PROBLEMAS FILOSÓFICOS DA CONTEMPORANEIDADE A determinação da lógica hegeliana enquanto teologia especulativa e o problema hodierno da intersubjetividade Manuel Moreira da Silva - UNICENTRO Trata-se de uma consideração imanente em torno da concepção rigorosamente filosófico-especulativa pura da Teologia especulativa segundo Hegel e de suas vicissitudes histórico-sistemáticas. Esboçada entre 1816 e 1817, essa concepção parece não ter logrado êxito nem mesmo durante a vida de Hegel, que, ao não desenvolvê-la de modo explícito, deixou-a como uma espécie de herança a ser disputada ou renegada pelos seus possíveis herdeiros. Desse modo, embora corretamente apresentada na Anotação ao parágrafo 17 da Enciclopédia de 1817 como uma das três determinações fundamentais da Lógica concebida enquanto Filosofia especulativa pura, a Teologia especulativa tem sido assumida simplesmente nos limites da determinação inicial, nos limites da Lógica enquanto Ciência universal, subjetiva e primeira; com o que não se leva em conta, portanto, a tríplice determinação da Lógica mesma. Assim, consubstanciada em um uso assaz literal da metáfora segundo a qual “o conteúdo da Lógica é a apresentação de Deus como ele é em sua essência eterna antes da criação da natureza e de um espírito finito”,1 a noção de uma Teologia especulativa, no sentido da Enciclopédia de 1817, foi praticamente posta de lado. Uma das razões disso parece ser o uso inadequado que o próprio Hegel faz de tal metáfora em 1812, mas também posteriormente em 1831; quando da segunda edição de sua Ciência da Lógica, mais especificamente da Doutrina do Ser. Esta publicada postumamente, em 1832. Desse modo, se em 1812 a referida metáfora não se apresentou senão uma como ilustração didático-pedagógica da Lógica tomada como Ciência universal, subjetiva e primeira – então melhor esclarecida em 1816 e 1817 –, em 1831 a mesma terminou por fixar a compreensão até hoje vigente da Teologia especulativa como uma ciência pura e simplesmente formal. O que não é o caso da noção aludida em 1817, quando a Teologia especulativa se apresenta como resultado do desenvolvimento IX SEMANA ACADÊMICA DE 16 A 19 DE NOVEMBRO DE 2010 1Ver, WdL, I, 1812-1813, GW 11, p. 21; WdL, I, 1832, GW 21, p. 34. Neste trabalho, os textos de Hegel referidos em nota seguirão este padrão. Vejam-se as Referências bibliográficas para as informações completas. ANAIS - IX SEMANA ACADÊMICA DE FILOSOFIA UNICENTRO 2010 - ISSN 2178-9991 2 da Lógica, para além de sua primeira determinação, nas duas determinações posteriores; vale dizer, na Lógica entendida como Ciência universal-real, objetiva ou última e, portanto, como Teologia especulativa. Infelizmente, nenhuma dessas determinações é esclarecida em seu caráter intrínseco de modo suficiente pelo próprio Hegel. Em seu uso das mesmas, o filósofo parece limitar-se ao arbítrio e às circunstâncias, não sistematizando ou distinguindo tais determinações entre si e nem explicitando os elementos constituintes de cada uma, os quais são antes confundidos ou tomados um pelo outro de modo pura e simplesmente indiferente. Tal é o que se pode verificar numa passagem da Doutrina do Conceito de 1816, quando, referindo-se à determinação da Lógica enquanto Ciência pura, Hegel afirma que por um lado a Lógica deve ser considerada como anterior às ciências reais e, por outro lado, como posterior; em ambos os casos, no entanto, permanecendo como Ciência pura.2 Enquanto no primeiro caso Hegel assevera que se trata de uma determinação da Lógica como Ciência primeira, no segundo caso ele mantém firmemente que a Lógica se apresenta como uma Ciência última. Com o que se tem de reconhecer, necessariamente, que a Ciência pura aqui em questão é, a um tempo, Ciência primeira e Ciência última ou, a rigor, uma Ciência absoluta. Tais determinações, a Ciência pura de que fala a passagem acima referida e a Ciência absoluta de que Hegel fala algures, não podem assim se apresentar senão como a Teologia especulativa então aludida em 1817. Isso no sentido preciso da ciência na qual o Universal é tomado não mais em sua abstração formal ou em sua oposição real, mas como universalidade verdadeira, que assume e mantém dentro de si a riqueza real. Por isso, ao fim e ao cabo, a Teologia especulativa assim concebida teria de se mostrar rigorosamente como unidade da Lógica enquanto Ciência universal-formal, subjetiva e primeira e da Lógica enquanto Ciência universal-real, objetiva ou última. Não obstante, ao não serem desenvolvidas, as determinações da Lógica, enquanto Ciência universal-real, objetiva ou última e como Teologia especulativa, permaneceram reduzidas à Lógica enquanto Ciência primeira e, em grande parte, confundidas com esta. Assim, por seu turno, a Teologia especulativa regrediu ou reduziu-se a uma simples ciência do entendimento raciocinante ou, entre os hegelianos, a uma disciplina pura e simplesmente transcendental ou reflexiva. Com isso, não mais se levou em conta que a mesma se constitui como resultado da perfeição da Ciência universal-real, objetiva ou última e que, portanto, tem de assumir toda