O COMPOSITOR PLANEJA, A MÚSICA RI"... REFLEXÕES SOBRE INTUIÇÃO E

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Anais do VIII Fórum de Pesquisa Científica em Arte.
Curitiba: ArtEmbap, 2011. ISSN 1809-2616
“O COMPOSITOR PLANEJA, A MÚSICA RI"...
REFLEXÕES SOBRE INTUIÇÃO E RAZÃO NA CRIAÇÃO MUSICAL
Felipe de Almeida Ribeiro1
[email protected]
Resumo: Este artigo retrabalha o capítulo introdutório de minha tese de Doutorado em
Composição Musical (Ph.D.) pela State University of New York at Buffalo (Estados-Unidos).
Apresentarei reflexões poéticas a respeito de criatividade, intuição e razão na composição
musical, trabalhando com ideias e conceitos poéticos encontrados na obra musical e reflexões
filosóficas de Cage, Boulez, Feldman e Stockhausen. Utilizarei como exemplos obras de minha
autoria com diferentes formações instrumentais.
Palavras-chave: Poética musical; Intuição; Criatividade.
Abstract: This article results from the first chapter of my Ph.D. thesis, earned at the State
University of New York at Buffalo. In resonance with the poetic ideas found in Cage, Boulez,
Feldman, and Stockhausen's writings, I will expose thoughts on creativity, intuition, and reason
in musical composition. As a means of illustration, I will use my works written for different
instrumental forces.
Keywords: Musical poetics; Intuition; Creativity.
INTRODUÇÃO
“O compositor planeja, a música ri”, ou no original em inglês “the composer makes
plans, music laughs”, é uma célebre frase do compositor norte-americano Morton Feldman
(FELDMAN, p. 111). Essa crítica ataca, essencialmente, o excesso de confiança depositada por
muitos compositores no planejamento pré-composicional de uma obra musical. Ela aponta,
também, mesmo que indiretamente, à necessidade de o compositor buscar um equilíbrio na
relação intuição-razão dentro do processo criativo musical.
Hoje, na academia musical, fala-se muito em harmonia, orquestração, regência,
contraponto, escalas etc., mas pouco daquilo que escapa dos modelos científicos e que
justamente diferencia as artes das ciências duras. É difícil encontrar alguma disciplina na grade
curricular de cursos de graduação em música que aborde temas subjetivos ou mesmo com
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Ph.D. State University of New York at Buffalo.
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explicações em aberto. Para Stockhausen, entretanto, a criatividade [artística] entende o
‘novo’ e justamente o ‘desconhecido’ como elementos catalisadores essenciais para sua
construção: “Uma pessoa criativa fica sempre estimulada quando acontece algo que não
consegue explicar” (STOCKHAUSEN p. 36). Podemos complementar dizendo que a criatividade
depende também do mutualismo entre intuição e razão.
Nos próximos parágrafos, desenvolvo reflexões de cunho poético sobre temas como
intuição, razão, criatividade e verdade em arte, buscando contribuir para uma abertura nessa
área tão volátil e abstrata no âmbito da composição musical. Na segunda parte, ilustrarei esses
pensamentos com exemplos extraídos de minhas obras musicais.
INTUIÇÃO E RAZÃO
Como compositor, estou constantemente buscando um diálogo inteligente entre
intuição e razão, um entendimento maleável que reconsidere persistentemente suas
interconexões. Portanto, acredito que o processo de criação artístico centrado apenas em
intuição ou razão tende ao fracasso. Obras baseadas puramente em um desses dois polos são
praticamente inexistentes: as composições sempre apresentam essas duas características em
diferentes níveis e proporções. O que à primeira vista parecem ser dois conceitos opostos, são
na verdade forças complementares.
