diálogo com o editor

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DIÁLOGO COM O EDITOR
Dra. Nancy Alfieri Nunes
Editora Gerente
1 – Dr. Alexandre Alcântara, o Sr. pode nos dizer
qual é a sua formação profissional, onde se formou, e o tempo de exercício da profissão de cirurgião-dentista?
Sou clínico, graduado pela UNICID – Universidade da Cidade de São Paulo – em 1993. Caminho para vinte anos de exercício profissional
na odontologia. Dediquei-me a estudar os assuntos pertinentes aos músicos, ao longo dos anos, e
como não havia curso de especialização neste sentido, mantive-me como clínico.
2 – O Sr. faz atendimento aos instrumentistas somente em âmbito particular ou em paralelo atende
àqueles instrumentistas de sopro mais carentes?
Eu sempre ofereci atendimento em caráter particular aos músicos. Entretanto, costumo
atender a instrumentistas mais carentes, sem
divulgação, que me são indicados por pacientes
músicos. Em certa ocasião, o que me foi muito
gratificante, tive oportunidade de, em uma escola
da periferia, avaliar a boca de umas vinte crianças.
Muitas nunca tinham ido ao cirurgião-dentista e
se sentiam orgulhosas por alguém estar lhes dando atenção. Um músico que eu atendia, e que foi
o responsável pelo convite, ensinava esta comunidade carente a tocar instrumentos musicais. O
nome dele é Adalto Soares e ele continua com
este projeto em Tatuí/SP.
3 – Como o Sr. se envolveu no tratamento dentário de instrumentistas de sopro? Foi uma questão
familiar, uma vez que o senhor vem de família tradicional na área musical, ou, meramente, houve
ocorrências que o levaram a realizar esse trabalho?
Comecei com atendimento familiar: um
tio, e famoso trompetista, Magno D’Alcântara,
me procurou para o seu tratamento e durante
o mesmo foi me alertando para as necessidades
dos músicos, me trazendo, inclusive, artigos e
revistas do meio musical, que esclareciam suas
necessidades. E, em paralelo, os amigos músicos
de meu pai, dos meus tios e primos, começaram
a indicar outros que me procuravam, a princípio,
para o atendimento convencional.
4 – Como foi o seu primeiro atendimento e
como houve percepção de necessidade de tratamento especial?
Meu primeiro, segundo e até o terceiro atendimento foi normal e demorou para eu dar conta
de que eles precisavam de algo diferenciado. O
primeiro caso que me chamou a atenção e que foi
o insight na minha carreira, foi o de um trompetista de uma famosa banda de Jazz de São Paulo.
Ele havia se submetido a um procedimento estético com coroas de porcelana em todos os incisivos superiores, o que na época achei um trabalho
maravilhoso (provavelmente em 1995 ou 96). Só
que ele me solicitou a remoção de todas as coroas de porcelana, pois não conseguia tocar! Ele me
disse que estava desesperado e que meu tio havia
lhe dito que eu iria ouvi-lo. Sinceramente, eu duvidava do que ele dizia, pois o trabalho do colega
era de alta qualidade; mas o desespero do paciente
me convenceu. Ele trouxe seu trompete e eu fui
desgastando as coroas, abrindo diastemas, reduzindo a incisal, até que ele começou a tocar as notas musicais encobertas até então. Esse foi o caso
que me levou a pesquisar sobre os instrumentos e
os instrumentistas de sopro.
5 – Imagino que, como não há especialidade dentro desta área, foi por meio de tentativas que atingiu seu alvo no atendimento desse paciente e de
outros também!
Foi assim mesmo. Como eu não sabia o que
poderia acontecer, pensei primeiramente em me
proteger e adotei um procedimento que hoje uso
como padrão no atendimento a músicos: os modelos de estudo. Eu moldo, vazo em gesso especial,
peço para um auxiliar tratar o gesso com verniz para
ficar mais durável, e entrego aos músicos. Eles servem como uma garantia ao músico que eu saberei o
formato dos seus dentes antes de realizar qualquer
procedimento. Além disso, como eles ficavam com
os modelos, poderiam procurar outros profissionais
e usar os modelos como referência, caso a sua embocadura fosse alterada acidentalmente.
