb, 2010;
Lewontin, 2002). Estudos contemporâneos
sobre o desenvolvimento tem dado atenção
aos sistemas de herança epigenéticos4 (SHE)
e seu papel na constituição de animais com
organização complexa e sua memória celular.
Trata-se de mecanismos que mostram como
no desenvolvimento por epigênese algumas
transformações decorrem de interações na
história de vida do organismo, irredutíveis à
história filogenética. Mais especificamente, o
problema traduz-se do seguinte modo: como é
possível que um ovo fertilizado, que contém em
geral a mesma sequência de DNA, diferencie-se
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e especialize-se em tecidos, órgãos e sistemas de
órgãos?
De modo a responder essa questão, a
epigenética embrionária parece ser consistente
e complementar com o neodarwinismo da
Síntese Moderna, na medida em que contempla
mecanismos regulatórios de desenvolvimento.
Essa articulação entre desenvolvimento por
epigênese e evolução dá margem para noções
como norma de reação (Lewontin, 2002) e
plasticidade fenotípica (Jablonka & Lamb, 2010),
conceitos que descrevem a emergência de
padrões diferentes de desenvolvimento de um
mesmo genótipo dadas certas circunstâncias
ambientais diferentes. Essa atenção no modo
como o ambiente influencia o curso da ontogênese
põe em xeque o determinismo genético.
Maturana e Varela (1984/2011, p. 81),
ao criticar o conceito de informação genética
característico do determinismo, captam bem a
acepção de organismo como epigênese, conforme
segue:
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“Com freqüência, ouvimos que os genes
contêm a ‘informação’ que especifica um
ser vivo. Trata-se de um erro, por duas
razões fundamentais. Primeiro, porque
confunde o fenômeno da hereditariedade
com o mecanismo de réplica de certos
componentes celulares (os DNAs) de
grande
estabilidade
transgeracional.
Segundo, porque dizer que o DNA contém
o necessário para especificar um ser vivo
retira esses componentes (parte da rede
autopoiética) de sua inter-relação com todo
o resto da rede. É a totalidade da rede de
interações que constitui e especifica as
características de uma determinada célula,
e não um de seus componentes. É claro
que modificações nesses componentes
– chamados genes – têm consequências
dramáticas para a estrutura da célula. O erro
está em confundir participação essencial
com responsabilidade única”.
A noção de autopoiese remete à
autoprodução, advogando em favor de um
pensamento sistêmico na Biologia. Essa
articulação entre evolução e desenvolvimento
complexo acontece de acordo com a já
mencionada ideia de que o processo de seleção
natural garante estabilidade ontogenética.
Não obstante, afastando-se do determinismo
genético, Jablonka e Lamb (2010) afirmam que é
por consequência dessa rede de interações que
os sistemas de herança epigenéticos funcionam
como uma memória celular adequada: o
organismo em interação com o ambiente passa
pela diferenciação e especialização, mas conserva
sua organização total que o define como classe de
uma espécie, razão pela qual o desenvolvimento
ocorre suprageneticamente. Não obstante essa
superação do determinismo genético, sob a
rubrica do neodarwinismo, as variações que
ocorrem no nível de um organismo individual não
podem reverberar em mudanças evolutivas, pois,
nessa teoria, vigora a centralidade nas variações
genéticas aleatórias como o material responsável
pelas mudanças na história das espécies.
Ou seja, o neodarwinismo não
interdita necessariamente a flexibilidade do
desenvolvimento, muitas vezes contingente ao
ambiente. Quando um organismo tem muitos tipos
de células, a relação entre genética e processos
regulatórios depende fundamentalmente de
enzimas e outras proteínas garantindo um sistema
epigenético de cooperação no desenvolvimento,
no qual o organismo individual é resultado não
só da seleção natural para a estabilidade, mas
também dessa memória celular epigenética.
A explicação final do desenvolvimento por
epigênese consonante com o neodarwinismo
entende que estruturas fenotípicas emergem
de condições genéticas, suscetíveis a eventos
ontogenéticos que são então regulados na
interação com o ambiente. Em última análise,
Jablonka e Lamb (2010, p. 303) concluem:
“O que estamos sugerindo é que muitos
aspectos do desenvolvimento podem
ser interpretados como mecanismos que
evoluíram para impedir o leva e traz de
informações epigenéticas irrelevantes que
desestabilizariam a organização da próxima
geração. A eficiência da memória celular,
a estabilidade do estado diferenciado, a
seleção e a morte celular entre as células
somáticas, a segregação entre células
somáticas e germinativas em alguns grupos
de animais e a maciça reestruturação da
cromatina das células germinativas, tudo
isso é parcialmente moldado pelos efeitos
seletivos dos SHES”.
Desse modo, os SHE no nível do
desenvolvimento (Jablonka & Lamb, 2010) são
entendidos, pelo neodarwinismo, como sistemas
com origem evolutiva complementares na
regulação do organismo em face de sua história
de vida. Contudo, a noção de herança epigenética,
nessa leitura, está estritamente ligada à noção de
memória celular do desenvolvimento complexo.
Essa leitura é possível, porque, embora as
variações celulares na epigênese existam, não
raro, defende-se que toda e qualquer variação
desse tipo é eliminada durante estágios na
embriogênese, processo definido como tabula
rasa epigenética5. Em outros termos, a ontogênese
é irredutível à história filogenética codificada
nos genes, mas a atividade supragenética não se
generalizaria em mudanças evolutivas, pois essa
proposta colocaria em xeque a tese central da
leitura neodarwinista da evolução: a centralidade
nas variações genéticas aleatórias como alvo da
seleção natural (Jablonka & Lamb, 2010).
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Além da epigenética embrionária, o
sistema de herança comportamental também foi
assimilado pelo neodarwinismo: dificilmente os
biólogos evolutivos negam que a capacidade de
aprender tenha origem evolutiva. Não obstante,
ainda se vê resistência para aceitar a possibilidade
da aprendizagem configurar uma dimensão
relativamente autônoma na evolução, ou seja,
a extrapolação da experiência ambiental para o
nível evolutivo. Com exceção da aprendizagem
simbólica, que permitiu a emergência dos
complexos padrões culturais humanos, o
neodarwinismo ainda tem ressaltado a genética
subjacente à aprendizagem, interditando a
possibilidade de que a experiência ambiental ou
comportamento dos organismos influencie direta
ou indiretamente a evolução por seleção natural.
Essa tese, associada com o lamarckismo, colocaria
em xeque o tripé do neodarwinismo dominante,
versando que no nível evolutivo: (a) genes resumem
a hereditariedade, (b) variações genéticas são
sempre acidentes aleatórios e (c) as variações de
controle regulatório no desenvolvimento não são
herdadas transgeracionalmente reverberando na
evolução (Jablonka & Lamb, 2010).
