Diálogo islâmico-cristão

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2017
Diálogo islâmico-cristão
D. Miguel Ángel Ayuso Guixot, MCCJ
Segretario do Pontificio Consiglio per il Dialogo Interreligioso
O Islam com o qual a Igreja deve se confrontar atualmente, seja como Igreja universal,
seja como Igrejas Particulares, é muito diferente daquele que os Padres Conciliares tinham diante
de si, diferente também do momento da instituição pelo Papa Paulo VI do Secretariado para os
Não-Cristãos (19 de maio de 1964), hoje Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso
(PCDI) e da publicação da Declaração conciliar Nostra Aetate (28 de outubro de 1965). Embora
diante de uma realidade diversa, permanece sempre válido aquilo que a Nostra Aetate indica a
respeito dos muçulmanos.
“A Igreja olha também com estima para os muçulmanos. Adoram eles o Deus Único, vivo
e subsistente, misericordioso e omnipotente, criador do céu e da terra (5), que falou aos homens
e a cujos decretos, mesmo ocultos, procuram submeter-se de todo o coração, como a Deus se
submeteu Abraão, que a fé islâmica de bom grado evoca. Embora sem o reconhecerem como
Deus, veneram Jesus como profeta, e honram Maria, sua mãe virginal, à qual por vezes invocam
devotamente. Esperam pelo dia do juízo, no qual Deus remunerará todos os homens, uma vez
ressuscitados. Têm, por isso, em apreço a vida moral e prestam culto a Deus, sobretudo com a
oração, a esmola e o jejum.
E se é verdade que, no decurso dos séculos, surgiram entre cristãos e muçulmanos não
poucas discórdias e ódios, este sagrado Concílio exorta todos a que, esquecendo o passado,
sinceramente se exercitem na compreensão mútua e juntos defendam e promovam a justiça
social, os bens morais e a paz e liberdade para todos os homens”. (Nostra Aetate, nº 3)
O Dicastério que Paulo VI e, com ele, os Padres Conciliares desejaram instituir para
promover relações de respeito, mútuo conhecimento, amizade e colaboração com pessoas e
comunidades religiosas não cristãs, tem sido ativo de maneira particular, no diálogo com os
muçulmanos, e isto ocorre por motivos teológicos, espirituais, histórico e até mesmo práticos,
em virtude da presença minoritária dos cristãos em países predominantemente muçulmanos, e
também de importantes minorias islâmicas nos países de tradição cristã. Tanto é assim que, em
1974, o Papa Paulo VI criou a Comissão para as Relações Religiosas com os muçulmanos,
como organismo separado, mas ligado ao Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso,
organismo que tem a tarefa de estudar e promover, em vários aspectos, as Relações Religiosas
entre cristãos e muçulmanos.
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Com o passar dos anos, temos assistido a notáveis transformações e mudanças no mundo
muçulmano. Apresento aqui algumas dessas transformações, sem a pretensão de ser exaustivo:
-
O fenômeno do "despertar islâmico", nos anos 70, causado principalmente pela frustração
dos árabes na derrota durante a guerra com Israel, conhecida como a "Guerra dos Seis
Dias";
-
A Revolução Islâmica no Irã (1979), com a chegada ao poder do aiatolá Khomeini e a
intenção de exportar a revolução;
-
O ataque às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001, com a consequente invasão do
Afeganistão e a derrubada do regime talibã;
-
A inflamada reação no mundo islâmico às caricaturas de Maomé publicadas 30 de
setembro de 2005 pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten (e depois pelo jornal
norueguês Magazinet, de inspiração cristã protestante);
-
A lectio magistralis de Bento XVI em Ratisbona, considerada ofensiva por muitas
personalidades e instituições muçulmanas, devido a uma má interpretação do que desejava
dizer;
-
A invasão do Iraque por uma coalizão internacional, percebida no mundo muçulmano
como uma agressão ocidental e dos cristãos contra o Islã e os muçulmanos;
-
A chegada ao poder da Irmandade Muçulmana, isto é, o Islã político, na Tunísia, no Egito
e no Marrocos, fato que causou a afirmação e a expansão da Irmandade Muçulmana, os
salafistas e jihadistas 1 em várias regiões;
-
A chamada "primavera árabe" que, mesmo com todas as suas contradições, poderia
representar um início de "secularização" das sociedades muçulmanas e que, como já
vimos, acabaram resultando em tragédia, também por causa da cegueira do Ocidente.