Depois, passei a fazer os procedimentos me
baseando no que lia e no que ouvia. Sempre man-
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tendo o conhecimento adquirido e raramente arriscava algo que não havia aprendido em cursos ou
na universidade.
6 – Qual a queixa desses pacientes quando iniciam
o tratamento ou questionam outros tratamentos
recebidos?
A principal queixa é que o dentista não os
entende e que não podem alterar a embocadura
em prol dos dentes, sob o risco de o paciente não
tocar mais. A queixa gira sempre em torno do: “o
cirurgião-dentista queria mexer, mas eu não queria que mexesse” ou então: “disse que era músico
e ele nem deu bola”. Coisas assim!
7 – Qual ou quais são os fatores críticos no tratamento desses pacientes? (Fatores específicos que
precisam ser obedecidos).
A embocadura, que na definição mais adequada para um cirurgião-dentista entender, é a
região que fica por trás do bocal, boquilha ou palheta (partes do instrumento que são apoiados na
boca), ou seja, os dentes e lábios são os que recebem o apoio do instrumento. Como exemplo,
no caso dos trompetes os bocais normalmente se
apoiam sobre os lábios, os quatro incisivos superiores e os dois incisivos centrais inferiores. No
trombone, os caninos superiores são atingidos e
os laterais inferiores também, além dos outros
incisivos. Quanto menor o apoio, menos estrutura labial e dentária será utilizada, e o inverso
também é verdadeiro.
Outro fator crítico é o emocional: ele precisa
confiar no seu interesse pelo fato de ele ser músico, e que nós – cirurgiões-dentistas – iremos nos
ater a este fato e ao seu instrumento. A maioria
leva o instrumento na primeira consulta para mostrar como é sua embocadura.
8 – Há um tipo específico de material para reconstrução, por exemplo, dos dentes anteriores, que
possa indicar a melhor forma de restaurar a estética, a função e a profissão desses pacientes?
Eu trabalho muito com resina fotopolimerizável, e apesar de fazê-la de forma definitiva, sempre
a tenho como temporária, não pela sua durabilidade, mas pelo risco do paciente solicitar a redução ou o aumento do volume da restauração ou
alteração de sua forma. Não é o material e sim a
anatomia do dente que determina se ele toca bem
seu instrumento e tem um detalhe ortodôntico ou
anatomicamente incorreto, não vai querer mudar.
Daí a importância da escolha do tratamento odontológico mais correto para reparar o dano dentário.
A parceria e a comunicação com o técnico de prótese dentária se tornam fundamentais.
9 – É admirável que tenha pleiteado no CFO uma
intervenção e uma especialização para tais casos.
Quando iniciou sua empreitada e como foi o
transcurso disso?
Obrigado. Entre 2007 e 2008, comecei a solidificar a ideia de levar essa forma de atendimento aos meus colegas cirurgiões-dentistas, até por
necessidade de ter mais profissionais com a mesma atuação.
Mas eu tinha consciência de que não poderia
ensinar a alguém algo que a odontologia não reconhecesse. Assim, primeiramente tentei contato
com o CROSP. Enquanto aguardava um posicionamento, recebi um apoio significante da Ordem
dos Músicos do Brasil, por meio de um delegado da instituição, o Sr. Plinio Metropolo, pianista
internacional. Dessa forma, obtive prontamente
o apoio do presidente do Conselho Regional de
Odontologia de São Paulo, Roberto Bueno e sua
vice-presidente, Maria Cristina Barbato. Por intermédio desse órgão e desses profissionais foi
encaminhado um oficio ao Conselho Federal de
Odontologia, com um convite a mim para participação em solenidades, com políticos federais e
estaduais, para que a causa fosse ouvida. Alguns
políticos também enviaram ofícios ao CFO, pleiteando esta especialidade.