Os pilares da proposta neodarwinista de
evolução, portanto, sustentam um organismo
redutível ao sistema genético e um ambiente
definidor do processo adaptativo, pois no eixo
evolutivo, é o estoque de genes codificantes, ao
passar por variação, que possibilita as mudanças
no âmbito das espécies. Sobre a metáfora
adaptacionista, Lewontin (2002, p. 52) arremata:
“[as metáforas adaptativas] parecem fazer
dos organismos particulares apenas um
pretexto para um projeto diferente, o de
mostrar como as propriedades dos seres
vivos seguem demandas do ambiente
por meio da adaptação. Segundo esse
ponto de vista, o organismo é objeto das
forças evolutivas, o nexo passivo de forças
externas e internas independentes, as
primeiras gerando “problemas” aleatórios
com respeito ao organismo e as últimas
gerando “soluções” aleatórias com respeito
ao ambiente”.
Em última análise, uma possível teoria
biológica unificante entre desenvolvimento
e evolução configurou-se em um primeiro
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momento como um processo contínuo de
ajustamento, no qual o organismo individual
havia sido entendido em termos de um veículo de
acidentes evolutivos bem-sucedidos codificados
geneticamente, do qual se abstrai uma classe de
organismos pertencentes a uma determinada
espécie (Lewontin, 2002; Jablonka & Lamb,
2010). Por outro lado, devido à ascensão do
estudo dos sistemas supragenéticos de herança,
em especial o epigenético, críticas endereçadas
ao determinismo genético propõem que o nível
do desenvolvimento apresenta fenômenos
irredutíveis ao nível evolutivo, sugerindo que
um mesmo genótipo apresenta plasticidade
fenotípica quando inserido em um contexto
ambiental diverso. Não obstante, essa experiência
ambiental do organismo não se generaliza em
mudanças filogenéticas, em virtude da metáfora
adaptativa neodarwinista, na qual organismo
e ambiente existem independentemente e se
configuram de modo primordialmente aleatório.
Seja no eixo desenvolvimentismoneodarwinismo ou epigênese-neodarwinismo,
desenvolvimento e evolução são processos
paralelos, subscrevendo a dicotomia entre
processos regulatórios de desenvolvimento,
incluindo ênfase nos estágios ou não; e processos
seletivos de adaptação. A diferença entre a
descrição do processo ontogenético segundo
o desenvolvimentismo e a epigênese reside
na defesa, no primeiro caso, de um organismo
individual pré-concebido diante do ambiente, em
cujo interior estão as forças genéticas propulsoras
das mudanças desenvolvimentais. No segundo
caso, defende-se a ideia de estabilidade, mas
relativiza-se o papel dos genes a outros domínios
supragenéticos, como o celular, comportamental
e simbólico. Em contrapartida, tanto a explicação
reducionista quanto a supragenética são
compatíveis com o neodarwinismo, pois essa teoria
apropria-se da epigênese embrionária apenas na
medida em que ela não interfere na metáfora
adaptativa (Lewontin, 2002/2010). Explicando de
outra forma, há uma dicotomia entre causas finais
e causas próximas, sendo o desenvolvimento
regulado pelo controle fisiológico, ou seja, causas
próximas; e a evolução um processo de seleção
de algumas variantes em detrimento de outras,
ou seja, causais finais. A expressão máxima
desse paralelismo entre epigênese embrionária e
evolução adaptativa encontra guarida na tese da
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tabula rasa epigenética. Dizendo de outro modo, da visão adaptacionista de organismo, específica
no tocante às relações entre as teorias da Biologia da Síntese Moderna neodarwinista (Jablonka &
do Desenvolvimento e o neodarwinismo, uma Lamb, 2010).
teoria unificante encontra dificuldades oriundas
4. O paradigma epigenético de explicação biológica
A dicotomia entre processos seletivos
e regulatórios que fundamenta o paralelismo
entre evolução e desenvolvimento presente
no neodarwinismo tem sido questionada em
diversos níveis de análise. Ontologicamente,
ou seja, sobre o modo de existência da vida,
tem-se posto em xeque a metáfora adaptativa
darwinista, na afirmação de que “assim como
não pode haver organismo sem ambiente,
não pode haver ambiente sem organismo”
(Lewontin, 2002, p. 52). Jablonka e Lamb (2010)
apresentam uma teoria complexa da evolução,
incorporando o desenvolvimento na medida
em que a hereditariedade abarca diferentes
níveis de variação e seleção, todos submetidos
a uma relação inextrincável entre organismo e
ambiente. Já Maturana e Varela (1984/2011)
empregam o termo autopoiese, nos níveis celular,
metacelular e social como definição de sistemas
vivos, afirmando que sobre os seres vivos há
uma fenomenologia biológica autônoma na qual
as entidades vivas estruturam-se conservando
uma organização derivada de uma história
filogenética e ontogenética de acoplamento
estrutural com o ambiente natural e social. Nas
duas últimas propostas, o conceito de adaptaçãoestado não pressupõe a independência causal
entre organismo e ambiente, pois o pensamento
é sistêmico: os organismos conservam uma
organização explicada historicamente pela
totalidade de processos que ocorrem na rede
desse sistema e as estruturas físico-químicas
apenas especificam o espaço de existência do
organismo.
Desse modo, no nível evolutivo, não há
pré-existência de um ambiente para o qual os
organismos sofrem processos de ajustamento,
mas, de início, tem-se uma relação, na qual
organismo e ambiente se constroem mutuamente
em virtude das relações que se estabelecem
entre eles. Diante disso, para Lewontin (2002) a
metáfora que capta de maneira mais apropriada
o fenômeno biológico é a de construção, em
contraste com a de adaptação. Um ambiente são
aspectos do mundo relevantes ao organismo face
às interações mantidas entre eles.
No nível da análise ecológica, por exemplo,
é inviável entender a distribuição geográfica das
espécies e dos indivíduos sem fazer referência às
suas atividades, pois um organismo, com o seu
comportamento, é capaz de criar micro-habitats
e interagir com eles. Por consequência da forma,
metabolismo, órgãos dos sentidos, sistema
nervoso e comportamento, os organismos ocupam
partes específicas do mundo, determinando quais
relações estabelecerá com ele (Lewontin, 2002).
A metáfora da construção tem sua contrapartida
factual quando se constata que a estrutura do
organismo constrói um ambiente específico de
interação. Por exemplo, o calor do organismo
medeia suas relações com atmosfera do
ambiente. Desse modo, a metáfora adaptacionista
apresenta uma armadilha conceitual: confunde a
assertiva correta de que haveria elementos físicos
dispostos no espaço na ausência dos organismos
com a afirmação claramente errada de que existe
ambiente na ausência das espécies.
