Os Passos Em Volta Do Poético e Da

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DE POETA E LOUCO TODOS TÊM UM POUCO:
OS PASSOS EM VOLTA DO POÉTICO E DA FICÇÃO EM HERBERTO HELDER
Maria Heloísa Martins Dias – UNESP/IBILCE
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A presença insidiosa do mito Pessoa na Literatura Portuguesa pode encobrir outras
figuras de porte não menos carismático, cuja produção literária vem desafiando a crítica
pelas propostas surpreendentes de sua linguagem. Herberto Helder, que está no cenário
dessa literatura desde 1961 (O amor em visita), embora se recolha intencionalmente num
estratégico recanto, é um autor com uma obra com status suficiente para demandar de nós
uma leitura que dê conta de sua intensa diversidade.
Recolho os contos ―Estilo‖ e ―Holanda‖, os dois primeiros de sua obra de estréia na
ficção, Os passos em volta (1963), para discutir aspectos que, de certa forma, estarão
presentes em outros textos, narrativos ou poéticos, de Helder.
São narrativas curtas, como a maioria da coletânea, mas a intrigante construção dos
textos adensa a aparente leveza ou ligeireza da linguagem ficcional, funcionando como uma
primeira armadilha para o leitor.
No primeiro conto, ―Estilo‖, o posicionamento direto da personagem, aliás sob a
forma de discurso direto, cria uma imediata situação de diálogo (mas qual a identidade de
enunciador e interlocutor?), sustentado apenas por interrogações, suspensões de sentido e
imagens desconexas, como se testando o próprio suporte da comunicação:
Está a ver? [...] a nossa vida... compreende? a nossa vida, a vida inteira,
está ali como... como um acontecimento excessivo... [...] Faço-me
entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida.
(2001, p. 9).
Deixando que as perguntas e reticências ocupem o espaço de sua fala e se
acumulem como ―a massa das sombras‖ que se avoluma com a luz do fósforo no quarto em
que se encontra o eu, este não revela sua identidade, transformado nesse canal de
linguagem em busca de seus próprios fios. O modo fático com que o discurso vai-se
conduzindo aponta para uma das preocupações centrais da narrativa de Helder – a
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(in)comunicabilidade no mundo contemporâneo – questão que vai recebendo distintas
formas de tratamento nos contos.
No caso em questão, o procedimento escolhido para equacionar o conflito entre eu e
outro é o desencadeamento abrupto de possibilidades para explicar o que não pode ser
explicado: a natureza absurda da existência. Imersos num circuito tortuoso, a personagem e
o outro incógnito a quem dirige sua fala são trazidos para esse pacto ficcional em que
entender e não entender, aceitar ou não o que não se conhece, entregar-se aos riscos dessa
busca, enfim, tudo isso faz parte de um jogo ou ―estilo‖, aliás, título do conto, a ser vivido.
Eis onde começa a se insinuar a ironia na focalização articulada pelo eu-personagemnarrador. Como a solução para a desarrumação da vida e os excessos de seu absurdo a
personagem aponta ironicamente o estilo: ―Vejamos: o estilo é um modo sutil de transferir
a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação‖ (2001,
p. 9). A própria organização racional com que é formulada a definição para estilo parece
denunciar que a violência da vida não é tão distinta de outra ―violência‖ – aquela forjada
por nossos esquemas mentais para conferir sentido às coisas. Portanto, entre a
irracionalidade do real e a racionalidade com que tentamos compreendê-lo (enredando-o
nas malhas do discurso) não dá para escolher uma ou outra, e sim permanecer numa
margem difusa, não-situada e oscilante, que tensiona as outras duas. Essa margem insólita,
indefinida, mas rica de virtualidades apenas interrogadas pelo eu, constitui a escrita –
espaço que tende a uma organização, mesmo à revelia do sujeito. Estilo.