Geralmente, ao se referirem popularmente a ‘mestres’ ou ‘clássicos’ da música, as
pessoas fazem alusão, mesmo que inconscientemente, à dicotomia intuição-razão. Por
exemplo: para muitos, Karlheinz Stockhausen (1928-2007), Ludwig van Beethoven (1770-1827)
ou Heitor Villa-Lobos (1887-1959), são marcos na história da música. Podemos pensar neles
como indivíduos que buscaram desenvolver essa tensão entre intuição e razão dentro de suas
próprias linguagens musicais. É, portanto, um engano identificá-los como ícones na história da
música apenas porque utilizaram em determinadas peças a série Fibonacci, um jet-whistle ou
uma fuga dupla. Eles foram compositores únicos porque alcançaram um grau de autenticidade
no entendimento das técnicas em geral, por meio de suas próprias impressões, des leurs
propres timbres. Parece-me que muitos no meio artístico os reconhecem mais pelas suas
conquistas técnicas do que pelas suas capacidades espirituais e intelectuais.
Na academia musical, estudantes são apresentados a algumas dessas técnicas como
modelo: técnicas de execução e produção sonora, formas musicais, escalas sintéticas, estilos
contrapontísticos etc. Em um determinado estágio faz parte de seus processos de aprendizado
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sintetizar ou até quebrar com os paradigmas, para então desenvolverem uma perspectiva
nova. É nesse momento que o indivíduo cria o seu próprio entendimento diante de
determinadas técnicas, sua própria impressão, seu estilo. É necessário enfatizar a importância
da mediação dessas duas forças, pois é difícil imaginar algum processo criativo baseado
exclusivamente em intuição ou razão apenas.
Analisemos um grupo de jazz, como exemplo. Mesmo que o repertório escolhido dê
abertura à improvisação, em vários momentos os instrumentistas fazem uso de
procedimentos metodológicos: forma, instrumentação, digitação, escalas, técnicas de
respiração etc. Imaginemos agora uma situação oposta: solicitar a alguém, sem treinamento
musical, compor um concerto grosso barroco. Este indivíduo não terá, provavelmente, as
habilidades técnicas e intelectuais para completar esta tarefa, porém isso não quer dizer que
essa pessoa não seja criativa, ou mais especificamente, que não possua pensamentos musicais
intuitivos.
Inversamente, reforço a ideia de que música puramente baseada em razão é
inexistente. Em algum estágio, alguém deverá tomar decisões baseadas em algum tipo de
arbitrariedade ou procedimento aleatório – isso não define necessariamente intuição. Lejaren
Hiller (1924-1994), por exemplo, "compôs" (ou "lançou") em 1956 a Illiac Suite, a primeira
peça musical composta por um computador por meio de procedimentos de inteligência
artificial. Por mais lógicas que sejam as decisões composicionais tomadas pela máquina
(sistema binário), há uma série de diretrizes criadas pelo compositor/programador que revela
uma determinada estética, seja ela minimalista, serialista, roqueira ou outra qualquer.
Esse conflito de conceitos (intuição e razão) é necessário para o processo de criação
artística. Historicamente falando, Jean-Jacques Nattiez (1945) conclui que mesmo dois
compositores tidos como radicais em determinados períodos de suas carreiras, como Cage no
acaso em música (intuição) e Boulez no serialismo integral (razão), devem parcialmente um ao
outro o mérito de suas criações.
Quando Henry Cowell perguntou a Cage o que ele devia a Boulez, ele replicou com
palavras aparentemente surpreendentes: "Boulez me influenciou com seu conceito
de mobilidade". Assim, de certa forma, Boulez deve o serialismo integral a Cage, e
Cage o conceito de acaso a Boulez?! (NATTIEZ 1993, p. 15).
É importante esclarecer que Cage emprestou o conceito de mobile form das esculturas
de Alexander Calder (1898-1976), para explicar seus conceitos de mobilidade e, mais
especificamente, do acaso na organização formal musical. Boulez, por sua vez, mostra-se
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resistente à ideia de procedimentos aleatórios na música – apesar de fazer uso deste conceito
em peças como Domaines (1968-1969) e Piano Sonata III (1955-1957). Ele afirma que
procedimentos puramente movidos pelo acaso tendem a um afastamento da expressividade e
do controle humano. Boulez, que aparentemente se referia a John Cage, disse:
No momento, compositores contemporâneos parecem constantemente
preocupados, para não dizer obcecados, pelo acaso... A mais elementar forma de
transformação pelo acaso caminha junto com uma filosofia influenciada pelo
orientalismo, que aborda uma fraqueza básica das técnicas de composição... Esse
experimento com o acaso eu chamo de descuido (BOULEZ in NATTIEZ, 1990, p. 18).