Se Lewontin (2002) já aponta que
ontologicamente não há organismo e ambiente
em relação de exterioridade, cujo processo de
ajustamento seria genético e aleatório, mas
continuidade topológica na rede de interações
conferindo compatibilidade nos sistemas vivos
com seu ambiente, o paradigma epigenético
endereça uma nova crítica ao neodarwinismo, ao
comprometer-se com a tese de que a experiência
ambiental do organismo, incluindo variações
na epigênese, pode integrar o eixo evolutivo.
Em outras palavras, defende-se que essas
experiências podem reverberar em mudanças
evolutivas (Almeida & Falcão, 2008; Jablonka &
Lamb, 2010). A metáfora também não descartada
a ideia de ser possível herança de caracteres
experienciados ou adquiridos na relação com o
ambiente, conforme segue:
“É evidente que existe larga variação
de forma, tamanho e atividade entre os
indivíduos na natureza. A experimentação
tem mostrado de maneira consistente que
500
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parte bastante significativa, embora não a
totalidade, dessa variação é até certo ponto
herdável. Há, portanto, grande quantidade
de
variação
genética
permanente
[ênfase adicionada] na morfologia e no
comportamento dentro das espécies”.
(Lewontin, 2002, p. 126)
A passagem supracitada sugere que
variantes pequenas ou estáveis provavelmente
dizem respeito aos processos mais gerais que
acarretaram a sobrevivência e a reprodução
do organismo, conforme defendido na ideia de
seleção para estabilidade (Jablonka & Lamb, 2010;
Maturana & Varela, 1984/2011). Portanto, vincula
o processo evolutivo a certa fixação de padrões
genéticos em uma população pela dinâmica de
seleção natural. Por outro lado, os fenômenos
com variação herdável em grande quantidade não
são relegados ao status de regulação tal como no
neodarwinismo, mas colocados em contraste
mediante a noção de ferramenta heurística,
de delineamento de subsistemas de herança,
ao invés de premissas gerais. Isso se evidencia
quando o autor situa tanto a variação morfológica
quanto a comportamental como sendo de
caráter permanente. Além disso, o princípio da
continuidade topológica parece corroborar a
ideia de que são pequenas mudanças gradativas
que constroem a evolução, ao invés de uma cisão
entre variações grandes ou pequenas (Lewontin,
2002).
Essa assertiva tem expressão também
nos estudos recentes da Biologia Molecular,
desafiando não só o conceito de mutação
aleatória6 como também mostrando a herança
transgeracional de variações epigenéticas
estáveis (Jablonka & Lamb, 2010). Vale ressaltar,
contrariamente à tese da tabula rasa epigenética,
que a ideia de epimutações estáveis e herdáveis
requer variações na linhagem celular germinativa
ou alguma rota de transmissão entre variações
nas células somáticas e germinativas. No segundo
caso, uma variação celular transgeracional
somente seria herdada caso não comprometa
o sucesso de desenvolvimento nas gerações
seguintes, a lógica segue conforme ocorre nas
mutações genéticas: uma mutação também
passa pelo gargalo do desenvolvimento, sendo
eliminada por seleção natural caso seja deletéria.
Em suma, a pecha que considera essa ideia
501
uma heresia lamarckista envolve o dogma central
da Biologia Molecular formulado por Francis
Crick, segundo o qual não é possível troca entre
proteínas, proteínas e DNA e proteínas e RNA.
Sobre a herança transgeracional epigenética, esse
dogma não faz uma distinção apropriada entre
genes reguladores e codificantes no tocante à
origem de mutações. Genes são desligados ou
ativados pelos mecanismos envolvidos na mutação
interpretativa, de modo que é a quantidade
de proteína que se altera, não o código de
sequenciamento dos aminoácidos constituintes.
Além disso, o mecanismo epigenético de silêncio
de genes sugere uma rota de transmissão entre o
soma e a linhagem germinativa, mecanismo que
fundamenta inclusive estudos contemporâneos
sobre a hipótese de seleção somática no sistema
imunológico de seres humanos. Essa seleção
envolve os processos de corte, movimento e cola
do DNA responsável pelos anticorpos (Jablonka
& Lamb, 2010). Essas variações epigenéticas
transgeracionais herdáveis foram verificadas tanto
experimentalmente, no caso de um estudo de
cor da pelagem de camundongos, bem como em
contexto não controlado, acerca da conformação
alternativa pelórica na estrutura da flor Linaria
Vulgaris. Não obstante, de acordo com as
autoras, até o momento não foram encontrados
exemplos de variação herdada exclusivamente
no eixo epigenético celular que seja claramente
adaptativa, mas o trabalho experimental ainda
não foi realizado.
Como os sistemas de herança epigenéticos
variam com maior rapidez em comparação ao
sistema genético, além de serem atualizados
por perturbações ambientais, muitas mudanças
evolutivas em uma população podem ser
explicadas epigeneticamente, por exemplo, a
especiação. Tradicionalmente, a origem de novas
espécies é explicada em termos de mudanças
genéticas oriundas de um isolamento geográfico
ou ecológico. No entanto, uma vez que variantes
epigenéticas ocorrem com mais frequência e
são mais sensíveis às condições ambientais, a
ramificação de espécies às vezes pode ocorrer
no eixo epigenético, não genético. Populações,
durante longos períodos em isolamento, estarão
sob condições ambientais diversas, seja por
colonizar um novo ambiente, alimentando-se de
outras fontes não usuais ou expondo-se a outros
climas. Nessa conjectura, marcas epigenéticas
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podem ser induzidas tanto na linhagem somática
quanto germinativa. O resultado desse processo
pode não ser apenas alterações no modo como
os organismos funcionam no ambiente novo, mas
se estender também para a capacidade dessas
populações cruzarem com outras populações,
visto que estudos de estampagem mostraram
que as marcas cromossômicas dos pais
precisam ser complementares, caso contrário o
desenvolvimento pode se comprometer (Jablonka
& Lamb, 2010).
No paradigma epigenético afirma-se o
pensamento sistêmico reivindicando explicações
biológicas na totalidade das alterações entre
organismo e ambiente. A partir dessa ideia,
argumenta-se também que não somente no
interior do subsistema epigenético ocorre
variação herdável, mas existe a possibilidade desse
subsistema interagir com o nível genético. Tratase da influência epigenética de seleção de genes,
cuja ocorrência envolve duas maneiras. A primeira
delas acontece quando marcas epigenéticas
produzam novas variantes genéticas, então
passíveis de seleção. Já a segunda possibilidade
de interação é mais indireta, envolve a seleção
de versões alternativas de genes, a partir de um
nicho fisiológico e celular propício (Jablonka &
Lamb, 2010). Isso porque o estado da cromatina,
que carrega marcas epigenéticas, não apenas
influencia a atividade dos genes, mas também
a probabilidade de certas regiões do genoma
passarem por mudanças genéticas.
