3 Contra-revolução e Poder Moderador - DBD PUC-Rio

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Contra-revolução e Poder Moderador
3.1
Contra-revolução Americana e a função moderadora da Suprema
Corte
Em tópico anterior discorreu-se sobre os efeitos benéficos do dissenso para
dinamizar o processo democrático. Esta dinâmica demanda instituições sensíveis à
mutação, suscetíveis à atualização igualitária levada a efeito pelas manifestações
do poder constituinte. Se a virtù coletiva aparece em Maquiavel como necessidade
para evitar o perecimento diante da fortuna, as instituições, se bem erigidas,
permitem a manutenção da liberdade e a convivência salutar com o conflito.
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Maquiavel faz, assim, da virtù a alma e das instituições o corpo da república.
Compreendido que a desunião constitui a política, cabe analisar os modos como
os arranjos institucionais são concebidos para lidar com os conflitos. As opções
variam entre a compreensão da desunião como força motriz da democracia e sua
identificação como ameaça a uma ordem vigente que se pretende naturalizada. O
embate entre estas duas concepções marcou os movimentos de revolução e contrarevolução que se desenvolveram nos Estados Unidos e na França ao fim do século
dezoito.
Em contraposição à concepção elogiosa do dissenso, importantes teorias
políticas foram idealizadas, tendo por diretriz a repugnância à idéia do conflito;
uma ojeriza que atrela o desentendimento ao risco sedicioso. Por esta perspectiva,
as instituições devem ser pensadas como meio de evitar o dissenso: o litígio não
deve visto a menos que seja para classificá-lo como vandalismo que, ao subverter
a ordem, autoriza a intervenção estatal. O que se procura conter, em última
instância, é qualquer possibilidade de emergência de um poder constituinte que
ponha em dúvida a naturalidade da ordem que divide os papéis de governantes e
governados. A teoria política de Montesquieu é herdeira desta tradição, e se
anuncia como essencial para o estudo aqui proposto. Sua teoria política
influenciou decisivamente o pensamento das contra-revoluções acima anunciadas,
que se valeram do poder moderador como instância de bloqueio à democracia. A
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organização de uma constituição mista, pela qual a separação de poderes
atribuísse a cada força social uma parcela no ato de governar; o governo
oligárquico representativo vinculado à inexistência de sufrágio universal; o
desprezo pela multidão como ator político; a necessidade de controlar e conduzir,
de cima para baixo, as instituições; tudo isso que se inscreve no pensamento de
Montesquieu, se faz presente em Hamilton e Madison, em Sieyès e Constant.
Separar os poderes para evitar o despotismo não será o suficiente, constatará
Montesquieu. É preciso que se arroste a menor possibilidade de atritos entre os
mesmos, como meio de harmonizar e conferir estabilidade e unidade ao governo.
Daí a necessidade de se prever um poder peculiar, cuja função se resumisse a
moderar as disputas entre os demais poderes. Há que se arquitetar um desenho
institucional em que esteja contemplada a existência de um elemento neutro e
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imparcial que, por seu distanciamento desapaixonado das questões políticas, se
legitime como instituição moderadora.193 A instância de poder moderadora, de
fato, não suprime a divisão de poderes; ela exerce função de controle sobre os
demais.
Na monarquia inglesa, afirma Montesquieu, a Câmara Alta bem cumpria
esta função; a nobreza encontra-se ali como corpo intermediário a moderar as
paixões populares e evitar o despotismo do rei. A neutralidade e imparcialidade
emanam naturalmente da nobreza pelo fato de ter garantida pela hereditariedade a
condição de usufruir de riquezas e luxo, sem necessitar lançar-se em disputas
fratricidas pelo poder. O bem nascer a fazia moderada por natureza.194 Tanto nos
Estados Unidos, pela inexistência de um corpo de nobres, quanto na França, cuja
revolução se fizera contra a nobreza, impunha-se engendrar mecanismos
moderadores para controlar o poder constituinte da multidão. A contra-revolução
193
“Dos três poderes dos quais falamos, o judiciário é, de algum modo, nulo. Restam dois,
portanto, e como esses poderes necessitam de um poder regulador para moderá-los, a parte do
corpo legislativo, que é composto de nobres, torna-se muito capaz de produzir esse efeito”
MONTESQUIEU. O espírito das leis, pp. 169-170.
194
A nobreza modera o poder do monarca: “o poder intermediário mais natural é o da nobreza.
Esta, de algum modo, faz parte da essência da monarquia, cuja máxima fundamental é: se não
existir um monarca, não existirá nobreza; se não existir nobreza, não existirá monarca. Haverá,
contudo, um déspota” Ibidem, pp. 30-31. Ela, ao mesmo tempo, impede o despotismo popular: “o
governo aristocrático tem, por si próprio, uma certa força que a democracia não tem. Os nobres
formam um corpo que, por sua prerrogativa e interesse particular, reprime o povo.” Ibidem, p. 37.
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francesa será analisada à seu tempo, em tópico próprio. Impõe-se, agora, a
caminhada pelas veredas abertas no processo revolucionário estadunidense.195
Quando Thomas Jefferson redige a Declaração de Independência, o
processo revolucionário democrático americano já emergira com força suficiente
para fundar uma nova sociedade política. Os fatores que convergiram para a
eclosão da independência não podem ser aqui esgotados. No entanto, anterior a
eles, e como seu substrato, pode ser apontada a concepção de liberdade assumida
pelos colonos norte-americanos. Como expõe Negri, a dimensão selvagem da
liberdade americana, calcada no espaço não limitado por fronteiras, irá conferir
características peculiares ao processo constituinte ali desenvolvido.196 A liberdade
que se expressa no espaço não é abstrata, mero enunciado formal; ela se
concretiza efetivamente pela propriedade concebida como apropriação; como
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prática de uma massa que pode se difundir em ampla base territorial, produzindo e
desenvolvendo seu trabalho. A possibilidade de apropriação da terra por todos
aproxima a experiência americana à teoria desenvolvida por Harrington em sua
obra Oceana197: formação da comunidade política livre fundada na distribuição da
propriedade. O que seria fruto de uma lei agrária em Harrington, para os
estadunidenses decorre da mera apropriação, do trabalho aposto à terra. Os
sujeitos da política são as massas de livres apropriadores198 e o ideal de liberdade
vincular-se-á diretamente à resistência contra qualquer ato tendente a podá-lo.
Este espírito forjado na liberdade espacial seria posto à prova – e dela sairia
fortalecido - nas Guerras Franco-Indígenas e na resistência à taxação inglesa.
Disto decorria, ainda, que em terras norte-americanas era diminuta a parte
da população em condição de miserabilidade, destino, por exemplo, da maioria da
195
A análise sobre a Revolução Americana aqui desenvolvida tem por diretriz a leitura que Antonio
Negri faz sobre o tema. Não se trata, por certo, da única análise possível ou válida, no entanto, dela
se extraem importantes considerações sobre o papel desenvolvido pela Suprema Corte como
instituição engendrada para conter a expansão da democracia.
196
NEGRI, Antonio. O poder constituinte; p.213.
197
“O espaço é a expressão da liberdade. De uma liberdade bem concreta, porém: uma liberdade
harringtoniana, fundada na propriedade, na apropriação, na expansão colonizadora. [...] O
equilíbrio de poder numa sociedade acompanha sempre o equilíbrio da propriedade da terra.”
Ibidem, p.214.
198
Ibidem, p.215.
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população francesa.199 Tal fato levaria Hannah Arendt a afirmar que Revolução
Americana não foi influenciada pela questão social, entendida como a relação
entre riqueza e governo, ou seja, o modo como as formas de governos determinam
a distribuição da riqueza. Em sua perspectiva, os fracassos de revoluções como a
francesa decorreram do fato de a questão social ter sido o motor que impulsionou
seus revolucionários. Em sentido oposto, a Revolução Americana teria sido a
única em que a questão social não se fizera presente, possibilitando a criação de
um espaço político autenticamente livre.200
Negri opõe-se a esta interpretação; ele afirma que a forma original de
compreender a propriedade como apropriação - como derivação do trabalho sobre
a terra - comprova o viés social da Revolução Americana. Expõe o pensador
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italiano:
[...] os conservadores da guerra fria usavam como bandeira a afirmação de
Tocqueville: “Os Estados Unidos nasceram livres”. Segundo eles, a “revolução
política” bastaria para satisfazer homens fortes e decididos a conquistar, com a
liberdade, a propriedade; seria suficiente para encher suas barrigas e contemplar
seus interesses. Também neste caso é evidente que se trata de pura ideologia. Na
verdade, a revolução social é inerente à Revolução Americana, na medida em que
constitui sua borda. Ela está compreendida no conceito de revolução política, pois
os conceitos de povo soberano e de poder constituinte são delineados no espaço
continental, e o conceito de propriedade experimenta uma profunda mutação já
que, longe de se apresentar nos termos da jurisprudência inglesa, é definido em
termos de apropriação e exaltado como um produto direto do trabalho.201
Não deixa de ser interessante como na própria obra de Hannah Arendt
colhem-se elementos que desmentem a inexistência de uma questão social na
Revolução Americana. Arendt, com precisão, aponta que a questão do trabalho
contínuo excluía automaticamente os trabalhadores da participação política.202
199
“O que realmente estava ausente no cenário americano era antes a miséria e a escassez que a
pobreza [...]”. ARENDT, Hannah. Da revolução. Trad. Fernando Dídimo Vieira. Brasília: Ed.
UnB, 1988; p.54.
200
Nos Estados Unidos, afirma Arendt, a liberdade não teve que ceder à urgência de por limites a
esta condição de penúria das massas, ao passo que na França a revolução alterara seu rumo:
desviara da conquista da liberdade para ter, por finalidade, a felicidade do povo, de forma a
transmudar os Direitos do Homem nos direitos dos sans-culottes. ARENDT, Hannah. Da
revolução, p. 48. De forma diversa do que se passava na França, os trabalhadores americanos “não
eram movidos pela necessidade, e a revolução não foi frustrada por eles. O problema que punham
não era de ordem social, mas político, e dizia respeito não à ordem sociedade, mas à forma de
governo.” Ibidem, pp.54-55.
201
NEGRI, Antonio. O poder constituinte, pp. 227-228.
202
“O ponto em questão era que o ‘trabalho contínuo’ e o desejo de lazer da maioria da população
os excluiria automaticamente de participação ativa no governo [...]”. ARENDT, Hannah. Da
revolução, p. 55.
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Valendo-se do pensamento de John Adams, Arendt revela que a maldição da
pobreza não se resumia à autopreservação. Uma vez adquirida, minimizando o
abismo que separa ricos e pobres, persistia para o pobre a consciência de que é
alijado de qualquer decisão; um ser que vaga pelo mundo sem ser notado.
Reveladoras as palavras de John Adams, reproduzidas por Arendt:
[o pobre] sente-se alijado, tateando no escuro. A humanidade não toma
conhecimento dele, e ele vagueia e perambula despercebido. Em meio a uma
multidão, na igreja, no mercado [...] ele está tão na obscuridade como se estivesse
num sótão ou num porão. Ele não é nem desaprovado, nem censurado, nem
acusado; ele simplesmente não é notado [...] Ser totalmente ignorado e ter
consciência disso, é algo intolerável. 203
Arendt é confrontada com a existência de não-contados e, ainda assim,
persiste em ignorar a existência da questão social, ancorando-se no pressuposto de
que a divisão entre quem pode tomar parte no governo ou ser apenas governado
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retrata, nos Estados Unidos, uma questão meramente política. O que se passa não
é tão simples: o modo de organizar o mundo revela uma distribuição,
pretensamente natural, das tarefas e lugares na sociedade; a distribuição política
dos papéis de governante e governado está atrelada a uma partilha do sensível que
define a divisão social das atribuições de cada parcela da sociedade. Trata-se de
uma divisão de funções que é política, mas também social e que, ao fim, atribui
apenas a uma parte dos integrantes da comunidade a condição de tomar parte nas
decisões públicas.204 Distribuição social e política de funções encontram-se,
assim, atreladas. A tentativa de fazê-las parecer cindidas resume todo o esforço da
teoria burguesa205 em determinar quais as pessoas legitimadas e os lugares
específicos do fazer político.206
203
ADAMS, John. Discourses on Davila, Works, Boston: 1851, v. 6, p. 239-240 apud ARENDT,
Hannah. Da revolução, p. 55.
204
Eis porque, como explicita Negri, a Revolução Francesa não fizera com que o político restasse
anulado ou subordinado ao social como quer Arendt: o político constitui o social. Nos Estados
Unidos, a liberdade se associa a uma pressuposição de igualdade que se atrela à apropriação. O
social insere-se no político como espaço aberto e liberdade da fronteira. NEGRI, Antonio. O poder
constituinte, p.33.
205
Uma necessária ressalva se impõe: com o fim de evitar perplexidades, ao longo do presente
tópico será utilizado o termo “teoria burguesa” em lugar de “teoria liberal”. Isto se deve ao fato de
que, nos Estados Unidos, a corrente político-partidária denominada de Liberal, de tradição
jeffersoniana, vincula-se a projetos mais progressistas e afeitos à democracia, ao passo que, os
denominados Republicanos encampam os ideais aristocráticos que marcam a burguesia.
206
Daí Negri expor que Arendt “funda inicialmente o seu raciocínio na força do poder constituinte,
e termina por esquecer sua radicalidade; afirma inicialmente as razões da democracia, mas conclui
sustentando as do liberalismo.” NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 32.
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Retorne-se ao evento revolucionário estadunidense. Ao final da Guerra dos
Sete Anos (Guerras Franco-Indígenas) em 1763, o aumento das taxas que recaiam
sobre as colônias americanas para recompor esforços de guerra encerravam com
um período de considerável autonomia perante a metrópole britânica, agora tida
sob a condução de um governo despótico.207 Grupos de cidadãos organizaram-se
promovendo manifestações e boicotes, confrontando a ordem policial inglesa.208
A Convenção reunida contra a Lei do Selo, por exemplo, declarou a ilegalidade
daquela lei sob o argumento de que, sem representação da colônia, o Parlamento
Inglês não possuía legitimidade para tributação. A revolta popular, primeiramente
contra as Leis de Townshend, e posteriormente contra a permanência da taxação
do chá, foi o desfecho de uma série de manifestações populares que se
intensificaram por todo o país. Os agenciamentos entre cidadãos, entretanto, não
se resumiram aos boicotes. Nos primeiros anos revolucionários a atuação extraPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0812074/CA
legislativa da multidão, reunida em convenções, representava a emergência de
corpos legislativos independentes das instâncias oficiais. As convenções,
compreendidas pelos estadunidenses como corpos autônomos existentes fora da
autoridade constituída – como ressalta Bercovici – permitiram diante do quadro
de instabilidade institucional oficial instalado após 1770, “a elaboração
constitucional de novos Estados, diferentes e superiores aos legislativos
ordinários.209
207
Após as Guerras Franco-Indígenas a Inglaterra editou uma séria de leis taxando a colônia: a Lei
do Açúcar em 1764, que alterava a taxação do melaço, instituía a taxação para importação de bens
de luxo, como vinho e seda, e restringia exportação de produtos como pele e couro apenas à
própria Inglaterra; a Lei do Selo em 1765, pela qual a todo material impresso – de jornais a
documentos – deveria ser apostos selos adquiridos por agentes nomeados pela coroa; as Leis de
Townshend, que em 1767 reduzia os impostos territoriais pagos pelos britânicos e aumentava as
taxas alfandegárias referente a produtos básicos importados pelos americanos (chá, vidro, papel,
tinta e chumbo. DRIVER, Stephanie S. A declaração de independência dos Estados Unidos. Trad.
Mariluce Pessoa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, pp. 11-14.
208
Assim é que, enquanto oito das treze colônias enviaram petições respeitos ao rei contra a lei do
açúcar, foram realizados boicotes populares aos produtos importados sobre os quais incidiam o
imposto. De forma análoga, a reação mais contundente contra a lei do selo emergiu de setores
sociais, principalmente de grupos organizados em torno de comerciantes coloniais, conhecidos
como Filhos da Liberdade. Em relação às leis Townshend, boicotes eficazes reduziram
drasticamente a importação de produtos britânicos. Ibidem, p. 15.
209
“[...] na década de 1770, a crise faz com que as instituições governamentais existentes não
servissem mais, restando as convenções como última alternativa para que o povo pudesse se
defender na falta de meios ordinários. As convenções foram meios extra-ordinários, instituídas
com base na necessidade pública, para a elaboração constitucional dos novos Estados, diferentes e
superiores aos legislativos ordinários . BERCOVICI, Gilberto, Soberania e constituição; pp. 122123.
93
A experiência de autogoverno, acima narrada, iria suscitar debates sobre a
possibilidade das convenções adquirirem caráter permanente, tornando-se
instituições que funcionariam em paralelo ao corpo legislativo de representantes: a
continuidade do povo reunido em convenções, possibilidade concreta de processo
constituinte perene. Somada a tais fatos, a organização de milícias populares para
proteger o território conferiu aos colonos crescente sentimento de independência e
constituição de uma comunidade capaz de se governar pela virtú de seus
cidadãos.210 O povo em armas maquiaveliano se impõe aqui com sua força
constituinte211 e não deve ser desprezado como importante fator para que a
Revolução Americana ganhasse tons democráticos e tornasse a independência um
caminho sem retorno, para além do que inicialmente idealizado pela elite norteamericana.212
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A questão da representação efetiva aparece como pano de fundo
revolucionário: se os americanos não se fazem representar no Parlamento, a este
não toca legitimidade para legislar sobre os assuntos da colônia. Essa
pressuposição igualitária é interpretada pela ordem policial britânica como
reclamações infundadas daqueles que não conseguem ter adequada percepção da
realidade. A constituição mista se engendra, responderá a Coroa, sob as bases da
representação virtual, que abrange tanto a massa de ingleses privados de direitos
210
Como expressa Negri, observa-se uma relação contraposta entre instituições espontâneas e
governo, entre povo em armas e exército, a representar a ruptura de uma ordem social antiga por
um processo revolucionário compreendido como processo de constituição de novas subjetividades.
Nas palavras de Negri: “A passagem da resistência à revolução, do associativismo à constituição
dos corpos políticos, dos comitia à representação continental, das militiae ao exército, tudo isso se
entrecruza num clima político em que as prescrições ideológicas e as pulsões materiais produzem
rapidamente resultados irreversíveis e conduzem irresistivelmente a determinações radicalmente
inovadoras.” NEGRI, Antonio. O poder constituinte, pp. 218-219. Nunca demais ressaltar,
conforme já procedido no primeiro capítulo, a necessidade de se contextualizar o elogio ao “povo
em armas”, diante da diversidade de natureza que elas assumem a depender do momento histórico
que se analisa.
211
A insurreição armada, o povo em armas, aduz Negri, “não é somente uma façanha de
organização militar, mas representa, igualmente, o advento de uma nova ordem constitucional. O
recrutamento das milícias pelas colônias é um ato de poder constituinte.” NEGRI, Antonio. O
poder constituinte, p. 219.
212
Com efeito, a revolução americana inicia-se mais com o intento de recondução do modelo
britânico ao que entendiam como sua forma pura de governo misto, conspurcado pelo despotismo
da Coroa. Hannah Arendt demonstra que os revolucionários norte-americanos não se moviam
sequer com a intenção inicial de separação: “O que julgavam que fosse uma ‘restauração’, o
restabelecimento de suas antigas prerrogativas, transformou-se numa revolução, e suas idéias e
tórias sobre a Constituição britânica, os direitos dos cidadãos ingleses e as formas de governo
colonial, desembocaram numa declaração de independência [...] Benjamin Franklin [...] pôde
escrever mais tarde, com toda franqueza: ‘Nunca ouvi, em qualquer conversa com qualquer
pessoa, ébria ou sóbria, a menor expressão de um desejo de separação [...]’” ARENDT, Hannah.
Da revolução, pp. 35-36.
94
políticos, quanto os colonos americanos sem representação efetiva. Não há
escândalo a ser corrigido; a cada parcela já se encontram definidos seus poderes e
limites; a previsão - ainda que virtual - da representação dos colonos revela a
impertinência colonial a ser arrostada, se necessário, pela força militar. Restou
evidente para revolucionários da linhagem de Thomas Paine que a concepção
mista de governo não condizia com o ideal democrático que encontrava substrato
na liberdade americana.213 Os acontecimentos que se agregaram ao longo década
que antecedeu à independência encontrou neste sentimento de liberdade solo fértil
para a emergência do espírito verdadeiramente revolucionário. O impacto que os
escritos de Thomas Paine e Thomas Jefferson causaram na sociedade
estadunidense comprova que o caráter conservador que animou tantos
congressistas coloniais encontrou contraponto na crescente organização das
massas populares americanas como expressão do poder constituinte. Em seu
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panfleto Common Sense, de 1776, Thomas Paine defende a independência dos
Estados Unidos e a constituição de um governo republicano democrático, com a
extinção do bicameralismo de corte francamente aristocrático.214 A Constituição
inglesa não deveria ser usada como modelo. A percepção de Paine sobre o caráter
ludibriador do governo misto inglês é primorosa: através deste tipo de governo se
permite que a comunidade seja continuamente submetida ao privilégio de poucos
e, ainda assim, imagine viver sob um governo com poderes repartidos entre rei,
lordes e o povo.215 A democracia, ali, resta subjugada por resquícios da tirania
monárquica e da tirania aristocrática:
The prejudice of Englishmen, in favour of their own government of king, lords, and
commons, arises as much or more from national pride than reason. Individuals are
undoubtedly safer in England than in some other countries, but the will of the king
is as much the law of the land in Britain as in France, with this difference, that
instead of proceeding directly from his mouth, it is handed to the people under the
213
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição, p. 120.
Ibidem, p. 120.
215
“[...] if we will suffer ourselves to examine the component parts of the English constitution, we
shall find them to be the base remains of two ancient tyrannies, compounded with some new
republican materials. First – The remains of monarchial tyranny in the person of the king. Second
– The remains of aristocratical tyranny in the person of the peers.” PAINE, Thomas. Common
sense. Nova York: Penguin Books, 1983, pp. 68-69. [… se nos dispusermos a examinar as partes
que compõem a constituição inglesa, identificaremos resquícios de duas antigas tiranias,
combinadas com alguma matéria republicana. Primeiro – Os resquícios de tirania monárquica,
na pessoa do rei. Segundo – Os resquícios da tirania aristocrática na pessoa dos nobres.];
[tradução livre].