Cage, por sua vez, ataca Boulez por este não reconhecer que, mesmo sendo um
vanguardista do serialismo, fez uso de procedimentos aleatórios em suas próprias
composições.
Após repetidamente ter dito que não se podia fazer aquilo que eu me propus a fazer,
Boulez descobriu aquele livro do Mallarmé. Era um procedimento de acaso até o
último detalhe. Comigo, o princípio tinha que ser rejeitado de imediato; com
Mallarmé tornou-se de repente aceitável para ele. Agora Boulez estava promovendo
o acaso, desde que fosse o seu tipo de acaso (CAGE in NATTIEZ, 1990, p. 18).
Com base nas correspondências acima entre Boulez e Cage, podemos perceber a
complexidade da arte e do processo de criatividade, especialmente se levarmos em conta sua
essência orgânica e flexível, quando se trata da interação entre intuição e razão. É um conceito
impossível de ser reduzido a uma fórmula só, pois justamente por ser flexível, aceita múltiplas
verdades: Verdi, Stockhausen, Beatles, Hermeto Pascal, apenas para citar alguns exemplos. E é
justamente esse ponto que cria um atrito entre uma prática estritamente acadêmica e o
processo das artes. Em arte, aceitamos tanto a coexistência temporal quanto a coexistência
estilística. Podemos apreciar Palestrina (1525-1594) e Steve Reich (1936) sem nenhum
empecilho evolutivo – são quase 350 anos que separam esses dois artistas. Adicionalmente,
podemos também apreciar a música dos contemporâneos Boulez e Cage sem restrições
estilísticas. Ao contrário de algumas áreas de conhecimento, não buscamos por uma evolução.
Trabalhamos sem a substituição: aceitamos Bach, Stockhausen, Cláudio Santoro etc.
É importante observar também como a música tem necessidade de beber em outras
águas: pintura, poesia, literatura, filosofia, astronomia, eletrônica, espiritualidade, enfim, na
vida. Como consequência, um conceito hoje muito utilizado pelos críticos é o de expansão das
categorias: escultura sonora, piano estendido etc. São maneiras de descrever objetos de
estudo que apresentam em sua essência os conceitos de expansão e abertura. As 'fórmulas' ou
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'conceitos' musicais, portanto, são limitadas apenas ao intelecto do artista. Em arte, podemos
buscar, como nas palavras de Fernando Pessoa, ser capazes de "saber pensar com as emoções
e sentir com o pensamento; não desejar muito senão com a imaginação" (PESSOA, 2006, p.
151).
CRIATIVIDADE E VERDADE EM ARTE
Por causa de sua natureza complexa, a criatividade não pode ser desconstruída em um
modelo único e imutável. Se analisarmos o repertório musical, perceberemos diferentes
compositores com diferentes tendências. Por exemplo, Boulez e Feldman podem ser vistos
como opostos se consideradas as perspectivas de intuição e razão. O próprio Morton Feldman
concorda com este posicionamento: “Boulez, que é tudo o que eu não quero que a arte seja…
Boulez, que uma vez disse em um artigo que ele não está interessado em como uma peça soa,
apenas como foi feita” (FELDMAN, 2000, p. 33).
Como afirmado anteriormente, arte – diferentemente da ciência dura – não pode ser
lida como uma verdade apenas. Verdade em arte não é adequação. Ela aceita, por exemplo,
Mozart e Lachenmann, Cage e Boulez, Matisse e Mondrian. Hoje, por exemplo, ouvem-se em
Paris concertos que intercalam obras de Bach e Boulez. A arte transcende o tempo e aceita
múltiplas verdades, as verdades dentro de cada artista. É importante afirmar que não estamos
aqui em busca de um modelo ideal para as artes, e sim de uma libertação da ideia de modelo,
daquilo que muitas vezes é defendido em algumas academias. Cada obra possui seu próprio
mundo, seu próprio idioma, suas próprias regras. Ela respeita apenas as leis do artista, as leis
do indivíduo, as leis embutidas dentro de sua essência. Cada obra artística apresenta uma
perspectiva, uma verdade ou, nas palavras de Jean-Luc Godard, uma exceção:
Cultura é a regra. E arte a exceção. Todos falam a regra: cigarro, computador,
camisetas, TV, turismo, guerra. Ninguém fala a exceção. Ela não é dita, é escrita:
Flaubert, Dostoyevski. É composta: Gershwin, Mozart. É pintada: Cézanne, Vermeer.