Instala-se, a partir daí, uma tensão entre o caos existencial e a necessidade de
ordená-lo por operações racionais. Como a desordem é insuportável, segundo a
personagem-narradora, é preciso dominá-la, ―e então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou
três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que
esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte.‖ (2001,
p. 9-10). A ironia acentua-se, na medida em que, conforme diz o eu-narrador, essas
abstrações (Amor, Morte) ―servem para tudo‖. É justamente por fugir desses lugarescomuns, isto é, das situações que regem a vida humana, situações-limites, que o eu enfrenta
o seu desajuste em relação ao meio, o que gera um estado de loucura.
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A loucura, que já se deflagra na frase inicial do conto (―– Se eu quisesse,
enlouquecia.‖), vem associada ao estilo, outra forma de loucura como a narrativa irá
mostrar. Mas como entender tal concepção de estilo?
A grande ironia do conto, marca paradigmática da visão corrosiva com que
Herberto Helder constrói sua poética, em narrativas ou poesias, está nessa curiosa analogia
entre irracionalismo vital e (ir)racionalismo da subjetividade no confronto com o real. A
relação entre ambos, mundo cotidiano e sujeito, só pode se dar, na perspectiva da
personagem-narradora, por via de um arranjo forjado para amenizar as diferenças – eis a
função do estilo: ―O mundo é assim, que quer? É forçoso encontrar um estilo.‖ (2001, p.
10). Ou seja, é preciso encontrar um modo de ludibriar a aparência desconcertante do
mundo, criando imagens compensatórias (ilusórias?) que possam preencher a falta de
nossos objetos de desejo, quaisquer que sejam. Ter estilo é criar uma estratégia para lidar
com o real, seja por meio do imaginário, da loucura ou do sarcasmo. Este último é uma das
vias que o narrador percorre ao afirmar, por exemplo: ―Seria bom colocar grandes cartazes
nas ruas, fazer avisos na televisão e nos cinemas. Procure o seu estilo, se não quer dar em
patanas‖ (2001, p. 10-11). A visão sarcástica aponta, afinal, para o desvirtuamento do que a
tradição convenciona como normas ou prescrições de estilo, pois o sentido utilitário,
comicamente propagandeado pelo eu, vai ao encontro da função midiática da linguagem.
A perspectiva sarcástica do narrador confere ao estilo um papel terapêutico, um
tratamento contra males e terrores noturnos, espécie de método a ser aplicado para vencer
―a imensa melancolia do mundo [...] a subir do sangue com sua voz obscura‖. Concebendo
o estilo como artifício trazido para o sentido corrente, o narrador ironiza o trato sério dado à
linguagem para fazer despontar o modo lúdico de enxergar o mundo, transformado em
tabuleiro com peças manipuláveis. O processo que utiliza é esvaziar as palavras, sobretudo
as fundamentais: ―Amor, Doença, Medo, Morte, Metamorfose. Digo-a baixo vinte vezes. Já
nada significa. É um modo de alcançar o estilo‖ (2001, p. 11).
Na verdade não são bem as palavras que são esvaziadas, mas a própria noção de
estilo, como um mito a ser desmitificado. E tanto não se esvaziam, que as palavras
enumeradas acima figuram como imagens constantes da poética de Herberto Helder. A
prática metalingüística da personagem do conto, apesar ou justamente por causa da auto-
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ironia (―Admirável exercício, este.‖), permite-lhe introduzir a poesia na narrativa,
materializando-a como mais uma forma de estilo, mas agora enquanto enunciação e não
apenas objeto/referente do enunciado:
As crianças enlouquecem em coisas de poesia.
Escutai um instante como ficam presas
no alto desse grito, como a eternidade as acolhe
enquanto gritam e gritam.
[...]
– E nada mais somos do que o Poema onde as crianças
se distanciam loucamente (2001, p.11-12).
Esse grito que se reitera pelos versos irá ecoar também em outro poema de Helder,
em que amador e coisa amada (modelos camonianos...) se debatem numa comunhão feita
de violência e pureza, acolhidos pela natureza dúplice do corpóreo e espiritual: ―E o
amador e a coisa amada são um único grito / anterior de amor.// E gritam e batem. Ele batelhe com seu espírito de amador (1973, p. 16).