214
95
must formidable shape of an act of parliament. For the fate of Charles the First,
hath only made kings more subtle – not more just.216
Thomas Jefferson, por sua vez, condensa na Declaração de Independência o
espírito do evento constituinte norte-americano. O documento não reivindica
equiparação aos direitos dos ingleses; trata-se, sim, de fundação de uma sociedade
nova. A liberdade e autonomia não necessitam extrair legitimidade de nenhuma
ordem constituída. Ao contrário, elas inauguram uma sociedade: “o direito
precede a constituição, a autonomia do povo vem antes de sua formalização.” 217
A fundação desta nova ordem política e social ancora-se, assim, apenas em si
própria. Revela-se e declara-se imanente: uma sociedade capaz de auto-regulação
e que tem por princípio a liberdade e a igualdade; governos instituídos entre os
homens para garantir tais princípios, e que retiram seus poderes do consentimento
dos governados; comunidade política fundada e legitimada pela participação
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direta de seus integrantes. Os desdobramentos desta jeffersoniana afirmação do
poder constituinte estão expostos na própria Declaração de Independência:
necessidade de participação democrática concreta– jamais virtual – dos cidadãos
na decisão da coisa comum; declaração do direito de resistência e revolução que
se institui como direito de abolir governos arbitrários; ratificação do caráter aberto
do processo constituinte, revelado pelo direito da comunidade organizar o poder
de modo que lhe pareça mais provável de proporcionar segurança e felicidade.218
Negri sintetiza o significado do poder constituinte nesta experiência
revolucionária americana:
216
Ibidem, p. 71. [O julgamento dos ingleses em favor de seu governo de rei, lordes e comuns,
deriva do orgulho nacional que da razão. Indubitavelmente os indivíduos estão mais protegidos
na Inglaterra que em alguns outros países, mas a vontade do rei, tanto na Inglaterra quanto na
França, é a lei da terra, com a diferença que, ao invés de partir diretamente da boca do rei, ela é
passada ao povo sob a forma mais temível de uma lei do Parlamento. O destino de Carlos I só
tornou os soberanos mais sutis, e não mais justos.]; [tradução livre].
217
NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 221.
218
Vê-se que tais direitos são entendidos como meio de garantir, para além de direitos meramente
formais, efetiva construção do bem comum pela participação direta ou consentida dos cidadãos.
Assim é, como pontua Negri, que o direito à vida se expressa pela proteção da população contra
perigos externos e internos; pelo incentivo a leis de povoamento, à naturalização e colonização;
pela ordenada distribuição de terras, dentre outros. O direito à liberdade concretizar-se-ia pela
instituição de um poder judiciário livre exercido por júris populares; pelo controle popular da
administração pública; pela subordinação do poder militar ao poder civil. O direito à busca da
felicidade, por sua vez, restou afirmado de forma positiva, associada ao exercício do comércio, no
povoamento do país e na atuação do governo efetivar políticas públicas necessárias ao bem
comum. E, por fim, no que toca ao direito ao governo consentido e democrático, garantir a
representação popular nas assembléias, reconhecer aos cidadãos, detentores do direito natural de se
autogovernar, o direito de se darem as próprias instituições e leis. NEGRI, Antonio. O poder
constituinte, pp. 222-223.
96
[...] ele se apresenta como capacidade de construção de um espaço totalmente
novo, de um espaço redefinido pela política, conquistado pela atividade de
fundação da emancipação política, e o faz em termos universais. Jefferson
apreende imediatamente a vivacidade do processo desenvolvido entre o Primeiro
(1774) e o Segundo (1775) Congresso Continental, através das associações pelo
boicote, das experiências difusas de autogoverno, do armamento popular; através
das novas experiências de gestão, pela base, das atividades administrativas,
jurídicas e econômicas dos Estados, através da reapropriação do poder pelo povo
em armas.219
A Declaração de Independência pode ser tida não apenas como síntese do
processo
constituinte norte-americano,
mas
como
seu
ápice.
Após
a
independência, a possibilidade das convenções buscarem se tornar instituições
permanentes, funcionando paralelamente ao corpo legislativo representativo,
apresentar-se-á como uma questão concreta.220 Organizados em associações
revolucionárias ou em convenções capitais para o processo constituinte, os
cidadãos iniciaram a contestar – e mesmo desobedecer – leis sobre a propriedade,
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em uma sucessão de eventos dentre os quais sobressai a Rebelião de Shays,
deflagrada em 1786 contra a cobrança de dívida de pequenos proprietários e a
conseqüente perda de seus bens.221 As próprias assembléias legislativas atuavam
em desafio aos direitos de propriedade e interesses de credores e, pressionadas
pelas revoltas sociais, passaram a intervir nas relações de propriedade.222 O
conteúdo da missiva enviada pelo general Knox a Washington revela seu
aturdimento ao relatar que encontrara em Massachusetts:
[...] uma “massa entre 12 a 15 mil, desesperados e destituídos de caráter”, mas
recrutados “fundamentalmente na parte jovem e ativa da população”, tomados por
idéias, estranhas e absurdas, de redistribuição da terra, de “leis agrárias” e até de
“propriedade comum”.223
Neste ambiente, a Convenção da Filadélfia foi convocada para frear os
ímpetos de uma democracia tida pela elite americana como o despotismo popular
descrito por Montesquieu224. Buscou-se transladar o poder constituinte da atuação
219
Ibidem, p. 225.
NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 123.
221
A revolta de Shays ocorreu em 1786-1787, em Massachusetts, por obra de camponeses pobres e
endividados que se rebelaram contra a venda a baixo preço, em leilão, das suas terras e bens, e
contra a condenação ao cárcere dos devedores como determinava a legislação americana protetiva
do crédito. LOSURSO, Domenico. Democracia ou bonapartismo, p. 96.
222
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição, p. 123.
223
LOSURSO, Domenico. Democracia ou bonapartismo, p. 97.
224
Negri descreve o ambiente que antecedeu à promulgação da constituição americana: “[...] as
rivalidades entre os Estados, as dificuldades enfrentadas para harmonizar as políticas comerciais e,
sobretudo, as revoltas sociais impõem, mais uma vez, a necessidade de ir além dos “Artigos” da
Confederação.” NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 231.
220
97
positiva e dinâmica dos cidadãos para uma estrutura constitucional rígida,
conduzida pelos poderes constituídos dentro de limites definidos para o exercício
da liberdade.225 A Constituição, longe de se mostrar mais um passo do movimento
revolucionário, revelou-se como ato de seu encerramento. Os federalistas se
propuseram a construir o caminho contra-revolucionário. Caberia aos poderes
constituídos, erigidos sobre o sistema de freios e contrapesos, a mediação do
“processo de filtragem, equilíbrio, controle e coordenação dos interesses
sociais”226, produzindo os efeitos de uma constituição mista por meio de um
arranjo institucional novo, diverso da fórmula polibiana:
[...] transformação da constituição mista, de polibiana, em constituição moderna:
divisão do exercício da soberania já não está mais condicionada à constituição
corporativa e classista da sociedade, mas ao processo formal de sua própria
estrutura e de sua própria organização. 227
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Como se apresenta estruturado este novo aparato de aprisionamento do
poder constituinte? A primeira consideração a ser feita refere-se à riqueza como
título de dominação que dirige este projeto contra-revolucionário. É o dinheiro,
ressalta Negri, que cumpre as funções de orientação e organização
constitucional.228 Em sentido convergente, Charles Beard ressaltara que a
constituição americana tratou-se de um documento eminentemente econômico,
fundado no ideal “de que o direito de propriedade a antecede e deve ser protegido
das maiorias populares.”
229
A propriedade é exposta como direito natural que
antecede e submete o projeto constituinte contra o ideal revolucionário da
propriedade como apropriação, decorrente do trabalho direto sobre a terra. É
Jefferson, mais uma, que manterá viva a lembrança revolucionária:
[...] nenhum indivíduo tem, de direito natural, uma propriedade separada num acre
de terras, por exemplo. Por uma lei universal, de fato, o que quer que seja fixo ou
225
“Se o homo politicus da Revolução insere o social no político, como espaço aberto e liberdade
da fronteira, o homo politicus da Constituição está submetido a uma máquina institucional que
estabelece limites precisos para a liberdade, de modo a controlar e, ao mesmo tempo, garantir sua
expansividade através de uma estrutura jurídica que se apresenta como limite insuperável.”
Ibidem, p. 231.
226
NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 233.
227
Ibidem, p. 242.
228
Ibidem, pp. 242-243.
229
Na concepção de Beard, expõe Bercovici, “a constituição de 1787 não foi criada pelo povo,
nem pelos Estados, mas por um grupo consolidado de interesses econômicos, que era nacional em
seus objetivos.” BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição, pp. 132-133.
98
móvel pertence a todos os homens igualmente e, em comum, a propriedade é
daquele que a ocupa durante um momento.230
[...] Onde existem em qualquer país terras não cultivadas e pobres desempregados,
é claro que as leis da propriedade se estendam, de tal forma, a ponto de violarem o
direito natural.231
[...] Nenhum direito natural nem razão submete o corpo de um homem a reclusão
por dívidas.232
Contra a idéia de leis que pudessem ofender o direito natural à propriedade,
impôs-se uma eficiente estrutura de controle do poder constituinte. É o que se
observará ao longo da construção teórica desenvolvidas nos Artigos Federalistas.
O temor ao facciosismo que permeia toda a obra de James Madison, Alexander
Hamilton e John Jay é uma clara tradução dos riscos que a política traz para um
grupo dominante. O conflito que contrapunha o modelo estabelecido a uma
pressuposição igualitária do direito à propriedade perturba efetivamente a ordem
liberal. O que os federalistas lêem como facciosidade, pode ser lido como política
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no sentido que Rancière confere ao termo: poder constituinte em ação no processo
de atualização do principio da igualdade. Esta parece ser a leitura de Jefferson
sobre a Rebelião de Shays, e aqui, Jefferson se distancia dos federalistas para se
ombrear a Maquiavel no elogio à desunião como elemento que confere vitalidade
e estabilidade ao governo. Em missivas ele expõe seus argumentos:
A meu ver, uma pequena rebelião, de quando em vez, é boa medida e tão
necessária no mundo político como tempestades no mundo físico [...] A observação
desta verdade deve fazer com que os governantes republicanos honestos amenizem
as punições contra as rebeliões de sorte a não as desencorajar demais. É um
remédio necessário à saúde saudável do governo.233
Livre-nos Deus de passar vinte anos sem tal rebelião (rebelião de Shays) [...] que
país poderá preservar sua liberdade se seus governantes não forem advertidos, de
tempos em tempos, de que o povo preserva o espírito de resistência? Deixemo-lo
levantar-se em armas [...] Deve-se regar a árvore da liberdade, de quando em vez
com o sangue de patriotas e tiranos. É sua adubação natural. Nossa convenção
ficou demasiada impressionada com a insurreição de Massachusetts e,
precipitadamente, está soltando um gavião para amedrontar as aves.234
Um gavião pronto a neutralizar e domar o poder constituinte. O objetivo do
projeto contra-revolucionário se anuncia no número X dos Artigos Federalistas: a
230
Trecho da correspondência que Jefferson encaminha a Isaac MacPherson em 13 de agosto de
1813. JEFFERSON, Thomas. Escritos políticos. Trad. Leônidas Gontijo de Carvalho. São Paulo:
Abril cultural , 1979, p. 5.
231
Missiva a James Madison em 28 de outubro de 1785. Ibidem, p. 5.
232
Correspondência a George Hammond, em 29 de maio de 1792. Ibidem, p.6.
233
Carta dirigida a James Madison em 30 de janeiro de 1787. JEFFERSON, Thomas. Escritos
políticos, pp. 13-14.
234
Carta a Ezra Stiles, em 24 de dezembro de 1786. JEFFERSON, Thomas. Escritos políticos, p.
15.
99
primeira finalidade do governo é proteger a diversidade das aptidões humanas,
que está na origem dos direitos de propriedade.235 Contra o pendor facciosista das
massas, impôs-se a substituição do princípio democrático por um princípio
republicano sem povo. Esta nova estrutura institucional se funda no
fortalecimento do federalismo e centralização do poder na União como meio de
controlar os efeitos de um facciosismo que tem a distribuição desigual de
propriedade por principal fonte.236 A União deve concentrar poderes para defender
a propriedade contra facções movidas por ideais igualitários despropositados, ao
tempo que defende as pretensões dos legislativos estaduais de intervir em assuntos
econômicos: “um furor por papel moeda, por uma anulação de dívidas, por uma
divisão igual da propriedade, ou por algum outro projeto impróprio ou perverso,
terá menos condições de impregnar todo o corpo da União que um de seus
membros.”237 Disto decorrerá, ainda, a necessidade de manutenção regular de um
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exército permanente pela União, a reduzir a importância das milícias civis e
subverter o projeto constituinte do povo em armas em soberania estatal.238 Esta
soberania dividir-se-á entre os poderes da república que, dotados de
indeterminados poderes implícitos ao texto constitucional, já podem, de cima para
baixo, moldar a feição constitucional norte-americana. No entanto - e a isso
Montesquieu já se referira – os inevitáveis conflitos entre poderes demandam
soluções que não devem passar pelo crivo democrático, prenhe de facciosismo, e
o sistema de controle recíproco de checks and balances se apresentará mais
indicado aos federalistas.239
Resta evidente a total exclusão do cidadão desta máquina de governo, ao
tempo em que a mesma é identificada como único espaço legítimo da política.
Esta captura do poder constituinte procura doutrinar as mentes: fora deste novo
235
HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. Os artigos federalistas, 1787-1789:
edição integral. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, número
X, p. 134.
236
“A fonte mais comum e duradoura de facções, porém, tem sido a distribuição diversa e desigual
da propriedade.” HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. Os artigos federalistas,
número X, p. 135.
237
Ibidem, número X, p.139.
238
Ibidem; números XXV e XXIX.
239
Conforme destaca Charles Beard, o sistema de freios e contrapesos - elemento mais essencial da
Constituição americana - se funda na “doutrina de que o poder popular do Governo não pode ser
deixado livre, sobretudo no referente a leis afetando o direito de propriedade.” BEARD, Charles
A. A suprema corte e a constituição. Trad. Paulo Moreira da Silva. Rio de Janeiro: Forense, 1965;
p. 100.
100
espaço político há apenas facciosidade, violência e vileza, prontas a serem
arrostadas em prol da tranqüilidade e ordem pública.240 Vê-se erigir um
engenhoso modelo aristocrático, embora se recorra ao povo como fonte
legitimadora da constituição. Isto resta mais evidente pelo modo como se dispõe o
direito ao voto na república norte-americana. Aqui se evidencia claramente como
se cruzam o temor da burguesia pela intervenção política no campo econômico,
pela distribuição de renda e por um sistema eleitoral que, permitindo a
participação popular, pudesse levar à adoção destas medidas.241 Assim, apenas os
deputados são eleitos de forma direta, ao passo que, o acesso ao Senado e à
Presidência decorre de eleições indiretas, e os juízes da Suprema Corte restam
escolhidos por indicação presidencial. Conforme ressalta Losurdo, Tocqueville,
em sua obra Democracia na América, descortina os mecanismos de filtragem dos
interesses populares e propala a vantagem da qualidade sobre a maioria:
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Há certas leis cuja natureza é democrática e que, no entanto, conseguem corrigir
em parte esses instintos perigosos da democracia. Quando entramos na Câmara de
Representantes, em Washington, surpreende-nos o aspecto vulgar daquela grande
assembléia. O olhar procura muitas vezes em vão no seu seio um homem célebre.
Quase todos os seus membros são figuras obscuras, cujo nome não evoca imagem
alguma ao pensamento. São, na sua maior parte, advogados de aldeia,
comerciantes, ou mesmo homens pertencentes às últimas classes [...] A dois passos
dali, abre-se a sala do Senado, cujo reduzido recinto encerra uma grande parcela
das celebridades da América. Dificilmente se percebe um só homem que não
recorde à idéia uma ilustração recente [...] Por que a elite da nação acha-se naquela
sala e não na outra? [...] No entanto, uma e outra emanam o povo, uma e outra são
produtos do sufrágio universal [...] Então, donde vem diferença tão enorme? Para
explicá-lo, vejo apenas um fato: a eleição que produz a Câmara de Representantes
é direta; aquela da qual emana o Senado é sujeita a dois graus.242
O sistema eleitoral de duplo grau exerce, assim, a necessária função de
filtragem dos interesses das classes populares, sob pena de pretenderem intervir na
esfera econômica e na propriedade privada, em busca de uma igualdade que lhes
envenena o espírito.243 O ideário político dos federalistas trilha o mesmo caminho.
240
Com a constituição, ressalta Losurdo, trata-se de enfatizar não mais a liberdade e a participação,
mas a tranqüilidade e a ordem pública. LOSURDO, Domenico. Democracia ou bonapartismo, p.
100.
241
LOSURDO, Domenico. Ibidem, p. 17.
242
TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Trad. Neil R. da Silva. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1962, pp. 155-156.
243
“[...] as instituições democráticas desenvolvem, num grau muito elevado, o sentimento de
inveja no coração humano [...] despertam e incentivam a paixão da igualdade [...] Essa igualdade
completa foge todos os dias das mãos do povo no momento em que ele acredita poder apoderar-se
dela [...] A oportunidade de triunfar o agita, a incerteza do êxito irrita-o; ele agita-se, ele se cansa,
ele se desilude.” Ibidem, p. 153. Diante deste quadro Tocqueville apresenta a solução: “[...] vejo
101
Losurdo relembra a perspectiva de Madison sobre a questão: “se as eleições
fossem abertas a todas as classes do povo, a propriedade fundiária não seria mais
segura. Logo seria introduzida uma lei agrária.”244 Hamilton, a seu tempo, alerta
para a necessidade de controlar o povo: por ser inconstante e invejoso, está
propenso a atacar a propriedade.245 O acesso por eleição direta apenas à Câmara
dos Representantes parece recomendável: ao tempo em que se evita tornar claro a
diferença entre governo e povo, angariando a simpatia deste último que se
imagina participante decisivo das questões públicas, não oferece riscos mais
contundentes ao regime burguês de propriedade, diante do poder de veto da
Câmara alta.246
A condição de lei suprema que é conferida à Constituição diferenciará
sensivelmente o constitucionalismo americano. Muito se associa este traço ao
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aprisionamento do poder constituinte pela constituição. A questão, no entanto, não
reside aí, e sim no procedimento mediante o qual a constituição é elaborada, e os
modos pelos quais é protegida e se abre às necessárias mutações. O projeto
democrático jeffersoniano está a provar que a hierarquia do texto constitucional
sobre o legislativo ordinário pode constituir-se elemento fundamental para
preservar as determinações oriundas do processo constituinte. Não por outro
motivo, o embate entre revolução e contra-revolução em solo estadunidense não
gravitará sobre a topografia que o texto constitucional ocupa; os projetos
divergem quanto à natureza, os meios de proteção e mecanismo de atualização
constitucional.
O que resultará da Convenção de Filadélfia é a concepção de constituição
limitada à sua expressão legal. O político agora faz parte de um glorioso passado,
e só pode ser reeditado como farsa que ousa perturbar a ordem constituída pelos
no duplo grau eleitoral o único meio de pôr o uso da liberdade política ao alcance de todas as
classes do povo.” Ibidem, p. 156.
244
LOSURDO, Domenico. Democracia ou bonapartismo, p. 24.
245
Ibidem, p. 24.
246
Charles Beard oferece um panorama do sistema norte-americano arquitetado pelos federalistas:
“A exclusão do voto popular direto para eleição do presidente; a criação, também por eleição
indireta, de um Senado, destinado, no espírito dos Constituintes, a representar os homens de posse
e os interesses conservadores do país; a criação de um Judiciário independente, nomeado pelo
presidente com o beneplácito do Senado – todas essas medidas testemunhavam o fato de que o
propósito básico da Constituição não era a criação de um governo popular exercido por maiorias
parlamentares”. BEARD, Charles A. A suprema corte e a constituição, p. 100.
102
Pais Fundadores.247 Em sentido oposto, o projeto jeffersoniano mantém viva a
política ao prever o direito de as futuras gerações, periodicamente, alterarem a
constituição através de convenções constitucionais formadas mediante voto
popular para aquele fim específico.248 Uma abertura institucional expressa para a
manifestação do poder constituinte: a mutatio promovida pela virtú coletiva; a
multidão como criadora e defensora da constituição.249 Para Jeferson, a
Constituição oriunda da Convenção de Filadélfia não apenas não decorrera de
uma verdadeira assembléia constituinte, como também não poderia obrigar as
futuras gerações.250
A forma de mutação da ordem constitucional tornou-se sensível ponto do
debate que opôs Jefferson aos federalistas, e aqui, a Suprema Corte se encaixará
com precisão como última e preciosa peça do aparato de neutralização do poder
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constituinte. Para os federalistas a constituição é apenas um texto jurídico, e a
especificação do seu sentido deve logicamente ser atribuída ao tribunal supremo,
com seus juízes indicados pelo Presidente da República. A Suprema Corte é
erigida como guardiã da Constituição, a evitar sua conspurcação, filtrar eventuais
mutações e amortecer inevitáveis conflitos: estes são poderes implícitos a uma
corte que tem por função precípua interpretar o texto jurídico constitucional.251
247
A concepção dos federalistas sobre a necessidade de pôr termo à revolução é expressa por
Arendt: “[...] se a fundação era o objetivo e o fim da revolução, então o espírito revolucionário não
seria simplesmente o espírito de dar início a alguma coisa nova, mas de principiar algo permanente
e duradouro; uma instituição permanente, que englobasse esse espírito e o estimulasse a novos
empreendimentos, estaria sentenciando o seu próprio fracasso. Disso, infelizmente, se pode
depreender que nada ameaça mais perigosamente e mais profundamente as aquisições da
revolução do que o espírito que as suscitou.” ARENDT. Hannah. Da revolução, p. 186.
248
“Jefferson é o líder americano que chegou mais próximo da idéia de revolução permanente,
propondo, pelo voto, a realização de uma Second American Revolution.” BERCOVICI, Gilberto.
Soberania e constituição, p. 177.
249
Como destaca Bercovici, na democracia jeffersoniana, “a vontade do povo deveria ser
reintegrada na constituição. O povo era o elemento vital do republicanismo, o natural defensor da
constituição”. Soberania e constituição,, p. 178.
250
“A geração atual tem o mesmo direito de autogoverno que a anterior teve para si.”
JEFFERSON, Thomas. Escritos políticos, p 26.
251
“A interpretação das leis é o domínio próprio e particular dos tribunais. Uma Constituição é de
fato uma lei fundamental, e como tal deve ser vista pelos juízes. Cabe a eles, portanto, definir seu
significado tanto quanto o significado de qualquer ato particular procedente do corpo legislativo”.
HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. Os artigos federalistas, número
LXXVIII, p. 481.