Deve-se pensar na revolução síria contra o regime de Bashar al-Assad terminou em uma
guerra civil, que já perdura por mais de cinco anos, de grande complexidade, resultando
na desestabilização de todo o Oriente Médio e o terrível fenômeno dos refugiados;
-
O jihadismo internacional, formado por combatentes islâmicos que se deslocam de uma
frente para outra, conforme a necessidade: russa do Cáucaso, especialmente Chechênia,
Líbia, Síria, Mali, para não mencionar os movimentos violentos como o Taliban do
Afeganistão o Shabab da Somália, Boko Haram na Nigéria, etc.;
-
Mas, acima de tudo, a criação do "estado islâmico" (ISIS ou DAESH), que abriu uma
página nova e perigosa da nossa história recente com todas as suas consequências
negativas, o que levou o Papa Francisco em várias ocasiões a se referir a uma "terceira
guerra mundial travada em pedaços";
1
Salafismo é um movimento ortodoxo ultraconservador dentro do islamismo sunita, cuja doutrina apresenta abordagem
fundamentalista do Islã, buscando imitar Maomé e seus primeiros seguidores, tal qual se viveu no século VII. Apoiam a
aplicação da sharia. O movimento é frequentemente dividido em três categorias: o maior grupo são os puristas, que evitam a
política; o segundo maior grupo são os ativistas, que se envolvem na política; o menor grupo é o dos jihadistas, atualmente
mais ligados à violência (NT).
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-
Além disso, o "mundo muçulmano” é grandemente dividido hoje no interior e em
contraste com o exterior. A clássica divisão e contraposição entre sunitas (cerca de 85%)
e xiitas (cerca de 15%) tem piorado, com implicações geo-políticas. O Irã, a principal país
do xiismo, exerce uma forte influência sobre os países com populações xiitas
significativas, tais como Iraque, Kuwait, Bahrein, Iêmen, Líbano, Faixa de Gaza e na
Palestina, através do Hamas. Mesmo a Arábia Saudita, o país sunita atualmente mais
influente, graças aos lugares santos do Islã e seus recursos petrolíferos, tem uma minoria
xiita significativa;
-
Quanto ao Egito, que goza de influência no mundo islâmico, e graças à antiquíssima
instituição de Al-Azhar, encontra-se imerso em uma fase de profunda transformação, que
ainda precisa ser solidificada. A retomada do diálogo entre a Santa Sé e Al-Azhar deve
contribuir para isso, mas, acima de tudo, para promover a paz em nível global em vista do
benefício da humanidade.
Todos estes elementos do quebra-cabeça resultam evidentemente na delicada missão de
promover o diálogo islâmico-cristão em um espírito de respeito recíproco e de amizade em favor
da paz, como tem proposto o Papa Francisco.
Encontramo-nos, portanto, de frente a uma realidade particularmente complexa, dado que
o termo “Islam” designa, ao mesmo tempo, religião, sociedade e estado, justapondo as esferas
pública e privada em uma única e grande comunidade, a Umma,2 na qual se reconhecem quase
dois bilhões de muçulmanos. Trata-se de uma entidade heterogênea, mas unida na ideia de
conquista do mundo, o qual, segundo esta ideia, deve ser islamizado.
Um aspecto importante para se ter presente no diálogo islâmico-cristão é o terminológico
que envolve a esfera religiosa. Trata-se, de fato, de ter as ideias claras sobre o uso de alguns
termos que não possuem o mesmo significado para os cristãos e para os muçulmanos.