Identificar loucura e escrita, associando-as a seres de exceção dotados de uma visão
profética, delirante ou doentia, corresponde a uma longa tradição acerca da literatura que o
conto de Helder também exibe. Conforme José Miguel Wisnik nos lembra, ―mais antigo do
que esssa aliança que une o poeta e o profeta, o xamã das sociedades tribais e nômades é o
modelo mais remoto da fusão entre o mito, a profecia, a poesia, o canto, a dança e os
alucinógenos‖ (1988, p. 284). Ao consultar o médico que lhe pergunta se há loucos na
família, a personagem do conto confirma em tom caricato: ―—Sim [...] Loucos, alcoólicos,
sifilíticos, místicos, prostitutas, homossexuais‖ (2001, p. 10). Assim, o sentido de humor
que a personagem atribui ao médico está, na verdade, incrustado na sua própria fala,
atingindo o ápice da manifestação ao ser concretizada nesse excerto de poesia que faz
figurar na narrativa.
A conversa terapêutica, digamos assim, com o doutor acaba explicitando o que o
início do conto deixara indefinido e em suspenso, porém o jogo de incerteza tramado com o
leitor permanece até o final da narrativa. A interlocução, permeada de falas não
identificadas entre médico e paciente e a oscilar entre proximidade e afastamento, acentua a
loucura como condição ―ideal‖ para a escrita. E acentua também a estranha natureza da
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poesia, que vai pulsando na narrativa como fala insidiosa, a um só tempo sedutora e
traiçoeira, bem ao gosto (ou ao estilo?) do espírito lúdico que a marcou em suas origens
mágicas: ―Gosta de poesia? Sabe o que é poesia? Tem medo da poesia? Tem o demoníaco
júbilo da poesia?‖ (2001, p.12). Não seria este um processo de esvaziamento semelhante ao
que a personagem diz realizar com as palavras?
No entanto, tais perguntas também parecem funcionar como instigação à leitura da
poesia que a personagem do conto coloca em jogo na terapia alegórica criada. O
questionamento dos limites imprecisos ou fluidos entre inteligência e estupidez não
constitui, portanto, mero objeto temático no conto, mas, principalmente, um procedimento
que estrutura sua trama ou construção. Eis o que o leitor deve capturar em seu contato com
essa narrativa de Helder; é este, talvez, o ―estilo‖ que afinal aflora das artimanhas
dramatizadas pela personagem-narradora. E quem é esta, ao fim das contas: poeta? escritor?
louco? paciente? médico? desdobramento do autor? o leitor de si mesmo? Não importa,
desde que possamos atingir o sentido entreaberto pela afirmação final do conto: ―Talvez o
senhor seja mais inteligente do que eu‖ (2001, p.12).
Ora, tal conclusão pode servir de pista para nos conduzir à leitura do conto seguinte,
―Holanda‖, que se inicia justamente com a afirmativa: ―Um poeta está sentado na Holanda‖
(2001, p. 15), narrativa em que a função do poeta ocupa definitivamente a focalização
realizada pelo narrador. Estaria este testando a condição de loucura associada ao poético
como foi sugerido no conto anterior? O ―estilo‖ encenado anteriormente não estaria se
comprovando agora, em outro espaço – uma Holanda que pode servir de metáfora a
qualquer outro lugar marcado pelo exótico e singular? Teria o poeta saído de seu espaço
escuro de confinamento do outro conto para perambular em novos e abertos lugares?
Acompanhemos, então, esse percurso.
A atitude contemplativa do poeta marca o início desse outro conto de Helder, no
qual a ironia também está presente, porém atravessada por reflexões que mesclam o mítico
e o insólito. Basta uma afirmação como, ―A Holanda agora é isto: vacas, e – no centro – o
inferno, a revolucionária inocência de um poeta sentado.‖ (2001, p. 15), para percebermos a
forma inusitada da linguagem narrativa para mostrar o paradoxo que envolve a condição do
poeta. Coexistindo com a imobilidade solitária dos animais e do espaço ao redor, a inércia
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do poeta só tem uma saída para vencer a apatia ou ganhar um estatuto ―revolucionário‖: a
inquietação do espírito no diálogo consigo próprio, cutucando a inocência com a
consciência. Mesmo que imóvel ou sem mais utilidade, pois já não escreve poemas e está
destinado à inteira perdição, como diz o narrador, o poeta tem o amor como móvel e a voz
irônica do narrador como instrumento construtivo. Note-se como essa tensão entre
permanência e mobilidade se mimetiza no discurso: ―Prados para vacas, não para um poeta
di-la-ce-ra-do por uma tormentosa inocência.‖ (2001, p. 15). Só mesmo por meio do
desdobramento gráfico do signo, colocando-o em trânsito, pode-se criar um simulacro para
esse poeta perdido buscar novos caminhos.