103
O célebre caso Marbury vs. Madison252, não raro apresentado como
deflagrador do reconhecimento da Suprema Corte como instituição de controle do
legislativo, deve, portanto, ser compreendido neste contexto de intensa disputa
entre o pensamento revolucionário-democrático e a contra-revolução aristocrática
e sua visão icônica de povo. Após a derrota para Jefferson, John Adams, então
presidente candidato à reeleição, conduz John Marshall, seu secretário de Estado,
à Suprema Corte. Marshall é quem conduzirá a corte suprema em franca oposição
ao governo presidencial de Jefferson, contendo seu projeto democrático, como
destaca Bercovici:
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A suprema corte de Marshall, a partir de um caso sem grande importância, tenta
responder à pretensão de Thomas Jefferson subordinar o poder judiciário ao seu
projeto revolucionário. A corte, como afirma Khan, agiu como um ator político em
um conflito sobre como se deveria conformar politicamente a sociedade americana.
Não era, diretamente, um projeto de fortalecimento político da suprema corte, mas
a proposta de substituição da ação política pelo direito do rule of law, suprimindo o
conflito político pela sua juridificação. 253
A Contra-Revolução americana cumpria, enfim, seu desiderato. A política
se transformara refém dos poderes constituídos.254 Em meio a este sofisticado
mecanismo de controle do poder constituinte, a Suprema Corte será apresentada
como a instância moderadora dos arroubos democráticos, a conferir estabilidade
ao modelo burguês. Esta condição aparece com clareza ao longo dos artigos
federalistas referentes ao Poder Judiciário. Hamilton aproxima-se do ideal
moderador de Montesquieu ao definir a necessidade de um corpo intermediário
que limite o despotismo legislativo.255 A nobreza que aparece em Montesquieu
como corpo intermediário, necessário a moderar o pendor despótico do monarca e
da câmara de representantes, é aqui substituída pelos tribunais de justiça que,
252
Ao fim de seu mandato presidencial, John Adams nomeia William Marbury juiz de paz, mas
este não chega a ser empossado por recusa de James Madison, na qualidade de Secretário de
Estado do recém eleito Thomas Jefferson, o que deflagrou a célebre disputa judicial. Em sua
decisão sobre o caso, John Marshall anuncia que a Suprema Corte possuía como poder implícito às
suas atribuições constitucionais, o poder de rever atos provenientes do poder legislativo que não se
coadunem com o texto constitucional.
253
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição, pp. 178-179.
254
Este aspecto deve restar bastante claro, sob pena de se atribuir, erroneamente, a qualquer forma
de controle dos atos do executivo e do legislativo pelo judiciário a indevida pecha de usurpação.
255
“É muito mais sensato supor que os tribunais foram concebidos para ser um intermediário entre
o povo e o legislativo, de modo a, entre outras coisas, manter este último dentro dos limites
atribuídos a seu poder.”; HAMILTON, Alexander; JAY, John e MADISON, James. Os artigos
federalistas; número LXXVIII, p. 481.
104
agora, passam a cumprir o papel de moderar os demais poderes256: o poder
moderador transfere-se da Câmara Alta à Corte Suprema. Se quanto aos efeitos
não subsistem maiores divergências, a retórica de Hamilton procura adequar o
poder moderador norte-americano aos reclames democráticos: os tribunais devem
proteger o povo contra a usurpação do poder constituinte pelo legislativo, diante
da possibilidade de edição de normas em desconformidade como o texto
constitucional. Indo além: os tribunais devem proteger o povo contra si mesmo,
contra violações perpetradas pela maioria via legislativo.257
O caráter contra-majoritário da Suprema Corte, a despeito de sua
importância teórica como mecanismo de defesa de direitos civis das minorias, não
raro, seria utilizado como bloqueio à democracia. Isto nos informa, em primeiro
lugar, que a questão mais sensível se refere à forma como se estrutura a
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instituição: não se trata, portanto, de apontar o judicial review como
intrinsecamente pernicioso. Como instrumento que é, está a depender da forma de
uso, esta sim, necessariamente vinculada ao modo de se conceber o arranjo da
instituição que irá manejá-la. A Contra-Revolução norte-americana construíra a
Suprema Corte como última instância a garantir a perenidade de uma constituição
idealizada para bloquear o princípio igualitário da democracia e, ao fazê-lo, valeuse do judicial review como instrumento de proteção ao ideário caro à aristocracia
norte-americana. A função moderadora da Suprema Corte garantiria, por estes
meios, a estabilidade da ordem liberal ao longo do século XIX, como explicita
Losurdo:
Deve-se acrescentar que nos Estados Unidos, a Corte Suprema funciona na prática
como uma Terceira Câmara chamada a ser “a guardiã da propriedade contra o
poder do número”; e é justamente desta forma que ela, no século XIX, obstaculiza
256
Ao rebater as críticas de que, na Grã-Bretanha, o poder judiciário pertence, em última instancia,
à Câmara Alta (dos Lordes), Hamilton defende a sua substituição pela atuação da Suprema Corte:
“Talvez se pense que a força da objeção consiste na organização particular da Corte Suprema
proposta: no fato de ser composta de um corpo distinto de magistrados, e não de uma das câmaras
do legislativo, como no governo da Grã-Bretanha [...] segundo a interpretação conferida a essa
máxima [separação de poderes] ao longo destes artigos, ela não é violada quando se atribui o poder
final de julgar a uma parte do corpo legislativo. Mas, ainda que não se trate de uma violação
absoluta dessa excelente norma, está tão próxima disso que apenas por isso já seria um modo
menos adequado que aquele proposto pela convenção.” Ibidem, número LXXXI, p. 494.
257
HAMILTON, Alexander; JAY, John e MADISON, James. Os artigos federalistas, número
LXXVIII, p. 483.
105
fortemente o desenvolvimento da democracia, o associativismo sindical, o imposto
de renda progressivo, a proibição do trabalho infantil, etc.258
Charles Beard, neste mesmo sentido, resumira com acurada pertinência que
o sistema federal foi basicamente concebido “para oferecer aos direitos
estabelecidos de propriedade a proteção de um Judiciário totalmente independente
do eleitorado.”259 Por mais que os fatos demonstrem o contrário, existirá sempre a
hábil pena de Hamilton a demonstrar aos espíritos mais inquietos que a Suprema
Corte apenas especifica o sentido da lei fundamental, mediante ato de mero
julgamento, que não se confunde com o exercício de vontade expresso pelo
legislativo.260 Não há lógica, portanto, em questionar sobre quem nos guardará do
guardião: “não se pode dar nenhum peso à afirmação de que os tribunais podem, a
pretexto de uma incompatibilidade, substituir as intenções constitucionais do
legislativo por seus próprios desejos.”261
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Após esse percurso não restará traço daquele poder judiciário que
Montesquieu definira como um poder nulo, apenas a boca da lei. Conquanto
Hamilton o considere ainda o mais fraco dos poderes, trata-se agora de um poder
que pode influir nas decisões públicas, um poder dotado de capacidade de
“orientação política”.262 Não se trata, à evidência, de uma instituição aberta à
atualização do princípio da igualdade, e sim uma esfera de poder que entende
ilegítima qualquer mutação que se desenvolva fora dos escaninhos do poder
estatal. O aprisionamento do poder constituinte se limita menos ao texto
constitucional, do que à interpretação que a Suprema Corte, guardiã da ordem
contra-revolucionária, lhe reserva, a exemplo do que explicita Negri:
[...] na Constituição dos Estados Unidos, o poder judiciário resolve dinamicamente
as ambigüidades que a máquina constitucional evidencia na rigidez que lhe
constitui a garantia. Ao atuar como elemento dinâmico de efetivação
constitucional, o poder judiciário funda e inova. Atribui-se continuamente uma
espécie de poder constituinte que revela a “força política” global da Constituição.
[...] O poder judiciário assume e exalta por si mesmo a explicitação de um poder
258
LOSURDO, Domenico. Democracia ou bonapartismo, p. 25.
BEARD, Charles A. A suprema corte e a constituição, p. 100.
260
HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. Os artigos federalistas; artigo
LXXVIII, p. 482.
261
HAMILTON, Alexander; JAY, John e MADISON, James. Os artigos federalistas, artigo
LXXVIII, p. 482. Ou, ainda, conforme o próprio Hamilton: “pode-se observar, finalmente, que o
suposto perigo de usurpações da autoridade legislativa pelo judiciário, reiterado em muitas
ocasiões, é na realidade um fantasma.” Ibidem, artigo LXXXI, p. 496.
262
NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 255.
259
106
constituinte insuscetível de aprisionamento nas malhas de uma constituição
rígida.263
Como conseqüência, o poder constituinte, longe de ganhar um espaço
público de atuação, resta encapsulado no poder judiciário e a Suprema Corte não
apenas se apresenta como único espaço legítimo em que se decide a mutação - ou
a cristalização – constitucional, mas como sujeito que determina sua forma, a
oportunidade e conteúdo. Arendt, sem parecer se dar conta das implicações daí
decorrentes, apresenta a fotografia deste tribunal:
Do ponto de vista institucional é a falta de poder, acrescida da permanência no
cargo que, na República americana, a verdadeira sede da autoridade está na
Suprema Corte. E essa autoridade é exercida através de uma formulação contínua
da Constituição, pois a Suprema Corte é, de fato, nas palavras de Woodrow
Wilson, “uma espécie de assembléia constitucional em sessão permanente”.264
O que leva Arendt a aceitar que a Suprema Corte substitua o poder
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constituinte na “formulação contínua da Constituição”? Em que se baseia para
transmudar um mero poder constituído em “assembléia constitucional em sessão
permanente”? Arendt fundamenta sua teoria na necessidade de distinguir poder e
autoridade. Em sua perspectiva, os revolucionários norte-americanos souberam
atribuir origens diversas ao poder e à autoridade.265 Esta dicotomia, explicita a
autora, era conhecida dos romanos, que depositavam a autoridade em seu Senado.
Na realidade norte-americana a distinção também se revela: o povo é a fonte do
poder, mas a autoridade é exercida pela Suprema Corte mediante processo de
interpretação de uma constituição escrita, concebida com o objetivo de evitar que
“as normas da decisão da maioria se deteriorassem em ‘despotismo eletivo’ do
governo da maioria.”266. Arendt destaca:
Entre ‘as numerosas inovações introduzidas no cenário americano’ (Madison)
talvez a mais importante, e certamente a mais evidente, consistiu numa mudança de
localização da autoridade, que passou do Senado romano para o ramo judiciário do
governo; mas o que permaneceu próximo ao espírito romano foi a necessidade de
estabelecimento de uma instituição concreta que, diferindo nitidamente dos poderes
das áreas legislativa e executiva do governo, fosse destinada ao exercício da
autoridade [...] Em Roma, a função da autoridade era política, e consistia em
oferecer aconselhamento, enquanto que, na República americana, a função da
autoridade é legal e se exerce através da interpretação.267
263
Ibidem, pp. 255-256.
ARENDT, Hannah. Da revolução, pp. 160-161.
265
ARENDT, Hannah. Da revolução, p. 125.
266
Ibidem, p. 131.
267
Ibidem, pp. 160-161.
264
107
O fundamento exposto por Arendt diz muito sobre a função moderadora da
Suprema Corte. Interessante notar como Carl Schmitt já havia se valido de
semelhante argumento para construir teoria que atribuía ao presidente do Reich a
função de poder neutro. Em sua obra O guardião da constituição a distinção entre
autoridade e poder é essencial para solucionar a posição do chefe de Estado no
âmbito do Estado constitucional parlamentar fundado pela Constituição de
Weimar. Schmitt destaca a presença da diferenciação entre poder e autoridade na
teoria do poder moderador de Benjamin Constant, ressaltando que o pensador
francês faz menção à autoridade do Senado romano como exemplo de exercício
da função moderadora.268 Ressalta, ainda, que a afirmação de Montesquieu no
sentido de que o judiciário apresenta-se como um poder fraco relaciona-se com a
diferenciação entre poder e autoridade, “pois o juiz tem muito mais autoritas do
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que potestas”269 Arendt parece concordar com tudo isso.
Na concepção de Schmitt a distinção entre autoridade e poder restou
esquecida na Alemanha pelo fato de que o monarca, na monarquia constitucional
alemã, efetivamente reinava e governava.270 Fato diverso se passaria no Estado
constitucional parlamentar com diferenciação de poderes. Ali o presidente do
Reich deveria exercer um tipo especial de autoridade, função peculiar de terceiro
neutro que não se confunde com atividade contínua executiva e legislativa, mas
apenas como guardiã que só é deflagrada diante de uma emergência.271
A aproximação entre a estrutura argumentativa de Arendt e Schmitt,
conquanto esposem projetos distintos e atribuam a função de autoridade a
instituições diversas, reforça a assertiva de que, à Suprema Corte, restou atribuída
a função de Poder Moderador.272 A partir de então, caberia a esta “assembléia
constitucional em sessão permanente” proceder a uma “formulação contínua da
268
“É de se considerar nesse contexto que Benjamin Constant, em suas exposições sobre o pouvoir
neutre, também menciona a auctoritas do senado romano como exemplo.” SCHMITT, Carl. O
guardião da constituição. Tradução: Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, pp. 199.
269
SCHMITT, Carl. O guardião da constituição, pp. 199-200.
270
Ibidem, p. 197.
271
“Conforme o direito positivo da Constituição de Weimar, a posição do presidente do Reich,
eleito pela totalidade do povo, só pode ser construída com a ajuda de uma teoria mais desenvolvida
de um poder neutro, intermediário regulador e preservador”. Ibidem, p. 201. Ao que se integra:
“[...] a função peculiar do terceiro neutro não consiste em atividade contínua de comando e
regulamentar, mas, primeiramente apenas intermediária, defensora e reguladora, e só é ativa em
caso de emergência e, ademais, porque ela não deve concorrer com os outros poderes no sentido
de uma expansão do próprio poder [...]” Ibidem, p. 200.
272
A teoria do Schmitt sobre o poder neutro será retomada, ainda, ao longo do próximo ponto.
108
Constituição”. Ora, esta mutação contínua que Arendt atribui à Suprema Corte em
nada remonta à criatividade e espontaneidade da mutatio maquiaveliana. Ela
deriva da argumentação de que o tribunal superior, na qualidade de poder neutro,
se apresenta como autoridade mais capacitada para interpretar um abstrato espírito
constituinte e determinar o verdadeiro sentido da lei fundamental; um filtro
imparcial a profetizar a vontade do povo soberano plasmada no texto
constitucional.
Recorrer a tal discurso implica, ainda, apresentar a Suprema Corte como
único espaço no qual os desvios do legislativo e do executivo poderão ser
arrostados legitimamente: uma instituição que torna desnecessário o direito de
resistência; que entende o conflito e a política como perigoso dissenso faccioso.273
Eis o engenho de uma arquitetura institucional que, valendo-se do ideal
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moderador, neutraliza o poder constituinte ao tempo em que prega, retoricamente,
sua ardorosa defesa.
O exemplo norte-americano do uso da teoria do poder moderador revela,
assim, traços já contidos na sua proposição por Montesquieu. O receituário de
Montesquieu será repetido pelos contra-revolucionários franceses. O Termidor
procurará, com suas peculiaridades, instituir seu poder moderador. Alteram-se as
formas, instituições e personagens, não os objetivos.
3.2
O Poder Moderador e Contra-Revolução Francesa
Montesquieu atribui à moderação valor indispensável para bem ordenar
tanto a vida pública como a vida privada. Transportada para a organização política
(organização policial como preferiria Rancière) a moderação possui um
significado próprio. Ela se apresenta como fiadora do equilíbrio institucional,
trazendo estabilidade para um governo misto, calcado na separação de poderes. Se
a diferenciação do poder pelas funções de governar, legislar e julgar deve impedir
273
Daí Bercovici afirmar que o direito de resistência restou absorvido e substituído nas estruturas
do Estado de direito, consumando o liberalismo, não a democracia. Desta forma, expõe o autor, ao
excluir a resistência e a revolução do sistema, o liberalismo privou o direito à revolução de
fundamento jurídico. Estando fora do direito, a revolução tornou-se mero fato.” BERCOVICI,
Gilberto. Soberania e constituição, p. 180.
109
o arbítrio, a sua divisão entre as parcelas da sociedade – monarca, nobres e povo busca impedir o desentendimento e a luta entre classes. Enquanto ao monarca
compete o poder executivo, o poder de legislar deve ser conferido ao povo e à
nobreza. O povo - todos aqueles que não integram a nobreza ou a realeza - deve,
por meio dos seus representantes eleitos para integrar a Câmara Baixa, tomar parte
da elaboração das leis, tendo, entretanto, como contraponto moderador, a
participação da nobreza através da Câmara Alta. Aqui se pode observar
claramente que o modelo de governo misto-moderado, embora pregue a
participação de todas as forças sociais no ato de governar, convive em perfeita
harmonia com seu profundo desprezo pela democracia. Se, parte do povo
encontra-se apta a escolher representantes, ele jamais deve influenciar diretamente
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as decisões do governo, face sua inaptidão natural para tanto:
[...] saberá o povo conduzir um negócio, conhecer os lugares, as ocasiões, os
momentos, e aproveitá-los? Não, não o saberá [...] Da mesma forma que a maioria
dos cidadãos que têm capacidade para eleger, mas não a têm para serem eleitos,
assim também o povo, que tem capacidade suficiente para julgar a gestão de
outrem, não é, no entanto, capaz de governar por si próprio. É preciso que os
negócios se desenvolvam, mas dentro de um certo ritmo, não muito lento nem
muito acelerado. Mas o povo sempre tem ou muita ou pouca ação, Às vezes, com
cem mil braços, tudo transforma; outras, com cem mil pés, caminha apenas como
os insetos.274
A limitada participação de uma parcela menor deste nosso Gregor Samsa275
presta-se, como prestidigitação, a ludibriar os sentidos, fazendo-nos perceber
como igualitária uma partilha desigual do sensível. A preocupação que
Montesquieu revela com o despotismo tampouco tem o condão de, por si só,
tornar democrática uma teoria que tem por pedra de torque a desigualdade política
e social. É na teoria política de Espinosa que o vínculo entre o combate ao
despotismo e a democracia pode ser encontrado. Em seu Tratado Político,
Espinosa sustenta que a participação da plebe nas coisas do governo não deve ser
evitada pela razão de uma suposta inaptidão natural em lidar com as questões
políticas. Espinosa inverte a lógica: por não lhe ser permitido participar das
274
MONTESQUIEU. O espírito das leis, p.25.
Nesta desconcertante obra de Franz Kafka em que se constitui A metamorfose, Gregor Samsa
amanhece transmudado em um tenebroso inseto. O tratamento que a família lhe dispensa após o
sinistro acontecimento, oscila entre a adoração, em sua ausência, e inconfessável mal-estar ante a
materialização do vil animal sob suas vistas. Eis o destino do povo - e isso se tornará evidente nos
discursos liberais termidorianos – digno de figurar como parcela contável nas mais sofisticadas
abstrações teóricas; causador de repulsa ao primeiro sinal de sua concretude como ator político.
275
110
decisões públicas é que a plebe sequer tem a oportunidade de formar idéias
adequadas sobre esta atuação. Nas palavras de Espinosa:
Não é de se admirar, enfim, que para a plebe não haja verdade e que ela não tenha
capacidade de juízo, visto que os maiores negócios do Estado são tratados fora dela
e que ela não tem qualquer meio de saber de nada, à parte alguns indícios que é
impossível dissimular. É coisa rara, com efeito, ser capaz de prorrogar os juízos.
Portanto, querer tratar de todos os negócios com desconhecimento dos cidadãos e
pedir ao mesmo tempo que estes não estabeleçam sobre eles falsos juízos, que não
interpretem erradamente os acontecimentos, é pura loucura.276
A praxis, portanto, faz o homem público. Essas duas formas distintas de se
conceber a relação entre o social e o político voltariam a se confrontar ao longo da
Revolução Francesa. O elogio à desigualdade social que conduz à necessária
desigualdade política em Montesquieu será adaptado pelo discurso liberal sob a
fórmula de uma igualdade meramente formal. Ao seu passo, os sans-culottes
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ostentarão uma pressuposição de igualdade material que, ao modo pregado por
Espinosa, permitia o efetivo exercício de seu direito de tomar parte na construção
de uma ordem comum. O abstrato princípio da soberania popular, enunciado
etéreo no discurso burguês dos primeiros anos revolucionários, se corporifica não
mais como ente transcendente, mas como poder constituinte em ação. Interessante
observar como estas duas formas distintas de apreender o real amparam-se, na
alvorada da revolução, em uma mesma teoria. Em torno do pensamento político
de Rousseau gravita a disputa entre burguesia e sans-culottes sobre o significado
da soberania e seus efeitos. Se, na concepção rousseauniana, a soberania é o
exercício da vontade geral277, a chave para a legitimação do poder passa pelo
conteúdo deste conceito. A vontade geral não se limita à soma das vontades
particulares, a que o pensador denomina vontade de todos. Esta, afirma Rousseau,
prioriza apenas o interesse privado; aquela trata do interesse comum278 e se assim
o é, a lei comum deve ser estatuída por todo o povo.279
276
ESPINOSA, Baruch de. Tratado político, p. 337.
ROUSSEAU, Jean-Jacques . O contrato social e outros escritos. Trad. Rolando Roque da Silva.
São Paulo: Cultrix, 2009, p. 38.
278
Ibidem, p. 41.
279
“[...] quando todo o povo estatui sobre todo o povo, só a si mesmo considera; e se se forma um
relação, é de um objeto inteiro sob o ponto de vista ao objeto inteiro sob outro ponto de vista, sem
nenhuma divisão do todo. Então a matéria sob a qual estatuímos passa a ser geral, como a vontade
que a estatui. A este ato é que eu chamo uma lei [...] As leis não são propriamente senão as
condições de associação civil. O povo, submetido às leis, deve ser o autor das mesmas [...]”
Ibidem, pp. 48-49.
277
111
A questão se intrinca no momento em Rousseau faz do legislador o
decifrador desta vontade geral, o guia que conduz o povo, essa “turba cega, que
em geral não sabe o que quer, porque raramente conhece o que lhe convém”280 e,
a um só tempo, reafirma que “a soberania não pode ser representada”281,
expressando-se no “povo legitimamente reunido em corpo soberano”282, pois
“onde se encontra o representado deixa de haver o representante”283, de forma que
cabe apenas ao povo o julgamento sobre a pertinência de se manter regido por
determinada constituição.284 Este paradoxo em torno do conceito de vontade geral,
afirmará Negri:
[...] ao mesmo tempo em que permitia a afirmação do poder constituinte [...],
negava-a. A vontade geral era um conceito antigo, forjado fora da temporalidade,
ou melhor, definido em contraste com a temporalidade. Sua natureza abstrata era
indelével. O poder constituinte, submetido à tutela da vontade geral, permanecia
prisioneiro de uma essência atemporal.285
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No entanto, tal paradoxo permite que o conceito de vontade geral seja posto
em disputa no decorrer da Revolução Francesa, contrapondo o ideal burguês à
concretude igualitária dos sans-culottes. É Negri, mais uma vez, que revela os
termos desta disputa:
Para a burguesia, de um lado, a “vontade geral” é o fundamento abstrato da
soberania, que aponta genericamente o povo como sujeito do poder; para os sansculottes, de outro, a soberania reside diretamente no povo, em sua concretude
histórica, não como princípio, mas como prática.286
O que se depreende dessas formas antagônicas é a existência de dois
mundos sensíveis que se chocam. Não há revolucionário que não lance contra o
Ancien Régime a lógica igualitária a fazer tremer as bases da ordem absolutista.
