AS RELIGIÕES EM ROMA NA DÉCIMA TERCEIRA SÁTIRA DE JUVENAL (SÉCULOS I E II d.C) Amanda Giacon Parra (doutoranda- Unesp/ Assis) Resumo: O objetivo desta comunicação é apresentar um trecho da obra do autor de sátiras Juvenal que viveu entre os séculos I e II d.C, na cidade de Roma. A sátira que será discutida é a décima terceira na qual o autor fala sobre descrença religiosa, sobre práticas antigas e sobre práticas, que segundo o autor, eram estrangeiras e que se caracterizavam como superstições. Pretende-se a análise dessa sátira e do posicionamento do autor em relação aos cultos presentes na cidade de Roma no período citado. Tendo em vista que Juvenal buscava a defesa de um determinado grupo social, busca-se a análise desse discurso no contexto da cidade de Roma na passagem do primeiro para o segundo século, lembrando ainda as influências que permeiam a obra do autor, tais como o estoicismo, e as características próprias do gênero satírico. Palavras-chave: Roma, Principado, Juvenal, religião, literatura A proposta desta comunicação é discutir uma sátira de Juvenal presente no quinto e último livro do autor, a sátira XIII. O objetivo é entender os elementos religiosos que aparecem no texto do satirista e, com isso, discutir as trocas culturais, inclusive no aspecto religioso vivenciadas na cidade de Roma em fins do primeiro e início do segundo século. 1678 Em primeiro lugar, dar-se-á algumas informações que se tem sobre o autor e sua obra. Em seguida, tratar-se-á da religião em Roma e das trocas culturais que vinham ocorrrendo no período retratado por Juvenal. Depois, há um resumo da sátira XIII e algumas considerações. Autor e fonte A fonte aqui elencada para o estudo foi produzida pelo autor JuvenalDecimus Iunius Iuuenalis- entre o século I e II d.C. As informações acerca da biografia do autor são escassas. A data de nascimento é difícil de determinar com exatidão. Segundo seus estudiosos Labriolle e Villeneuve o autor não tinha começado a escrever, ou pelo menos a publicar, até a morte de Domiciano, 96 d.C. No ano 100 o autor provavelmente estivesse no meio de sua existência (1957: VIII- IX). Há poucas indicações sobre como foi a vida do autor, ele é citado algumas vezes pelo epigramista Marcial. Sobre a condição social que vivia o poeta Juvenal, as opiniões também são variadas. Vitorino acredita na possibilidade do autor ser de baixa condição social (2006: 266). Segundo Labriolle e Villeneuve as biografias fazem de Juvenal filho ou criança adotiva de um rico liberto, da classe média romana (1957: VI). Na juventude, o poeta provavelmente freqüentou escolas de mestres de retórica. Sua obra demonstra tal influência. Percebe-se ainda a influência da pregação cínico-estóica na obra do poeta, assim como outros autores satíricos. O ano da morte de Juvenal também é incerto, sabe-se apenas que em 128 o poeta ainda escrevia suas sátiras. Define-se da seguinte forma: se a eloqüência ocupou a primeira parte da vida de Juvenal, a poesia satírica ocupou a outra parte (LABRIOLLE e VILLENEUVE, 1957: XV). A maioria dos estudiosos cita ainda a influência da filosofia estóica 1 nos escritos de Juvenal. Seus escritos estariam permeados de pregação cínicoestóica. 1 O estoicismo teve, segundo Brun (1986:15), três fases. A primeira delas chamada de “estoicismo antigo” teve como fundador Zenão de Cicio em Atenas no século III a.C. A segunda fase foi o período no qual a filosofia começa a latinizar-se, por volta de II a.C, chamado “estoicismo médio” e, por fim, o “estoicismo imperial”ocorrido em Roma nos séculos I e II d.C, 1679 O autor mostra-se por meio de suas sátiras como um tradicionalista, conservador e pessimista. Exalta em vários momentos o mos maiorum2, pois o passado é o principal ponto de referência dele, e mostra um certo descaso em relação às crenças dos gregos e orientais. Segundo Vitorino (2006: 266-267): uma questão importante da visão de Juvenal a respeito da sociedade de seu tempo, isto é, da época de Trajano e Adriano, é o extremo pessimismo e amargura sentidos por alguns na obra, principalmente se se confronta