Não se pode de fato dizer que o Islam reconhece Jesus Cristo. O Islam reconhece o Jesus
da história, o profeta, mas não o Cristo Senhor da manhã da Páscoa. Não devemos nunca chamar
Maomé de “profeta”. O último profeta, para nós cristãos, é João Batista. Maria é certamente a
mãe virginal deste Jesus, mas não participa em nada naquilo que, para nós cristãos, são a
encarnação e a redenção. Os muçulmanos falam muitas vezes das três religiões do livro. No
entanto, nós, cristãos, não somos uma religião de um livro, mas de um acontecimento: Cristo
ressuscitado é o evento.
Podemos individuar alguns problemas de fundo nos muçulmanos:
-
A interpretação dos textos considerados sagrados,
-
Os direitos humanos,
-
O estatuto da mulher,
2
Umma é um termo que no islão se refere à comunidade constituída por todos os muçulmanos do mundo, unida pela crença
em Alá, no profeta Maomé, nos profetas que o antecederam, nos anjos, na chegada do dia do Juízo Final e na predestinação
divina. É irrelevante a raça, etnia, língua, género e posição social dos seus membros. Todo o muçulmano deve velar pelo bemestar dos integrantes da Umma, sendo estes muçulmanos. (NT)
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-
A liberdade religiosa,
-
A violência,
-
A relação com a modernidade e com o ocidente.
Em termos de diálogo islâmico-cristão os problemas acima mencionados podem, no
entanto, também representar áreas a abordar durante os colóquios ou reuniões. É claro que a
contribuição que nós cristãos podemos dar aos muçulmanos não pode ter a pretensão de lhes
dizer o que eles devam fazer e pensar. No entanto, enquanto pessoas de diálogo, podemos
oferecer, de modo desinteressado e amigável, ocasiões de encontro e de reflexão, as quais podem
se revelar úteis para um "diálogo intra-religioso", ou seja, entre os próprios muçulmanos. Em
suma, podemos ser os suscitadores do diálogo também ao interno de outras comunidades
religiosas, apoiando assim aqueles muçulmanos que abertamente se distanciam da violência
fundamentalista, que não reconhecem a imagem do Islã proposta pelos terroristas e que, em
consequência, sofrem por causa da violência e da guerra. Não nos esqueçamos de que a maioria
das vítimas desta guerra terrorista são muçulmanos.
No diálogo islâmico-cristão, existem duas frentes pelas quais devemos lutar juntos:
- O empenho para garantir a segurança, da parte dos poderes públicos
- Uma resistência de tipo cultural e ideológico, no campo educativo. Talvez a educação,
a escola e a universidade sejam verdadeiramente as chaves para um amanhã mais
pacífico.
Nos séculos passados, as mudanças culturais entre o judaísmo e o helenismo, entre o
mundo romano, o germânico e o mundo eslavo, como também entre o mundo árabe e o mundo
europeu fecundaram a cultura e favoreceram ciência e civilização. Por que não deveria ser
possível também em nossos dias, neste mundo onde é fácil se comunicar, tentar novamente uma
operação de hibridização cultural, favorecendo o intercâmbio de docentes e estudantes nas várias
disciplinas acadêmicas, sobretudo as humanísticas?
O diálogo, que se baseia na pertença dos cristãos à humanidade comum e na abertura
natural de toda pessoa à dimensão religiosa, deve também respeitar a liberdade e a dignidade de
cada pessoa humana.
Também se teoricamente todos, cristãos e muçulmanos, estamos de acordo para afirmar
que pregamos a fraternidade e condenamos a violência, devemos, deste modo, reconhecer que
sérias dificuldades obstaculizam um diálogo sereno e eficaz, para além da violência terrorista.
Penso particularmente em:
-
A impossibilidade de se convencer um muçulmano do direito de mudar de religião ou
de não ter religião, seguindo a própria consciência.