No entanto, quando burgueses e sans-culottes gritam igualdade, esta mesma
palavra é sentida de forma dissensual. Igualdade, liberdade e fraternidade não são
lidas da mesma forma por aqueles que tomam parte da revolução. A disputa
revolucionária é também o embate pelo significado dos ideais revolucionários.
Assim, quando a Declaração de Direitos de 1793 reconhece o direito à
280
Ibidem, p. 49.
Ibidem, p. 96.
282
Ibidem, p. 94
283
Ibidem, p. 94.
284
“[...] não há nem pode haver nenhuma espécie de lei fundamental obrigatória para o corpo do
povo, nem mesmo o contrato social.” Ibidem, p. 32.
285
NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 287.
286
Ibidem, p.282.
281
112
insurreição como decorrência da soberania popular, esta não é compreendida
pelos sans-culottes como mero um princípio abstrato, e sim como reconhecimento
da democracia como praxis:
O conflito de interpretações tem lugar no debate político e na vida do movimento.
Toda a classe política – aqui, girondinos e montanheses [jacobinos] estão alinhados
– declara que, se a soberania pertence ao povo, isto se dá enquanto o soberano for
uno e indivisível, um ser puramente metafísico, ou seja, expressão da vontade
geral. Ao contrário, para os sans-culottes, o soberano nada tinha de metafísico, era
de carne e sangue, o próprio povo era quem exercia os seus direitos nas
assembléias de suas seções.287
A ruptura com o Antigo Regime abrira a disputa para estabelecer a nova
estrutura que conformaria o Estado. Até então alijada da participação no poder, a
burguesia almeja a tradução de seu poderio econômico em poder político. Trata-se
de transmudar o título sobre o qual se deve fundar a legitimidade de mando: da
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honra dos nobres, à riqueza dos burgueses, e de tomar de assalto o poder estatal,
subjugá-lo aos interesses burgueses e mantê-lo disciplinado; fazer a revolução e
alcançar o poder, cristalizando uma nova ordem na qual o Estado sirva aos seus
interesses. As revoluções, no entanto, não costumam seguir roteiros lineares e
previsíveis. Do projeto ao processo há caminhos que, não raro, apontam para
direções opostas. O processo revolucionário, distendido no tempo, permite um
aprofundamento da participação popular além do projetado pela burguesia. A
massa de sans-coulotes não assiste impassível ao processo revolucionário. Neste
novo cenário que se descortina não se resignam a exercer papel coadjuvante. Sua
participação no decorrer da revolução revela algo para além de uma massa
docilizada a ser manobrada pela burguesia288.
O conflito entre as distintas formas pelas quais sans-culottes e burgueses
apreendem o mundo encontra-se impresso nas diferenças entre as Declarações de
Direitos de 1793 e 1795, a indicar as lutas que marcaram a Revolução
Francesa.289 A forma diversa com que tratam as questões da igualdade e do sujeito
287
Ibidem, pp. 282-283. Esta forma direta de exercer o poder anunciada como “soberania”,
explicita Negri, não é outra coisa senão a expressão do caráter absoluto do poder constituinte.
Ibidem, p. 283.
288
HOBSBAWN, Eric J.; A revolução francesa. Tradução Maria Tereza Lopes Teixeira e Marcos
Penchel; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996; p. 24.
289
Como expõe Negri, se é difícil interpretar a Revolução Francesa do ponto de vista da luta de
classes, certo é que, ao longo do seu desenvolvimento, se moldam novos sujeito políticos da luta
de classe: burguesia e proletariado, pelo que a luta de classes não é a origem, e sim resultado do
processo revolucionário. NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 281. Esta conclusão encontra
113
constituinte está a demonstrar este desentendimento. Se na Declaração de
Direitos de 1789 estas questões ainda se encontram em suspenso, à espera da
definição dos embates290, na Declaração de Direitos de 1793 elas se expressam
claramente. A igualdade ali não se apresenta apenas como uma fórmula genérica.
Ao enunciado de que todos os homens são iguais por natureza e diante da lei (art.
III), seguem-se dispositivos que concretizam esta igualdade no campo social.291 A
igualdade política se faz acompanhar da igualdade social. Como ressalta Negri:
O espaço político torna-se espaço social, o poder constituinte identifica o espaço
social como terreno de sua operatividade. O conceito de política é subvertido no
terreno social [...] A igualdade não é um conceito abstrato, mas um terreno a ser
percorrido. O conceito transcendental da vontade geral desmorona e o poder
constituinte afirma-se como potência social.292
Em relação à atuação do sujeito do poder constituinte, por sua vez, a
Declaração de Direitos de 1793 contempla o direito de resistência e insurreição
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em sua forma positiva, como prática transformadora em decorrência do
respaldo na teoria de Rancière, para quem as classes não preexistem ao embate; elas se formam
pelo conflito. RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento, p. 32. O que há anteriormente a indicar a
cena conflituosa não é apenas a oposição de dois grupos; é “a reunião conflituosa de dois mundos
sensíveis”. Idem. O dissenso, p. 374.
290
Negri ressalta que o conceito de igualdade e a possibilidade de fazer acompanhar igualdade
política à social ainda não se tornara problemático na Declaração de Direitos de 1789. NEGRI,
Antonio. O poder constituinte, p. 295. De forma análoga, a questão da subjetividade do poder
constituinte, como atividade que se desenvolve no tempo, não é enfrentada por aquela declaração.
Ibidem, pp. 299-300. Na perspectiva de Christian Lynch, o alto grau de abstração da constituição
de 1789 e a inexistência de um poder moderador que impusesse controle sobre os sentimentos
mais radicalmente democráticos, permitiram que a natureza e extensão da soberania fossem
questionadas, o que teria levado à continuação da revolução pelos sans-culottes. LYNCH,
Christian. O momento monarquiano: o poder moderador e o pensamento político imperial. Tese de
doutorado em Ciência Política. Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de
Janeiro, 2007, p. 64-65.
291
São exemplos destas normas que indicam a concretização da igualdade social, na constituição de
1793: o art. V - “Todos os cidadãos têm igual acesso aos cargos públicos [...]”; o art. XVIII –
“Todo homem pode compromissar seus serviços, seu tempo; mas ele não pode vender ou ser
vendido; sua pessoa não é uma propriedade alienável. A lei não reconhece qualquer servidão; entre
o homem que trabalha e aquele que o emprega, somente pode existir um compromisso de
dedicação e de compensação.”; o art. XXI – “A assistência social é uma dívida sagrada. A
sociedade deve aos cidadãos desafortunados a garantia de sua subsistência, seja oferecendo-lhes
trabalho, seja garantindo meios de sobrevivência aos que não têm como trabalhar.”; o art. XXII –
“A instrução é necessidade de todos. A sociedade deve favorecer o progresso da razão pública com
todos os meios ao seu dispor e deve colocar a instrução ao alcance de todos os cidadãos.”; o art.
XXIII – “A segurança social consiste na ação de todos para garantir a cada um o desfrute e a
preservação de seus direitos; esta garantia repousa na soberania nacional.”; o art. XXIX – “Cada
cidadão tem o mesmo direito de participar na formulação das leis e na nomeação de seus
mandatários ou de seus agentes.”; o art. XXXIV– “O corpo social sofre opressão quando mesmo
um de seus membros é oprimido. Cada membro sofre opressão quando o corpo social é oprimido.”
NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 296
292
Ibidem, p. 296.
114
desenvolvimento do poder constituinte.293 Este sujeito constituinte, dirá Negri, “é
o sujeito coletivo capaz de se mover no tempo. A sua capacidade constituinte é
contínua.” 294 A declaração de 1793 aponta, assim, para a manutenção do espírito
revolucionário. Estende indefinidamente o tempo de atuação do poder constituinte
da multidão. Faz da desunião uma variável da concórdia; internaliza o conflito
aceitando-o como motor da mutação maquiaveliana.
Para a burguesia, em contraposição, estender no tempo o atuar do poder
constituinte implica em abrir caminho para a insegurança e desestabilização da
ordem policial. O ideal liberal burguês jamais foi constituir uma sociedade
democrática e igualitária295, e sim estabelecer o império do constitucionalismo
que tutelasse liberdades civis e garantias para o desenvolvimento do capital296.
Revelar o caráter da política, abrir espaço ao dissenso com intuito de permitir uma
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constante atualização do princípio da igualdade é inaceitável, justamente por
inserir incontáveis variáveis em sua equação, tornando imponderável o cálculo do
futuro, tão caro aos espíritos – e aos negócios - burgueses. Fundamental, portanto,
conter as paixões e domar os ânimos populares; idealizar mecanismos de
moderação de poder para conter a democracia, identificada como convite ao
despotismo.
A reação burguesa viria pela Declaração de Direitos de 1795, com a
derrubada dos jacobinos do poder, após a fase o Terror imposto por Robespierre.
Para burguesia, impunha-se encerrar a Revolução. A contra-revolução burguesa
293
Expressam esses direitos, dentre outros: o art. XXXV – “A resistência à opressão é
conseqüência dos demais Direitos do Homem”; o art. XXXV – “Quando o governo viola os
direitos do povo, a insurreição do povo e de cada seção do povo é o mais sagrado dos direitos e o
mais indispensável dos deveres”. Na sua forma positiva, o direito de resistência se expressa pelo
art. XXXII – “O direito de apresentar petições aos depositários da autoridade pública não será, sob
qualquer circunstância, vedado, suspenso ou limitado; pelo art. XXXIII – “Um povo tem sempre o
direito de revisar, de reformar e de alterar sua Constituição. Uma geração não pode sujeitar as
gerações futuras às suas leis.” 293Ibidem, pp. 299-300.
294
Ibidem, p. 301.
295
“Mais especificamente, as exigências do burguês foram delineadas na famosa Declaração de
Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Este documento é um manifesto contra a sociedade
hierárquica de privilégios da nobreza, mas não um manifesto a favor de uma sociedade
democrática e igualitária.” HOBSBAWN, Eric J. A revolução francesa, p. 20.
296
A corroborar a tese de Domenico Losurdo, no sentido de que liberalismo e democracia não são
co-originárias, Hobsbawn salienta que “uma monarquia constitucional baseada em uma oligarquia
possuidora de terras era mais adequada à maioria dos liberais burgueses do que a república
democrática [...] de modo geral, o burguês liberal clássico de 1789 (e o liberal de 1789-1848) não
era um democrata mas sim um devoto do constitucionalismo. De um Estado secular com liberdade
civis e garantias para a empresa privada e de um governo de contribuintes e proprietários.” Ibidem,
pp. 20-21.
115
traz consigo a experiência – e os traumas - dos primeiros anos revolucionários:
após o Termidor, os liberais não voltariam a se referir à igualdade como princípio
amplamente abstrato, como ocorrera em 1789, momento no qual se abriu o flanco
para que os sans-culottes disputassem o conteúdo de seu significado. Se a
constituição democrática de 1793 deslocara a igualdade abstrata para a concretude
do terreno social, tornando-a igualdade material, a constituição burguesa de 1795
a desloca para o campo da propriedade e a projeta apenas em seu aspecto
formal.297 No que toca ao sujeito constituinte, a Declaração de Direitos de 1795
transmuda a dinâmica constituinte contemplada em 1793, em obrigações aos quais
as massas devem se submeter. O que está implícito ali é o retorno das massas à
condição de animais ruidosos. Seres de inferior patamar capazes apenas de
compreender ordens, o que, por fim, legitimará sua exclusão do processo eleitoral.
Nesta concepção excludente, não é mais a desunião que traz a boa ordem, e sim a
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obediência.298 É tempo de encerrar a revolução, obstruir o tempo contínuo de
atuação do poder constituinte da multidão e consolidar o projeto liberal.
Eis o mais sensível embate ideológico desde então: desnudar a política,
tornando evidente - e desejável - a desunião, ou travesti-la de ordem policial,
edificada para naturalizar a dominação burguesa legitimada pelo título de riqueza.
A política, como bem pontua Rancière, aparece como um desvio no jogo normal
da dominação que se revela como transição de um princípio de dominação a
outro. Uma naturalidade que, modificando-se apenas na forma de dominação e
não no conteúdo – que é a própria dominação – pretende-se dinâmica, quando, no
fundo, revela uma estática de não-liberdade. O que se vivenciava era a passagem
da lógica de dominação nobiliárquica - fundada no poder da diferença no
297
Nas palavras de Negri: “se a igualdade é afirmada, [...] se a segurança é reafirmada como
‘resultado do concurso de todos para assegurar os direitos de cada um’(art. IV); se a
inalienabilidade da pessoa é novamente garantida (art. XV), a ordem da igualdade e da segurança é
depois reconduzida à norma da propriedade.” NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 297. A
proteção à propriedade ganha destaque neste texto constitucional: art. V – A propriedade é o
direito de gozar e dispor de seus bens, de suas rendas, do fruto de seu trabalho e da sua
operosidade e art. VIII – O cultivo das terras, toda a produção, todo o meio de trabalho e toda a
ordem social repousam sobre a preservação das propriedades.
298
Assim, a Declaração de Direitos de 1795 determina que o cidadão não pode se insurgir, resistir
ou transformar : art. III – “As obrigações de cada um para com a sociedade consistem em
defendê-la, servi-la, viver sob a lei e respeitar seus agentes”; art. V – “Não se pode ser um homem
de bem sem cumprir honesta e religiosamente a lei”; art. VI – “Aquele que viola abertamente a lei
declara-se em estado de guerra com a sociedade”; art. VII – “Aquele que, sem transgredir
abertamente a lei, contorna-a mediante ardil ou artifício, fere os interesses de todos; ele se torna
indigno da benevolência e da estima alheia”
116
nascimento – para a lógica de dominação burguesa - fundada no poder indiferente
da riqueza.299
A política rompe com este percurso natural, vez que se apóia na ausência de
qualquer fundamento de dominação. Não há título para governar. Ela não apenas
indica a reciprocidade entre as posições de governantes e governados, como se
abre para reconfigurações dos sensíveis comuns. Restam evidente os riscos que o
elogio à desunião, como deflagrador da política, traz para os projetos da
burguesia. E por isso lhe é tão caro recorrer, contra-revolucionariamente, ao
modelo do governo misto e moderado. Se não há erro na contagem, não há porque
se recolocar em questão a partilha já dada do sensível. Assim, todas as possíveis
cenas de conflito não devem ser tidas por situações em que o proletariado discuta
e argumente; trata-se apenas de manifestações ruidosas de uma massa animalizada
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que se move premida por instintos. Rancière apresenta, assim, a tentativa liberal
de ocultar a política:
Na franqueza antiga que ainda subsiste nos “liberais” do século XIX, ela se
exprime assim: há apenas chefes e subordinados, pessoas de bem e pessoas de
nada, elites e multidões, peritos e ignorantes. Nos eufemismos contemporâneos, a
proposta enuncia-se de maneira diferente: há apenas partes da sociedade: maiorias
e minorias sociais, categorias sócio-profissionais, grupos de interesses,
comunidades etc. Há apenas partes, das quais devemos fazer parceiros. Mas, tanto
nas formas policiadas das sociedades contratuais e do governo de concertação,
como nas formas brutais da afirmação igualitária, a proposta fundamental
permanece a mesma: não há parcela dos sem-parcela. Só há as parcelas das partes.
Em outras palavras: não há política ou não deveria haver.300
Nesta perspectiva, a aproximação dos liberais ao pensamento de
Montesquieu apresenta-se coerente. É em Benjamin Constant - revolucionário que
procurou moldar o aparato institucional francês à feição liberal - que a influência
de Montesquieu se fará marcante. É certo que o ideal moderador já se fizera
presente desde o início da Revolução Francesa301. Ademais, no Ano III da
299
E este é o sentido de igualdade para a burguesia. A riqueza deve ser indiferente ao bem nascer
dos nobres. No entanto, àqueles que por méritos a detêm, cabe a condução dos rumos nacionais.
300
RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento, p. 29. Daí porque, como já mencionado no capítulo
anterior, Rancière ressalta que a guerra dos pobres e dos ricos é a guerra sobre a própria existência
da política. Ibidem, p. 29.
301
Como demonstra Lynch, nos primeiros anos da Revolução Francesa já se esboçara o conceito
de Poder Moderador que se prestasse a controlar o que os liberais entendiam como excessos do
modelo republicano. As propostas apresentadas tinham em comum a adoção do governo misto
como mecanismo de moderação, tendo sido todas rechaçadas, inclusive por Sieyès, aferrado que se
mantinha, até então, à concepção unitária da soberania nacional a ser exercida pela Assembléia
legislativa. LYNCH, Christian. O momento monarquiano, p. 63.
117
Revolução Sieyès não apenas deixa de se opor ao ideal moderador – do qual se
afastava inicialmente pela fidelidade à concepção unitária da soberania nacional a
ser exercida pela Assembléia de representantes – como propõe a criação de um
jury contitucionnaire com função de controlar eventuais mudanças na
constituição.302 O mesmo Sieyès, que em 1789 não admitia a constituição inglesa
como modelo para França, se aproxima de Montesquieu ao propor um equilíbrio
de poderes em que uma instância moderadora pudesse conservar a ordem
liberal.303 A mutatio transfere-se, assim, do poder constituinte a um poder
constituído e, neste tormentoso percurso, perde seu caráter inovador, empalidecida
e deturpada para ser submetida a uma função conservadora. A proposta de Sieyès
restou derrotada, não o sentimento moderador. Este permaneceria como núcleo da
teoria política de Benjamin Constant atravessando o Termidor, o bonapartismo e a
restauração monárquica. O ideal do poder moderador ressurgiria como aparato
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institucional pronto para controlar eventuais arroubos democráticos ao estilo da
temida Constituição de 1793.
Marcantemente influenciado por Montesquieu, Constant identifica a
soberania ilimitada como sinônimo de despotismo a ser combatido. A crítica
dirigida a Rousseau refere-se à extensão por ele conferida ao princípio da vontade
geral, pois, dirá Constant, se Rousseau acerta ao condicionar a legitimidade da
autoridade ao princípio da vontade geral, equivoca-se ao atribuir-lhe caráter tão
extenso que a possibilite dispor soberanamente dos direitos individuais dos
cidadãos.304 Insurge-se Constant:
Pelo contrário, há uma parte da existência humana que, necessariamente,
permanece individual e independente e que, por direito, transcende a jurisdição
política. A soberania só existe numa forma limitada e relativa. A jurisdição dessa
soberania pára onde começa a existência individual e independente. Se a sociedade
302
Esta instância moderadora de controle, segundo Sieyès, deveria pronunciar-se sobre eventuais
violações à Constituição, anulando-as; seria, ainda, espaço para decidir sobre as mutações no texto
constitucional, bem como, prestar-se-ia a suprir lacunas das leis positivas. SIEYÈS, Emmanuel.
Escritos e discursos de la revolución. Trad. Ramon Maiz. Centro de estudios constitucionales; pp.
277 e 291-293.
303
A alteração de rota de Sieyès revela, para Negri, o desvio conceitual da burguesia como
conseqüência da concepção de poder constituinte da multidão que se expressa em 1793. Negri,
Antonio. O poder constituinte, p. 315. Neste momento, afirma Lynch, Sieyès abandona parte de
suas posições republicanas para abraçar posturas liberais. LYNCH, Christian. O momento
monarquiano, p. 67.
304
CONSTANT, Benjamin. Princípios de política aplicáveis a todos os governos (1810). Trad.
Joubert de Oliveira Brízida. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007, p. 81.
118
ultrapassa essa fronteira, torna-se tão culpada de tirania quanto o déspota que só se
mantém no poder à custa da espada assassina.305
O que Constant pretende limitar, portanto, não é tanto o abstrato conceito de
vontade geral de Rousseau. O que torna insuportável para o controle liberal é a
inscrição de igualdade operada pela concretude do processo constituinte,
decorrente da forma peculiar pela qual os sans-culottes desatam a dúbia fórmula
rousseauniana da soberania popular.306 Orientado pela necessidade de limitar o
poder constituinte da multidão, tirana das liberdades civis, o pensamento político
de Benjamin Constant erige-se tendo por pilares: representatividade mediante
voto censitário; não intervenção do Estado na gestão dos assuntos privados;
divisão de poderes e criação de uma instância de poder, cuja neutralidade a
legitimasse a amortecer os conflitos entre os demais poderes, garantindo
estabilidade do Estado liberal.
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Em célebre artigo sobre o tema, Constant pontua que concepção de
liberdade dos modernos se opõe à dos antigos. Enquanto o homem antigo a
identificava na participação direta nos assuntos públicos307, o indivíduo moderno
a entendia como livre exercício de direitos individuais, a possibilitar uma gestão
da vida privada sem a ingerência estatal.308 A economia baseada na guerra e na
escravidão, permitira aos antigos tomar parte nos negócios da polis intensamente.
Isto já não era mais possível - nem quisto - pelos modernos. Seu tempo é voltado
para si próprio, suas realizações e negócios. Assim, se os antigos exerciam
diretamente seus direitos políticos, os modernos deveriam fazê-lo pela via indireta
305
Ibidem, pp. 81-82.
O que se torna mais evidente na edição de 1814 dos Princípio Políticos: “existe [...] uma parte
da vida humana que é, por natureza, individual e independente, e fica à margem de toda a disputa
social.” CONSTAT, Benjamin. Princípios políticos constitucionais: princípios políticos aplicáveis
a todos os governos representativos e particularmente à Constituição atual da França (1814). Trad.
Mário do Céu Carvalho. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1989, p. 63.
307
A liberdade dos antigos consistia, assim, em “exercer coletiva, mas diretamente, várias partes da
soberania inteira, em deliberar na praça pública sobre a guerra e a paz, em concluir com os
estrangeiros tratados de aliança, em votar as leis, em pronunciar julgamentos, em examinar as
contas, os atos, a gestão dos magistrados [...]” CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos
comparada à liberdade dos modernos. Trad. Loura Silveira. In: Filosofia Política; L± p. 11.
