PRIMEIRA LINHA HIDROQUÍMICA Entrada de água do mar e evaporação tornam estuário altamente salino na época seca Efeitos da açudagem no rio Jaguaribe A construção de barragens e açudes em um rio modifica as características de suas águas e pode afetar as espécies que ali vivem. Esses efeitos podem ser bem estudados em alguns rios do Nordeste, nos quais existe grande número de açudes e represas. Para avaliar essas alterações, as características hidroquímicas do estuário do rio Jaguaribe, no Ceará, vêm sendo medidas desde 2001. Por Rozane Valente Marins, Luís Drude de Lacerda, Ilene Matanó Abreu e Francisco José da Silva Dias do Instituto de Ciências do Mar (Labomar), da Universidade Federal do Ceará. O Figura 1. Erosão nas margens do estuário do rio Jaguaribe, na altura do pontal do Maceió, em sua foz povo do semi-árido nordestino tradicionalmente lamenta a água que escorre para o mar nos períodos de chuva. O que se desconhece é que, segundo estudos da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), feitos ainda na década de 1980, só uma pequena parcela das chuvas chega ao mar. Da precipitação total na região, 88% evaporam ou evapotranspiram (da vegetação) e só 12% escoam para o mar (8,6% pela superfície e 3,4% por vias subterrâneas). Desde os tempos coloniais, porém, é intensa a construção de barragens e açudes nos rios da região, tanto para gerar energia elétrica quanto para aumentar a disponibilidade de água. Entre os impactos negativos da construção de grandes lagos artificiais estão as mudanças do regime hidrológico a jusante (abaixo) da represa – os períodos de cheia e seca do rio deixam de ser periódicos e dependentes das chuvas – e da qualidade física e química da água. Além disso, os ecossistemas locais sofrem impactos que afetam organismos aquáticos e terrestres. A ausência dos períodos sazonais de cheia e de seca altera fortemente os ciclos de cresci- A dinâmica do estuário do Jaguaribe Estuários são feições da região litorânea situadas, em geral, em uma estreita faixa entre o continente e o mar. Têm um tempo de vida curto na escala geológica, já que sua forma e sua extensão são modificadas constantemente pela erosão e pela deposição de sedimentos. Também podem sofrer alterações drásticas em função do aumento ou da redução do nível dos oceanos. Atualmente, há consenso de que o nível médio do mar está subindo cerca de 1 mm por ano, e que isso pode ser acelerado pelo aquecimento global (efeito estufa). A influência humana também produz efeitos locais, particularmente em áreas de clima árido e semi-árido. Prevê-se que, se houver aumento significativo do nível do mar, novos estuários poderão ser formados em áreas a montante (acima) dos locais atuais. Nesse caso, mesmo que os rios trouxessem poucos sedimentos, a erosão do que já havia sido depositado antes nas áreas costeiras poderia movimentar grandes volumes de material sedimen- FOTOS CEDIDAS PELOS AUTORES 66 • C I Ê N C I A H O J E • v o l . 3 3 • n º 1 9 7 mento e reprodução de muitos vegetais e animais, reduzindo ou até extinguindo suas populações. No longo prazo, a retenção dos sedimentos e dos nutrientes carregados pelas águas leva a modificações importantes na área abaixo da barragem. No litoral do Ceará, o baixo fluxo natural dos rios, somado ao represamento e à açudagem, intensifica as alterações ambientais abaixo das represas. Os efeitos desse processo podem ser observados nos estuários da costa cearense, como, por exemplo, na erosão das margens do rio Jaguaribe (figura 1). PRIMEIRA tar. Por outro lado, uma redução do nível do mar poderia produzir estuários rasos que seriam preenchidos com sedimentos vindos dos vales superiores. Ocorreriam também mudanças nos efeitos e na área de influência das marés. O barramento dos rios, para obter água para consumo ou gerar energia elétrica, aumenta a retenção, nas represas, dos sedimentos transportados em suas águas, já que a velocidade do fluxo é reduzida – o sistema passa de lótico (águas em movimento) a lêntico (águas paradas). Com isso, a disponibilidade de sedimentos para a região estuarina diminui. Entretanto, a dinâmica dos processos costeiros é mantida, ou seja, as marés e correntes marinhas continuam redistribuindo os materiais depositados. Quando o aporte de sedimentos vindos de terra