-
O fato de que, em uma sociedade muçulmana, os não muçulmanos são sempre
considerados cidadãos de segunda classe.
-
A proibição, na Arábia Saudita, dos cristãos possuírem um lugar de culto.
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Ao falar em tais circunstâncias contraditórias, afirmamos que a coexistência entre cristãos e
muçulmanos é, no entanto, possível. Muitas vezes, diversos problemas se devem à ignorância de uma
parte e de outra. E desconhecimento gera medo. Para viver juntos, é necessário olhar com estima para
quem é diferente de nós, com curiosidade benevolente e com o desejo de caminhar juntos.
A presença maciça e visível dos muçulmanos nas nossas sociedades pode ser providencial:
dificuldades, decepções, tragédias de ontem e hoje nos levam à oração e ao testemunho. A partir deste
diálogo entre crentes, devemos tirar a sabedoria necessária para abrir novas estradas mais razoáveis e
mais corajosas.
A título de conclusão e, apesar da difícil situação internacional, estou convencido de que temos
de continuar a promover o diálogo com os muçulmanos, tendo em conta que Jesus Cristo é o único
mediador da salvação (1 Tim 2,5), que Deus quer todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno
conhecimento da verdade (1 Tim 2,4). De fato, é exatamente nesse espaço entre essas duas declarações
que se encontra a teologia cristã do diálogo inter-religioso. Segue-se que:
1) Nenhuma exclusão (extra ecclesia nulla salus)
2) Nenhuma inclusão. Não se trata, portanto, de anexar os outros
3) Nenhum relativismo
4) Nenhuma oposição entre diálogo e anúncio
Para concluir, recordo que o diálogo que o Papa Francisco propõe, amizade e respeito recíproco,
tem suas raízes no reconhecimento da dignidade humana de cada pessoa. Portanto, somos chamados a
construir pontes e não muros, a olhar com misericórdia para a vida dos outros, a ter compaixão do pobre,
a trabalhar em conjunto para o bem da nossa casa comum, que é a Criação. A perspectiva, então, e o
propósito do diálogo, é que, graças à colaboração autêntica entre crentes, trabalha-se para contribuir ao
bem de todos, lutando contra as muitas injustiças que ainda assolam este mundo e condenando toda forma
de violência.
Desejo aqui citar o que disse o muçulmano Mohamed El-Sammak, por ocasião do recente
encontro de Oração pela Paz, que aconteceu em Assis, em setembro passado. Entre outros pontos, ele
afirmou: “O Islam não mudou. O texto corânico e os Hadith (os ditos do Profeta) são claros. (...) O que
mudou é que um grupo de extremistas vingativos e desesperados sequestraram o Islã e o estão usando
como instrumento de vingança (...). Por esta razão, nós, os muçulmanos, entendemos que devemos
libertar a nossa religião a partir deste "sequestro" e reorganizar o Islã a partir de dentro (...). Abordar a
questão do extremismo religioso é um dever acima de tudo dos muçulmanos (...). S. S. Papa Francisco
provou ser um líder espiritual para toda a humanidade, quando afirmou que não existem religiões
criminosas, mas existem criminosos em todas as religiões. "
Por fim, concluo com as palavras do Papa Francisco dirigidas à comunidade muçulmana da
República Centro-Africana em 30 de novembro de 2015: “Entre cristãos e muçulmanos, somos irmãos.
Devemos, portanto, considerar-nos como tal, comportar-nos como tal. (...) Por isso, devemos permanecer
unidos, para que cesse toda e qualquer ação que, de um lado e do outro, desfigura o Rosto de Deus e, no
fundo, visa defender, por todos os meios, interesses particulares em detrimento do bem comum. Juntos,
digamos não ao ódio, não à vingança, não à violência, especialmente aquela que é perpetrada em nome
duma religião ou de Deus. Deus é paz, Deus salam.”
Obrigado pela cortês atenção.
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