É filmada: Antonioni, Vigo. Ou é vivida, e se torna a arte de viver: Srebenica, Mostar,
Sarajevo. A regra quer a morte da exceção (GODARD, 1993, Je vous salue, Sarajevo)
A verdade na arte deve ser vista como algo existente em cada obra de arte sozinha,
isto é, “cada obra deve ensinar o ouvinte como ouvi-la: o que interessa, o que não interessa, o
que está em jogo” (CZERNOWIN p. 3). Um som nunca está errado, mas uma música sim. Na
ciência, se desejo saber a massa de um objeto em gramas, existe uma resposta ideal para isto.
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Porém, tal procedimento não faz sentido em se tratando de poéticas artísticas. Não há ideal
universal a ser alcançado em arte, então não deveríamos ter expectativas do que a arte
deveria ou não ser. Há apenas o ideal do artista e o ideal da obra de arte. Aviso que não
estamos aqui tratando da questão da recepção da obra, ou seja, de que uma obra só é
realizada quando ouvida. Porém, podemos considerar o compositor durante o processo
criativo como o primeiro receptor da obra criada. Como é impossível separá-los, o próprio
conceito de recepção pode ser embutido no processo composicional.
REFLEXÕES SOBRE POÉTICA
Para ilustrar as reflexões da primeira parte deste texto, descreverei meus sentimentos
e pensamentos por meio de trechos selecionados de quatro obras musicais de minha autoria.
A análise a seguir é de cunho estético e visa ilustrar alguns pontos trabalhados anteriormente,
não buscando desenvolver uma análise musical formal e completa. As obras selecionadas são:
1) No desalinho triste de minhas emoções confusas (2011), para piano e live-electronics; 2) Das
ilusões que nunca nos enganam ao nos mentirem sempre (2010), para violoncelo e liveelectronics; 3) Pirilampeios (2008), para flauta, clarinete, piano, percussão, violino, viola e
violoncelo; 4) Quintanares (2007); para trio de saxofones (soprano/alto, soprano/tenor e
soprano/barítono).
NO DESALINHO TRISTE DE MINHAS EMOÇÕES CONFUSAS
Em minha recente peça para piano No desalinho triste de minhas emoções confusas
(2011), para piano e live-electronics, fiz, naturalmente, vários ensaios e revisões até obter a
versão definitiva. A partitura final mostra diversas mudanças em relação aos rascunhos iniciais,
como novos compassos, a exclusão de outros e, mais importante, a reorganização das ideias
musicais.
Um fator que me permitiu um olhar diferente para a composição foi a consciência da
complexidade sônica e psicológica na música. Ou seja, compor tornou-se um processo
"arqueológico" que pode transcender a realidade e as expectativas: o compositor pode
escavar e ir revelando aos poucos suas intenções, mas pode – e deve – criar o seu próprio
idioma, a sua própria rota. Assim, criamos a possibilidade da 'reciclagem de informações', pois
o artista pode sempre dilatar as referências cognitivas socialmente herdadas pelo ouvinte. Em
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outras palavras, em arte podemos sempre trabalhar com o novo. Assim, uma obra de arte,
uma vez criada, não precisa justificar-se. Pensando nisto, pus-me a compor.
No processo de criação desta peça, dediquei meu tempo de trabalho para resolver
várias decisões, entre elas a duração ideal entre um pizzicato e um determinado trêmulo
(Figura 1). Tentei executar esta passagem (pgm#4) em diferentes dias, diferentes pianos e,
consequentemente, em diferentes salas de concerto, todas tentativas com diferentes
durações. Nunca alcancei uma decisão ideal, porém foi exatamente isso que me cativou. A
grande diferença destas tentativas, tecnicamente falando, foi o tempo de ressonância entre os
eventos, mas não considero esse parâmetro determinante o bastante para tornar-se a solução
ideal nas minhas decisões estéticas. A escolha final foi intuitiva, mas tendo a consciência de
que outras soluções eram possíveis.