Ao mesmo tempo, eu já havia conversado com
o Dr. José Wilson Lopes, chefe da regulamentação
de especialidades no CFO, que esclareceu que não
havia nenhuma norma na odontologia que regulamentasse o que eu fazia. Assim, me sugeriu conversar com os conselheiros e com o presidente. Passado algum tempo, recebi a ligação do Conselheiro
Rubens Corte Real Carvalho, que me orientou
quanto era necessário para “criar” uma especialidade: ter uma massa crítica de cirurgiões-dentistas
atuando na mesma área. Pouco tempo depois, o
CROSP me convidou para uma reunião em sua
sede, com a secretária Maria Lúcia Zarvos Varellis,
e na presença do renomado trompetista da OSESP,
Fernando Dissenha, conversamos horas sobre o
assunto. Nesta reunião, a secretária me orientou a
fazer uma proposta por escrito e com a finalidade de
criar uma nova especialidade para que ela, em nome
do CROSP e do presidente Emil Adib Razuk, encaminhasse ao CFO. Assim foi feito, e em fevereiro
de 2012 eu encaminhei a proposta.
Recebi o diploma de honra ao mérito pelo trabalho junto à música e à cultura pela Ordem dos
Músicos do Brasil em maio de 2012.
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Em julho, o parecer foi votado e aprovado por
unanimidade pela resolução de que a especialidade onde se enquadra esse tipo de atendimento é a
odontologia para pacientes especiais, com sugestão
de inclusão da Sociedade Brasileira de Pacientes
Especiais para andamento desta proposta. Este parecer está sendo amplamente divulgado nas revistas do meio musical e entre os músicos.
10 – Qual é a sua expectativa para o futuro quanto
ao atendimento desses pacientes especificamente
e quanto à especialidade? A quem direcionaria o
ensino a outros profissionais para essa modalidade
de tratamento?
Minha expectativa é que seja despertado nos
cirurgiões-dentistas o interesse por essa classe profissional. Temos muito a aprender nestes procedimentos. A normativa de procedimentos deverá ser
dada pela especialidade Odontologia para Pacientes Especiais, formando uma linhagem de profissionais aptos para essa área. Estou aguardando
uma resposta a um contato que fiz com a ABOPE
para darmos continuidade a este processo.
11 – Imagino que tenha uma ampla experiência neste tipo de tratamento. Pode nos relatar algum caso
em especial que teve resultado favorável e foi também gratificante ao Sr. como cirurgião-dentista?
São 17 anos trabalhando com sopro-instrumentistas e são inúmeros os casos gratificantes.
Os que mais me gratificaram foram dos músicos
idosos e que haviam perdido a esperança de continuar na atividade devido a perdas dentárias, próteses etc. É importante mencionar que um músico
sopro-instrumentista geralmente inicia seu aprendizado aos seis anos de idade, e só cessa com sua
morte ou com algum fator físico que o deixe incapaz de atuar. Meu pai tem 77 anos, é profissional e
saxofonista da orquestra Jazz Sinfônica do Estado
de São Paulo, reconhecida internacionalmente, e
com músicos profissionais de diversas idades. Outro exemplo de músico idoso e atuante, morto recentemente, é o flautista Altamiro Carrilho.
Saber que estou ajudando a manter a qualidade da música por meio da manutenção da qualificação de seus músicos no que diz respeito à boca é
muito gratificante. Tenho um caso para ilustrar a
importância disso.
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CASO CLÍNICO
RESINA FOTOPOLIMERIZÁVEL NA REABILITAÇÃO
DE UM MÚSICO SOPRO- INSTRUMENTISTA
Dr. Alexandre Alcântara
O paciente J.M.F.J , 41 anos, em
1978 sofreu um acidente em uma viagem
familiar aos 7 anos, trazendo danos aos
dentes, ossos e face, devido ao choque
com o para-brisa do veículo. Com 12 anos
começou a tocar trombone, instrumento
escolhido por sugestão médica, pois
devido a uma cirurgia vascular que sofrera,
acharam que seria um instrumento mais
leve. Aos 14 anos, migrou para o trompete,
instrumento que toca até os dias de hoje.
Pela questão da embocadura (apoio
que o instrumento musical utiliza
sobre os lábios e dentes através do
uso de dispositivos chamados bocais,
boquilhas e palheta) o paciente relatou
ter tido dificuldades para tocar, devido
à deficiência que havia no seu dente
incisivo central superior direito,pois
segundo o mesmo, havia ficado torto.
