DIY: A CULTURA UNDERGROUND DO “FAÇA VOCÊ MESMO” NA SOCIEDADE EM REDE Máira Nunes, Otacílio Vaz Uninter - [email protected], [email protected] Desde o seu surgimento o rock’n roll está relacionado à cultura jovem urbana e à cultura das mídias1. Foi a partir do pós-guerra que o rock se desenvolveu enquanto produto da indústria cultural, influenciando os costumes, a moda, a música, a arte e principalmente os hábitos de consumo dessa juventude que se tornou um agente social independente, emancipando-se do velho mundo construído por seus pais. A partir da década de 1950 os jovens se estabeleceram definitivamente como atores históricos com pautas próprias, sendo o rock’n roll um dos catalizadores da cultura de juventude recém-desenvolvida. O mundo anglo-saxão (EUA e Inglaterra) tornou-se a matriz de um modelo de consumo e estilo de vida que passou a ser global. Para esses jovens, a cultura - de elite, popular, de massa, underground - passou a ser produzida a partir da inversão de valores que regiam o mundo adulto. As classes baixas urbanas, as pessoas negras e os jovens contestavam uma ordem estabelecida pelas classes altas, pelas pessoas brancas e, principalmente, pelos seus pais. (HOBSBAWN, 1995). Ao tornar-se ator social, o jovem passou a buscar formas de se libertar do modelo normativo dominante - estudos, trabalho, família – de uma vida regrada e ordenada pela prosperidade. A rápida assimilação desse descontentamento por parte de vários segmentos da juventude em todo mundo demonstrava que o rock poderia ser visto como uma resposta juvenil às pressões do modelo hegemônico. O rock criou modos de expressão que estavam longe do alcance da autoridade do mundo adulto. (JANOTTI Jr., 2003, p. 30). O rock passou a canalizar a expressão da revolta juvenil e testemunhou transformações tecnológicas que influenciaram todo o processo de produção, circulação e consumo da 1 Douglas Kellner (2001) estabeleceu o conceito de cultura das mídias, analisando de que maneira os produtos da indústria cultural passaram a constituir os principais modelos identitários a partir dos quais se constroem visões de mundo e se estabelecem modelos de si e do outro. 1 música. Um dos aspectos importantes dessa formação do mercado de rock encontra-se na cultura underground, presente desde o surgimento do rock2 e entendida aqui como manifestação de elementos comuns entre o público, os artistas e os locais ou canais onde se expressa, relacionando-se também com o campo da produção de conteúdo cultural. Neste sentido, o underground caracteriza-se por uma proposta subversiva de oposição à ordem social. Carrega em si elementos críticos da cultura e sociedade, uma vez que se opõe ao status quo e questiona a cultura massiva e mercantil e, neste sentido, aproxima-se das análises da teoria crítica dos meios de comunicação, estabelecendo uma contradição para a chamada indústria cultural. Nesta perspectiva, a produção cultural está enquadrada em padrões estabelecidos pelos interesses do mercado sendo o termo underground, portanto, cunhado a partir demarcação de um campo cultural mainstream que força e delimita um outro campo oposto, de resistência e intermediação de estruturas de mercado como as oferecidas pelos meios de comunicação de massa. O underground não significa, portanto, apenas estar fora do sistema mercadológico, mas também expressa a oposição a este esquema. (CARVALHO; NUNES, 2014). A cultura de juventude, suas subculturas e características contraculturais e/ou underground devem ser pensadas à luz de seu desenvolvimento histórico, mapeando ações de rebeldia cultural (sexo, drogas e rock’n roll), militância política e apropriações de diferentes estilos, bem como cooptação por parte da cultura dominante. Outro aspecto fundamental para o entendimento das relações entre o rock e a cultura underground é o papel desempenhado pelas mídias, sendo estas responsáveis pela forma como interpretamos nossas próprias experiências. No processo de produção e reprodução de sentidos, o surgimento da cultura DIY – Do It Yourself –, nos anos 1990, foi fundamental para a estruturação das subculturas de maneira autônoma, pois possibilitou a criação de redes sociais independentes mesmo antes do surgimento da Internet. Atualmente, cada vez mais o ethos DIY está presente nas esferas privadas e públicas, culturais e de articulação política, possibilitando um fazer crítico que assinala a integração dos processos e práticas. Sugere que práticas do “fazer" são potencialmente ligadas à reflexão 2 Segundo Janotti Jr (2003), as gravadoras independentes de música negra, existentes desde antes do surgimento do gênero, forneceram um modelo econômico que seria seguido pelo rock. Além das gravadoras havia uma rede que incluía apresentações ao vivo, execução nas rádios e comércio de discos. 