308
A liberdade dos modernos, sustenta Constant, consiste “em não se submeter senão às leis [...]
no direito de que cada indivíduo de dizer sua opinião; de escolher seu trabalho e de exercê-lo; de
dispor de sua propriedade, até de abusar dela; de ir e vir sem precisar de permissão e sem ter que
prestar contas de seus motivos e de seus passos. É para cada um o direito de reunir-se a outros
indivíduos, seja para discutir sobre seus interesses, seja para professar o culto que ele e seus
associados preferirem, seja simplesmente para preencher seus dias e suas horas de maneira mais
condizente com suas inclinações, com suas fantasias.” Ibidem, p. 10.
306
119
da representação.309 Ao homem moderno, espírito emancipado pela independência
que lhe impinge a prática comercial, autocentrado em seus empreendimentos e em
sua vida privada, não sobra tempo para participar diuturnamente das deliberações
públicas, de sorte que o governo representativo lhe é interessante e útil. Útil
porque, ao tempo que possibilita participação indireta do cidadão na vida política,
o libera para cuidar de seus interesses privados; interessante porque evita a
participação direta da multidão no tomar parte do governo.
A adesão ao regime representativo, no entanto, traz embutida em si o risco
da eventual influência que as massas possam exercer nos sufrágios.310 Deve-se,
portanto, controlar a escolha dos representantes, sob pena de se viver sob a égide
de uma legislação social igualitária, negação da liberdade individual tão cara a
Constant. A solução reside em aplicar o sufrágio censitário, impedindo o acesso
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da classe trabalhadora ao voto. Tal qual Montesquieu, Constant entende que o
trabalhador vulgar não é talhado para a coisa pública. Obrigados que estão a
dispensar todo o tempo no labor, não dispõe de momentos de ócio para informarse e alcançar um julgamento adequado sobre o bem comum:
Aqueles a quem a indigência mantém numa eterna dependência e condena a
trabalhos diários, não têm maior informação que as crianças sobre os assuntos
públicos [...] É preciso pois, além do nascimento e da idade legal, um terceiro
requisito: o tempo livre indispensável para informar-se a atingir a retidão de
julgamento. Somente a propriedade assegura o ócio necessário à capacitação do
homem para o exercício dos direitos políticos.311
Não deixa de ser auspicioso que o povo-inseto de Montesquieu seja, aqui,
ao menos, reconduzido à sua forma humana! A par da diferença do estilo retórico,
tudo se resume a fazer parecer natural a distribuição dos papéis e lugares que cada
parcela da sociedade deve ocupar na ordem liberal. O elogio de Constant à classe
trabalhadora - patriota como qualquer outra, dirá312 – prepara o terreno para
ocultar os proletários como a parcela dos sem-parcela, como os não-contados no
tomar parte do governo, por não possuírem o título de propriedade que legitima a
dominação. Qual a parte que cabe ao proletariado nessa partilha liberal do
sensível? Apenas o trabalho; somente através dele poder-se-á alcançar ao título de
Ibidem, pp. 10-11.
310
LOSURDO, Domenico. Democracia ou bonapartismo, p. 16.
311
CONSTANT, Benjamin. Princípios políticos constitucionais (1814), p. 118.
312
“Não quero cometer nenhuma injustiça contra a classe trabalhadora. É tão patriota como
qualquer outra e amiúde realiza os mais heróicos sacrifícios.” Ibidem, p. 118.
120
proprietário.313 O artesão a que se referira Platão, impossibilitado pelo trabalho de
participar nas decisões da polis, revive em Constant. O que se passa é uma
distribuição perfeita das ocupações e lugares que cada parcela possui na
sociedade. Aos burgueses cabe gerar e fazer circular a riqueza; aos representantes,
eleitos por voto censitário, elaborar leis que protejam os cidadãos da ingerência
indevida do Estado em suas vidas privadas; e à massa de populares, emprestar
heroicamente sua força física ao labor. A divisão do trabalho presta-se, portanto, a
excluir o proletariado de todo o espaço político comum:
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[...] o princípio de uma sociedade bem organizada é que cada um faça apenas uma
coisa só, aquela à qual sua “natureza” o destina. Em certo sentido, isso diz tudo: a
idéia do trabalho não é a de uma atividade determinada ou a de um processo de
transformação material. É a idéia de uma partilha do sensível: uma impossibilidade
de fazer “outra coisa”, fundada na “ausência de tempo”. Essa “impossibilidade” faz
parte da concepção incorporada da comunidade. Ela coloca o trabalho como
encarceramento do trabalhador no espaço-tempo privado de sua ocupação, sua
exclusão da participação do comum.314
Associado à representatividade censitária, impunha-se adotar a separação de
poderes como meio de evitar o arbítrio de uma assembléia de representantes
outrora compreendida como depositária da soberania nacional. A concentração de
poder, para Constant, é a porta aberta para o despotismo. No entanto – e isso já
havia aprendido com Montesquieu - a mera separação de poderes não evitaria, por
si só, que um poder pudesse tentar sobrepujar o outro, causando desequilíbrio.
Não é demais ressaltar que Benjamin Constant elabora as linhas mestras do seu
conceito de poder moderador à época do Termidor, momento contrarevolucionário em que teóricos liberais, como Sieyès, se dedicaram a engenhar
um arranjo institucional para neutralizar novas manifestações do poder
constituinte. Era preciso preservar a ordem liberal, colocando a salvo a
constituição de 1795, o que explica ter Constant denominado inicialmente o poder
moderador como poder preservador ou neutro. A preocupação dos liberais
transitava mais uma vez, e sempre, entre os riscos de uma assembléia legislativa
influenciada pelas paixões populares e um executivo que porventura se inclinasse
313
“Lembremo-nos de que logicamente a intenção dos não proprietários é adquirir propriedade,
empregando todos os meios para esse fim. Se à liberdade de propriedade e de indústria a que têm
direito os não-proprietários, acrescentarem-se os direitos políticos, a que não devem ter direitos,
eles servirão infalivelmente para distribuir a propriedade em mãos de maior número. Os nãoproprietários começarão a utilizar esse caminho espúrio em vez de seguir o cominho normal: o
trabalho. Esse procedimento os corromperá e será uma fonte de desordens para o Estado.” Ibidem,
p. 119.
314
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível, p. 64.
121
para a tirania.315 Os choques e embates inevitáveis entre estes poderes deveriam
ser amortecidos por um poder que sobre eles pairasse; um poder que se colocasse
acima dos demais, com intuito de preservar a estabilidade da ordem constitucional
ao proceder ao controle político sobre o exercício das funções legislativa e
executiva.
Diante de tais desafios, a instância moderadora deveria ser dotada de valores
nobilíssimos. Em primeiro plano, o poder moderador deveria ser neutro e
imparcial, distanciada do plano das paixões de que se alimentam muitas vezes os
embates entre grupos e poderes divergentes. O poder moderador apresentar-se-ia
como expressão maior da neutralidade do Estado; ele não se intromete nas
questões políticas que gravitam na órbita legítima de atuação dos demais poderes,
atuando apenas quando se faz necessário pôr freios à tendência de um poder
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ultrapassar os limites de suas atribuições. É o poder legitimado a preservar ou
restaurar a ordem constituída; que guarda a constituição dos excessos apaixonados
dos demais poderes. Tendo a função de resolver os confrontos entre poderes, não
toca ao poder neutro um sistema rígido de regras ao qual esteja vinculado. Ele
possui discricionariedade para, uma vez posto diante de uma situação de crise
institucional, recompor a paz e a estabilidade da ordem constitucional valendo-se
dos meios que julgar adequado.316 Eis o motivo pelo qual, embora a função de
arbitrar disputas com neutralidade e imparcialidade aproxime o poder moderador
da atuação dos juízes, não pode recair sobre um tribunal tarefa que demanda um
atuar discricionário tão atípico à função jurisdicional.317 Neste ponto, Constant
marca distinção em relação ao pensamento de Sieyès, para quem o poder
moderador deveria ser exercido por um tribunal, o júri constitucional.318
315
Bercovici ressalta a forma dos liberais compreenderam o momento: “O objetivo do
constitucionalismo deveria ser colocar em ação as estruturas do governo representativo e impedir o
retorno da tirania ou da guerra civil”. BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, p. 185.
316
Como ressalta Lynch ao afirmar o controle político do poder moderador em Constant: “[...]
quem dizia política dizia poder discricionário; daí que, para eliminar os conflitos privados e
restabelecer a paz, esta nova instituição precisasse dispor de alguns recursos próprios do estado de
exceção – ainda que restritos a certos e determinados casos”. LYNCH, Christian. O momento
monarquiano, p. 75.
317
Ibidem, p. 76.
318
Lynch destaca a distinção da natureza do controle de constitucionalidade em Sieyès e Constant.
Enquanto Sieyès propunha um controle jurisdicional da constitucionalidade, Constant sustentava
que o conflito entre poderes demandava um controle político-estrutural de constitucionalidade.
Ibidem, p. 74.
122
Em face dos atributos que lhe distingue e da função de controle que lhe é
atribuída, o poder moderador revela-se, na perspectiva de Constant, a instituição
mais adequada para filtrar e compreender a vontade geral que emana de um
abstrato princípio da soberania popular e se expressa por meio da constituição.319
E assim o é, pois o poder moderador funciona como centro para o qual converge a
soberania320, dando-lhe a visibilidade que a separação de poderes e o regime
representativo fizera ocultar. Esta importante característica – cuja análise será
retomada adiante - ficará mais clara na obra em que Constant procura adequar sua
teoria à monarquia constitucional, contemplada na Constituição de 1814, como
expressão da restauração dos Bourbon ao trono francês, após a derrocada
bonapartista. Esta adaptação não se mostra incoerente com o cerne da teoria de
Constant: preservar o Estado liberal. Como o pensador liberal já deixara claro,
seus escritos referiam-se a princípios aplicáveis a todas as formas de governo.
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Importa menos se o governo é republicano ou monárquico, desde que ele
contemple o modelo liberal como norteador de suas ações.321
Conquanto não expresso no texto constitucional da Restauração, Constant
sustenta que dele se depreende que o monarca exerce o poder moderador. Ao
estabelecer as responsabilidades dos ministros e a irresponsabilidade do monarca,
ter-se-ia constituído o poder real como poder neutro e o poder dos ministérios
como um poder ativo. Esta distinção, dirá Constant, constitui-se “a chave de toda
a organização política”.322 O poder neutro cabe, nesta estrutura, ao monarca: “um
ser à parte” que se posiciona acima das divergências privadas323, imparcial e
desinteressado, rezando apenas pela conservação da ordem e da liberdade.324 Para
319
Ibidem, p. 76.
O poder moderador consistia, assim, no aparato institucional próprio a representar a unidade do
poder nacional num plano superior. Ibidem, p. 68.
321
Conforme expõe Lynch, transcrevendo citação de Stephen Holmes: “[...] Constant sempre
insistiu que os liberais deveriam ajustar-se de modo flexível ao regime existente a fim de explorar
as oportunidades disponíveis para as reformas [...]. ”. LYNCH, Christian, Moderação e divisão de
poderes no liberalismo clássico: as origens do poder moderador. Dissertação de mestrado. Rio de
Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1999, p. 86; citação extraída de
HOLMES, Stephen. Benjamin Constant and the making of modern liberalism. New York: Yale
University Press, 1984, p. 23.
322
CONSTANT, Benjamin. Princípios políticos constitucionais (1814), p. 74.
323
“O poder real precisa estar situado acima dos fatos, e que, sob certo aspecto, seja neutro, a fim
de que sua ação se estenda a todos os pontos que se necessite e o faça com um critério preservador,
reparador, não hostil.” Ibidem, p. 74. Em relação aos demais poderes, o poder real deve se portar
como “autoridade ao mesmo tempo superior e intermediária, interessado em manter o equilíbrio, e
com a máxima preocupação de conservá-lo”. Ibidem, p. 75.
324
Ibidem, p. 77.
320
123
manter sua imparcialidade, no entanto, o monarca não pode cumular o exercício
do poder neutro com o do poder executivo, sob pena de, deixando de ser neutro,
se tornar “uma espécie de ministro temido porque une à inviolabilidade que possui
atribuições que nunca deveria possuir.”325
Por fim, impõe-se retornar ao tema da soberania tornada visível na figura do
poder moderador. Constant constrói sua teoria pregando a pulverização dos
poderes e atribuições como forma de conter, ou mesmo arrostar, os riscos da
soberania como unidade de poder tendente ao despotismo. Como se explica esta
reviravolta justamente no encaixe da última peça de seu engenho institucional? O
paradoxo é apenas aparente. A questão mais uma vez nos conduz às hostes da
transcendência como mecanismo de controle policial. A soberania, como
princípio abstrato, não é o alvo de Constant. Isto se evidencia pelo alçar do
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monarca a uma condição superior, transcendente. O poder neutro - este ente
superior dotado de valores quase divinos de imparcialidade e neutralidade; ser
pacificador, que paira indiferente às disputas políticas’; legítimo intérprete da
vontade geral e guardião do espírito constitucional - é a expressão de uma
soberania evidentemente transcendente. O ataque que Constant lança é de outra
ordem: não é anti-soberanista; é voltado contra o poder constituinte, ou melhor,
contra a torção que os sans-culottes procederam na soberania popular
rousseauniana, deslocando-a de uma abstração infértil para o plano da imanência;
é contra a inscrição igualitária do poder constituinte da multidão na materialidade
histórica que Constant erige sua teoria conservadora. O arranjo institucional de
que se vale para tanto - partindo da separação dos poderes, passando pelo governo
representativo limitado pelo sufrágio censitário, e coroando seu percurso com a
mediação transcendente do poder moderador – presta-se a ocultar e neutralizar a
política, entendida como dinâmica de desunião e mutação.
Um último, mas valioso ponto deve ser abordado. A concentração da
soberania que faz do monarca a chave de toda a organização política (policial)
levou Carl Schmitt, teórico antiliberal e profundo admirador de Hobbes, não só a
elogiar, como a valer-se da teoria do poder neutro para legitimar a figura de seu
soberano que, pairando sobre a sociedade alemã, detivesse o poder de representar
325
Ibidem, p. 87.
124
sua essência, legitimando-o, em momentos de exceção, a decidir politicamente.
Assim como Constant, Schmitt não vislumbra que os tribunais possam bem
decidir os impasses sobre os conflitos constitucionais, devendo, tal atribuição, ser
entregue a um órgão em uma relação de coordenação com os demais poderes.326 É
certo que Schmitt critica a neutralidade que o liberalismo imputa ao ordenamento
legal. Vê-se, assim, que o “neutro” atravessa sua teoria como crítica por um lado e
elemento legitimador por outro. O que poderia parecer paradoxal revela-se
perfeitamente coerente no contexto do pensamento schmittiano. O que Schmitt
não admite é a imputação de soberania ao texto constitucional como meio a
proteger os princípios burgueses da atuação de forças políticas. Inconcebível, para
ele, o depósito da soberania em abstrações tal qual fizera Guizot ao mencionar a
soberania da razão, justiça e outros valores abstratos327. A neutralização da
política promovida pela incapacidade de decisão do parlamento liberal diante de
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casos emergenciais estaria a demonstrar a necessidade de se atribuir autoridade
decisória a uma outra instância institucional. Conforme visto no item antecedente,
esta instância revestia-se de características próprias a que Constant atribuíra ao
poder moderador: um terceiro neutro que só atuaria em caso de emergência e sem
concorrer com os demais poderes. O soberano em Schmitt, aquele que decide
sobre a exceção e na exceção328, sorve, portanto, sua legitimidade de uma espécie
própria de neutralidade. O soberano detém a capacidade de filtrar e encarnar a
vontade homogênea do povo como unidade social; ele transcendente à sua figura
pessoal, decorrendo daí seu caráter neutro muito próximo ao que Constant atribui
ao exercente do poder moderador.
326
Sustenta Schmitt: “[...] é conseqüente em um Estado de direito, onde há diferenciação dos
poderes, não confiar isto, suplementarmente, a nenhum dos poderes existentes, pois senão obteria
apenas o sobrepeso perante os demais e poderia ele próprio se esquivar do controle. Ele tornar-seia, por meio disso, senhor da Constituição. Destarte, é necessário colocar um poder especial neutro
ao lado dos outros poderes, relacionando-o e equilibrando-o com eles por intermédio de poderes
específicos.” SCHMITT, Carl. O guardião da constituição, p. 193. Ele ressalta o caráter
indispensável do poder neutro no sistema do Estado de direito com diferenciação de poderes, pois,
ele é “como já sabia Benjamin Constant, mesmo que essa parte de sua teoria tenha passado
despercebida, um pouvoir préservateur, ‘um poder preservador’”. Ibidem, p. 200.
327
Hermann Heller atribui a Schmitt a regeneração do dogma da soberania mediante a reintegração
de um sujeito de vontade capaz de ser seu titular, em contraposição a uma vontade geral expressa
pela norma jurídica, pela qual não se pode ser identificada como sujeito da soberania. HELLER.
Hermann. La soberania: contribución a la teoría del derecho estatal y del derecho internacional.
Tradução Mario de la Cueva; México D.F.: Universidad Nacional Autónoma de México, 1995,
p.153.
328
SCHMITT, Carl. Political theology: four chapters on the concept of sovereignty. Chicago and
London: University of Chicago Press, pp. 5 e 7.
125
O estudo mais detido sobre a teoria de Schmitt não é objeto deste trabalho.
Convém, assim, apenas tangenciar o pensamento schmittiano. A breve exposição
do uso da teoria do poder neutro em seu pensamento antiliberal presta-se para
realçar que as questões que rondam o poder moderador não se restringem apenas
ao modelo liberal. O seu uso por liberais e antiliberais autoritários revela o
fundamental ponto de interseção entre dois antagônicos modelos: ambos se
erigem, ao seu modo, em contraposição aos ideais democráticos.
Imprescindível ao presente estudo revela-se traçar sucintas aproximações
entre o uso da teoria do poder moderador nas experiências norte-americana e
francesa. Em ambos os eventos, o poder moderador é apresentado como poder
erigido para neutralizar os riscos que o ideal igualitário da democracia representa
para a ordem de dominação constituída, ao tempo em que faz parecer que todas as
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parcelas da sociedade podem ser ouvidas igualitariamente; um poder que detém
atributos que lhe confere sensibilidade para filtrar o espírito constituinte e traçar
os rumos da constituição. O que importa é ocultar o caráter litigioso da política,
inscrito na tradição maquiaveliana; tornar escandalosa a revolução permanente,
associando-a a um estado de natureza hobbesiano, relegando ao esquecimento sua
possibilidade pela construção de instituições permeáveis aos arrombamentos que a
lógica igualitária deve provocar na ordem policial. Se existe fundamento em
associar democracia, política e revolução - como se pretendeu demonstrar no
primeiro capítulo -, não constitui exagero afirmar que o poder moderador - e seus
efeitos - associa-se ao ideal de contra-revolução que emergiu como reação às
revoluções americana e francesa.
3.3
O Poder Moderador no Brasil
De saída, convém tornar explícito que o objetivo do estudo sobre a
influência da teoria do poder moderador no Brasil não se constitui em exaurir as
nuances históricas que permeiam o tema. Trata-se apenas de identificar, em
diversos momentos e eventos que se desenrolaram ao longo de quase dois séculos
de independência, a presença do poder neutro como inspiração para construção da
estrutura institucional do país, e os contornos próprios que ele adquiriu no Brasil.
126
Neste particular, a referência constante ao poder moderador na construção da
ordem policial nos aponta para o seu enraizamento na cultura política brasileira.
Um segundo alerta se faz necessário: por óbvio que o Brasil, neste percurso,
encontrava-se inserido na ordem mundial, sofrendo seus influxos e reagindo
diante de um cenário complexo o que tornaria simplificador ler os acontecimentos
apenas pela lente de uma teoria. Não é o caso, portanto, de apresentar o poder
moderador como causa dos acontecimentos; o sentido é inverso, em meio ao
complexo de variáveis que contribuem para a sucessão dos acontecimentos, tratase de identificar se – e como – a teoria do poder moderador se insere neste
processo mais amplo.
A inserção do Brasil na ordem mundial mercantilista se deu na condição de
grande empresa comercial montada pela metrópole para explorar recursos
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naturais329, cujo poder policial e administrativo encontrava-se concentrado em
Lisboa. Fiel a este propósito a economia da colônia, proibida a industrialização
em suas terras, voltava-se exclusivamente para a transferência de riquezas
mediante a monocultura e extração mineral. O desenvolvimento histórico
brasileiro, portanto, se distingue do medieval pelo qual o centro de poder na
Europa experimentou um deslocamento do feudo para os burgos, e os conceitos
de povo e nação conformaram os Estados europeus. Isto, todavia, não implica
afirmar que o Brasil esteve imune aos ideais burgueses que sacudiram a velha
ordem absolutista e estabeleceram o liberalismo como ordem vigente na passagem
do século XVIII para o século XIX. Caio Prado Júnior destaca esta influência e o
seu papel retórico:
Ainda há finalmente mais um setor em que a política brasileira se liga ao momento
internacional. É o da ideologia que se adota aqui, e que servirá para explicar,
justificar e emprestar aos nossos fatos o calor das emoções humanas; tal é sempre o
329
Segundo Caio Prado Jr, no processo de colonização brasileira o colono europeu ocupa lugar de
dirigente e grande proprietário rural, sem contribuir com seu trabalho físico para o negócio: este
colono “viria como dirigente da produção de gêneros de grande valor comercial, como empresário
de um negócio rendoso, mas só a contragosto como trabalhador. Outros trabalhariam para ele.”
PRADO JR, Caio. A formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Brasiliense, 2008;
pp. 28-29. A condição de grande empresa rural, na perspectiva do autor, distingue o processo de
colonização nas colônias tropicais Brasil: “No seu conjunto, e vista no plano mundial e
internacional, a colonização dos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais
completa que a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo caráter que ela, destinada a explorar os
recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu. É este o verdadeiro
sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes; e ele explicará os elementos
fundamentais, tanto no econômico como no social, da formação e evolução histórica dos trópicos
americanos”. PRADO JR, Caio. A formação do Brasil contemporâneo, p. 31.