com as obras de outros autores contemporâneos ao poeta. No que diz respeito aos temas tratados na fonte há uma grande diversidade: filosóficos, morais e religiosos. Esses últimos são aqueles que interessam a este estudo. Em várias sátiras surgem discussões a respeito de descrença religiosa (sátiras 2 e 13), sobre superstições (sátiras 2, 13 e 15), discute as práticas votivas (sátira10), degradação dos templos (sátiras 9 e13), cultos, segundo ele, estranhos à cultura romana tais como o de Ísis e Osíris, Cibele e Átis, Bellona (sátiras 4, 5,6,8, 15). As observações de Warren e Wellek ( 197- :120) norteiam o olhar sobre a fonte antiga a medida que observam que a posição social do escritor está fundida com a o estudo do público a que este se dirige e do qual depende financeiramente. Segundo eles: “Até mesmo o patrono aristocrático é um público - e, muitas vezes, um público exigente, que espera da obra não só uma adulação pessoal, mas também um conformismo com as convenções de sua classe”. No caso de Juvenal, percebe-se que independentemente da origem social do autor, ele participa da defesa dos ideais das ordens mais altas da sociedade romana, que muito provavelmente era das classes mais altas ou ainda, dependia delas para suas publicações. momento no qual a doutrina passa a interessar-se pela moral. Nesse caso, Brun (1986: 75) esclarece que são três os gêneros que a filosofia estóica aborda: lógica, física e moral, sendo que, a última trata de como se devem proceder nossos atos. 2 Mos maiorum pode ser definido como um conjunto de ideias que pretendia conservar entre os romanos os costumes dos antepassados. Oliveira (1996: 56) define: “Os romanos têm uma herança cultural chamada mos maiorum, cujo significado é a permanência de valores éticos observada na mentalidade das elites do império; por conseguinte, exerce forte influência nas relações de poder. O mos maiorum é um ideário que atua como filtro do discurso, onde o tempo é indispensável na fixação dos valores éticos e patrióticos voltados para o público-alvo, o público consumidor do discurso; é preciso, então, apreender o pensamento político romano”. 1680 A fim de se entender a fonte aqui apresentada é preciso destacar alguns pontos e características a respeito do gênero escrito por Juvenal, a sátira. Nesse gênero literário que possui regras específicas é bastante comum, e até mesmo tradicional, o ataque aos problemas morais e à vida cotidiana (VITORINO, 2006: 268). D‟Onofrio define o gênero satírico e aponta suas principais características. O autor atenta para o caráter oral e para a variedade de assuntos das sátiras. O texto satírico não é, por sua vez, nem somente filosofia, nem somente moral (1968: 14). Gilvan V. da Silva (1995: 73-74) aponta que a sátira faz uma apologia aos costumes ancestrais e ridiculariza comportamentos opostos ao tradicional, ou seja, há uma função moralizante. O riso satírico é um ponto de análise bastante importante, pois, ele acaba delimitando zonas de interdição para a conduta dos indivíduos. Diferentemente do riso carnavalesco, segundo Silva, no qual o humor tem perspectiva generalizante. A influência filosófica presente na maioria dos autores satíricos é a pregação cínico-estóica. D‟Onofrio ressalta que a sátira surge e se afirma como oposição à Helenização de Roma (1968: 16). O autor, por sua vez, tem a finalidade catártica de correção dos costumes. Há que se perceber três pontos básicos para o entendimento do gênero: a finalidade da sátira é a moralização, o seu meio expressivo é o ridículo e a fonte psicológica é a indignação, ou seja, a indignatio, “a revolta contra o vilipêndio dos princípios sagrados do bem, da justiça, do amor, da pátria, da religião e da família” (Idem). O mote dos escritores satíricos é castigat ridendo mores. Sobre a religião romana As religiões vividas pelo povo romano tinham características diferentes das religiões mais praticadas nos dias de hoje, por isso é importante elencar alguns conceitos ou princípios. Com base neles, pode-se ter uma ideia de 1681 como se organizavam as crenças, ou seja, como