2 crítica sobre aspectos do próprio processo, possibilitando o aumento da experiência tecnologicamente e digitalmente mediada das nossas vidas cotidianas, de trabalho em uma economia da informação. (RATTO; BOLER, 2014). A presente pesquisa pretende analisar historicamente de que maneira o controle de produção e divulgação realizado pelos grandes conglomerados de comunicação foi enfrentado pela cultura DIY – faça você mesmo – permitindo o desenvolvimento de ferramentas coletivas e autônomas de produção de conteúdo. Atualmente, esse processo produtivo passou a ser determinado pelas novas tecnologias, criando a chamada cultura de nicho. Desta forma, não apenas os grandes hits produzidos pela mídia mainstream, mas também os trabalhos produzidos de maneira independente encontram espaço de circulação e comercialização. As origens da cultura DIY A cultura DIY é caracterizada pela rejeição de uma cultura popular mainstream, sofisticada e super produzida. Ao propor a autonomia do “faça você mesmo” defende a ideia que você não precisa superar problemas pagando alguém para resolvê-los. O DIY afirma que você pode criar, desenvolver e adaptar produtos culturais, executando diferentes tarefas sem precisar da ajuda de um especialista. Você pode fazê-lo, e fazê-lo com mais criatividade e identidade do que se buscasse uma solução especializada e padronizada. A abordagem musical do “faça você mesmo” concentra-se na criação de música própria usando todos os recursos disponíveis Desde o início da produção musical contemporânea músicos têm criado ou improvisado seus próprios instrumentos, inclusive dando preferência ao DIY mesmo quando há possibilidade de adquirir um instrumento pronto. Os instrumentos caseiros eram baratos e acessíveis, além de permitir que novos e diferentes estilos musicais surgissem. O principal estilo musical relacionado às raízes da música DIY, na primeira metade do século XX, foi o skiffle. (SPENCER, 2008). Nos Estados Unidos a autêntica música de improviso surgiu com os negros escravizados. Trazidos nos porões de embarcações no século XVIII, sem nenhuma condição mínima de higiene, sem alimentação suficiente, dividindo um pequeno espaço com outros muitos compatriotas, deixando suas raízes, sua família e amigos, rumando para um país 3 estranho. Chegando nesse novo lugar encontraram um outro povo, uma outra língua, uma outra cultura. Trabalharam em serviços forçados como escravos durante todo o restante da vida. A saudade de casa e de sua cultura era suprida em alguns pequenos momentos de descanso, ou no próprio trabalho, com cânticos que ajudavam a passar as horas. Essa foi a realidade de milhares de africanos que entre os séculos XVII e XIX foram comercializados como escravos para o continente americano. As três Américas receberam um enorme fluxo de escravos, utilizados como a principal mão-de-obra de uma América colonial, sob domínio de algumas nações como Espanha, Portugal, França e Inglaterra. Mesmo após sua independência, as 13 colônias que deram origem aos Estados Unidos da América, continuaram com um intenso fluxo de escravos. De acordo com Berendt (1975), de 1618 a 1865, ano da abolição da escravidão, cerca de 4,3 milhões de africanos foram levados para os Estados Unidos, concentrados em sua grande maioria nas chamadas plantations de algodão na região sul. Iniciou-se então um longo processo de assimilação, apropriação e transformação entre a cultura branca européia e a cultura africana, em que os africanos tiveram que buscar adaptações, principalmente no que diz respeito à sua musicalidade. Como não lhes permitissem praticar sua música na América do Norte, passaram a cantar e tocar a música “branca” autorizada, seguindo, contudo, as regras de sua própria tradição musical. Dessa maneira foramse introduzindo elementos fundamentais da cultura ancestral da África na música afro-americana em gestação. A assimilação crescente até 1900 das ramificações da música européia fez-se seletivamente de modo a favorecer aquelas que permitissem estabelecer paralelos com as tradições africanas, e não sem deformá-las no sentido de uma maior identificação com as práticas musicais