Figura 1 - No desalinho triste de minhas emoções confusa. pgm#3 e pgm#4.
Verifica-se nos compassos anteriores (pgm#3) situações em que a decisão final
também foi intuitiva, que dependeu de certa arbitrariedade. É importante salientar que não
considero o processo intuitivo como aleatório, mas sim como um processo cognitivo de
assimilação de experiências previamente vivenciadas. Para tal trecho, uma questão que
explorei durante o processo criativo foi a quantidade de repetições do ré# e do fá#. No
primeiro, temos sete repetições e, no segundo, seis. Qual a gravidade, ou vantagem, de
alterarem-se os valores para sete e oito, por exemplo? Dentro do contexto desta peça em
específico, qual a diferença em se alterar o fá#, na clave de fá, para um sol natural? Claramente
seria uma peça diferente, mas teria ela sua validade anulada? Creio que não, até porque neste
caso a 'verdade' dentro desta peça está muito mais relacionada com outros elementos, como
timbre e gesto, do que com a escolha específica das notas.
Se considerarmos que nossa intuição é altamente baseada em experiências sensoriais
prévias, então criatividade – no sentido mais profundo – é limitada. Entendo a relação entre
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intuição e experiência como ponto crucial para o processo criativo artístico. Porém, o aspecto
mais perigoso da intuição, em minha música pelo menos, é a tendência a repetir ideias e
gestos por meio de permutações, sem ter a intenção de buscar uma repetição intrigada, como
na música de Salvatore Sciarrino (1947) ou Steve Reich. Ser repetitivo difere de trabalhar com
a repetição. Adicionalmente, intuição, como um 'curto circuito' de experiências vivenciadas, é
muitas vezes manifestada por meio da improvisação, ou seja, pelo ato de permutar as
experiências previamente adquiridas.
DAS ILUSÕES QUE NUNCA NOS ENGANAM AO NOS MENTIREM SEMPRE
Na maior parte da minha obra eu raramente trabalho com um fluxo diferente do
descrito, isto é, com um plano pré-composicional 'hermético'. O processo de composição
sempre gera outros métodos e planejamentos diferentes do rascunho inicial. Este é o caso da
peça Das ilusões que nunca nos enganam ao nos mentirem sempre (2010), para violoncelo e
live-electronics (Figura 2). Novamente, dei prioridade à improvisação e à intuição na criação da
ideia inicial, ao invés de partir de um modelo ou de uma fórmula abstrata. Esse motivo se
expandiu e gerou ideias similares no restante da peça.
Figura 2 - Das Ilusões que nunca nos enganam ao nos mentirem sempre, pgm#1.
O impulso inicial desta ideia musical levou-me a procedimentos de repetição. Porém, o
uso de repetição alternada, das notas sol e fá#, não bastou como material musical completo.
Precisei sair do impulso, do espontâneo, para fugir de um gesto puramente mecânico e poder
alcançar uma repetição mecânica natural. Para tal, realizei, por exemplo, experimentos sônicos
com performances em diferentes cordas, resultando naturalmente em timbres diferenciados.
Para este trecho, optei pelo som penetrante das cordas ré e lá do violoncelo. Optei, também,
por outros elementos que alteram o timbre, como o posicionamento do arco e a pressão
aplicada: molto sul ponticello e 1/2 pressed. Além disso, trabalhei com mudanças dinâmicas e
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com o uso de microtons. Essas decisões não foram baseadas em nenhum procedimento
científico, mas sim no desenvolvimento de uma estética. Esta verdade, este timbre, este som
gerado, despertou em mim a possibilidade e a vontade de traçar um caminho para esta peça,
uma perspectiva em que eu, enquanto compositor, poderia expressar algo. Neste caso, penso
nas técnicas como filtros para nossa expressividade. Elas contribuem para a concretização da
nossa imaginação.
PIRILAMPEIOS
Um exemplo contrário ao que expus até então é a peça Pirilampeios (2008), para
septeto (Figura 3). Esta reclama planejamentos pré-composicionais (é importante adicionar
que processos intuitivos podem existir em planejamentos teóricos, mas retenho-me aqui à
aplicação própria que faço da intuição e razão). Planejar não significa necessariamente um
procedimento frio.