diminui muito ou cessa, devido ao barramento do rio, os materiais já depositados passam a ser mobilizados pelos processos costeiros. Isso pode facilitar a penetração do mar na linha da costa, o que altera o balanço existente entre as descargas de sedimentos e os processos físicos costeiros (maré, ventos etc.), exigindo um novo equilíbrio. O rio Jaguaribe deságua no oceano Atlântico equatorial em uma região de praias arenosas, com grandes campos de dunas movimentadas pelos ventos constantes. A descarga fluvial para o mar, nessa parte do litoral brasileiro, é muito pequena (cerca de 200 m3 por segundo), e a amplitude máxima da maré pode atingir 2,8 m. A bacia do Jaguaribe, dividida em cinco sub-bacias, drena uma área total de 72.043 km2, e seus principais afluentes são os rios Banabuiú e Salgado. O Jaguaribe tem 633 km de extensão e desemboca no oceano perto da cidade cearense de Aracati. Dados do Programa Estadual de Recursos Hídricos (PERH) revelam que, no início da década de 1990, a bacia do Jaguaribe tinha 4.712 reservatórios, agrupados (segundo seus tamanhos) em aguadas, reservatórios muito pequenos, pequenos, médios, grandes e muito grandes, que contêm juntos cerca de 696 milhões de m3 de água. Essa bacia é, portanto, área de grande interesse para a avaliação dos efeitos da açudagem sobre ecossistemas fluviais, estuarinos e costeiros. O Laboratório de Biogeoquímica Costeira do Instituto de Ciências do Mar (Labomar) vem avaliando as variações hidroquímicas no estuário desse rio, entre a ponte do Peixe Gordo, na rodovia BR-116 (perto da cidade de Tabuleiro do Norte), e sua foz. Esse trecho do baixo Jaguaribe drena uma área de 4.970 km2, tem cerca de 137 km de extensão, com um desnível de 40 m e declividade média de 0,029%. No baixo Jaguaribe o vale do rio alarga-se em uma extensa planície aluvial, que se estende da chapada do Apodi, junto à cidade de Limoeiro do Norte, até LINHA Figura 2. Mapa da região do baixo Jaguaribe, mostrando parte da área do estuário estudada pelo Instituto de Ciências do Mar (Labomar) sua foz. O canal estuarino, porém, encontra uma barreira física a cerca de 34 km da foz do rio, em Itaiçaba, onde foi construído um dique e é feita a tomada de água para o canal do Trabalhador, responsável por cerca de 40% do abastecimento de água para os 2 milhões de habitantes de Fortaleza, a capital estadual. Nessa região de planície, o Jaguaribe recebe seu principal afluente, o Banabuiú, responsável – com o próprio Jaguaribe – pelas enchentes do baixo vale. Na região de Aracati, a 17 km da linha da costa (figura 2), o período de maior pluviosidade, segundo setembro de 2003 • CIÊNCIA HOJE • 67 PRIMEIRA LINHA Figura 3. Casas de veraneio na região da vila de Fortim, situada no baixo rio Jaguaribe, no município de Aracati registros feitos de 1912 a 1985, vai de janeiro a maio, com média máxima de 237,8 mm de chuva em março. De junho a dezembro, as médias mensais não passam de 47,7 mm, com média mínima de 2,4 mm em setembro. Portanto, o regime pluviométrico na região apresenta duas estações bem definidas, embora também ocorram anos extremamente secos ou chuvosos (estes causam fortes inundações no baixo Jaguaribe – a última data da década de 1980). Outra característica do clima regional é a diferença entre a pluviosidade do litoral e a registrada a pouco mais de 30 km da foz do Jaguaribe. Em Aracati, por exemplo, chove em média 982,6 mm por ano, enquanto em Itaiçaba, a 34 km da foz do rio, a média (736,9 mm) já caracteriza um clima semi-árido. A principal responsável pela regulação do clima da região do estuário é a Zona de Convergência Intertropical (ZCIT), área sobre o oceano onde ocorre o afluxo de grandes massas de ar vindas dos dois hemisférios. O fenômeno controla a variação sazonal das chuvas. Durante o período de inverno-primavera do hemisfério Sul, a ZCIT enfraquece e se desloca para o Figura 4. Distribuição de salinidade e temperatura das águas do estuário do Jaguaribe na estação seca de 2001 – a linha tracejada indica a presença do dique da cidade de Itaiçaba, que direciona as águas do Jaguaribe para o canal do Trabalhador 68 • CIÊNCIA HOJE • vol. 3 3 • nº 197 hemisfério Norte, permitindo o domínio de ventos de leste e sudeste, e se estabelece a estação seca. Hoje, sabe-se que os fenômenos