127
papel das ideologias, que os homens raramente dispensam, e que em nosso caso,
não sabendo ou não podendo forjá-las nós mesmos, fomos buscar no grande e
prestigioso arsenal do pensamento europeu.330
Importa analisar, como ressalta Florestan Fernandes, o padrão absorvido no
Brasil como projeto de civilização e as condições peculiares sobre as quais se
desenvolveu:
Esse padrão, pelo menos depois da Independência, envolve ideais bem definidos de
assimilação e de aperfeiçoamento interno constante das formas econômicas, sociais
e políticas de organização da vida, imperantes no chamado “mundo ocidental
moderno”.331
A recepção dos ideais liberais no Brasil não se deu, no entanto, como marca
de ruptura do regime anterior, mesmo porque a Independência fora conduzida pela
mesma casa que regia o sistema colonial. Esta peculiaridade produz efeitos
concretos no processo de desenvolvimento do Brasil: enquanto nas nações em que
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as elites burguesas se impuseram politicamente sobre as elites do antigo regime
observa-se a consolidação da burguesia como classe dominante que resistia às
pressões das classes trabalhadoras mediante o recurso de “conservar-mudando”332,
no Brasil, em sentido oposto, a influência do pensamento liberal convive com a
manutenção da ordem sócio-econômica oriunda do período colonial, calcada na
escravidão e na atividade agro-exportadora.333 A explicação desta conjunção entre
330
Ibidem p. 373.
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica.
Rio de Janeiro: Zahar, 1976; p. 17.
332
CARVALHO, Maria Alice Rezende de; e VIANNA, Luiz Werneck. República e Civilização
Brasileira. In: Estudos de Sociologia. Vol. 5, nº 8, 2000, p. 7-33, p. 15. Conservar-mudando, ao
feitio do ensinamento que Tancredi Falconeri profere a seu tio, príncipe Dom. Fabrizio,
justificando sua adesão aos revolucionários, assim escrito por Lampedusa:
“- Estás louco, meu filho! Meter-se com aquela gente [...] um Falconeri deve estar conosco, ao
lado do rei.
Os olhos voltaram sorrir.
- Do lado do rei, com certeza, mas de que rei? [...] Se nós não estivermos lá, eles fazem uma
república. Se queremos que tudo fique como está é preciso que tudo mude. Expliquei-me bem?”
LAMPEDUSA, Giuseppe Tomasi di. O Leopardo. Trad. Rui Cabeçadas. São Paulo: Difusão
Européia de Livros, 1960, p. 33.
333
CARVALHO, Maria Alice Rezende de; e VIANNA, Luiz Werneck. República e Civilização
Brasileira, p. 22. A respeito do tema, Christian Lynch ressalta que, no “momento de transição do
Antigo Regime para o governo constitucional representativo” brasileiro “aqueles que com mais
afinco mais defendiam o liberalismo estavam comprometidos com o latifúndio e a escravidão.”
LYNCH, Christian C. O momento monarquiano, p. 119. Anote-se, ainda, como referência a este
compromisso liberal com a ordem escravocrata e o latifúndio, o pensamento do Padre Alencar,
parlamentar constituinte de 1823. Conforme relato de José Honório Rodrigues: “[...] outro exrevolucionário, Padre Alencar, declara que não podemos fazer cidadãos brasileiros a todos os
habitantes do Brasil, porque deste modo ofenderíamos a lei da salvação do Estado. ‘É esta lei que
nos inibe de fazer cidadãos aos escravos, porque além de serem propriedades de outros, e de se
ofender por isso este direito se os tirássemos do patrimônio dos indivíduos a que pertencem,
331
128
liberalismo e latifúndio no Brasil é expressa por Raymundo Faoro, ao esboçar o
cenário econômico dos anos que antecederam à Independência:
Sob a pressão da conjuntura adversa o fazendeiro sentirá o que em outros tempos,
nos tempos prósperos, não percebera: o fiscalismo, a tirania, o entrave do governo
à atividade econômica. Mal-estar associado com as idéias francesas do liberalismo
nascente, únicas idéias então disponíveis para colorir a revolta [...] Liberalismo, na
verdade, menos doutrinário do que justificador: os ricos e poderosos fazendeiros
cuidam em diminuir o poder do rei e dos capitães-generais apenas para aumentar o
próprio, numa nova partilha de governo, sem generalizar às classes pobres a
participação política334
A convivência entre estruturas do regime colonial e a nova ordem nascida
com a Independência se refletiria, igualmente, no campo da organização policial.
Esta interseção apresentaria seu momento mais tenso no embate travado no
âmbito da Assembléia Constituinte de 1823, opondo os interesses do Imperador
aos dos liberais. Ali se pode observar que representantes da elite rural e da elite
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burocrática travaram disputa pelo poder central, conquanto tal embate não tenha
reproduzido qualquer ameaça de mudanças significativas no quadro social e
econômico.335 Tratou-se da disputa pelo poder central, o controle do Estado e o
direcionamento de seus recursos, o que, por fim, culminou com a dissolução da
Assembléia Constituinte pelo Imperador. Pela Constituição de 1824, outorgada
por D. Pedro I, transpôs-se para o Brasil a teoria do poder real – ou poder neutro de Benjamin Constant, adaptando-a às necessidades do Imperador seguir
conduzindo os rumos políticos nacionais sem interferência de outros centros de
poder.336 Se a Constant era caro possibilitar a adaptação do modelo liberal a
amorteceríamos a agricultura, um dos principais mananciais de riquezas da nação, e abriríamos um
foco de desordens na sociedade, introduzindo um bando de homens que, saídos do cativeiro, mal
poderiam guiar-se por princípios de bem entendida liberdade’. Não podia haver princípios mais
ordeiros e conservadores que estes que Alencar defendia: a propriedade, a economia escravocrata,
a liberdade bem entendida.” RODRIGUES, José Honório. A assembléia constituinte de 1823.
Petrópolis: Vozes, 1974, p. 131.
334
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo:
Globo, 2001, p. 281-283. Não se está, com isso, a querer insinuar que o liberalismo francês era
marcado por uma preocupação com as classes pobres, mas, tão somente, que neste caso houve
efetiva mudança de na estrutura social e econômica, conforme será tratado adiante.
335
Ao tecer comentários sobre a Constituinte de 1823 José Honório Rodrigues é categórico: “[a
Assembléia Constituinte] não pretendia, pela grande maioria de seus constituintes, mudar
basicamente a estrutura econômica e social. Havia muito mais o propósito de continuidade que o
de mudança [...] a verdade é que a resistência à mudança foi muito forte; e na Assembléia, que
reunia a elite de duas classes, isto é, a dos senhores rurais com os grandes latifundiários e
fazendeiros, e a média e superior urbana, pouco se pôde fazer no sentido social, ou reformistaeconômico.” RODRIGUES, José Honório. A assembléia constituinte de 1823, p. 159.
336
Christian Lynch ressalta que durante a Constituinte foram apresentadas três concepções sobre o
conceito de Poder Moderador: “primeiro, o Poder Moderador transmitia a imagem de um
governante suprapartidário, desinteressado e acima da política; segundo, a de um poder de
129
qualquer forma de governo – no que se empenhou após a Restauração francesa –,
sua teoria prestou enorme favor a um Imperador que precisava desenhar uma
estrutura de poder concentrada em suas mãos.
Na França, a Restauração monárquica encontrara uma nova estrutura social,
econômica e política solidificada pela Contra-Revolução burguesa que tornava
impossível o retorno ao absolutismo. Ali a monarquia cumpriu o roteiro traçado
pelo liberalismo. No Brasil, além de prestar-se ao ideal originário de manter a
massa popular afastada das decisões públicas, a teoria do poder moderador, em
função das especificidades brasileiras, sequer foi utilizada como mecanismo a
contribuir com a formação de um Estado liberal nos moldes desenvolvidos na
Europa. Conquanto o liberalismo não tenha causado impacto profundo na ordem
sócio-econômica brasileira, conforme pontuado por Florestan Fernandes, seus
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ideais influenciaram na separação dos planos de organização do poder, inclusive
com a adoção do princípio da representação, que não contava com a preferência
da ordem senhorial baseada no interesse da grande lavoura.337 Para o domínio
senhorial, afirma o autor, mais interessante se revelava uma monarquia forte,
absolutista, a impedir qualquer possibilidade de mudança no modelo econômico
baseado no trabalho escravo e na monocultura latifundiária. A convivência entre
estas duas mentalidades produz uma estrutura policial-administrativa em que
representação e separação de poderes se curvam perante o Poder Moderador,
exercido pelo Imperador. Como expõe Florestan:
Embora o princípio de representação (por causa dos efeitos da concentração do
poder ao nível estamental, regulada constitucionalmente), o poder executivo e o
poder moderador fossem convergentes [...] é de presumir-se que o referido
princípio não teria encontrado acolhida tão favorável sem a difusão e o entusiasmo
suscitados pelas “idéias liberais.”338
exceção a serviço do sistema constitucional; terceiro, a figura de um avalista ou artífice da
centralização políticoadministrativa.” LYNCH, Christian C. O momento monarquiano, p. 126. No
entanto, as três perspectivas admitem o Poder Moderador como poder transcendente que impõe
concentração de poder na figura do Imperador. Nas palavras do próprio autor: “Em todos os três
casos, o Poder Moderador era apresentado como o instituto constitucional que asseguraria à Coroa
o poder de preservar no Império o interesse público, entendido como imparcialidade, equilíbrio
institucional ou interesse nacional, contra o interesse particular representado, respectivamente,
pelo político ordinário, movido por paixões e apetites; pelas facções partidárias, instaladas na
assembléia; e, enfim, pelas províncias, com suas oligarquias bairristas e sua tendência ao
centrifuguismo.” Ibidem, p. 126.
337
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil, p. 37.
338
Ibidem, p. 38.
130
Se é correto, portanto, afirmar que os princípios de representação e da
separação de poderes se anunciam como influência do liberalismo no Brasil, não
menos verdade que a concentração de poder constitucionalmente engendrada,
tendo o Poder Moderador como eixo, conferia ao monarca brasileiro ampla
liberdade de atuação.
No desenrolar do Império observou-se no Brasil a “superposição entre um
critério liberal - presente na constituição da Câmara dos Deputados – e uma
perspectiva hobbesiana, que fez do príncipe o criador da nação”.339 Este peculiar
arranjo é o retrato do pensamento defendido na Constituinte de 1823 pela corrente
liderada por Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, no sentido de que a monarquia e
o imperador preexistiam à Constituinte e à própria independência.340 Por ela se
expressa a concepção de que democracia e liberdade se contrapõem, dando
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prevalência a esta em detrimento daquela num estilo, destaca Faoro, “teórico e
prático que a restauração de Luís XVIII impusera às monarquias velhas.”341 A
influência da Restauração francesa restou evidenciada no arranjo institucional da
Carta de 1824. Como pontua Faoro a respeito desta estrutura de poder:
O esquema procurará manter a igualdade sem a democracia, o liberalismo fora da
soberania popular. Linha doutrinária que flui de Montesquieu, passa por Sieyès e se
define em Benjamin Constant, não por acaso o pai do Poder Moderador da Carta de
1824. A soberania – se de soberania se trata – será a nacional, que pressupõe um
complexo de grupos e tradições, de comunidades e de continuidade histórica, e não
a popular, que cria e abate os reis. A liberdade perseguida se torna realidade não na
partilha do poder entre os cidadãos autônomos, mas na segurança dos direitos
individuais e políticos, garantidos pelas instituições.342
A existência da Câmara de Deputados não ameniza a concentração de
poderes na figura do imperador. Nos ditames da Carta de 1824, o monarca não
apenas indica os membros vitalícios do Senado, como lhe é permitido dissolver a
Câmara de Deputados, possibilitando a composição de parlamentos alinhados.343
O caráter contra-majoritário deste sistema é pontuado por Faoro:
339
LESSA, Renato. A invenção republicana: Campos Sales, as bases e a decadência da Primeira
República brasileira. São Paulo: Vértice, 1988; p. 44.
340
FAORO, Raymundo. Os donos do poder, pp. 320-321.
341
Ibidem, p. 321.
342
Ibidem, p. 321.
343
É o que se extrai dos comandos dos artigos 40, 43 e 101, da Constituição de 1824.
Art. 40. O Senado é composto de Membros vitalícios, e será organizado por eleição Provincial.
Art. 43. As eleições serão feitas pela mesma maneira, que as dos Deputados, mas em listas
triplices, sobre as quaes o Imperador escolherá o terço na totalidade da lista.
131
Acenando com um mecanismo de absorção dos atritos entre os poderes legislativo
e executivo – o Poder Moderador – [o imperador] situa no Senado a barreira de
defesa do despotismo das maiorias parlamentares. Adverte contra os que “julgar
ver nesta segunda câmara um asilo da aristocracia, porque ignoram que o perfeito
sistema constitucional consiste na fusão da monarquia, da aristocracia e da
democracia.” Em águas do liberalismo, a monarquia se refugia, ao estilo europeu
pós-napoleônico, na Câmara dos pares e, com a originalidade do texto
constitucional, no Poder Moderador. O poder minoritário, concentrado na
aristocracia em construção e na alta burocracia, vigia, disciplina e educa o poder
majoritário, numa reformulação brandamente absolutista da realidade
monárquica.344
Nesta composição de forças, o poder do imperador realça diante do desenho
institucional conferido ao Poder Moderador. Diversamente do proposto pela teoria
de Benjamin Constant, a Constituição de 1824 estipula expressamente a reunião
dos poderes Executivo e Moderador na figura do Imperador.345 Raymundo Faoro
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aponta para esta distorção:
O pouvoir royal do escritor francês [Constant], o pouvoir neutre evocado para
ajustar os três poderes clássicos, colocando-os na sua órbita constitucional, a clef
de toute organisation politique, assume, na tradução infiel, caráter ativo. Em lugar
da contenção dos demais poderes, alheio às suas atribuições específicas [...] o
Poder Moderador, apropriado pelo chefe do poder executivo, comanda a
administração e a política. A distinção entre monarquia constitucional e monarquia
absolutista se esgarça.346
Art. 101. O Imperador exerce o Poder Moderador:
I. Nomeando os Senadores, na fórma do Art. 43;
......
V. Prorogando, ou adiando a Assembléa Geral, e dissolvendo a Camara dos Deputados, nos casos,
em que o exigir a salvação do Estado; convocando immediatamente outra, que a substitua.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao24.htm>. Acesso
em: 22 fev. 2010.
344
FAORO, Raymundo. Os donos do poder, pp. 332-333.
345
Como se extraí do cotejo entre os artigos 98 e 102 da Constituição de 1824:
Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organisação Politica, e é delegado privativamente
ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que
incessantemente vele sobre a manutenção da Independencia, equilibrio, e harmonia dos mais
Poderes Politicos.
Art. 102. O Imperador é o Chefe do Poder Executivo, e o exercita pelos seus Ministros de Estado.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao24.htm>. Acesso
em 22 fev. 2010.
346
FAORO, Raymundo. Os donos do poder, 2001, p. 333. Em sentido oposto, entendendo que não
houve distorções no processo de recepção da teoria de Constant, manifesta-se Lynch: “É curioso,
porém, que a quase unanimidade da historiografia brasileira ainda partilhe da opinião de que a
recepção do Poder Moderador desfigurou a doutrina de Constant num sentido absolutista
(CUNHA, 1985:256; BONAVIDES e ANDRADE, 1991:96; FAUSTO, 1999:152; FAORO,
1997:290). De acordo com esses autores, a Constituição teria atribuído ao monarca o exercício do
Executivo e do Moderador, quando a intenção de Constant seria a de separá-los para consagrar o
parlamentarismo. [...] A verdade, portanto, é que o Imperador e seus conselheiros de Estado
lograram operar uma transposição jurídica bastante fiel das competências concedidas por
Benjamin Constant ao seu poder neutro, sendo de todo infundada a crença generalizada de que ela
teria desfigurado sua doutrina num sentido autoritário.” LYNCH, Christian. O discurso
monarquiano, pp. 137-140. No entanto, é o próprio autor que, em outra passagem da mesma obra,
132
Procurou-se erigir o sistema brasileiro nos moldes do governo misto, no
qual se distribuiria o direito de tomar parte no governo entre monarca, aristocratas
e o povo, através de instituições que lhes correspondia: a Coroa, o Senado
vitalício e a Câmara composta por representantes eleitos por voto censitário. No
entanto, na prática cotidiana, o detentor do Poder Moderador é quem encarna a
soberania nacional, ele se constitui o centro em volta do qual gravita a vida
político-institucional do país, o elemento que confere unidade ao sistema. Ao
longo do período imperial coube ao monarca, teoricamente neutro e imparcial,
irresponsável por seus atos, desenhar, de cima para baixo, a estrutura institucional
do país. Escudado pelo “papel nominal de árbitro das disputas e dissensões”347,
ressalta Faoro, “em lugar de conter os demais poderes, preservando harmonia e
equilíbrio, o Poder Moderador assume caráter ativo e comanda a administração e a
política.”348 Assim restou claro a Frei Caneca com tamanha força, que o levou a
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identificar no Poder Moderador a mão que esmaga a nação brasileira,
constituindo-se um dos motivos pelo qual se manifestou contrário à aceitação da
Constituição outorgada pelo imperador:
O poder moderador de nova invenção maquiavélica é a chave mestra da opressão da nação
brasileira e o garrote mais forte da liberdade dos povos. Por ele, o Imperador pode dissolver
a câmara dos deputados, que é a representante do povo, ficando sempre no gozo de seus
direitos o senado, que é representante dos apaniguados do Imperador. Esta monstruosa
desigualdade das duas Câmaras, além de se opor de frente ao sistema constitucional, que
deve chegar o mais possível à igualdade civil, dá ao imperador, que já tem de sua parte o
Senado, o poder de mudar a seu bel-prazer os deputados que ele entender que se opõem aos
seus interesses pessoais e fazer escolher outros de sua facção, ficando o povo indefeso nos
atentados do imperador contra seus direitos, e realmente escravo, debaixo porém das
349
formas da lei, que é o cúmulo da desgraça [...]
Distintamente do ocorrido na França e nos Estados Unidos, o Poder
Moderador não se prestou, no Brasil, à proteção de uma ordem genuinamente
liberal-burguesa que eventualmente se consolidava. Como visto - e aqui se
demonstra que a referência ao uso do Poder Moderador na teoria Schmitt não foi
denuncia o intuito do uso distorcido da teoria do poder moderador para conferir-lhe efeito
contrário ao pretendido por Constant: “Embora Constant afastasse o monarca do governo para
atribuir-lhe o papel exclusivo de árbitro do sistema, as salvaguardas por ele requeridas para que ele
pudesse exercê-lo continham argumentos valiosos para que os governistas brasileiros delas
lançassem mão com o fito contrário: o de preservar a inteireza das prerrogativas imperiais frente às
pretensões da assembléia de monopolizar a representação da soberania.” Ibidem, p. 21.
347
FAORO, Raymundo. Os donos do poder, 2001, p.332.
348
FAORO, Raymundo. Os donos do poder, p. 333.
349
CANECA, Frei Joaquim do Amor Divino. Voto sobre o juramento do projeto de constituição
oferecido por D. Pedro I in Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. Coleção Formadores do Brasil.
Organização Evaldo Cabral de Mello. São Paulo: editora 34, 2001, p. 561.
133
de todo inútil - a idéia de poder neutro não se associa necessariamente ao ideal
liberal. O Império brasileiro, longe de se instituir como modelo antiliberal,
também não tinha o liberalismo como ordem materialmente vigente, ainda que sua
influência se fizesse presente com as peculiaridades aqui apresentadas.350
Impõe-se, assim, para os fins a que este trabalho se propõe, identificar de
que forma a contenção da democracia, que inspira a idealização do Poder
Moderador em Montesquieu, perpassa a experiência brasileira, aproximando-a,
neste objetivo central, das Contra-Revoluções americana e francesa. Em todas
estas experiências o sistema eleitoral – seja por voto censitário ou indireto –
aparece como primeiro filtro da participação popular. No Brasil, entretanto, o
Poder Moderador não opera apenas como soldado reserva a neutralizar a rebeldia
de um poder legislativo eventualmente aberto às demandas igualitárias; ele não se
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resume a um segundo filtro a ser acionado caso o sistema eleitoral dirigido não
cumprisse sua tarefa. O Poder Moderador, no Império, determina, pelo alto, a
própria composição dos demais poderes. Ele detém o poder de interferir
decisivamente na seleção dos parlamentares, invertendo a lógica do princípio da
representação mediante um arranjo institucional marcado, como salienta Renato
Lessa, pelo paradoxo da representação e pela verticalização da ordem política.351
O paradoxo da representação, destaca o autor, pode ser expresso pelo sorites
anunciado pelo senador Nabuco de Araújo, pelo qual “o Imperador escolhe o
governo e este invariavelmente faz das eleições um ritual para obtenção de apoio
majoritário.”352 Eis o caráter paradoxal: o governo não é a expressão da maioria
parlamentar; o imperador, no exercício do Poder Moderador, estabelece qual será
a maioria antes mesmo das eleições. 353 Conforme aduz Lessa, o regime imperial
350
A menção a Schmitt não é despropositada. Com efeito, o conteúdo da Carta de 1824 permitia a
atuação do Imperador muito mais próxima à teoria que Schmitt desenvolveria anos após, do que
propriamente à teoria de Constant que prestara-se como inspiração.
351
LESSA, Renato. A invenção republicana, p. 33.
352
Ibidem, p. 34. Ainda sobre a crítica de Nabuco de Araújo ao sistema representativo brasileiro,
Faoro reproduz trecho do discurso do senador: “Ora, dizei-me; não é isto uma farsa? Não é isto um
verdadeiro absolutismo, no estado em que se acham as eleições no nosso país? Vede este sorites
fatal, este sorites que acaba com a existência do sistema representativo – o Poder Moderador pode
chamar a quem quiser para organizar ministérios, esta pessoa faz a eleição, porque há de fazê-las;
esta eleição faz a maioria. Eis aí está o sistema representativo do nosso país.” FAORO, Raymundo.
Os donos do poder, p. 410.
353
O receio oligárquico da inclusão do demos no processo de decisão do bem comum ao longo do
Império é , assim, retrata por Lessa: “Eram arriscadas eleições ‘verdadeiras’ sem o atributo
corretivo do Poder Moderador e este, por sua vez, inviabilizava o sonho por um sistema
134
brasileiro subverteu as regras do parlamentarismo clássico, pois “as maiorias
eram, na verdade, expressões da orientação do Poder Executivo, instalado por
iniciativa do Poder Moderador”.354 Recordando a constatação de Faoro o poder
minoritário vigiava, disciplinava e educava o poder majoritário. O caráter contramajoritário do Poder Moderador, na linhagem de Montesquieu e Constant,
perpassa, assim, não apenas os eventos contra-revolucionários na França e
Estados Unidos. No Brasil, não se trata apenas de conduzir as eleições, e sim
torná-las irrelevantes. Sintomático que D. Pedro II a elas se refira como uma
calamidade que, sob pena arrastar o governo para o facciosismo, deve ter seu
resultado moldado pelo Poder Moderador.355 Lessa sintetiza com precisão esse
sentimento moralizador: “O Poder Moderador, fonte da inversão do sistema
representativo, aparece como único elo capaz de resguardar a vontade nacional,
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maculada pela fraude e pela manipulação das facções”.356
Corolário deste fenômeno, a verticalização da ordem política constitui-se o
segundo aspecto que marca a estrutura institucional do Império, atingindo tanto a
elite que integra os partidos políticos como os sujeitos que integram a
comunidade. No primeiro caso, é pelas graças do Poder Moderador que se
estabelece o acesso aos cargos do governo, quem ascende à ordem policial e
administrativa. Em relação à incorporação da população à comunidade política ou
ao demos, entendido como conjunto de atores dotados de direitos básicos de
intervenção na vida pública”357, observar-se-á a restrição à participação popular
pela adoção do voto censitário. A condição de infantilidade que se atribuiu ao
povo ao longo das contra-revoluções liberais é retomada, aqui, como discurso
legitimador, em compasso com o papel de tutor que o titular do Poder Moderador
minimamente representativo dotado de alguma capacidade governativa.” LESSA, Renato. A
invenção republicana, p. 37.
