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Revista Jurídica, n. 3/4, Jan. – Dez. - 2001, Anápolis/GO, UniEVANGÉLICA.
O U VI R E S T RE L AS . ..*
Getúlio Targino Lima **
Queridos Especialistas.
Ao lado de tantas honrarias com as quais vós me galardoastes
durante estes dois anos de convívio sadio e proveitoso, nos quais
caminhamos as estradas do saber processual, este mesmo um a sinuosa
estrada,
com
tantas
pontes,
tantos
meandros,
tantas
variedades
de
terrenos, mas tudo com um objetivo: alcançar a cidadela da sentença, a
palavra do Estado juiz sobre as contendas dos viajores da vida material,
mais esta: a de falar-vos nesta noite.
* Aula da Saudade proferida em 13/12/2000 para os Concluintes do Curso de Especialização em
Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da UFG.
** Especialista e Mestre em Direito pela UFG, Doutorando em Direito pela PUC/SP, Professor
Emérito pela UFG, Advogado.
E como se não bastasse tudo isto, a emoção da hora, a honra do
momento, a certeza de que todos vós, em sagrado respeito, aguardais
uma palavra significativa (e isto não é fácil, nesta sociedade abarrotada
de fantasias ), acumul a-se, ainda, o fato de ser este dia, 13 de dezembro,
a data do aniversário natalício de um homem que foi de tudo um pouco
na
vida:
ambulante,
soldado,
garimpeiro,
boiadeiro,
castanheiro,
tropeiro, por algum tempo proprietário de alguns bens materiais, e p or
longo tempo um simples sonhador com eles, tudo com a arma de seus 3 (
três ) dias de escola e o seu valente coração de sertanejo do nordeste:
Antônio Francisco Lima, meu saudoso pai, a quem ofereço a glória deste
momento.
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Revista Jurídica, n. 3/4, Jan. – Dez. - 2001, Anápolis/GO, UniEVANGÉLICA.
Estou certo, todavia, que não desejais, agora, qualquer retorno aos
meandros da E bem vendo isto, decidi me dirigir a vós tratando de outro
tema, falando-vos sob outra inspiração. Permiti -me, pois, declarar que o
título
de
minhas
elucubrações
não
é
outro,
se
não
este:
OUVIR
ESTRELAS... Quero conversar convosco sobre isto.
Estou certo, também, que, imediatamente, ainda que em silêncio,
recebo a reprimenda de que fala o insuperável parnasiano OLAVO
BILAC, em seu memorável soneto “Ouvir estrelas”, desta forma: “ Ora,
(direis) ouvir estrelas! Certo perdeste o senso!”
Mas eu vos asseguro a perfeita higidez mental com que me
apresento, para o trato deste imprescindível assunto.
Permiti
que
vos
conte
a
fábula
do
homem
que
se
julgava
conhecedor dos homens e das coisas e rejeitou a pedra d a sabedoria.
Conta-se que um homem que se julgava sábio, certa vez se
encontrou, numa viagem de negócios, com um mercador astuto, que
comerciava com pedrarias falsas, embora as apregoasse como legítimas.
Enganado pelo brilho falso das pedras, mas presunç oso quanto a
ser conhecedor das coisas e das almas humanas, na
ânsia de adquirir
bens apenas pelo peso do ouro e não pelo esforço e pela experiência, o
homem comprou aquelas pedras, expondo, na volta, em sua cidade, o seu
precioso tesouro, para amigos e c onhecidos.
Um dia, porém, exibiu as pedras a um perito, que lhe revelou
serem as mesmas falsas e, por isso, sem nenhum valor.
Revoltado, lançou fora todas as pedras, magoado em seu orgulho
muito mais do que em sua boa -fé, esquecido de que fora traído por sua
própria presunção.
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Certo
dia,
outro
homem
recebeu
da
divindade
a
missão
de
distribuir entre aqueles que fossem necessitados as pedras da Sabedoria,
gratuitamente, como o sol oferta a todos a sua luz e o seu calor. E,
sabendo da existência daquele hom em que se considerava sábio, bateu à
sua porta, já ao final do dia.
Aberta a porta, o emissário da divindade estendeu -lhe a mão, na
qual fulgurava uma das preciosas pedras da Sabedoria. A gema cintilava
em transparências azuladas, como se conservasse a lu minosidade do sol
recém posto.
Ao vê-la, o homem que se considerava sábio e conhecedor das
coisas e das almas, preocupado com sua fortuna, repeliu o visitante aos
gritos:
-Ninguém mais haverá de me enganar. Fora de minha porta
ganancioso homem!
O emissário da divindade, enquanto guardava a preciosa gema,
respondeu:
-Não estou aqui para te vender um tesouro, mas para ofertá -lo
gratuitamente. Se tu não o queres, melhor. Certamente não saberias
aproveitá-lo.
E seguiu mansamente o seu caminho, distribuindo, a quem de
direito, as preciosas pedras.
O orgulhoso senhor ficou parado à sua porta, monologando:
-Ninguém me enganará mais. Ninguém!
No céu estelar, múltiplas estrelas fulgiam maravilhosamente
entre os flocos das nuvens...
Vendo-as, monologou, novamente, o pretenso sábio:
-São apenas pirilampos...
E fechou bruscamente a porta.
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E é assim que os pretensiosos vão pela vida, deslembrados de que
e preciso verdadeiramente ver e verdadeiramente ouvir as estrelas, não
as confundindo com meros pirilampos.
Realmente, assim como o céu estelar, o coração das criaturas
abriga estrelas e vaga-lumes e é preciso distinguir bem umas dos outros.