No tocante à primeira possibilidade, a
produção epigenética de variantes genéticas,
estudiosos da biologia do câncer sugerem que
epimutações levam a mudanças em genes
reguladores da divisão celular e também que
mutações em genes que codificam proteínas da
cromatina levam a mais mudanças epigenéticas.
A despeito de qual seja o fator inicial, a influência
epigenética no câncer é amplamente aceita. Já
variações epigenéticas na linhagem germinativa
são alvos de maior debate, mas, pelo menos em
plantas, há forte evidência de que elementos
móveis (transpósons) saltem por regiões
codificantes e regulatórias produzindo mutações
globais, quando as condições ambientais são
estressantes, via metilação. Essa estratégia de
produção de variações faz sentido do ponto de
vista adaptativo, uma vez que as plantas têm
uma organização que favorece as variações
epigenéticas: (a) elas não são móveis, logo não
podem recorrer a estratégias mais imediatas;
(b) tem organização modular (seus órgãos são
semiautônomos); (c) não há separação rígida
entre a linhagem somática e germinativa;
(d) possibilidade de autofertilização. Essas
características fazem que a experimentação de
mudanças epigenéticas induzidas seja menos
custosa para as plantas, as quais estão dando
evidências da importância da epigenética no
surgimento de mutações genéticas, importância
que se estende também para os animais, no
tocante à evolução do desenvolvimento.
Sobre a segunda possibilidade, seleção
indireta de genes por meio de um nicho celular
propício, um estudo experimental de seleção
planejado para domesticação de raposas
mostrou que, uma vez domesticadas, ocorreram
variações fenotípicas herdáveis na projeção das
orelhas, do rabo e manchas sobre o corpo, que
não poderiam ser explicadas geneticamente,
considerando os esquemas mendelianos
utilizados. Esse experimento mostrou que
genes permanentemente desativados são
importantes evolutivamente, contrariando a tese
neodarwinista clássica, porque sob condições
incomuns que alteram níveis hormonais,
além do ciclo sexual e de outros aspectos
comportamentais, os próprios genes podem se
reorganizar e se tornar hereditariamente ativos,
configurando variações genéticas, tanto em
linhagens somáticas quanto germinativas, então
passíveis de seleção (Jablonka & Lamb, 2010).
O experimento das raposas também
mostrou como a epigenética influencia a
evolução, proposta desacreditada quando se
considera a paisagem genética7 mostrando uma
interação de vários genes diferentes nas vias de
desenvolvimento, mas com um fenótipo selvagem
marcadamente constante, justificada pela ideia do
sistema estável no qual pequenas perturbações
não fariam tanta diferença. Citando Waddington,
Jablonka e Lamb (2010, p. 312) explicam:
“[...] o fenótipo selvagem é relativamente
invariável porque é bem ‘canalizado’,
ou tamponado. Ao longo das gerações
de seleção natural para a estabilidade,
foram forjadas combinações de alelos
que garantem que qualquer perturbação
pequena causada por diferenças no
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ambiente ou nos genes não afetam o
produto do desenvolvimento. Quaisquer
diferenças pequenas nas condições em
que os indivíduos se desenvolvem ou em
outros genes que possuam podem afetar a
expressão de seu genótipo mutante”.
Embora esse fenótipo estável seja
oriundo de um desenvolvimento tamponado,
paradoxalmente, a canalização “mascara”
variações genéticas, porque essas variações são
toleradas pela seleção natural e se acumulam
nos genes, apenas não aparecem sob condições
normais. Desse modo, o conceito de assimilação
genética, referente à possibilidade de seleção
alternativa de genes ocultos a partir de um nicho
fisiológico, tem ganhado atenção porque ao
invés do controle genético do desenvolvimento,
biólogos de mentalidade mais ecológica têm dado
atenção à plasticidade fenotípica, ou seja, de que
modo organismos com o mesmo genótipo podem
desenvolver fenótipos diferentes quando criados
sob condições diferentes (Jablonka & Lamb,
2010). Em suma, a importância da assimilação
genética é mostrar que as unidades de seleção
são vias de desenvolvimento, que incorporam
muitas variações genéticas e epigenéticas, não
genes individuais ou alelos alternativos de um
gene. Citando estudos de Rutherford e Lindquist,
as autoras indicam algumas pesquisas de Biologia
Molecular sobre essa possibilidade (Jablonka &
Lamb, 2010, p. 318):
“Como a Hsp90 [chaperonina] não é muito
seletiva quanto à sequência precisa dos
aminoácidos nas proteínas que ajuda a
formar na conformação correta, variações
genéticas são toleradas enquanto ela está
presente e fazendo seu serviço normal. No
entanto, quando o estoque está em baixa,
algumas proteínas dependentes da Hps90
não se dobram corretamente e deixam de
funcionar, e muitas vias de desenvolvimento
nas quais essas proteínas são essenciais
ficam meio cambaleantes. A Hsp90 age
assim como um fator geral de canalização,
mascarando variações em muitos genes
diferentes. É por isso que a variação genética
é revelada quando a Hsp90 está em falta”.
A evolução por assimilação não se trata,
503
contudo, de um neolamarckismo explicado por
meio do uso e desuso de órgãos, pois a teoria de
Lamarck derivou-se da fisiologia e foi criticada
pelos estudos da adaptação darwinista. Além
disso, acreditou-se que o dogma central haveria
arrematado qualquer retomada da herança de
caracteres adquiridos (Jablonka & Lamb, 2010). Em
contraste a essas teses, o fenômeno da assimilação
genética é explicado não por uma relação causal
fisiológica entre um estímulo indutor estressante
e a resposta do órgão, mas sim, por meio dos
estudos da adaptação, acerca de uma relação
de dependência entre um fenótipo induzido por
condições ambientais e funcionalidade a essas
condições ambientais em vigor. Nesse sentido, o
fenótipo induzido é posteriormente assimilado,
na medida em que, ao longo das gerações,
ocorrem combinações genéticas produzindo
o mesmo fenótipo na ausência do estímulo.
Por exemplo, um experimento artificial com a
drosophila emparelhou estímulos estressantes a
uma dieta rica em sal, verificando após sucessivos
cruzamentos a ocorrência de adaptação em
vias de desenvolvimento do sistema digestório,
responsável pelo controle de sal nos fluídos
corporais. No entanto, o aspecto adaptativo
envolve a condição salubre do organismo, não
a condição de estresse associada. Esse estudo
aponta que, no contexto natural, a assimilação
genética é um exemplo de como mecanismos
darwinistas são capazes de produzir a evolução
considerada lamarckista, ou seja, herança
genética de características outrora adquiridas.