354
Ibidem, p. 34.
355
A posição do D. Pedro II é, assim, tratada por Lessa: “Do ponto-de-vista manifestado pelo
Imperador, em sua vasta produção epistolar, o uso das atribuições do Poder Moderador, era um
mal necessário. Para ele, as eleições eram ‘uma calamidade’, e se o sistema decisório do Império
lhes concedesse o poder de fazer governos, inevitavelmente ocorreria a eternização do predomínio
de uma facção, em detrimento da outra.” Ibidem, p. 34.
356
Lessa apresenta, ainda, os motivos pelos quais os partidos políticos evitavam o conflito com a
ordem imperial: “No limite, para as elites partidárias era preferível a previsibilidade da tutela – que
era fonte de suas identidades políticas – à incerteza e o risco da competição política aberta.”
LESSA, Renato. A invenção republicana, pp. 34-35. Mais adiante, resume a contribuição deste
fenômeno para ruína do Império: “Eram arriscadas eleições ‘verdadeiras’ sem o atributo corretivo
do Poder Moderador e este, por sua vez, inviabiliza o sonho por um sistema minimamente
representativo dotado de alguma capacidade governativa”. Ibidem, p. 37.
357
Ibidem, p. 36.
135
deve exercer. O caráter pedagógico de seus atos torna-se essencial para sujeitos
que ainda não têm discernimento para decidir sobre o bem comum. A
verticalização da ordem política (policial, em verdade) admite o Imperador como
centro e expressão da soberania nacional: ele confere unidade e racionalidade ao
sistema policial, controlando a facciosidade dos partidos e filtrando a vontade de
sujeitos que não possuem condições de emitir opinião inteligível.
Ainda em relação à exclusão da população da participação nas decisões
públicas nacionais, ressalte-se, como o faz Lessa, que a situação de escravidão,
por si, mantinha grande contingente populacional automaticamente alijado da
possibilidade de integrar a comunidade política. Tal exclusão permitiu que o
Império não precisasse lidar com a tensa relação entre a ordem policial e o mundo
do trabalho358, como ocorrera ao longo do século XIX na França, diante das
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demandas igualitárias do proletariado. A questão da escravidão não se limita, no
entanto, a uma mera conseqüência que se expressaria na impossibilidade da
ascensão de um proletariado que desafiasse a ordem hegemônica. No Brasil, ela
revela uma tensão que lhe é própria e que desafia a ordem escravocrata
constituída; uma subjetivação política que se expressa nas diversas formas de
resistência contra a escravidão. Esta tensão descortina uma real cena de litígio
através do qual o sistema oligárquico-escravocrata de dominação e distribuição
natural do poder era ameaçado.359
Caio Prado Jr. já apontara esta cena conflituosa como um dos elementos
presentes na passagem do sistema colonial para a independência.360 Seu caráter
358
Ibidem, p. 36.
Hardt e Negri destacam como a reação dos escravizados foi fundamental para a ruína do sistema
escravocrata na América: “Na realidade, nem argumentos morais em casa, nem cálculos de
lucratividade no exterior, poderiam levar o capital europeu a desmantelar os regimes
escravocratas. Só a revolta e a luta dos próprios escravos poderiam fornecer uma alavanca
adequada. Justamente quando o capital avança para reestruturar a produção e emprega novas
tecnologias apenas como resposta à ameaça organizada de antagonismo dos trabalhadores, o
capital europeu não renunciaria à produção escrava até que escravos organizados representassem
uma ameaça ao seu poder e tornassem esse sistema de produção insustentável. Em outras palavras,
a escravidão não foi abandonada por razões econômicas, mas derrubada por forças políticas. A
agitação política de fato minou a lucratividade econômica do sistema, mas, o que é mais
importante, os escravos revoltados acabaram por constituir um contrapoder real.” HARDT,
Michael e NEGRI, Antonio. Império, pp. 139-140.
360
Na perspectiva de Caio Prado Jr. a cisão da colônia com a Coroa portuguesa não foi fruto de
uma “idéia” de Independência, mas de várias idéias de separação oriundas de oposições, de
pequenos conflitos que expõem os vícios do sistema colonial. Como exemplo destas contradições
o autor cita a luta pela libertação dos escravos e a supressão de barreiras de cor e classe. Nas
palavras de Caio Prado: “[...] Outra contradição do sistema é de natureza étnica, resultado da
359
136
político é evidente diante da presunção de igualdade que a deflagra. Poder
constituinte que perpassa desde as mais pontuais formas de resistência361 até a sua
expressão mais evidente na fundação de uma nova ordem social e política, que
representavam os quilombos. Tudo isso que representa uma escandalosa
afirmação de igualdade a perturbar uma ordem centenariamente constituída,
traduz-se, por ocasião da Inconfidência Baiana, nas recomendações do artesão
Lucas Dantas do Amorim Torres a João de Deus ao esclarecê-lo sobre o modo
pelo qual deveriam explicar o caráter revolucionário do levante aos soldados,
artesãos, escravos e forros:
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Quando lhes falar, diga-lhes assim: o Povo tem intentado huma revolução, afim de
tornar esta Capitania hum Governo democrático, nelle seremos felices; porque só
governarão as pessoas que tiverem capacidade para isso, ou sejão brancos ou
pardos, ou pretos, sem distinção de cor, e sim de juizo, e he melhor do que
governado por tolos, e logo os convencerá.362
posição deprimente do escravo preto, e em menor proporção, do indígena, o que dá no preconceito
contra todo indivíduo de cor escura. É a grande maioria da população que á aí atingida, e que se
ergue contra um sistema que além do efeito moral, resulta na exclusão de tudo quanto de melhor
oferece a existência na colônia [...] A condição dos escravos é outra fonte de atritos. Não se julgue
a normal e aparente quietação dos escravos, perturbada alias pelas fugas, formação de quilombos
[...] É uma revolta constante que se lavra surdamente [...]”. PRADO JR, Caio. Formação do Brasil
contemporâneo, pp. 362-366.
361
Desde as mais diretas formas de resistência como a fuga e o assassinato do senhor de escravo,
até as mais sutis que, não raros, eram atribuídas à natureza inferior do negro. Trata-se das
“pequenas sedições do cotidiano” que denunciam a “permanente revolta do escravo”, que Antônio
Risério extrai da obra de José Alípio Goulart Da fuga ao suicídio: aspectos de rebeldia dos
escravos no Brasil. Risério, em seu livro Uma história da cidade da Bahia, enumera essas
pequenas sedições: “A mentira, por exemplo. O engodo pensado, sistemático. Sim – havia o
sentido social da mentira. Da trapaça. E como deve ter sido gratificante levar o senhor ao erro! [...]
Dentro da mentira, o fingimento. Fingir enfermidades e dores, disfarçar afetos, mascarar ações. O
escravo era um expert em simulações. Era como se a mentira fosse um modo seu de afirmar uma
verdade própria.” RISÉRIO, Antônio. Uma história da cidade da Bahia. Rio de Janeiro: Versal,
2004, p. 151. E continua: “Uma outra forma de se insubordinar contra as determinações do regime
escravista estaria na prática voluntária do aborto [...] para que não cheguem os filhos de suas
entranhas a padecer o que elas padecem. A mãe sofria, mas feria o regime. Impedia o crescimento
da mão-de-obra escrava.” Ibidem, pp. 151-152. Risério ressalta, ainda, que o suicídio pode ser
igualmente apontado como ato sedicioso: “Os escravos não se mataram apenas porque se achavam
tristes [...] Muitos foram os móveis para a revoada [...] Fruto da depressão, do medo, do ódio, sim.
Mas fruto, sobretudo, de uma violência sistêmica [...] nesse sentido que Fernando Ortiz pôde
definir o suicídio como um ‘meio de emancipar-se’. De uma parte esse suicídio foi recusa [...] De
outra, representou prejuízo para a economia senhorial.” RISÉRIO, Antônio. Uma história da
cidade da Bahia, pp. 152-153. Por fim, o autor elenca dentre os atos de resistência a tão apregoada
preguiça dos escravos: “[...] o fato de o escravo fazer mal o seu serviço já foi incluído, por
diversos estudiosos, entre as ‘pequenas sedições do cotidiano’. Trabalhar mal era prejudicar o
senhor, assim como destruir ‘por acaso’, instrumentos de trabalho. [...] Jean-Paul Sartre fez uma
observação, que é aplicável ao desmazelo do escravo no Brasil: ‘são preguiçosos, é claro, e isto é
sabotagem’.” Ibidem, pp. 153-154.
362
TAVARES, Luís Henrique Dias. Introdução ao estudo das idéias do movimento revolucionário
de 1798. Salvador: Livraria Progresso, 1959; p. 13.
137
Um levante de negros e pardos não apenas contra a escravidão, mas também
contra o preconceito, contra a eleição da tonalidade da pele como título que
legitima a distribuição e cristalização dos papéis de mando e obediência. Caio
Prado Jr. ressalta que “o nervo principal do levante projetado era a diferença de
castas, a revolta contra o preconceito de cor.”363 São Domingos era uma
atemorizante e viva lembrança na memória escravocrata. De fato, a Revolução
haitiana se revelara concreto exemplo de conquista da liberdade, tendo por força
propulsora a presunção de igualdade.364 São eventos que, não distanciados dos
primeiros anos do Império brasileiro recém independente, suscitaram o temor dos
constituintes de 1823. Muniz Tavares revela esse receio ao ressaltar que os
“discursos da Assembléia Constituinte da França provocaram os acontecimentos
de São Domingos” 365 e que devem, aqui, ser evitados. Para os constituintes, como
visto, a abolição da escravidão conjugava ofensa ao direito à propriedade e o risco
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iminente de abertura de um foco de desordem social. Eis um pensamento para o
qual convergia a grande maioria dos constituintes.
O Poder Moderador apresenta-se, neste cenário, não apenas como tutor da
nação; ele é também a instituição que estabiliza um regime garantidor da ordem
escravocrata e latifundiária, preservando intacta uma ordem de dominação que
atende aos privilégios econômicos da oligarquia nacional. O Poder Moderador
confere, assim, unidade ao regime imperial; na perspectiva de José Antônio
Pimenta Bueno, o Marquês de São Vicente, ele constitui-se “a mais elevada força
social, o órgão político mais ativo, o mais influente de todas as instituições
fundamentais da nação.”366 Ao apresentar o caráter conservador e contrarevolucionário do Poder Moderador, este integrante da nobreza nacional o definirá
como depositário de grande neutralidade, superior às paixões e interesses,
363
PRADO JR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo, p. 365.
“A revolução haitiana foi, certamente, um divisor de águas na história moderna da revolta dos
escravos – e seu espectro circulou pela América do século XIX da mesma forma que o espectro da
Revolução de Outubro assombrou o capitalismo europeu mais de um século depois. Não se deve
esquecer, entretanto, que revolta e antagonismo eram constantes na escravidão da América, de
Nova York à Bahia.” HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império, p. 140.
365
Ibidem, p. 131.
366
SÃO VICENTE, José Antônio Pimenta Bueno, Marquês de. José Antônio Pimenta Bueno,
marquês de São Vicente. Organização de Eduardo Kugelmas. Coleção Formadores do Brasil. São
Paulo: Ed. 34, 2002; p. 280.
364
138
especificando que “o exercício do poder Moderador é quem evita nos perigos
públicos o terrível dilema da ditadura ou da revolução.”367
Os eventos transcorridos após a abdicação de D. Pedro I revelariam a
importância institucional do Poder Moderador para a monarquia constitucional
brasileira. O projeto de lei da reforma da Constituição, proposto pela Câmara dos
Deputados em 1831 por ocasião da abdicação, previa a supressão tanto do Poder
Moderador, quanto do Conselho de Estado, a quem a Constituição de 1824
atribuía função consultiva daquele poder. No entanto, após as emendas no Senado
e aprovação das mesmas pelos deputados, editou-se o Ato Adicional, de caráter
liberal e descentralizador, que suprimia o Conselho de Estado mantendo-se,
entretanto, o Poder Moderador.368 Mesmo os adeptos da extinção do Poder
Moderador entendiam necessárias suas atribuições e efeitos.369 A Lei de
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Interpretação de 1840 marcaria o retorno do modelo centralizado, gravitando em
torno do Poder Moderador, como resposta à descentralização mal engendrada. Ao
tecer comentário sobre o regresso de 1841, o Visconde do Uruguai ressaltou a
essencialidade do Poder Moderador, recordando o reconhecimento daqueles que
queriam extinguir sua previsão constitucional:
As atribuições do poder Moderador são essenciais em qualquer organização
política. Não podem deixar de existir nela, em maior ou menor grau, mais ou
menos extensas ou restritas […] É por isso que, como já vimos, quando em 1832 se
pretendeu extinguir o poder Moderador da Constituição, protestavam os
pugnadores da idéia que não pretendiam extinguir o poder, mas sim passar as
atribuições que o constituem para o poder Executivo.370
O Poder Moderador teve seu fim como instituição oficial apenas com a
derrubada do próprio Império. Esvaiu-se a “chave da organização política”
nacional sem que a República adotasse um sistema eficiente de representação
política que conferisse estabilidade ao governo. Se o modelo imperial de
367
Ibidem, p. 281.
Explicitando a falta de lógica da medida, Paulino José Soares de Sousa, o Visconde do Uruguai,
comenta: “[…] a primitiva supressão do Conselho do Estado, a qual prevaleceu definitivamente,
teve por causa a supressão do poder Moderador, a qual afinal não prevaleceu.” URUGUAI,
Visconde do. Visconde do Uruguai. Organização de José Murilo de Carvalho. São Paulo: Ed. 34,
2002; p. 249.
369
Visconde do Uruguai transcreve a manifestação do senador José Inácio Borges, neste sentido:
“Quero fazer desaparecer a palavra 'poder Moderador' e que pertençam aquelas atribuições ao
poder Executivo, ao poder Executivo por quê? Porque este tem responsabilidade na pessoa dos
ministros, e o poder Moderador não tem [...]”.URUGUAI, Visconde do. Visconde do Uruguai, p.
317.
370
Ibidem, p. 341.
368
139
representação simbólica371 se mostrava deletério, era, contudo, eficiente como
diretriz para a escolha dos integrantes do governo através de eleições de um só
eleitor. Os republicanos, por sua vez, não dispunham sequer de um projeto
concreto para substituí-lo.372 O vazio em torno do qual gira o sistema republicano
brasileiro em seu alvorecer é explicitado por Lessa:
O Brasil acordou sem Poder Moderador, em 16.11.1889. Isto é, sem ter qualquer
resposta institucional a respeito de si mesmo: quem faz parte da comunidade
política, como serão as relações entre polis e demos, entre o poder central e as
províncias, como se organizarão os partidos e se definirão as identidades políticas.
Enfim, quem deverá mandar [...]373
A Primeira República tampouco se empenhou em promover à inclusão do
demos, antes, procurou estabelecer novos mecanismos de sua “domesticação e
exclusão”.374 A ausência de rotina institucional marcaria a primeira década do
novo regime. Nem mesmo a edição da Constituição de 1891 possibilitou o
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desenvolvimento de um governo estável, em que não se observasse um impasse
constante entre Executivo e Legislativo. A preocupação da oligarquia, no entanto,
não se resumiria à criação de dispositivos que controlassem a escolha dos
representantes do povo. Em compasso com um modelo estável e não competitivo
de acesso à ordem policial republicana, caminhava o receio com aqueles seres
criados para não influir no curso da história; aqueles não dotados de palavra que
ousam se levantar de seu estado de infantilidade ou animalidade, ainda que numa
desarticulada manifestação de presunção igualitária.
O que revela Canudos, a título de exemplo - e longe de se constituir em uma
proposta articulada em espectro nacional -, é a ocorrência de arrombamentos na
ordem policial que pretendia determinar a organização social. O perigo da
existência da Canudos de Antônio Conselheiro não se expressa apenas no
371
LESSA, Renato. A invenção republicana, p. 44.
A passagem para a República em nada remonta às criações de novas instituições conforme se
deu na França e nos Estados Unidos onde a substituição do modelo de governo se fez acompanhar
de novas estruturas. O projeto republicano brasileiro fundava-se em enunciados de princípios
abstratos. Como relembra Lessa: “É um engano supor que o Golpe de Estado de 15.11.1889 foi a
materialização de um projeto de utopia, lentamente amadurecido por duas décadas de ação
republicana [...] Confrontando com o que lhe era estritamente contemporâneo, o reformismo
republicano é anódino [...] As propostas apresentadas, e que ‘só poderiam ser implementadas com
a República’ incluíam: soberania do povo, democracia, governo representativo e responsável e
federalismo. É inútil procurar no Manifesto de 1870, e nos outros que lhe seguiram, maior
detalhamento.” Ibidem, pp. 38-39.
373
Ibidem, p. 46.
374
LESSA, Renato. A invenção republicana, p. 39.
372
140
eventual elogio à Monarquia e sim, mais poderosamente, na desarticulação da
centenária estrutura de mando que imperava no sertão brasileiro; no desafio à
natural distribuição dos locais e papéis que cada sujeito deveria ocupar e exercer
naquela sociedade. O pavor à experiência de Canudos é que ela encarna
vigorosamente o poder de agenciamento de sujeitos no sentido de constituir uma
nova ordem social, econômica e política, independente do sistema de exploração e
sujeição em meio ao qual emerge. O receio à emergência de manifestações
constituintes desse jaez - e à dimensão política que lhe é implícita -, imbrica-se à
necessidade de estabilizar a ordem policial erigida com a República. Fazia-se
necessário, portanto, orquestrar novos mecanismos para arrefecer os ânimos e
domar os espíritos mais libertários.375
Na ausência de um arranjo institucional oficial que garantisse a
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continuidade do modelo oligárquico por outras formas, nada mais ordinário que
nutrir certo saudosismo pelo Poder Moderador.376 É pela obra do governo Campos
Sales que se promoverá a política dos Estados como correspondente funcional do
Poder Moderador.377 O retorno de seus efeitos à institucionalidade nacional
ocorreria, agora, de forma oficiosa, desenvolvida à margem do texto formal da
Constituição de 1891. Também denominada de política dos governadores, a
política dos Estados consistiu no pacto entre o governo federal e elites estaduais
que estabilizava o poder destas últimas, ao passo que docilizava as bancadas da
Câmara dos Deputados, cujo acesso, a partir da alteração de seu Regimento
Interno pelo Presidente da República, passou a ser determinado pelos desígnios
375
Como afirma José Murilo de Carvalho: “A primeira quinzena republicana, que vai de 1889 até a
Revolta da Vacina em 1904, foi turbulenta. Houve assassinatos políticos, golpes de estado,
revoltas populares, greves, rebeliões militares, guerras civis. Ausente da proclamação do novo
regime, o povo esteve presente nesses anos iniciais. Mas as oligarquias conseguiram inventar e
consolidar um sistema de poder capaz de gerenciar seus conflitos internos que deixava o povo de
fora.” CARVALHO, José Murilo de. Os três povos da república, disponível em
<http://www.ifcs.ufrj.br/~ppghis/pdf/carvalho_povos_republica.pdf > , acessado em 15 de julho de
2008, p. 1.
376
Como destaca Lessa: “a referência negativa para a nova ordem não foi o antigo regime, mas a
infância do próprio regime republicano. Salvar a República de seus primeiros passos implicou em
tornar a nova ordem senão semelhante, pelo menos respeitosa com relação ao passado
monárquico.” LESSA, Renato. A invenção republicana, p. 111.
377
“Campos Sales, como nenhum outro político de seu tempo, percebia que o abandono da forma
monárquica não implicava a inexistência dos problemas institucionais que aquele regime, ao seu
modo, soube resolver. Neste sentido, a engenharia política do pacto oligárquico e a definição do
governo como instrumento de administração podem ser enquadradas como sendo a busca por um
equivalente funcional do poder Moderador.” Ibidem, p. 111.
141
dos chefes estaduais.378 A justificativa de Campos Sales, pontua José Murilo de
Carvalho, é expressão do modelo da política dos governadores: “É de lá [dos
estados] que se governa a República, por cima das multidões que tumultuam
agitadas, nas ruas da capital da União.”379 A arquitetura deste pacto, no entanto,
é mais complexa do que se revela a um primeiro olhar. O poder dos governadores
era controlado pela possibilidade de intervenção federal.380 As bases locais,
associadas ao que se denominou coronelismo381, eram, por sua vez, igualmente
dependentes do governo central. Às nuances desta complexa confluência de
interesses, Vitor Nunes Leal se refere em sua obra Corenelismo, Enxada e Voto,
pela qual ressalta a interdependência entre o poder central e o coronelismo,
relativizando sobremaneira o poderio dos chefes regionais que, conquanto
gozassem de poderio em seus currais eleitorais, dependiam intensamente do apoio
do governo federal. Os coronéis atuavam como espécie de delegados dos
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governadores, garantindo-lhes votos em troca de distribuição de empregos
públicos e de favores do Estado.382 No entanto, se o governador cai em desgraça
com o governo federal o que se perceberá é a imediata debandada de coronéis em
apoio ao governador do momento. Através desta troca de proveitos entre o poder
público e chefes regionais o governo federal detinha mecanismos que impediam
que restasse refém da ordem regional. Independente da exata composição de
378
Cabia à comissão de verificação de poderes, órgão da própria Câmara, a análise das reclamações
dos não eleitos, a ela cabia analisar a validades dos diplomas apresentados pelos candidatos. Pela
alteração realizada por Campos Sales os diplomas passaram a ser identificados com a ata geral da
apuração das eleições, assinada pela maioria da Câmara Municipal, encarregada por lei de
coordenar a apuração eleitoral. Como expõe Lessa: “A nova origem da Comissão implicou na
perda de soberania do Legislativo, dada a definição atribuída aos diplomas. As eleições já vêm
praticamente decididas, antes que a Comissão delibere a respeito dos reconhecimentos. Na verdade
ela opera como garantia extra para impedir o acesso de inimigos ao parlamento. Na maior parte
dos casos, a degola da oposição é feita na expedição dos diplomas pelas juntas apuradoras,
controladas pelas situações locais.” Ibidem, p. 106.