se dava a experiência religiosa do povo romano no âmbito público. A maneira de “crer” dos romanos é diferente de qualquer ideal cristão de crença. Para os romanos antigos, explicam Linder e Scheid, “crer era fazer”. “Crer na Roma antiga equivalia a ter uma confiança cega no rito [...] (1993: 58). Crer significava acreditar no poder do ritual e buscar sua perfeita execução. Scheid enumera alguns dos maiores princípios. O primeiro deles é que a religião romana é uma religião sem revelação, sem livros revelados, sem dogma e sem ortodoxia. O que existe é a chamada „orthopraxis‟, a performance correta que descreviam os rituais (SCHEID, 2003: 18). Como destaque, dentre os conceitos que envolvem a religião dos romanos, pode-se citar a supervalorização do rito. Enquanto o povo grego valorizava o mito, os romanos valorizavam o rito (SCARPI, 2004: 154). Estes acreditavam que quando o ritual era perfeitamente executado os deuses permitiriam a manutenção do equilíbrio da cidade, ou seja, a observância ritual trazia o equilíbrio das relações entre homens e deuses, o que eles chamavam de pax deorum. A fé e a prática religiosa são assuntos que devem ser vistos separadamente. “É a exclusão sistemática do sentimento que ajuda a compreender o estatuto da crença. A fé apaixonada e inflamada não tinha lugar na religião tradicional. Pois tudo que ultrapassava os limites do rito, todo comportamento religioso exagerado e impulsivo não revelava mais a crença romana: estas atitudes lembram a superstição” (LINDER e SCHEID, 1993, p.52). Um ponto importante a respeito da religião pública praticada no Império é que se trata de uma religião social, ligada à comunidade. Há tantas religiões romanas quanto grupos sociais: os cidadãos, as legiões, as várias unidades das legiões, colégios dos servidores públicos, artesãos, famílias, entre outros (SCHEID, 2003, p.19). Destaca-se ainda que se tratava de um modelo cívico de religião: “[...] respeitava-se a liberdade do cidadão e ajudava-o no estabelecimento de relações com os deuses fundadas especialmente na razão mais do que no medo” (Idem, p.21). 1682 Um conceito importante na religião tradicional romana é a concepção de religio. Trata-se da própria reverência prestada aos deuses, da prática religiosa, da crença religiosa; era a cerimônia, o rito, o respeito aos princípios religiosos. Outro conceito central é o de mos mariorum, já tratado aqui. Ele diz respeito aos costumes dos antepassados, à conservação desses costumes. Ocorre que em Roma, no período citado, estava acontecendo um processo de trocas culturais muito intenso. Com as conquistas territoriais empreendidas até aquele momento novas práticas culturais chegavam à cidade e eram ressignificadas dando origem a novas práticas. Esse processo ocorreu de forma bastante visível no âmbito religioso. É importante compreender, como nos expõe Bustamante (2006:111) que as interações culturais são processos de negociação e conflitos permanentes e também se inserem nos jogos de interesses sociais. Há estratégias por parte dos grupos para manter-se unidos, identificando-se e distinguindo-se dos “outros”. No caso de se pensar a cultura do Império Romano, a autora supracitada afirma a existência de valores característicos das elites municipais em todo o Império. Trata-se de uma construção social e adverte ainda para que se tenha atenção com as formas como os sujeitos interpretam, reinterpretam e fazem circular as alteridades culturais (BUSTAMANTE, 2006:130-131). Concluindo ela afirma que: “Neste sentido, pensar a cultura no Império Romano demanda uma sensibilidade para as experiências vividas, a diversidade de comportamento e os significados presentes nos discursos construídos” (2006:131). Portanto, a religião em Roma, assim como a cultura de forma ampla, não devem ser pensadas no singular, pois elas são resultado de um longo processo de trocas culturais e ressignificações, por isso, é híbrida. No caso aqui tratado, percebe-se que há uma tentativa, por parte do autor de criticar essas novas formas surgidas após esse processo. Juvenal constrói um discurso que exalta o mos maiorum, idealizando uma Roma que supostamente teria existido, mas que não existia mais. Trata inclusive do aspecto religioso e da corrupção que, segundo ele, estava presente, da degradação dos templos e das práticas religiosas. 