A noção de variações epigenéticas
hereditárias conferiu uma nova dimensão à
assimilação genética, uma vez que: (a) em
populações pequenas, elas funcionam como uma
fonte adicional de variação de muita importância,
já que não há muita variabilidade genética;
(b) a maioria das variações surgem quando as
condições ambientais mudam, que é o momento
de sua utilidade; (c) as variantes epigenéticas
são mais reversíveis, logo sua plasticidade é
pertinente quando a mudança ambiental for de
curta duração; e (d) elas podem abrir caminho
para variações genéticas posteriores (Jablonka &
Lamb, 2010).
Em termos teóricos, esses estudos
experimentais põe em xeque a principal tese
neodarwinista: a dicotomia entre processos
fisiológicos e seletivos. Em outros termos, na
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relação entre organismo e ambiente não ocorre
apenas seleção de variações genéticas aleatórias,
mas também mudanças oriundas da experiência.
Devido aos princípios como continuidade
topológica (Lewontin, 2002), assimilação genética
(Jablonka & Lamb, 2010) e acoplamento estrutural
com conservação da organização (Maturana &
Varela, 1978/2011) é possível que essas variáveis
no desenvolvimento engendrem mudanças
evolutivas.
5. Coevolução genética e cultural
Embora o sistema conceitual do
paradigma epigenético evoque o ambiente,
inscrevendo-o na relação com o organismo, as
possibilidades dessa perspectiva se entendem
para a cultura, principal domínio relevante para
sondar como indivíduos são participantes ativos
no desenvolvimento e evolução. No âmbito
da aprendizagem, Jablonka e Lamb (2010)
apresentam uma concepção complexa em torno
dos processos que explicam instinto, repertório
comportamental e aprendizagem, sugerindo que
genes e aprendizagem podem se retroalimentar
devido a aspectos culturais. Cultura é um sistema
de padrões de comportamento, preferências e
produtos de atividade animal que são socialmente
transmitidos e caracterizam um grupo de animais
sociais (Jablonka & Lamb, 2010).
Sobre o comportamento, Maturana e
Varela (1984/2011) pontuam, salvaguardando
exceções no caso de plantas, que uma de
suas propriedades imediatas é o movimento
e a alteração de posição do organismo em um
ambiente. Além disso, definem esse movimento
como uma resposta sensório-motora coordenada
do organismo em função do ambiente, desde
organismos mais simples até os mais complexos
com sistema nervoso e órgãos. Por exemplo, uma
ameba, ao perceber no ambiente uma partícula
como fonte de alimento, estende sua membrana
formando um pseudópodo que envolve a partícula
e a engloba, acoplando-a em sua estrutura. No
caso da transmissão comportamental evolutiva,
Jablonka e Lamb (2010) apresentam diversos
modos, incluindo alimentos que a progênie
recebe na gestação e lactação, estampagem
comportamental, aprendizagem individual ou
socialmente mediada, incluindo-se, no último
caso, observação e imitação. É possível evolução
na dimensão comportamental, pois quando
esses processos passam por variação afetando
a probabilidade de sucesso na sobrevivência
e reprodução, a tendência é sua difusão na
população.
Além disso, diferentemente da variação
genética, que é estrutural com conservação
da organização da espécie, as variações
comportamentais são funcionais sobre um tema
(Jablonka & Lamb, 2010; Maturana & Varela,
1984/2011). Isso equivale a dizer que a estabilidade
funcional de padrões comportamentais, que
constituem uma cultura, depende de repertórios
perceptivos e cognitivos constituídos não só pela
história da espécie, mas pelo modo como um
grupo de animais sociais se relacionam com o
ambiente e entre si. Desse modo, a possibilidade
de evolução cultural cumulativa depende de uma
rede de tradições animais. Jablonka e Lamb (2010,
p. 218) explicam:
“Está claro que as mudanças culturais nos
animais podem ser cumulativas, mas o
resultado não é uma evolução linear com
o aumento consistente na complexidade
em uma direção. Em vez disso, o que
observamos é que a variação cultural em
um domínio influencia as chances de gerar
e preservar a variação cultural em outro,
e isso por sua vez pode afetar ainda outro
domínio, e assim por diante. Um hábito pode
estabilizar outros hábitos, e eventualmente
tem-se uma rede de hábitos que, juntos,
constroem um novo estilo de vida”.
Um exemplo de evolução cultural
cumulativa envolve macacos em uma ilha
japonesa. Para facilitar uma pesquisa, cientistas
ao alimentaram os macacos com batata no intuito
de atraí-los até à praia, observaram que uma
fêmea passou a lavar batatas no mar, hábito que
se difundiu. Em seguida, os macacos japoneses
passaram a mordê-las e mergulhá-las no mar, de
modo a temperá-las. Alguns anos mais tarde, os
animais que se alimentavam de trigo misturado
na areia solucionaram esse problema ao jogar a
mistura na água, uma vez que o trigo flutuava e a
areia não, outro hábito que também se difundiu,
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primeiramente dos jovens para adultos, depois
de mães para filhos. Por fim, esses hábitos
propiciaram o aparecimento de novos hábitos:
acostumados com o mar, os macacos começaram
a tomar banhos recreativos em piscinas naturais;
e macacos mais velhos passaram a pescar peixes,
mariscos e polvos quando não havia mais nada
para comer. O que se verifica é que quando os
cientistas começaram a alimentar os macacos,
esse hábito ampliou o escopo de novos hábitos,
não de maneira linear, mas como construção de
uma rede que criou um novo estilo de vida e, de
fato, esses comportamentos perduram por pelo
menos cinquenta anos, mesmo que os animais
atualmente venham recebendo menos batata
(Jablonka & Lamb, 2010).
Diante dessa possibilidade, conclui-se
que a relação com o ambiente na constituição do
desenvolvimento e da evolução é sutil, porque
além da seleção natural das espécies, ele também
influencia o desenvolvimento dos organismos
singulares, aspecto que tem por consequência
o fato do ambiente afetar quais variantes
estarão presentes ou disponíveis para serem
selecionadas. Esse duplo papel do ambiente é
mais complicado de pensar na medida em que
se constata que os organismos, com frequência,
são responsáveis por determinar e construir o seu
ambiente face às relações que estabelece com ele,
processo conhecido como construção cultural de
nicho. Esse conceito descreve um fenômeno que
envolve os sistemas de herança no eixo genéticoepigenético e comportamental, ampliando a
noção de assimilação genética (Jablonka & Lamb,
2010).
O primeiro tipo de interação desse
tipo é assimilação de uma resposta aprendida
em instinto, convertendo-a do domínio
comportamental para o controle genético.