Aos 19 anos, iniciou sua profissio­
nalização, e para isso, seus estudos, e
exercícios de embocadura teriam que
mudar, e passou a fazer 2 a 3 horas
diárias de exercícios calistênicos, para
fortalecimento dos músculos, e para uma
boa formação da embocadura. Segundo
o paciente, foram esses exercícios que
promoveram sua adaptação ao apoio do
bocal sobre o dente incisivo central superior direito.
O paciente relatou também ter sofrido danos estéticos por tratamento endodôntico nos anos 90, o
que levou à perda dentária de alguns elementos.
Em 2012, após avaliação do mesmo, solicitei-lhe uma tomografia e uma radiografia panorâmica
convencional para analisar o estado de saúde bucal e condições ósseas para colocação ou não de implantes
dentários.
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Com a tomografia em mãos, foram avaliados
dois aspectos importantes: a reabilitação da saúde
bucal e a manutenção do seu exercício profissional,
tocar trompete.
Moldagens das duas arcadas foram realizadas
para confecção de modelos de estudo. Os modelos
permitiram avaliar o posicionamento dentário e
os detalhes de oclusão para a consulta posterior,
em caso de perda de qualidade na embocadura e
controle da necessidade requerida do paciente.
Extrações foram realizadas bilateralmente,
na arcada superior, seguido de tratamento
endodôntico do primeiro molar superior direito,
com destrição significante da coroa.
A colocação de dois implantes sem carga na
região do 14 e do 24 foi programada e executada
um mês após as extrações, para aproveitar a
orientação das raízes residuais e não sobrecarregar
o tecido ósseo.
A questão embocadura até então ocupava um
segundo plano o tratamento. Na fase seguinte, a
proposta foi reabilitar com resina fotopolimerizável
e colocação de provisórios para observação do
resultado, mediante a necessidade de manter a
embocadura no local e fechamento dos diastemas.
O dente 14 recebeu um provisório e o 16 foi
reconstruído com resina fotopolimerizável.
Na consulta seguinte foi feito o fechamento
do diastema entre o 12 e o 13, também com resina
fotopolimerizável.
Entre esta consulta e a seguinte o paciente
relatou ter obtido mais suporte labial para tocar,
dado ao espaço existente na região do dente 14. O
fechamento do diastema na distal do 12, fez com
que a coluna de ar ao tocar fosse projetada mais
para o centro da boca em direção ao bocal.
O dente 11 foi desgastado na vestibular
e reconstruído com resina fotopolimerizável,
adequando o dente ao bocal, para desenvolvimento
de sua profissão. O dente 21 foi “transformado”
em um incisivo central anatomicamente mais
correto, a fim de possibilitar melhor apoio ao
instrumento de sopro, embora a linha média facial
tenha sido ligeiramente deslocada para a esquerda.
Um intervalo de sete dias foi o suficiente para sua
adaptação ao tocar. O paciente retornou, dizendo
que estava tocando bem, mas que tinha perdido
um pouco a facilidade em tirar notas agudas,
devido ao fechamento e modificação anatômicas
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do 11 e do 21. Isso se deveu ao fato do paciente
ter se acostumado com os diastemas entre os
dentes, onde, por eles, o ar projetado escapava
com facilidade. Além disso, com o suporte
labial reconstituído, a vibração que faz com que
o ar seja emitido para dentro do bocal ficou
temporariamente prejudicada.
Em uma última sessão foi fechado o diastema
entre o 22 e o 23.
Conclusão
Um paciente sopro-instrumentista precisa
muito mais do que um sorriso esteticamente acei-
tável ou que a sua boca esteja funcionalmente perfeita. Ele precisa tocar: é o seu sustento, sua profissão e sua paixão. Quando procura o cirurgião-dentista, ele quer o melhor atendimento, é claro,
mas quer continuar tocando mesmo durante o
tratamento. Assim sendo, a melhor forma de fazer
um tratamento assim é optar por sessões com procedimentos breves, uso de provisórios e resina para
definir contornos dentários e observando os resultados e receptividade do paciente mediante suas
necessidades. O modelo de estudo inicial, antes
do tratamento, remete ao profissional as condições
necessárias para o paciente manter sua profissão e
leva o profissional a planejar melhor o tratamento.
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