da África. (BERENDT, 1975, p. 15). Desse processo surgiram os spirituals, os cânticos cristãos dos negros, e também o blues e o jazz, resultados de uma cultura que já poderá ser chamada de afro-americana. Esses gêneros possuíam características européias e africanas, tanto em sua estrutura instrumental quanto na estrutura harmônico/melódica. Consistia em uma música rural, inserida no ambiente hostil da escravidão, com pessoas limitadas pela violência do cativeiro, procurando 4 mesmo assim formas para traduzirem seus estados de espírito, e também sua manifestação cultural. Durante o século XIX e XX não era difícil encontrar negros fabricando os seus próprios instrumentos a partir do que se encontrava por perto. É o caso das chamadas spasm bands, jug bands ou washboard bands, em que os instrumentos eram feitos utensílios de uso doméstico como jarros, tábuas de lavar roupa, vassouras, etc. O estilo chamado skiffle, típico da região de Nova Orleans - e que durante os anos 1950 chegou também na Europa - utilizava muito instrumentos desse tipo. A música popular afro-americana gerou, ao longo do século XX, uma série de matrizes e suas consequentes ramificações, sendo o jazz e o blues considerados como base para outros estilos importantes. Fruto das tradições musicais africanas, as worksongs, músicas de trabalho que os negros norte americanos entoavam nas plantações de algodão no sul, criam uma das principais matrizes da música norte americana. O blues possui características muito peculiares, que tornam o estilo facilmente perceptível: O ouvido formado nas tradições musicais da Europa percebe essa entonação como “vacilante”, o que significa que ele percebe os intervalos característicos do blues como tonalidades menores; ora, em geral atribui-se a essa tonalidade um valor expressivo do gênero “plangente”, “melancólico”, “triste”, “sentimental”. Mas para o afro-americano, em contrapartida, essas blue notes, que remontam às práticas musicais da África, não representam estados de espírito melancólicos. Ele as utiliza, pelo contrário, para produzir uma expressão enfática, indicativa de uma grande perturbação, de uma grande emoção. (BERENDT, 1975, p. 34) Essa diferença de leitura do blues em relação a brancos e negros é de extrema importância para compreender como essas músicas atuaram/atuam no imaginário da cultura afro-americana em relação a outras culturas. O blues, juntamente com a música country, gerou a partir da década de 1950 alguns produtos musicais, entre eles o rock’n roll, uma mistura do rockabilly, rápido, pulsante, com estruturas melódicas e harmônicas vindas do blues. O rock ficou vinculado a uma juventude 5 vinda do período pós Segunda Guerra Mundial e que encontrou no som, vindo dos negros e dos crioulos3 do sul dos Estados Unidos, uma voz que a representasse. Muitos músicos dos Estados Unidos e da Europa, que começam a carreira nos anos 1950, foram fortemente influenciados pelo estilo Skiffle. Nos anos 20, na Inglaterra, o skiffle referia-se a substituição dos instrumentos tradicionais do jazz por instrumentos improvisados, como caixotes e tábuas de lavar roupa. Já nos anos 50 o skiffle ganhou popularidade entre os jovens britânicos que desenvolveram um novo estilo de música que combinava o folk, jazz, country e blues e que podia ser ouvida nos cafés, clubes e casas de shows de todo o país. Os principais artistas do estilo chegaram a se apresentar na recém-criada televisão e influenciaram John Lennon a criar a banda de skiffle The Quarry Men, que daria origem posteriormente aos The Beatles. (SPENCER, 2008). A filosofia do “faça você mesmo” sempre esteve presente na cultura do rock, mas foi o movimento punk que propôs com maior ênfase o rompimento com a cultura mainstream. O punk apresentava uma mensagem simples, a mesma que foi levada em diferentes gerações do rock: rejeição das regras pré-existentes e afirmação da necessidade de mudança. Retomou muitos dos elementos presentes no início do rock, como a celebração da rebeldia dos jovens, incluindo a ideia de que não deveria haver elitismo na música. Assim como o skiffle, o punk constituiu-se como um estilo simples, mas poderoso, e mesmo sendo mais agressivo, sua energia e força mantinha a atenção dos fãs. O rock produzido nos anos 60, mesmo com a força da contracultura, acabou se afastando do DIY. Novos estilos mais elaborados, como o rock progressivo, e o fato de que mesmo bandas tradicionalmente rebeldes como Roliing Stones e The Who tornaram-se distantes das pessoas comuns fez com que, nos anos 70, muitos jovens buscassem uma música que falasse de dua própria realidade. Os jovens radicais dos anos 50 e 60 eram adultos agora, não estavam mais interessados em desafiar o sistema. O punk representava, nesse momento, um ataque direto à indústria fonográfica e ao virtuosismo, resgatando a ideia de que qualquer pessoa poderia formar uma banda e compor música de três acordes. (SPENCER, 2008). 