El Niño e La Niña, iniciados no oceano Pacífico, também afetam o regime de chuvas no Nordeste brasileiro, do outro lado da América do Sul, diminuindo ou aumentando o deslocamento da ZCIT para o norte. Além das variações climáticas, a região sofre os efeitos das ações humanas, como a construção de açudes, que ainda é o modo mais econômico de aumentar a disponibilidade de água no semi-árido nordestino. Os açudes do Nordeste, porém, apresentam baixo rendimento, comparados aos de regiões de clima temperado, em função das peculiaridades do clima regional e das altas taxas de evaporação. Esse baixo rendimento varia de 1,6% (no açude Broco) a 39,4% (no açude da Ema), caracterizando as elevadas perdas por evaporação. A açudagem, portanto, não afeta apenas a dinâmica fluvial, mas influencia processos mais intensos e de ampla abrangência, chegando a alterar vários ecossistemas costeiros. Permanência da intrusão salina A permanência, por longos períodos, de águas salinas na parte interna do estuário do rio Jaguaribe vem sendo notada pela população local e está permitindo novas atividades nessa área, como a criação de ostras (ostreicultura) e de camarões (carcinicultura). O estuário também é usado PRIMEIRA para o lazer, e a construção de casas de veraneio vem alterando a paisagem (figura 3). A partir dessas observações, nossa equipe realizou em 2001 e 2002 medições e coletas de água, por amostragem, para levantamento das condições hidroquímicas do baixo Jaguaribe, visando determinar as alterações resultantes da açudagem nesse rio. A hidroquímica estuarina foi avaliada, preliminarmente, através da medição de parâmetros simples, como salinidade, condutividade elétrica, teor de oxigênio dissolvido, potencial hidrogeniônico (pH) e temperatura. Em novembro de 2001, um ano bastante seco, os resultados das medições indicaram que a salinização do baixo Jaguaribe se estendia até a região da cidade de Itaiçaba, a 34 km da foz, só sendo barrada ali pela presença do dique que direciona as águas do rio para o canal do Trabalhador. A salinidade das águas do estuário mostrou-se bastante constante e em geral maior que a da água do mar (figura 4), variando de 36,50‰ (por milhar) a 39,10‰ entre a vila de Cabreiro e a foz do rio. Em Itaiçaba, a salinidade é de 29,4‰ abaixo do dique e, acima deste, os níveis já são semelhantes aos de águas doces. Essa alta salinidade pode afetar negativamente várias espécies de crustáceos e peixes estuarinos, adaptados a ambientes menos salinos. A temperatura das águas superficiais também se mostrou constante ao longo de todo o estuário, com média de 29,3°C, máxima de 30,2°C (na região de Cabreiro) e mínima de 28,4°C (no pontal de Maceió, junto à foz do rio), favorecendo a evaporação. Observou-se ainda (figura 5) que os valores de pH permaneceram constantes (8,01 a 8,29) no estuário, aumentando para 8,98 acima do dique. As águas apresentaram-se bem oxigenadas com valores variando de 8,4 a 5,2 mg/l. Esses valores de pH refletem a influência da água marinha e o balanço hídrico negativo (precipitação menor que evaporação) da região, demonstram a importância da intrusão marinha no baixo Jaguaribe e são comparáveis aos de lagoas hipersalinas, de açudes salinizados e das salinas do Pantanal Mato-grossense. O pH da água interfere no metabolismo das LINHA Figura 5. Distribuição do pH e do teor de oxigênio no baixo Jaguaribe, durante a estação seca de 2001 comunidades aquáticas, pois altera a permeabilidade da membrana celular, e tem sido um fator limitante para a colonização por peixes das salinas do Pantanal. O mesmo pode estar acontecendo na região do baixo Jaguaribe. Estratificação estuarina A descarga fluvial (o volume de água) e a graduação da salinidade na coluna d’água (estratificação salina) gerada pela diluição da água do mar têm sido apontadas como fundamentais para a dinâmica do estuário e, em conseqüência, para os processos de transporte e mistura em seu interior. Em nova amostragem feita no período de seca, observou-se que o estuário é do tipo bem misturado e não há gradientes significativos no perfil de estratificação salina e/ou térmica. Por exemplo, na região próxima à ilha do Pinto, a cerca de 7 km da foz, as medidas de salinidade (no meio do canal e nas margens direita e esquerda, a