Trata-se da gênese dos instintos, que são
comportamentos complexos que ocorrem sem
jamais terem sido aprendidos ou ainda com
pouca aprendizagem. A explicação neodarwinista
dos instintos se pauta na seleção natural de
variantes genéticas aleatórias, mas como esse
tipo de comportamento é claramente adaptativo
e provavelmente estaria presente mesmo se
não fosse inato, é difícil explicá-lo em termos
de seleção acidental de genes hereditariamente
ativos (Jablonka & Lamb, 2010). A seleção sexual
proposta por Darwin foi retomada como lógica de
505
explicação, juntamente com a noção de pressão
seletiva, versando sobre condições de vida que
foram agregadas ao ambiente, criando uma
demanda adaptativa, como o surgimento de um
novo predador ou esgotamento de uma fonte
de alimento. Com esse arcabouço teórico, se os
indivíduos adquirem preferência em cortejar e
acasalar com parceiros em conformidade com
certas características, haveria uma tendência
seletiva de melhorar a presença desses fenótipos
nas gerações seguintes.
Nesse contexto, a tendência seria uma
resposta inicialmente aprendida converter-se em
instinto pela assimilação genética de alguma via
de desenvolvimento exposta por essas agregações
ambientais,
paradoxalmente
prejudicando
a própria aprendizagem. Não obstante essa
supostamente contradição, Jablonka e Lamb
(2010) afirmam que a assimilação genética
total de comportamento ocorre apenas nas
raras ocasiões em que a demanda adaptativa
é tal que a sobrevivência da espécie dependa
da aprendizagem rápida de uma determinada
resposta ao ambiente. Isso não acontece
porque o ambiente é instável, frequentemente
as condições de vida mudam, como a presença
de um novo predador, a obtenção de alimento,
respostas sociais, ciclos ambientais como dia e
noite ou estações climáticas.
Se o ambiente é instável, é provável
ocorrer seleção de aprendizado individual e social
a partir de respostas mais instintivas. No entanto,
mesmo nos casos de pressão seletiva intensa, a
assimilação genética pode levar a uma sofisticação
do comportamento, como é o caso da expansão
do repertório pelo princípio asssimile-e-estique,
segundo o qual parte de um comportamento
aprendido socialmente é assimilada, permitindo
acréscimo de novas sequências a ele (Jablonka
& Lamb, 2010). Por exemplo, se há uma pressão
seletiva via seleção sexual de machos que
cortejam as parceiras com uma dança atraente,
mas a capacidade de aprendizagem nesses
organismos é limitada, pode haver uma tendência
de assimilação de partes da dança, liberando o
acréscimo de novas sequências no aprendizado
individual. Além disso, a assimilação genética
também pode tornar o repertório mais flexível pela
evolução de categorizações. Ou seja, assimilações
parciais configuram uma nova percepção no
animal sobre o seu ambiente, a partir de uma
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categoria conceitual evoluída. Por exemplo, uma
espécie de animal terrestre pode se deparar
com um novo predador alado específico, após
algumas gerações com resultado de assimilação
parcial, pode-se configurar uma percepção de
espécies aladas generalizadas: esses animais
passarão a responder a alguns aspectos do
mundo com base nessa nova percepção originada
na pressão seletiva e seleção gradual de variações
já presentes expostas pelo ambiente que agregou
novas propriedades (Jablonka & Lamb, 2010).
Partindo dessa constatação, percebese que estilos de vida alteram a frequência de
genes subjacentes aos organismos, razão pela
qual é possível falar em coevolução genética e
cultural. Um exemplo é a digestão do leite fresco
em adultos humanos, que, em geral, não ocorre,
porque eles perdem a atividade da enzima lactase
após o desmame. Contudo, em algumas culturas
nas quais houve a pressão seletiva em torno
do leite ser um alimento mais imprescindível à
saúde, ocorreu uma seleção não aleatória de
variantes genéticas nessa atividade enzimática,
de modo que ela persiste na idade adulta.
Como consequência, em algumas populações a
tolerância ao leite é maior que em outras, sendo
inclusive mais benéfica. Essa evolução é cultural,
porque as razões pelas quais houve a seleção para
absorção são diferentes: nos países escandinavos,
se deve a falta de sol e produção de cálcio, presente
no leite; em certas comunidades nômades do
Oriente Médio e África, a seleção se deve ao fato
de que o leite é uma fonte adicional de alimento
em um contexto escasso; já no Mediterrâneo, em
função de um contexto particular de preferência
a alimentos processados e não dependência dos
rebanhos, os genes variantes da enzima lactase
não são tão comuns (Jablonka & Lamb, 2010).
A proposta de coevolução genética e
cultural parte da lógica de que novos hábitos
constroem um nicho no qual as variantes
serão selecionadas, mas também na ideia
de estabilidade: uma cultura que altera com
frequência os aspectos cognitivos, práticos
e perceptuais do nicho torna mais difícil um
controle genético que acompanhe essa cultura.
Nas palavras das autoras:
“O bom senso e um bocado de evidências
indiretas sugerem que comportamentos
aprendidos e socialmente transmitidos
têm um papel de destaque na mudança
coevolutiva,
porque
a
adaptação
pode ocorrer muito mais rápido via
comportamento do que via mudança
genética. Novos hábitos tendem a ser
a primeira mudança adaptativa, e estes
construirão o ambiente no qual as variações
genéticas são selecionadas. Mas aqui há
um problema: a ideia faz sentido se a
mudança cultural nas condições de vida for
persistente e estável, mas não se houver
mudanças rápidas e frequentes. Se a cultura
altera o tempo todo os aspectos cognitivos,
práticos e perceptuais do nicho que ela
constrói, como a evolução genética pode
acompanhá-la?”. (Jablonka & Lamb, 2010,
p. 351-352)
A necessidade de estabilidade para a
assimilação genética de comportamento traz à
baila a discussão da evolução da mente. De acordo
com a tese dos módulos mentais, houve seleção
natural de uma mente organizada modularmente,
ou seja, tendências específicas no comportamento,
remetendo a aspectos diferentes da vida, como
alimentação, reprodução, aspectos cognitivos.
Por outro lado, Jablonka e Lamb (2010) negam
essa explicação, ainda que haja reconhecimento
do aspecto da assimilação genética de levar a
alguma organização modular do comportamento.
Isso porque esse processo dificilmente é completo
e estreito, devido à instabilidade do ambiente.
Desse modo, existe um espectro de adaptações ao
invés de uma concepção de mente estrita, sendo
que ela pode ter evoluído mais modularmente
em alguns aspectos da vida dos organismos e
mais generalista em outros. Ao invés da noção
dicotômica, a visão espectral torna evidente que
a seleção para plasticidade tem a mesma lógica da
canalização: “desmascarar” variações já presentes
nos organismos em face de um ambiente que
agregou alguma mudança significativa.