Figura 3 - Pirilampeios
O trecho analisado representa um posicionamento mais equilibrado que empreendi
entre os conceitos de intuição e razão. A sonoridade criada entre o clarinete e a flauta, por
exemplo, não foi previamente vivenciada auditivamente por mim – um procedimento raro
para muitos músicos. A escolha das notas está confinada a um espectro obtido pelos parciais
superiores de uma certa série harmônica. O simples fato de se obter essa série de notas não
aponta, a priori, um pensamento musical. Aponta um procedimento técnico.
O pensamento reinante foi o de textura rítmica – a possibilidade de criar uma textura
em que o soprano ora apresenta o clarinete, ora a flauta, confundindo propositalmente o
ouvinte. O meu objetivo foi o de criar um universo caótico e ao mesmo tempo controlado, em
que não se percebe com clareza duas linhas melódicas, mas sim uma textura. Esse
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procedimento envolve questões de orquestração não-tradicionais, pois busca justamente
evitar a clareza de percepção de cada voz. Essa é a verdade musical que escolhi trabalhar nesta
seção da peça: "manusear" a série de notas escolhidas dentro do formato da textura
imaginada. É por essas razões que ressalto a importância do equilíbrio entre intuição e razão.
QUINTANARES
Finalizo a análise com a quarta peça. Em 2007, realizei uma pesquisa a respeito dos
multifônicos produzidos pelo naipe dos saxofones. Foi um estudo técnico em que gravei
diversos multifônicos e transcrevi o espectro dessas sonoridades para o papel pautado. O
estudo gerou uma peça intitulada Quintanares, para trio de saxofones (Figura 4).
Figura 4 - Quintanares
Nesta seção da peça, orquestrei os sons parciais de cada multifônico para três
saxofones distintos. A duração dos sons e das pausas, porém, não foi definida por nenhuma
fórmula ou regra, mas sim por processos de decisões intuitivos: experimentei por meio de um
software vocoder de fase a possibilidade de ouvir cada arquivo de som com diferentes
durações sem modificar a altura das notas. Contudo, um pensamento diferenciado foi
necessário para desenvolver essa ideia no domínio artístico. Foi necessário o desenvolvimento
de uma verdade e isto extrapolava técnicas e formulações. Parti do entendimento geral de
consonância em música: se o som que gera tudo vem de um instrumento só, assumi que os
parciais desse som tinham o potencial para oferecerem relações e estruturas harmoniosas.
Orquestrei o trecho em questão em forma de texturas criadas por sons que surgem com seus
ataques mascarados pelos outros instrumentos, um procedimento oriundo da música
eletrônica. O resultado aponta que mesmo sons classificados como dissonantes pelas teorias
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de contraponto, soam como harmoniosos nesta peça – um erro que um compositor poderia
facilmente cometer em um plano pré-composicional teórico. Volto a repetir as palavras da
compositora israelense Chaya Czernowin (2008, p. 3): "cada obra deve ensinar o ouvinte como
ouvi-la".
CONCLUSÃO
Acredito que compor é, muitas vezes, sinônimo de autoconhecimento e considero
minhas composições mais coerentes quando eu respeito a cadeia de acontecimentos descrita
pelo texto acima. De maneira geral, eu passo mais tempo revisando o que compus do que com
o próprio ato de criação inicial. É um processo arqueológico, psicológico, de descoberta,
construção e desconstrução. Talvez, para mim, a essência genuína da criação artística seja
mais associada com o segundo rascunho. Como dizia Mário Quintana (2006): "É preciso
escrever um poema várias vezes para que dê a impressão de que foi escrito pela primeira vez".
Tendo isto em mente, minhas revisões são praticamente processos de identificação,
classificação, modificação e muitas vezes de eliminação de elementos. Na verdade, elas são
similares a processos de reorganização, em que a dialética entre intuição e razão é sempre
ativa. Como previamente discutido, os objetivos da arte e da ciência não são os mesmos. Não
há uma verdade única em arte. Sendo assim, a arte aceita múltiplas verdades. Fernando
Pessoa fala sobre essa abertura, mas em um sentido mais aberto, como imperfeição:
"Sabemos bem que toda a obra tem que ser imperfeita [...]. Mas imperfeito é tudo, nem há
poente tão belo que o não pudesse ser mais, ou brisa leve que nos dê sono que não pudesse
dar-nos um sono mais calmo ainda" (PESSOA, 2006, p. 41).