a riqueza do real, razão pela qual, nela, de acordo com Hegel em 1817, a universalidade lógica não é mais uma particularidade face à riqueza real, mas IX SEMANA ACADÊMICA DE 16 A 19 DE NOVEMBRO DE 2010 2 Ver, WdL, II, 1816, GW 12, p. 198. ANAIS - PROBLEMAS FILOSÓFICOS DA CONTEMPORANEIDADE UNICENTRO 2010 - ISSN 2178-9991 3 antes a contém, apresentando-se, pois, como a universalidade verdadeira. Não obstante, ainda que partissem do ponto de vista de uma Teologia especulativa circunscrita aos limites de uma Ciência primeira ou aos limites de uma Ciência última, os pós-hegelianos e mesmo os chamados pseudo-hegelianos imediatos deram contribuições inestimáveis no tocante às questões próprias da Teologia especulativa no sentido aqui em discussão. O que se verifica especialmente no caso do desenvolvimento das questões relativas a uma Teoria da Subjetividade absoluta às questões concernentes ao que hoje se designa uma Teoria da Intersubjetividade. Tal é precisamente o sentido do debate entre Rosenkranz, Leopold von Henning e Hinrichs, de um lado, e, de outro lado, Michelet. Conforme carta de Rosenkranz a Leopold von Hening, datada de 7 de abril de 1834, os primeiros defendendo a postura jacobiana de Deus como um Tu e, portanto, como um Sujeito ou uma Pessoa em relação aos sujeitos e às pessoas que os homens são (cf. ROSENKRANZ, 1994, p. 75) e o segundo defendendo o ponto de vista segundo o qual “a verdadeira doutrina de Hegel sobre a personalidade de Deus não é pois que Deus é uma pessoa ao lado de outras pessoas, tampouco, porém, [a de que] ele é a substância universal simples. [Ao contrário, é a de que] Ele é o eterno movimento do Universal que sempre se faz sujeito” (MICHELET, 1838, p. 646). Ainda de acordo com Michelet (ibid.), este é o Universal “que antes de tudo no sujeito leva à objetividade e à existência verdadeira e [que], portanto, suprassume o sujeito em seu Ser-para-si abstrato”; razão pela qual Deus não ser “Uma pessoa, mas a personalidade mesma, o [elemento] pessoal verdadeiramente único” e o “o sujeito, que ainda está em oposição à substância divina”, embora queira “ser uma pessoa particular”, “é tão somente o mal” (ibid.). Ainda segundo Michelet (ibid.), “porque Deus é a personalidade eterna, tem ele eternamente o seu outro, a natureza, deixado se produzir [a partir de si], para eternamente, como o espírito da comunidade, chegar à autoconsciência” (ibid.). O que significa, enfim, que se “este espírito existe no homem, assim não é mais o homem que vive neste Singular, mas o próprio Deus que se tornou pessoal nele” (1838, p. 646-647). Estas posições parecem dar seguimento àquelas que, em 1831, K. Conradi já desenvolvia em Selbstbewusstseyn und Offenbarung; cujo desenvolvimento, embora tomado por Michelet (1838, p. 637) nos limites de um ponto de vista apenas fenomenológico, busca levar a cabo a mediação completa do objeto [Objekt], do Sujeito e dos sujeitos [singulares]. De qualquer modo, a expensas de sua interpretação diversa da Teologia especulativa, tais autores investigam e assim antecipam um problema central da Filosofia; esse que só será assumido e tematizado em toda a sua amplitude a partir dos anos de 1970, e como tal IX SEMANA ACADÊMICA DE 16 A 19 DE NOVEMBRO DE 2010 ANAIS - PROBLEMAS FILOSÓFICOS DA CONTEMPORANEIDADE UNICENTRO 2010 - ISSN 2178-9991 4 denominado o problema da Intersubjetividade. O que não só justifica, mas antes exige a retomada e o desenvolvimento da Lógica hegeliana como Ciência universal-real, objetiva ou última e, por conseguinte, como Teologia especulativa no sentido acima delineado. IX SEMANA ACADÊMICA DE 16 A 19 DE NOVEMBRO DE 2010 ANAIS - PROBLEMAS FILOSÓFICOS DA CONTEMPORANEIDADE UNICENTRO 2010 - ISSN 2178-9991 5 Referências CONRADI, K. Selbstbewusstseyn und Offenbarung. Mainz: Kupferberg, 1831. HEGEL, G. W. F., Wissenschaft der Logik. Erster Teil: Die objektive Logik. Erster Band: Die Lehre vom Sein (1832), herausgegeben von Friedrich Hogemann und Walter Jaeschke. Hamburg: Felix Meiner, 1985 [WdL, I, 1832, GW 21]. HEGEL, G. W. F., Wissenschaft der Logik. Zweiter Band: Die subjektive Logik (1816), [die Lehre vom Begriff], herausgegeben von Friedrich Hogemann und Walter Jaeschke. Hamburg: Felix Meiner, 1985 [WdL, II, 1816, GW 12]. HEGEL, G. W. F., Wissenschaft der Logik. Erster Band: Die objektive Logik (1812/1813). [Erstes Buch: Die Lehre vom Sein (1812); zweites Buch: Die Lehre vom Wesen (1813)], herausgegeben von Friedrich Hogemann und Walter Jaeschke. Hamburg: Felix Meiner, 1978 [WdL, I, 1812-1813, GW 11]. HEGEL, G. W. F., Encyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse und andere Schriften aus der Heidelberg Zeit. Neue herausgegeben von Hermann Glockner, Stuttgart: Frommanns, 1956. [E., 1817, SW 6] IX SEMANA ACADÊMICA DE MICHELET, C. L. Geschichte der letzten Systeme, Zweiter Theil. Berlin, Duncker und Humblot, 1838. ROSENKRANZ, K. Briefe 1827 bis 1850. Herausgegeben von Joachim Butzlaff. Berlin; New York: Walter de Gruyter, 1994. 16 A 19 DE NOVEMBRO DE 2010 ANAIS - PROBLEMAS FILOSÓFICOS DA CONTEMPORANEIDADE UNICENTRO 2010 - ISSN 2178-9991