Por exemplo, em um ambiente inalterado,
algumas variações menores não importam do
ponto de vista seletivo e, por essa razão, estão
presentes na população. Contudo, a partir do
momento em que surge um novo elemento
estrutural no nicho, configurando pressão
seletiva, essas variações passarão a fazer
diferença evolutivamente, de modo que os genes
subjacentes às respostas pertinentes nesse novo
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ambiente aumentarão de frequência. A explicação
do espectro adaptativo, no limite, parte do
pressuposto de que o ambiente sempre muda,
de modo que variantes nos organismos estarão
sempre presentes. Na terminologia do paradigma
epigenético, em contraste com a Biologia centrada
na seleção de variações genéticas aleatórias,
o processo adaptativo pode ser explicado nos
termos de assimilação e acomodação genética,
ou seja, a dinâmica de mudanças no repertório
em função de alterações orgânicas e ambientais
(Jablonka & Lamb, 2010).
6. Paradigma epigenético como teoria complexa da evolução
No interior de um projeto de
Biologia científica encontram-se algumas
controvérsias sobre o conceito filosófico de
organismo subjacente às explicações sobre a
compatibilidade entre organismo e ambiente. A
metáfora do desenvolvimento como desenrolar
de algo pré-formatado ainda se faz presente
contemporaneamente, encorajando explicações
que remetem a ideias da Biologia pré-moderna,
conforme se vê na ideia de determinismo genético.
Essa ressonância do pré-formacionismo propiciou
a tradução do desenvolvimento dos indivíduos
em termos de regularidades causais, explicadas
por uma Biologia mecanicista centrada no
retorno aos genes. O gene seria entendido como
unidades sinalizadoras de mudanças lineares em
um ambiente propício, que, por vezes, é reduzido
à mera acepção de cenário. Paralelamente
às explicações do desenvolvimento, no nível
evolutivo ocorre a ascensão do darwinismo, o qual
se vale das metáforas adaptativas clássicas, nas
quais o organismo é entendido como mero veículo
de informação genética. Com o adaptacionismo,
seria possível explicar o fenômeno biológico pelo
ajustamento do organismo ao ambiente em um
processo análogo ao fenômeno de uma chave
se encaixar a uma fechadura. Embora na origem
e manutenção das espécies coabitem variação
e seleção, a visão neodarwinista dominante
compreende organismos singulares como um
lócus, alvo desse ajustamento contínuo, do qual se
abstrai uma história descrita primordialmente em
termos de acidentes bem-sucedidos (Lewontin,
2002; Jablonka & Lamb, 2010).
Em contraste à visão mecanicista,
que reformula o conceito de pré-formação
do determinismo genético, em um segundo
momento, outras propostas circunscrevem o
organismo em uma relação inalienável com
o ambiente, expressa não no desenrolar de
um início já formatado, mas na experiência
ambiental
orgânica,
incluindo
variações
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estruturais e funcionais genéticas e epigenéticas
cujo papel é fundamental na emergência do
desenvolvimento complexo de tecidos, órgãos e
sistemas (Jablonka & Lamb, 2010). A elaboração
de explicações científicas na perspectiva da
epigênese, ou seja, experiências adquiridas em
relação com o ambiente, descartou a proposta
de um determinismo mecanicista na explicação
das estruturas anatomofisiológicas e funcionais
dos indivíduos. Não obstante, embora a noção
de herança genética seja um fato estabelecido, a
acepção e a expressão evolutiva de processos de
desenvolvimento sensíveis ao ambiente ainda é
alvo de calorosos debates.
A proposta neodarwinista de explicação
biológica interdita uma teoria complexa e
interdisciplinar da evolução, pois, nessa tendência,
os fatores responsáveis pela variabilidade
genética são aleatórios com relação às condições
em que a mudança se difunde originando as
espécies. Críticas endereçadas a esse pilar
indicam a emergência de um novo paradigma
biológico, o epigenético, para o qual é a dinâmica
de relações entre organismo e ambiente que
explica as mudanças estruturais e funcionais que
constituem a autoprodução biológica. Almeida
e Falcão (2008, p. 529) resumem uma proposta
de delineamento do paradigma epigenético, de
acordo com a qual:
“(a) o desenvolvimento ocorre por
epigênese, processo em que a experiência
ambiental dos organismos entra como
influência formativa necessária, não
ocorrendo nenhuma preformação ou
predeterminação dos genes; (b) as
mudanças evolucionárias são iniciadas
por mudanças desenvolvimentais; (c)
estas mudanças desenvolvimentais não
são arbitrárias, sendo determinadas pela
dinâmica do próprio sistema epigenético; (d)
as mudanças desenvolvimentais podem ser
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assimiladas pelo novo sistema organismo/
ambiente como um todo, ajustando os seus
parâmetros para uma futura evolução; (e)
a epigênese atua na mediação entre os
níveis biológico e psicossocial, servindo
para integrar os dois níveis em um todo
estrutural e funcional; (f) o desenvolvimento
e a evolução são processos contínuos, no
âmbito dos quais o organismo participa
ativamente em dar forma à sua própria
história desenvolvimental e evolucionária”.
Conclui-se, por meio de estudos em
diversas frentes da Biologia, a impossibilidade de
admitir uma concepção de organismo como préformação genética de qualquer tipo. Além disso,
descarta-se, nesse paradigma, a compreensão do
organismo como mero veículo de um processo de
ajustamento evolutivo aleatório. Essas evidências
colocam em xeque o pilar neodarwinista sustentado
em noções como uma ontologia de independência
entre organismo e ambiente e a dicotomia entre
processos de desenvolvimento regulatórios e
processos evolutivos de seleção. A experiência
orgânica se situa, no contexto de uma visão mais
ampla de evolução e desenvolvimento, como o
norte explicativo das mudanças orgânicas, em
ambos os processos ontogenético e filogenético.
Essas críticas endereçadas ao determinismo
genético e ao paralelismo entre evolução e
desenvolvimento indicam a possibilidade de
uma explicação diferente do sistema organismoambiente, na qual o organismo é entendido como
estrutura bioquímica e ação, produto e produtor,
na medida em que ele está inscrito em uma
relação inextrincável com o ambiente (Almeida &
Falcão, 2010; Jablonka & Lamb, 2010; Lewontin,
2002; Maturana & Varela, 1984/2011). A defesa
de uma abordagem relacional qualifica o conceito
de comportamento como motor da evolução,
como sugeriu o psicólogo Piaget (Almeida &
Falcão, 2010). Isso porque, na medida em que
desenvolvimento e evolução são processos
em interseção, a experiência orgânica pode
reverberar em mudanças evolutivas, seja nos
aspectos estruturais da espécie ou na construção
cultural de novos ambientes. Com efeito, o
paradigma epigenético subscreve uma relação
de transversalidade entre desenvolvimento e
evolução, mediada pela experiência ambiental do
organismo.
Em virtude da centralidade da experiência
ambiental epigenética, incluindo sua articulação
com os conceitos de comportamento e cultura,
põe-se em xeque, de um lado, noções como
determinismo, mecanicismo ou pré-formação,
configurando um início absoluto do qual cada
história biológica é um desdobrar. De outro lado,
também não há margem para noções como telos,
destino ou perfeição para os quais as espécies
biológicas convergem. O conceito de epigenética
como metáfora relacional e construtora da
evolução não é mera especulação teórica, pois
como os enunciados científicos engendram um
entendimento e uma ação sobre a realidade
(Maturana & Varela, 1984/2011), é imprescindível
à ciência indagar como se constrói a história dos
sistemas vivos e como essas teorias permeiam a
práxis científica.