Por estar ciente desse aspecto de abertura em arte, acredito que cada composição
permita múltiplos caminhos para diferentes finalizações. Stockhausen falou certa vez sobre
criatividade em uma de suas experiências com Theodor Adorno na escola de Darmstadt. Essa
citação é muito importante por ilustrar bem a complexa simbiose entre intuição e razão, pois
mesmo um intelectual com muito treinamento musical, filosófico e estético como Adorno não
conseguiu aceitar certas verdades:
Na edição de 1951 do Darmstadt Summer School para música nova, [Karel]
Goeyvaerts e eu tocamos sua sonata para piano. [...] A peça foi violentamente
atacada por Theodor Adorno. [...] Ele criticou essa peça de Goeyvaerts, dizendo que
era absurda [...]. Adorno não a entendia de maneira alguma. Ele disse, não há
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trabalho motívico. Então eu levantei [...] e defendi esta peça [...]. Eu disse, mas
Professor, você está procurando por uma galinha em uma pintura abstrata. [...]
Mesmo Adorno tendo sido aluno de Alban Berg e tendo composto muito, e embora
quisesse ter sido conhecido como um compositor mais do que como filósofo,
basicamente ele não era uma pessoa criativa. Uma pessoa criativa está sempre
empolgada quando algo acontece que não possa explicar, algo misterioso ou
miraculoso (STOCKHAUSEN, 2000, p. 36).
Feldman, porém, acreditava em uma visão um pouco diferenciada. O seu conceito de
composição estava mais fadado ao conceito de consciência do que de abertura, recepção. Ele
acreditava que compor envolve saber "a nota certa no momento certo com o instrumento
certo" (FELDMAN, 2000, p. 160). Indo mais a fundo neste pensamento, Pauline Oliveros (1932)
completa: "Não basta apenas executar as notas certas no tempo certo da maneira certa;
devemos também ter a consciência certa" (OLIVEROS in LUCIER, 1995, p. 8). Nestes casos,
consciência é referente aos processos de transferência de ideias ao papel, da transferência de
fenômenos tridimensionais a planos bidimensionais. Essa consciência representa, talvez, uma
boa síntese das ideias até aqui colocadas. No entanto, consciência no fazer artístico aceita e é
alimentada pelas experiências, intuições, planejamentos, assim como pelos tropeços, acasos,
incertezas, detritos, resíduos, imperfeições …
REFERÊNCIAS
CZERNOWIN, Chaya. The other tiger. Search Journal for New Music and Culture. Summer 2008,
Issue 2. Disponível em: <www.searchnewmusic.org/index2.html>.
FELDMAN, Morton. Give my regards to Eight Street - Collected writings of Morton Feldman.
Cambridge: Exact Change, 2000.
GODARD, Jean-Luc. Je vous salue, Sarajevo. France: Périphéria, 1993.
NATTIEZ, Jean-Jacques. The Boulez-Cage Correspondence. Cambridge: Cambridge University
Press, 1993.
OLIVEROS in LUCIER, Alvin. Reflections - interviews, scores, writings. Köln: MusikTexte, 1995.
PESSOA, Fernando. O livro do desassossego. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
QUINTANA, Mário. Caderno H. Editora Globo. 2006.
RIBEIRO, Felipe de Almeida. No desalinho triste de minhas emoções confusas. Tese de
Doutorado em Composição (PhD) pela SUNY Buffalo. Buffalo NY, 2011. Disponível em:
<http://proquest-.umi-.com-.gate-.lib-.buffalo-.edu/pqdweb-?did=2595844201-&sid=2-&Fmt=
2-&clientId=39334-&RQT=309-&VName=PQD>. Acesso em: 8 maio 2012.
STOCKHAUSEN, Karlheinz. Stockhausen on Music. Compiled by Robin Maconie. Marion Boyars
Publishers, 2000.
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