É assim com a fama, falsamente conquistada, assentada numa
cultura e num conhecimento cujo brilho é de um mero verniz, elevado às
culminâncias pelo excessivo orgulho de seu portador, que julga não
apenas ter, mas ser a estrela de luz.
É assim com o saber irresponsável, que entrega sua aplicação aos
objetivos mais condenáveis, pensando sempre num lucro fácil, mesmo
quando a voz da consciência determina outro caminho a seguir.
É assim com o direito apenas posto, somente feito, que não se
projeta para as situações futuras nem se preocupa com a justiça,
mostrando-se escravo da letra em desproveito dos princípios, servo da
matéria, em desprestígio do espírito.
São somente pirilampos, de luz intermitente e de vida curta.
O processo é um instrumento do amor.
Amor que cada um deve dedicar à verdade, que nele se busca
demonstrar, seja a substancial, seja a formal, sempre nos lembrando de
que, se não é ele o corpo escultural e perfeito do direito substancial é a
veste oportuna e preciosa que permite ao homem ingressar no grande
palco da existência. Eis a primeira estrela a ser vista e ouvida por todos
nós: a verdade. Verdade que desafia não só nossa coragem mas também
nosso compromisso.
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Amor que cada um deve dedicar ao direito, de modo a não lhe
tolher a vida, no abuso de tantos expedientes inúteis, que tornam
impróprios ao uso o resultado que afinal se colhe, mas, ao contrário,
valer-se de seus caminhos e de suas franquias para o fortalecimento da
confiança nas instituições. Eis a segunda estrela.
Amor à vida, que só é festejada quando digna, que só produz seus
resultados quando os homens como um todo e cada um de per si se
enxergam como seres e não apenas como seres, mas como seres humanos,
criaturas divinas, cuja dignidade o direito não pode deixar de proteger e
o processo não pode deixar de viabilizar. Eis a terceira estrela.
Ocorre que, para vê-las, não as confundindo com os simples va galumes que vagueiam no espaço é preciso dedicação ao estudo, interesse
pela pesquisa, vontade determinada em favor do crescimento interno.
Mas não basta vê-las. É preciso ser verdadeiramente sábio para
ouvi-las,
e,
para
tanto,
é
preciso
amar.
apaixonadamente, o verdadeiro bem, que é
Amar,
prof unda
e
desiderato de todos nós,
colocados nesta terra para sermos felizes, embora as tristezas e lutas que
possamos enfrentar. Amar, profunda e apaixonadamente, as coisas que
nos rodeiam, a natureza que forma e co nstitui o ambiente vivo em que
devemos existir, convivendo com ela e com ela interagindo, de tal modo
que a simbiose homem -natureza tenha como resultado a vida. Amar,
profunda e apaixonadamente, os nossos semelhantes, para que possamos
amar a Deus, posto q ue sem Ele não há vida e sem vida não há direito.
Assim, abraçaremos de verdade, sem a intenção oculta de quebrar
as costelas do outro; beijaremos, sem que no final se sinta o travor da
traição de Judas; desejaremos a todos a paz e o bem, sem que, às ocul tas,
cruzemos os dedos da alma, desmentindo a saudação.
Evitaremos o meu lamento de poeta, conforme lançado no poema “
EU SOU DO INTERIOR”.
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Por favor,
não me fechem as portas,
nem me ensinem
caminhos errados
para chegar a lugar nenhum:
eu sou do interior.
Por favor,
não me apontem escadas rolantes,
nem me indiquem
elevadores panorâmicos
de onde se vê tudo,
mas não se chega a nada,
se não se souber descer:
eu sou do interior.
Por favor,
não me ofertem mãos finas,
nem sorriso de forma
que só existem
de fora para fora
e não transmitem confiança:
eu sou do interior.
Por favor,
não me beijem sem amor,
nem me abracem sem calor,
pois isto é farsa, é mentira,
é ilusão de ótica
ou de vida:
eu sou do interior.
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Por favor,
não me olhem se não for
por fora e por dentro.
Não me amem
se não for por inteiro,
no fragor do sexo
ou no fulgor do espírito:
eu sou do interior.
Sou do interior
do país,
do interior
do estado,
do interior
de mim.
Não me arranquem
de mim mesmo,
não me deixem a esmo,
sem vida,
luz
e cor: eu sou do interior.
E depois de haverdes feito tudo, podereis sair do céu de vossos
corações e, abrindo a porta de vossas casas, ver as estrelas do céu
estelar e com elas conversar, noite adentro, sem serdes tomados por
loucos, mas porque sereis sábios . Sim, os sábios da comunidade do
amor, os únicos capazes desta proeza, como no magistral soneto do
clássico parnasiano Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac,
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OUVIR ESTRELAS...
Ora ( direis ) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!” E eu vos direi, n o entanto, Que, para ouvi -las,
muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto ...
E conversamos toda noite, enquanto
A via láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E ao ver o sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: “Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem quando estão contigo?”
E eu vos direi: “Amai para entendê -las
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas.
Embora as diferenças que separam as criatur as, não podem as
mesmas se distanciarem tanto, de modo a umas se encontrarem nas
alturas
celestiais
inatingíveis
pelos
simples
mortais
e
outras
nas
profundezas infernais do sofrimento decorrente da discriminação, do não
atingimento
do
nível
mínimo
caracter izador
da
dignidade
humana,
formando, assim, uma legião de excluídos a cujo favor só se levantam os
discursos, as frases de efeito e os movimentos políticos de ocasião.
Isto é inaceitável numa sociedade que se diz de humanos.
E não vos esqueçais, nunca, da lição de Rabindranath Tagore de
que:
“No salão de audiências do mundo, a simples folha de relva senta
no mesmo tapete com o raio de luz do sol e as estrelas da meia
noite.”
Muito obrigado.
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