Avaliar a narrativa da ciência sobre os
seres vivos e seu ambiente em termos das
metáforas empregadas no entendimento de suas
relações é uma discussão que suscita um novo
questionamento, prenhe de consequências para
ações práticas que almejem interferir no curso
evolutivo: os cientistas, pertencentes à dinâmica
biológica, têm orientado a atividade científica
por valores adaptativos mantendo o status quo
social ou por valores sensivelmente articulados
às mudanças produzidas no tempo da metáfora
construtiva entre organismo e ambiente? Embora
a resposta extrapole o escopo deste ensaio, o
paradigma epigenético aposta, sobretudo, na
possibilidade de construção de uma autopoiese
social cuja prioridade seja ética, articulando ser,
conhecer e agir em uma relação inalienável com
o mundo.
Agradecimentos
Agradecemos à Universidade Estadual de
Maringá pelo financiamento integral de pesquisa
de iniciação científica, cujo resultado parcial
gerou este trabalho.
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Referências bibliográficas
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Trad.). Belo Horizonte: Crisálida
Notas
(1) Este ensaio vale-se do pré-formacionismo clássico devido à sua ressonância contemporânea na
ideia de determinismo genético (Lewontin, 2002). No entanto, ambos os teóricos pré-formistas e
epigeneticistas, anteriormente à Biologia Moderna, ampararam suas explicações em estudos sobre a
gametogênese, divergindo apenas no modo como entendiam sua organização e complexidade. Para
uma leitura mais detalhada do pré-formacionismo, ver Gould (1977/1999).
(2) A definição de epigenética aqui apresentada não se confunde com o conceito de epigênese descrito
por Lewontin (2002), para quem o desenvolvimento de um indivíduo é um processo de interação do
organismo com o ambiente do qual participam ruídos aleatórios. Conforme se verá adiante, epigênese
e epigenética são termos diferenciáveis, sendo o primeiro relativo aos fenômenos no desenvolvimento
e o segundo a um paradigma geral de explicação na Biologia (Almeida & Falcão, 2008).
(3) O conceito de adaptação empregado no darwinismo clássico é uma metáfora acerca da
compatibilidade entre as estruturas anatomofisiológicas dos organismos e suas funções no ambiente
(Lewontin, 2002). Além disso, autores como Piaget definem a mente como adaptação, nesse caso, seu
estudo tangencia a definição de adaptação-estado, ou seja, uma propriedade de existência dos seres
vivos; e adaptação-processo, explicada pela identificação de variáveis entre indivíduo e ambiente
que engendram o estado adaptativo (Abib, 2003). No contexto da Biologia Evolutiva, o estudo dessas
variáveis recebeu atualizações com o avanço no conhecimento de processos moleculares. Na Síntese
Moderna, o processo constituinte da adaptação-estado é explicado por uma Biologia cuja centralidade
reside nas variações genéticas aleatórias, material alvo da evolução por seleção natural (Lewontin,
2002; Jablonka & Lamb, 2010). Será discutida a visão epigenética do processo adaptativo, retomando
as discussões piagetianas e propondo uma alternativa à Biologia centrada no gene (Almeida & Falcão,
2008; Jablonka & Lamb, 2010; Maturana & Varela, 1984/2011).
(4) Existem vários fenômenos epigenéticos abarcados pelos estudos da Biologia Molecular, cada
qual com especificidades e implicações evolutivas e de desenvolvimento, tais como os circuitos
autossustentáveis de retroalimentação, herança estrutural de variações em membranas ou príons,
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sistemas de marcação da cromatina incluindo a metilação do DNA e sistemas de interferência de RNA
ou silêncio de genes. Não obstante, seu aspecto comum é o domínio celular como unidade de herança
(Jablonka & Lamb, 2010).
(5) Embora a seleção para estabilidade no desenvolvimento culmine em mecanismos que dificultam
herança transgeracional de variações celulares epigenéticas, tal como a segregação das linhagens
somáticas e germinativas, existem algumas rotas de transmissão. Estudos de estampagem cromossômica
via metilação de DNA e mecanismos epigenéticos de silêncio de genes têm esclarecido algumas
interações moleculares subjacentes à herança transgeracional de estados epigenéticos embrionários.
Portanto, a eliminação do padrão celular epigenético presente nos pais durante a formação do embrião
na progênie não ocorre inteiramente de acordo com a tese da tabula rasa epigenética (Jablonka &
Lamb, 2010).
(6) Mutações são variações estruturais, aparecem como erros na replicação do material genético,
entendidas pelo neodarwinismo como um processo cego, a não ser em casos especiais de
desenvolvimento. Tem-se questionado essa ideia, pois algumas mutações são interpretativas, no
sentido de que eventos ambientais podem afetar a taxa, o local genômico e o momento de ocorrência
desse processo. Alguns exemplos estudados experimentalmente incluem: mutação induzida global,
hipermutação local, induzida local e induzida regional. Filosoficamente, a ideia de que mutações são
produzidas pelas condições de vida é associada ao lamarckismo, no sentido de que alguns processos
de variação orientam-se à adaptação. Trata-se de um equívoco, pois não há teleologia na evolução das
espécies, como se houvesse uma força sobrenatural guiando o processo evolutivo, isto sim, ocorrência
do aumento de probabilidade de uma mutação ser bem-sucedida frente a mudanças ambientais.
Desse modo, há uma gradação entre a mutação aleatória clássica e a mutação de corte e regulação
no desenvolvimento, processos que se explicam na complexidade de interações que ocorrem entre
organismo e ambiente nos diversos subsistemas de herança (Jablonka & Lamb, 2010).
(7) O conceito de paisagem epigenética é um modelo visual ilustrativo sobre o desenvolvimento. De
acordo com Waddington, citado por Jablonka e Lamb (2010), o desenvolvimento pode ser entendido de
modo análogo a um terreno, no qual um platô representa o estado inicial do ovo fertilizado, e os vales
e suas vicissitudes representam perturbações ambientais ou genéticas que alteram a planificação no
terreno. Desse modo, os vales mais profundos e estreitos admitem menor plasticidade fenotípica, pois
nessas vias de desenvolvimento o resultado funcional é bem canalizado. Em contraste, os vales mais
largos e cujos fundos são mais planos admitem maior plasticidade, pois o percurso é mais aberto. A
dinâmica de alterações na paisagem epigenética, portanto, depende da totalidade de interação entre
genes e ambiente. Para maiores detalhes, ver Waddington (1979).
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