Outro caminho é atribuir à personagem uma postura órfica para lidar com seu
dilema crucial, pois ele ―é um inocente que maneja o fogo dos infernos‖ e o que quer é o
amor, conforme ele anuncia em fala direta. A Eurídice que procura ou irá retirar do Inferno
é a voz poética silenciada, aquela que talvez faça ser atravessada pelo sopro primordial.
Entretanto, o mito da origem o atormenta por causa de sua dúplice natureza: é encontro e
perda conjugados, passado e anulação do tempo, herança e orfandade. Ou, como ele diz
para si mesmo: ―eu sou alimentado pelos séculos, vivo afogado na história de outros
homens.‖. Esses homens podem ser reais ou míticos, Orfeu ou os poetas pertencentes a um
universo histórico que Helder incorporou em sua travessia literária. Assim, está denunciada
a raiz de seu conflito – a existência de uma tradição coloca-o numa história que não
pertence a ele próprio mas a toda a humanidade e é feita de matéria corrompida: ―Pensa
furiosamente na tradição, e toda a sua memória está corrompida por uma ardente e
desordenada tristeza. O sangue é negro desde a raiz.‖ (2001, p.17).
Como se vê, o conto vai adensando reflexões em torno da questão do poeta no
mundo, recuperando a situação de desajuste entre essas instâncias presentes no outro conto,
agora trazidas para uma dimensão cósmica que difere da focalizada anteriormente.
Não seria exagero ver nessa alegoria (novamente esse recurso na ficção de Helder) a
presença de elementos que metaforizam um contexto cultural conhecido. Afinal, eis o poeta
perdido, sentado num país dominado por uma pasmaceira imóvel e pelo medo, onde ―o
Demônio está no meio das vacas‖, ―não pode exercer os dons‖ de escrever e está sufocado
por uma tradição secular. Ou, se quisermos aproveitar o questionamento do próprio poeta
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sobre sua incômoda condição: ―De onde descendo, que não sou amado dos holandeses nem
me acalmo e participo das tarefas?‖ (2001, p. 16). A resposta não precisa ser dada, pois
guarda seu sentido na própria pergunta que o leitor desoculta. O espaço em que esse poeta
se encontra não é holandês, mas tem uma natureza tão estranha quanto este ou qualquer
outro por sua indiferença para com a subjetividade criadora. Um país em que o único modo
de o poeta exercer seu ofício é ficar ―com o talento voltado para o ar, ouvindo os pequenos
ruídos do mundo‖ (2001, p. 16), ou a oficiar em altares marginais, conforme diz Bosi ao
focalizar o lugar (im)possível da poesia nos tempos modernos. Para o escritor português, a
cena alegórica funciona magistralmente para emitir os sinais necessários à construção do
sentido desejado.