3 Os filhos de escravos com brancos de origem francesa, sendo sua maioria do estado norte americano da Luisiana. Termo criado a partir do século XVIII. 6 O movimento punk incorporou muitas estratégias do “faça você mesmo” que já estavam presentes, como produzir música de forma independente, gravar seus próprios discos, organizar shows e elaborar formas de divulgação e difusão autênticas e autônomas, como os fanzines. Tornou-se um estilo musical, uma forma de comportamento jovem, uma estética da moda. Outro aspecto importante da cultura punk foi a participação feminina. Iniciada nos anos 70, com inspiração em artistas como Debbie Harry, Chrissie Hynde, Joan Jett, entre outras, a presença de garotas na culutra DIY eclodiu com com o movimento Riot Girrrl , iniciado nos Estados Unidos, na década de 90. A presença feminina no cenário rock sempre existiu, mas majoritariamente como público consumidor. O riot girrrl possibilitou que as garotas participassem como artistas e também como produtoras culturais, extrapolando os limites do consumo de músic para a própria articulação política e identitária. (GOTTLIEB; WOLD, 1993). Ao rejeitar estilos e formatos mainstream, que representariam a adequação a um modelo comercial de feminilidade, as riot girrrls criaram redes de relacionamento que reforçavam a crítica ao padrão de uma cultura jovem branca e de classe média que haviam herdado. Além disso, criticavam as limitações de comportamento impostas pelo patriarcado ao seu direito de ocupação do espaço público, de uso do corpo, de fazer rock. O próprio termo riot girrrl passou a se relacionar tanto ao estilo musical, agressivo e DIY, quanto ao discurso político feminista, sendo resgatado nas décadas posteriores pela militância ciberfeminista. 7 REFERÊNCIAS BANDEIRA, Messias Guimarães. O underground na era digital: a música nas trincheiras do ciberespaço. In: INTERCOM. XXIV Congresso Brasileiro da Comunicação – Campo Grande /MS – setembro 2001. Disponível em: <http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/75767880051012233514623454319002702124.pd f>. Acesso em: 10/02/2015. BERENDT, Joachim-Ernst. História do Jazz. Abril Cultural: Rio de Janeiro, 1975. CARDOSO FILHO, Jorge; JANOTTI JÚNIOR, Jeder. A música popular massiva, o mainstream e o underground trajetórias e caminhos da música na cultura midiática. INTERCOM. XXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – UnB – 6 a 9 de setembro de 2006. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2006/resumos/R1409-1.pdf> Acesso em: 10/02/2015. CARVALHO, Guilherme; NUNES, Máira. Underground e Ciberespaço: uma leitura atual para estudos da Comunicação. Revista Uninter de Comunicação, v.2, n.3, 2014, p. 201-216. Disponível em: <http://uninter.com/revistacomunicacao/index.php/revistacomunicacao/article/view/554/315> . Acesso em: 02/02/2015. FRITH, Simon. GOFFMAN, Ken [a.k.a. R.U. Sirius]; JOY, Dan. Counterculture through the ages: from Abraham to acid house. New York: Village Books, 2005. GOTTLIEB, Joanne; WOLD, Gayle. Smells like Teen Spirit - Riot Grrrls, Revolution and Women in Independent Rock. Critical Matrix 7, n. 2, 1993, p. 11-44. Disponível em: <http://digitalhistory.concordia.ca/courses/ historyandmusic/wp-content/uploads/riotgrrrl.pdf>. Acesso em: 10/03/2015. HEBIDGE, Dck. Subculture: the meaning of style. New York: Routledge, 1988. HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos. O breve século XX: 1914-1991. SP: Companhia das Letras, 1995. JANOTTI Jr., Jeder. Aumenta que isso aí é rock and roll: mídia, gênero musical e identidade. Rio de Janeiro: E-Papers Serviços Editoriais, 2003. KELLNER, Douglas. A cultura da mídia – estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. Bauru: EDUSC, 2001. 8 MAZZOLENI, Florent. As Raízes do Rock. Companhia Editora Nacional: São Paulo, 2012. RATTO, Matt; BOLER, Megan (edits.). DIY citizenship: critical making and social media. Cambridge: MIT Press, 2014. SPENCER, Amy. DIY the rise of lo-fi culture. London: Marion Boyars, 2008. 9