diferentes profundidades) variaram de 39,6 a 39,8‰, valores superiores aos medidos em campanha anterior, na mesma estação seca. Enquanto isso, a temperatura manteve-se na faixa de 29,4 a 29,9°C, valores similares aos obtidos anteriormente. A medição das profundidades em um perfil transversal do rio, à altura da ilha do Pinto, mostra que o canal estuarino é raso e tem profundidade maior junto à margem onde se situa a vila de Fortim, a 4 km da foz, onde amostras puderam ser coletadas a cerca de 5,5 m da superfície, enquanto no meio do canal e na margem oposta a profundidade não ultrapassou a 2 e 4 m, respectivamente. A maior salinidade encontrada no estuário, em relação à água do mar, decorre da baixa circulação das águas no estuário, o que maximiza a evaporação e a salinização. O volume de águas fluviais não é suficiente, na estação seca, para diluir as águas marinhas e promover uma estratificação salina e térmica. Entretanto, ocorrem diferenças, que provavelmente dependem da circulação e da profundidade e podem ser observadas através dos teores de oxigê- setembro de 2003 • CIÊNCIA HOJE • 69 PRIMEIRA LINHA Figura 6. Perfis de oxigênio dissolvido e de temperatura no canal principal (em frente à ilha dos Veados) e em canais secundários no estuário do rio Jaguaribe em época de seca nio dissolvido em diferentes perfis, ao longo do canal estuarino e em canais secundários (gamboas) próximos à foz do rio Jaguaribe (figura 6). A gamboa ‘canal do Amor’, junto à ilha Grande, a 5 km da foz, é mais profundo que o canal principal do rio, favorecendo a estratificação química, independentemente da estratificação térmica, embora nesse local a estratificação térmica seja mais definida, com a temperatura variando de 29,30 a 27,90°C. Os teores de oxigênio dissolvido diminuem a partir da superfície para as maiores profundidades nos três perfis amostrados. No canal principal, os teores de oxigênio dissolvido caem de 6,1 mg/l na superfície para 3,5 mg/l a 4,5 m de profundidade, enquanto no canal do Amor passam de 4,77 mg/l na superfície para 3,91 mg/l a 6 m. Níveis de oxigênio dissolvido Figura 7. Variação da salinidade e da temperatura no canal estuarino do rio Jaguaribe, a 17 km da foz, durante a estação de chuvas 70 • C I Ê N C I A H O J E • v o l . 3 3 • n º 1 9 7 iguais ou menores que 4 mg/l, em águas naturais, favorecem processos anaeróbicos, que produzem grande quantidade de substâncias redutoras, as quais consomem mais oxigênio para sua oxidação. No ambiente tropical, no entanto, devido às elevadas taxas de decomposição da matéria orgânica, não se pode relacionar o perfil vertical de oxigênio ao estado trófico das águas. Nessa parte do estuário estão concentradas as maiores áreas de manguezais, que provavelmente são as principais responsáveis pelo aporte da matéria orgânica para o estuário do baixo Jaguaribe, embora se deva avaliar o aporte decorrente de atividades humanas, como a aqüicultura e o lançamento de esgotos no rio. Em março de 2002, novas medições foram feitas para observar as mudanças na hidroquímica do estuário durante a estação de chuvas. Os resultados demonstraram a capacidade de recuperação do sistema estuarino (figura 7). A salinidade variou de 0,9‰ perto de Aracati a 6,5‰ na praia do Jardim Alto. A temperatura na superfície foi um pouco mais elevada que a medida na estação seca, quando a água do mar penetrava de modo mais intenso no rio. Já os valores do pH das águas caíram para a faixa de 7,75 a 8,02, dentro do esperado para águas naturais, deixando de ser limitantes ao desenvolvimento de organismos. Esses resultados, embora preliminares, sugerem que modificações importantes podem estar acontecendo no estuário do rio Jaguaribe. Verificou-se, por exemplo, uma migração dos manguezais rio acima, acompanhando a intrusão salina. Peixes típicos do estuário têm sido substituídos por espécies marinhas, afetando a pesca local. Caranguejos, item importante da pesca artesanal local, reproduzem-se somente em salinidades moderadas (entre 15‰ e 20‰), e a população ribeirinha tem relatado a diminuição de suas populações. Outros efeitos sobre a hidroquímica, a sedimentação e a erosão da região estuarina do rio Jaguaribe, que também podem estar ocorrendo, são objeto de estudos em andamento por nosso grupo de pesquisas. I