Ainda assim, o conto prepara mais uma situação em sua trama, uma espécie de
epifania. O poeta recebe uma ―visitação‖, termo enunciado na narrativa, que ilumina o seu
espírito, desvelando uma via mística, aliás, característica da escrita de Helder. É essa
presença epifânica que possibilita ao poeta resgatar a função primitiva da palavra poética,
na medida em que ele agencia os poderes mágicos para tentar obter o que deseja: ―o poeta
abisma-se no espírito demoníaco e invoca uma proteção obscura – a piedade – para o
Demônio.‖ (2001, p. 17). No entanto, essa operação xamânica, que aproxima o poeta do
mago e já foi objeto de inúmeras discussões críticas – de Octavio Paz (O Arco e a Lira),
que recupera Julio Cortázar (Valise de Cronópio), a Alfredo Bosi (O ser e o tempo da
poesia) e José Miguel Wisnik (―Iluminações profanas – poetas, profetas, drogados‖), entre
outros – reaparece no conto de Helder como mais um mito a ser dessacralizado. É que a
convocação das forças demoníacas não engendra o efeito esperado, já que o enigma
continua a atormentar o poeta, ―um apóstolo sem fé‖, a quem parece restar como último
recurso a morte, ―arder no fogo apocalíptico das cidades‖ (2001, p. 17). O embate entre
lucidez e loucura retorna, como que migrado do conto anterior para este, mas adaptado ao
novo contexto. E o conflito com a tradição reforça o jogo tensivo entre herança e ruptura,
paradigmático da cultura portuguesa em sua história literária. Para o poeta do conto, a
conquista do amor envolve o gesto contraditório aprender x desaprender, isto é, o corte dos
elos conhecidos para o encontro de uma linguagem intacta, sem mácula. Tarefa difícil, se
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não impossível, por isso o final da narrativa não apresenta uma solução, nem caberia fazêlo.
Permanece a inquietação da personagem, e mais ainda, reitera-se a dúvida que parte
da fala da visita misteriosa com quem dialoga:
– Amar o quê, quem? – pergunta a visita. – Referes-te aos homens
holandeses ou aos dons que esqueceram?
E ele não sabe realmente aquilo a que desejava referir-se, o que lhe
inspirava o desespero. Sentado na Holanda, pensa: – Piedade.
Para ele? Para os homens holandeses? (2001, p. 19).
Este final mostra-se para o leitor como verdadeiro jogo de adivinhas, pergunta e
resposta em permanente círculo, ilustrando uma das fontes originárias da poesia, além de
recolocar a personagem na mesma posição do início da narrativa (―Sentado na Holanda‖).
Uma espécie de retorno mítico?
Afinal, quem detém o enigma do pacto ficcional criado é a voz/consciência que
parece manipular tudo à distância, com seu olhar crítico e corrosivo, que não deixa nada
escapar: ―Em que jogos se enreda uma inocência!‖ (2001, p. 19).
Esta fala talvez seja um dos melhores registros de uma literatura voltada ao diálogo
com o leitor, não para oferecer-lhe modelos, princípios ou valores a serem incorporados
passivamente, mas, muito ao contrário, sugerir atitudes desautomatizadoras, que permitam
revolver camadas/crostas de condicionamentos ou a força da tradição. Não seria essa a
―revolucionária inocência‖ do poeta sentado que o escritor põe em causa com sua mágica
habilidade?
Pensando nessa função desestabilizadora da escrita com suas estratégias ficcionais,
como as criadas pelos contos de Herberto Helder, é possível entendermos melhor a
dimensão que estes alcançam, sobretudo no tocante ao papel do poeta e da literatura. A
escolha do signo ―estilo‖ como título de um dos contos pode apontar para uma chave de
sentido se considerarmos que nessa palavra se oculta outra, com a mesma etimologia e
implicações semânticas – estilete – a sugerir sentidos como ferida, retalhamento, corte,
indagação. Enfim, usado como arma ou estilete, o estilo teria a função de provocar uma
fissura no modo como o sujeito apreende a realidade, estimulando-se a uma intervenção
agressiva, criativa. ―Violência‖.
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Assim, tanto o homem que se considera louco e procura o médico para convencê-lo
de que a poesia é uma loucura magnífica quanto o poeta que fica sentado num país estranho
– Holanda – em busca de um amor sem rosto nem identidade, ambas personagens dos
contos analisados encarnam um ―estilo‖: a ex-centricidade de suas visões profanas, armadas
de um estilete precioso – a inquietação perfurante do espírito.
Referências bibliográficas:
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1977.
CORTÁZAR, Julio. Valise de cronópio. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1993.
HELDER, Herberto. Os passos em volta. 8 ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
WISNIK, José Miguel. Iluminações profanas (poetas, profetas, drogados). In: NOVAES,
Adauto (Org.) O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 283-300.
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