1683 Essas observações ficam mais concretas quando observa-se por exemplo a sátira XIII. A sátira XIII: algumas considerações A sátira XIII é a que abre o livro V, livro no qual, Juvenal mostra sua insatisfação em relação aos culpados que não recebem punição de acordo com a lei e fala sobre a avareza. Na sátira citada, o interlocutor é Calvino que foi vítima de uma fraude e perde dez mil sestércios. Nessa sátira, Juvenal não utiliza tão intensamente a indignatio como nas anteriores, utiliza outros argumentos filosóficos. Na introdução afirma que seu interlocutor é muito ingênuo por acreditar nas pessoas e que a quantia perdida era pequena perto da riqueza possuída por Calvino. Utilizando-se do argumento filosófico consolatio, porém de maneira irônica, Juvenal tenta mostrar ao interlocutor que seu caso não é único e nem mesmo um dos mais graves que ocorriam em Roma naquele momento, ou seja, que a cidade estava permeada de todos os tipos de problemas morais. Afirma que a honradez pensada por Calvino já não existia entre os homens daquela época. Fala da Idade de Ouro dos deuses como se a ingenuidade do interlocutor viesse de lá. No entanto, Juvenal descreve o interlocutor de forma irônica porque, enquanto é ingênuo, de outro lado, pratica a avareza e o apego aos bens materiais. Em outro ponto da sátira, Juvenal continua mostrando como é seu verdadeiro interlocutor: é incrédulo em relação aos deuses e sua justiça pois eles não respondem aos seus interesses. Portanto, Calvino é avarento, incrédulo e hipócrita. Calvino só vê acalmada sua ira quando, no fim da sátira, Juvenal afirma que os autores da fraude iriam sofrer castigos impostos pelos homens. Nesse caso, o interlocutor se anima e não se mostra mais incrédulo nos deuses. Portanto, como afirma Tovar (2007:148), Juvenal parece não acreditar totalmente nem no castigo da consciência e nem na eficácia das leis penais. Percebe uma corrupção generalizada tanto nos valores e crenças espirituais como nas suas instituições judiciais. 1684 Tomando por base outras sátiras, pode-se observar que a corrupção, principalmente ligada a religião é tema recorrente e muitas vezes dizem respeito às novas práticas religiosas que foram relidas em Roma no primeiro e segundo séculos. O discurso de Juvenal tenta convencer o leitor que havia naquele momento uma ausência de moral, assim tentando defender os princípios do mos maiorum romano. A entrada de vários deuses advindos de outras localidades, a mudança e renovação das práticas, inclusive religiosas, faziam os grupos mais abastados acreditarem que as novas formas religiosas prejudicariam as práticas já existentes como o culto ao imperador, ou ainda, a idealizada “identidade romana”. As novas práticas eram consideradas ainda por alguns intelectuais como superstição. Os discursos podem ser considerados uma estratégia de distinção dos grupos sociais: os grupos mais abastados e ligados ao poder buscando a defesa de uma identidade e tentando distinguir-se daquilo que considerava os “outros”, o “diferente”, o “estrangeiro”. Dessa forma, acredita-se que a religião romana no período tratado corresponde a várias outras expressões religiosas e não apenas à religião pública oficial como se costuma, ao culto ao imperador e as festas oficiais. A religião romana de meados do primeiro século ao início do segundo século mostra-se híbrida, isto é, espaço de conflito, modificação e recriação de formas religiosas. A religião no caso romano no período tratado engloba várias formas religiosas, advindas de outras partes, mas que depois de relidas são aceitas, em maior ou menor grau pelo poder, e vividas pela população. Referências Bibliográficas Fontes JUVENAL. Sátiras. Texto de Francisco Antonio Martins Bastos. Rio de Janeiro : Ediouro, s/d JUVENAL. Satires. 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