379
CARVALHO, José Murilo de. Os três povos da república, pp. 2-3.
380
“Para a rebeldia dos governadores, a União dispõe ”do trunfo máximo da intervenção federal,
prevista no discutido artigo 6.° da Carta de 1891[...]” FAORO, Raymundo. Os donos do poder, p.
642.
381
Na perspectiva de Vitor Nunes Leal o coronelismo era “uma forma peculiar de manifestação do
poder privado, ou seja, uma adaptação em virtude da qual os resíduos do nosso antigo e
exorbitante poder privado têm conseguido coexistir com um regime político de extensa base
representativa. Por isso mesmo, o 'coronelismo' é sobretudo um compromisso, uma troca de
proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos
chefes locais, notadamente dos senhores de terras.” LEAL, Vitor Nunes. Coronelismo, enxada e
voto: o município e o regime representativo no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1948; p. 40.
382
“E assim nos aparece este aspecto importantíssimo do coronelismo, que é o sistema de
reciprocidade: de um lado, os chefes municipais e os coronéis, que conduzem magotes de eleitores
como quem toca tropa de burros; de outro lado, a situação política do Estado, que dispõe do erário,
dos empregos, dos favores e da força policial, que possui, em suma, o cofre das graças e o poder
da desgraça.” LEAL, Vitor Nunes. Coronelismo, enxada e voto, p. 63-64.
142
forças resta claro que nesta nova distribuição de poder “não há lugar para a res
publica e nem há cidadãos”.383
A equivalência funcional entre a política dos Estados e o Poder Moderador é
expressa com acuidade por Lessa. Segundo o autor, a política dos governadores
reproduziu o controle que o Poder Moderador detinha sobre a dinâmica legislativa
e sobre o processo eleitoral direcionado para favorecer a facção partidária mais
conveniente, então, ao Imperador. Este controle é explicitado pelo autor:
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A engenharia política do Poder Moderador dotou o sistema político imperial de
controle sobre quatro dimensões básicas de ordem: 1. A dinâmica legislativa,
através da atribuição exclusiva do Poder Moderador em dissolver a Câmara e em
nomear senadores; 2. As eleições, pela legislação excludente e pelos poderes
conferidos ao governo para realizá-los; 3. As administrações regionais, através da
nomeação dos presidentes de província, cujo encargo mais importante era preparar
convenientemente as eleições; 4. O processo de geração de atores políticos
legítimos, através da ação exercida sobre os partidos pelo Poder Moderador, em
última análise o único eleitor relevante do modelo. 384
Se o Poder Moderador conferia ao Imperador a competência para dissolver a
Câmara, nomear os senadores e conduzir o resultado das eleições, de modo
semelhante, a política dos Estados, valendo-se do ardiloso modelo de verificação
de diplomas eleitorais expedidos pelo poder local, conduzia ao parlamento aliados
do Executivo federal, para regalo do poder central. Pela política dos governadores
a alta taxa de exclusão do demos combina-se, mais uma vez, com a verticalização
da ordem policial-administrativa, cujo resultado imporia não apenas a baixa
competitividade na disputa pelo acesso aos cargos eletivos, como a canalização
desta desidratada competição para “critérios de processamento não dotados de
caráter público.”385
A Revolução de 30 romperia com o pacto oligárquico que sustentara a
política dos governadores por três décadas. Tratou-se de uma revolução sem povo,
pela qual Getúlio Vargas foi alçado ao posto de Chefe do Governo Provisório. O
conturbado período que a ela se sucedeu trouxe à baila o debate sobre a
necessidade de um órgão que fizesse as vezes de Poder Moderador. A
preocupação por estabilidade política, diante do fim da política dos governadores,
levou Borges de Medeiros a reclamar a efetiva volta do Poder Moderador como
383
LESSA, Renato, A invenção republicana, p. 110.
Ibidem, pp. 111-112.
385
LESSA, Renato, A invenção republicana, p. 115.
384
143
instituição oficial, aplicada, agora, ao regime republicano, em que o chefe do
poder Executivo assumiria a função de grande mediador dos interesses nacionais.
O caráter transcendente do Poder Moderador restou explícito em sua defesa:
Desde que se trata de combinar poderes diferentes confiados a pessoas diversas, a
existência de um centro de ação reguladora, de um grande mediador que
previna os choques violentos, que neutralize as tendências funestas [...] apresentase logo ao espírito como um meio lógico indeclinável [...] Só um poder neutro,
mediador, moderador, separado e independente dos outros poderes ha de fazer
que o presidente seja realmente não só o primeiro representante como também o
primeiro magistrado da nação [...]386
No entanto, o que emergiu do processo do qual resultou a Constituição de
1934 foi a proposta de se atribuir ao Supremo Tribunal Federal função de Poder
Moderador a conter os excessos do Legislativo e do Executivo. O anteprojeto da
referida constituição, aduz João Mangabeira, esboçava o Judiciário como “chave
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de abóbada da constituição política”387. Esta suprema função política, como
ressalta o autor, faz dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal a mais alta lei
do país, a torná-lo o grande poder político do Estado388.
A Carta de 1937, outorgada por Getúlio Vargas após o auto-golpe que
instituiu o Estado Novo, em sentido diverso, previa expressamente que a Câmara
dos Deputados poderia remover a inconstitucionalidade de lei assim declarada
pelo Supremo Tribunal Federal. Na perspectiva de Francisco Campos, Ministro da
Justiça de Getúlio Vargas e importante teórico do novo regime, conferir ao Poder
Judiciário a autoridade para dizer em última instância o que significa a
Constituição implica em conferir-lhe poderes de moderar ou inibir os ímpetos
386
MEDEIROS, Antônio A. Borges de. O poder moderador na república presidencial. Brasília:
Senado Federal, 2004, pp. 73-76. Importante ressaltar que Alberto Torres constitui-se outro
importante defensor do ideal moderador, ao sugerir em sua obra A Organização Nacional a criação
do Poder Coordenador, espécie de poder Moderador que teria, dentre outras, a competência para
reconhecer os eleitos para mandatos por voto direto. A justificativa, mais uma vez, se pauta pelo
risco da incapacidade do povo escolher seus mandatários de modo consciente, pelo que o Poder
Coordenador poderia corrigir os deslizes das maiorias inconscientes. TORRES, Alberto. A
organização Nacional, primeira parte: a Constituição. São Paulo: Ed. Nacional; Brasília: Ed. UnB,
1982, pp.89-90.
387
MANGABEIRA, João. Em torno da constituição. São Paulo. Companhia Editora Nacional,
1934; p. 100.
388
Ibidem, p. 100. A proposta defendida por João Mangabeira, no entanto, restou vencida. A
função moderadora passou a ser exercida mais pelo Senado do que pelo Supremo Tribunal
Federal.
144
democráticos nacionais.389 Recusando a neutralidade do caráter técnico e objetivo
da interpretação jurídica, Campos argumenta:
A supremacia do Judiciário não é, pois, como procura fazer acreditar a ingênua
doutrina que atribui ao método jurídico um caráter puramente lógico e objetivo,
uma supremacia aparente. É, ao contrário, uma supremacia política, porque a
função de interpretar, que redunda na de formular a Constituição, é a mais alta ou a
mais eminente das funções políticas.390
Em sua perspectiva, o controle judicial de constitucionalidade sem a
possibilidade de o Parlamento remover a inconstitucionalidade, não constituiria
uma proteção para o povo e sim, um mecanismo para bloquear a democracia,
impedindo ou moderando as reivindicações populares. Nas palavras de Francisco
Campos: “É, como se vê, uma sobrevivência do poder moderador da monarquia,
um resquício monárquico que se enquistou nas instituições democráticas [...]”.391
Não deixa de ser curiosa a concepção de democracia de Francisco Campos
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expressa ao longo do texto da Constituição de 37, que transformou o Parlamento
em pouco mais que um conselho orçamentário. De fato, pela forma de
composição e competência a ele atribuída, o Parlamento proposto por Campos
distanciava-se sobremaneira do “povo” a que ele afirmava o dever de proteger,
bastando para tanto, ressaltar que a Câmara de Deputados deveria ser eleita por
sufrágio indireto. No entanto, é na instituição e disciplina do estado de emergência
que texto constitucional de 37 possibilita o governo por meio de permanente
estado de exceção. A constituição não apenas autoriza o presidente a dissolver o
Parlamento, como ela própria, de plano, declara imediatamente dissolvida a
Câmara de Deputados e Senado Federal, possibilitando que o presidente governe
por decreto-lei enquanto não convocado plebiscito para convalidação da nova
Constituição. O plebiscito convalidante, registre-se, jamais seria convocado,
mesmo porque cabia apenas ao presidente fazê-lo.392
389
CAMPOS, Francisco. O estado nacional: sua estrutura, seu conteúdo ideológico. Brasília:
Senado Federal, Conselho editorial, 2001; p. 103.
390
Ibidem, p.104.
391
Ibidem, p. 104.
392
Eis o estatuto das competências moderadoras atribuídas ao Presidente da República pela
Constituição de 1937:
Art 73 - o Presidente da República, autoridade suprema do Estado, coordena a atividade dos
órgãos representativos, de grau superior, dirige a política interna e externa, promove ou orienta a
política legislativa de interesse nacional, e superintende a administração do País.
Art. 74 - Compete privativamente ao Presidente da República:
k) decretar o estado de emergência e o estado de guerra nos termos do art. 166;
145
Mais curioso ainda, que Francisco Campos faça crítica veemente ao
resquício do poder moderador. O Estado Novo, por certo, não se erige inspirado
na arquitetura institucional proposta por Constant. Não parece desarrazoado, no
entanto, identificar neste período traços do poder moderador na vertente que Carl
Schmitt conferiu ao instituto. A influência que o pensamento de Schmitt exerceu
sobre a teoria de Francisco Campos é evidente.393 Na concepção de Schmitt o
poder moderador não se separa da função presidencial. Ele constitui um tipo
especial de autoridade que o chefe do executivo necessita possuir para lidar com
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questões emergenciais para as quais o modelo liberal, e sua arrastada deliberação
Art. 75 - São prerrogativas do Presidente da República:
b) dissolver a Câmara dos Deputados no caso do parágrafo único do art. 167;
Art. 166 - Em caso de ameaça externa ou iminência de perturbações internas ou existências de
concerto, plano ou conspiração, tendente a perturbar a paz pública ou pôr em perigo a estrutura das
instituições, a segurança do Estado ou dos cidadãos, poderá o Presidente da República declarar em
todo o território do Pais, ou na porção do território particularmente ameaçado, o estado de
emergência.
Desde que se torne necessário o emprego das forças armadas para a defesa do Estado, o
Presidente da República declarará em todo o território nacional ou em parte dele, o estado de
guerra.
Parágrafo único - Para nenhum desses atos será necessária a autorização do Parlamento
nacional, nem este poderá suspender o estado de emergência ou o estado de guerra declarado pelo
Presidente da República.
Art. 167 - Cessados os motivos que determinaram a declaração do estado de emergência ou do
estado de guerra, comunicará o Presidente da República à Câmara dos Deputados as medidas
tomadas durante o período de vigência de um ou de outro.
Parágrafo único - A Câmara dos Deputados, se não aprovar as medidas, promoverá a
responsabilidade do Presidente da República, ficando a este salvo o direito de apelar da
deliberação da Câmara para o pronunciamento do País, mediante a dissolução da mesma e a
realização de novas eleições.
Art. 175 - O primeiro período presidencial começará na data desta Constituição. O atual Presidente
da República tem renovado o seu mandato até a realização do plebiscito a que se refere o art. 187,
terminando o período presidencial fixado no art. 80, se o resultado do plebiscito for favorável à
Constituição.
Art. 178 - São dissolvidos nesta data a Câmara dos Deputados, o Senado Federal, as Assembléias
Legislativas dos Estados e as Câmaras Municipais. As eleições ao Parlamento nacional serão
marcadas pelo Presidente da República, depois de realizado o plebiscito a que se refere o art. 187.
Art. 180 - Enquanto não se reunir o Parlamento nacional, o Presidente da República terá o poder
de expedir decretos-leis sobre todas as matérias da competência legislativa da União.
Art. 186 - É declarado em todo o País o estado de emergência.
Art. 187 - Esta Constituição entrará em vigor na sua data e será submetida ao plebiscito nacional
na forma regulada em decreto do Presidente da República.
Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao37.htm>. Acesso em 24.02.2010.
393
O ideal de democracia decorrente da unidade e homogeneidade política representado na
identificação direta do povo com o chefe do executivo; a proposição do Estado autoritário,
promotor da ditadura democrática; o desprezo pela atuação do parlamento; a aclamação como
mecanismo de manifestação pública, conferindo instituindo um regime plebiscitário; a
configuração dos poderes atribuídos ao presidente em caso de declaração de estado de exceção,
tudo isso Campos assimila do pensamento schmittiano para aplicar na construção teórica do
Estado Novo. SANTOS, Rogério Dultra dos. O constitucionalismo antiliberal no Brasil:
cesarismo, positivismo e corporativismo na formação do Estado Novo. Tese de doutorado
apresentada no Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 2006; pp. 19
e 56-57.
146
parlamentar, não se mostrou eficaz. Schmitt explicita seu entendimento sobre a
importância do poder moderador nestes termos:
[...] o chefe de Estado em semelhante Constituição [Weimar] representa a
continuidade e a permanência da unidade estatal e de seu funcionamento uniforme,
transcendendo às competências a ele atribuídas, e que, por motivos da
continuidade, da reputação moral, e da confiança geral, tem que ter um tipo
especial de autoridade, a qual faz parte da vida de cada Estado, assim como o poder
e o poder de comando que se tronam diariamente ativos. Isso é de especial
interesse para a teoria do poder neutro, porque a função peculiar do terceiro neutro
não consiste em atividade contínua de comando e regulamentar, mas
primeiramente, apenas intermediária, defensora e reguladora, e só ativa em caso de
emergência e, ademais, porque ela não deve concorrer com os outros poderes no
sentido de uma expansão do próprio poder e também não tem que normalmente
estar, em seu exercício, de acordo com a natureza do assunto, discreta e morosa.
Apesar disso, ela existe e é indispensável, pelo menos no sistema do Estado de
direito com diferenciação dos poderes.394
Este poder neutro, portanto, confere, ao chefe do executivo, autoridade de
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decidir politicamente em caso de estado de exceção, sem as amarras impostas pelo
parlamento. Poder moderador, por certo, utilizado como inspiração para engendrar
um regime antiliberal e autoritário. Valendo-se desta autoridade especial do
presidente em casos emergenciais, apoiada na teoria do poder neutro na
perspectiva de Schmitt, Francisco Campos define os argumentos para que Getúlio
Vargas governe em permanente estado de exceção, conforme acima registrado.395
No trato deste período, necessário registro deve ser feito: consistiria
equívoco desmedido ler este momento histórico apenas pelas lentes do poder
moderador de viés schmittiano; trata-se apenas de mais uma - talvez a mais branda
- dentre tantas características que integra o complexo conjunto de fatores que
ajudam na compreensão de um fenômeno. Assim, ressalte-se a grande influência,
certamente a mais evidente, exercida pelo pensamento positivista de Julio de
Castilhos e pelo corporativismo de Oliveira Vianna que, juntamente com o
394
SCHMITT, Carl. O guardião da constituição, pp. 199-200.
A breve exposição de motivos da Constituição de 1937 explicita o uso do estado de exceção
como fundamento para as diretrizes constitucionais postas. Ali se faz menção à profunda
perturbação da paz política e social por fatores de desordem, à iminente deflagração de guerra
civil, ao perigo comunista e à incapacidade das instituições liberais disporem de meios normais de
preservação e de defesa da paz, da segurança e do bem-estar do povo. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao37.htm>. Acesso em 24.02.2010.
395
147
pensamento schmittiano, formam um mosaico teórico em que se baseou o Estado
Novo.396
Se, após Revolução de 30 e ao longo do Estado-Novo, as decisões sobre os
rumos nacionais permanecem verticalizadas, observa-se modificação sensível no
acesso da população aos direitos políticos e sociais.397 As profundas
transformações promovidas por Getúlio Vargas faz o Brasil adentrar a segunda
metade do século XX com um novo arranjo de forças políticas. É certo que o
alinhamento com as oligarquias rurais parece se constituir o ponto de contato com
a velha ordem policial brasileira. No entanto, a inserção, ainda que controlada, da
população como sujeito de direitos políticos e sociais provocaria abalos no
sistema oligárquico que imperava até então. O reflexo das alterações gestadas
naquele período pode ser observado rapidamente. O período de relativa
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democracia experimentada após a Constituição de 1946, mais precisamente após a
saída de Dutra da presidência em 1951398, terá como protagonistas sujeitos nunca
antes contados como parte da comunidade política brasileira: camponeses e
operários; o “povo-criança” a procura de emancipação, a demandar participação
no governo, a demonstrar uma pretensão igualitária como perturbação à velha
democracia sem povo que marcara os anteriores regimes nacionais.
O que se expõe, a partir de então, é fratura entre dois mundos diversos,
partidos e contrapostos, ao que se sucederiam desesperadas tentativas de conter o
poder constituinte expresso no agenciamento entre trabalhadores, camponeses,
estudantes e operários. O objetivo seria alcançado com o golpe civil-militar de
1964. Em sua obra 1964: A conquista do estado, René Dreifuss revela como o
golpe que interrompeu a breve experiência democrática brasileira decorreu da
396
Em sua tese, aqui já referida, Rogério Dultra dos Santos demonstra como o Estado Novo foi
influenciado não apenas pelo pensamento de Schmitt, como pelo positivismo castilhista e pelo
corporativismo de Oliveira Vianna. Para abordagem específica desta conjunção de fatores vide a
referida obra. Nunca demais ressaltar a grande e decisiva influência do castilhismo na condução do
Estado-Novo. No entanto, se tal característica apresentava-se muito evidente e forte, não se pode
deixar de reconhecer que Francisco Campos contribuiu para a elaboração do fundamento teórico
do regime.
397
Data deste período a garantida de direitos trabalhistas como salário mínimo, férias anuais,
descanso semanal, jornada diária de oito horas, indenização poder demissão sem justa causa,
assistência social, criação da Justiça do Trabalho, dentre outros.
398
Isto porque, ainda que sob a égide de uma Constituição democrática, o governo Dutra
notabilizou-se pela intervenção em inúmeros sindicatos e pela orquestração para expulsar o PCB
(Partido Comunista Brasileiro) da polis, negando-lhe acesso à palavra pela cassação de seu registro
em 1947, medida esta ratificada pelo Supremo Tribunal Federal a demonstrar o viés
antidemocrático que animava a casa, então.
148
associação entre o capital transnacional, capital financeiro e industrial local e
Forças Armadas, como reação a uma série de medidas do governo João Goulart
contrárias aos interesses da burguesia.399
Dreifuss demonstra como os representantes do capital transnacional e local
exerciam pressão econômica nos governos Kubitschek e Jânio Quadros,
ocupando, a um só tempo, cargos nas diretorias de grandes companhias e no
aparelho administrativo e burocrático do Estado – o que lhes valeu a denominação
de tecnoempresários - com o intuito de desenvolver um “complexo financeiroindustrial integrado de produção e domínio”.400 Tais agentes atuariam
determinantemente na reação burguesa contra o governo João Goulart, de evidente
apelo às forças populares. Conforme expõe Dreifuss, a proximidade ideológica de
oficiais das Forças Armadas à União Democrática Nacional (UDN) e ao Partido
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Democrático Cristão (PDC), aliado à organização destes oficiais como reduto
político na Escola Superior de Guerra, facilitou o intercâmbio com os
tecnoempresários401.
A relação entre militares e civis foi coordenada pela atuação conjunta do
Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) e do Instituto Brasileiro de Ação
Democrática (IBAD), dos quais integravam membros do que Dreifuss denomina
de elite orgânica: tecnoempresários, intelectuais e militares, representantes dos
interesses multinacionais e associados.402 Maria Victória Benevides destaca a
relação entre esses sujeitos e os objetivos pretendidos:
O papel relevante comumente atribuído às Forças Armadas, assim como à
"tecnoburocracia", passa a ser atribuído aos empresários, e banqueiros. O complexo
IPES/IBAD teria sido o núcleo ativo desse "golpe de classe", cujos objetivos
seriam, entre outros, restringir a organização das classes trabalhadoras; consolidar
399
Estas medidas encontram-se veiculadas no discurso que o Presidente João Goulart dirigiu ao
Congresso Nacional em 15 de março de 1964. Ali são expostas as diretrizes de seu governo: a)
política externa independente; b) reforma agrária; c) regulação de remessas de lucros para o
exterior; d) combate à sonegação fiscal; e) defesa das riquezas minerais nacionais, dentre outras,
com o objetivo de promover a “libertação das classes sociais inferiorizadas pela situação que
ocupam no processo geral de produção”, resíduos de “uma concepção aristocrática” que regia a
atuação estatal. GOULART, João. A histórica mensagem do presidente João Goulart. Prefeitura da
cidade do Rio de Janeiro, 1984.
400
DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe.
Petrópolis: Vozes, 2006; pp. 79-80.
401
Conforme ressalta Dreifuss, muitos tecnoempresários como o próprio Eugênio Gudin, Roberto
Campos e Octávio Gouveia de Bulhões eram assíduos conferencistas na Escola Superior de Guerra
DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado, p. 86
402
Ibidem, pp. 78-81.
149
o crescimento econômico num modelo de capitalismo tardio, dependente, com alto
grau de concentração industrial integrado ao sistema bancário e promover o
desenvolvimento de interesses multinacionais e associados na formação de um
regime tecnoempresarial, protegido e apoiado pelas Forças Armadas.403
A legitimação para deflagração do golpe foi construída recorrendo-se ao
discurso da necessidade de uma instância moderadora que, por sua força moral e
condição de neutralidade, pudesse reconduzir o país ao estado de ordem,
arrostando o dissenso – entendido como anarquia – e propiciando a estabilidade
da ordem liberal. Este aspecto é incensado pela estreita cooperação entre civis e
militares para a formulação do golpe. Conforme pontua Dreifuss a respeito do
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tema:
Um dos resultados da íntima cooperação entre civis e militares e entre as Forças
Armadas dos Estados Unidos e do Brasil e seus serviços de segurança foi a
crescente convicção dentro do Exército de que eles deveriam desempenhar um
papel de “moderadores” nos conflitos entre facções das classes dominantes. Esse
mito do poder moderador societário do Exército foi aceito e legitimado por muitos
estudiosos de política brasileira em seus escritos históricos. No entanto, esse papel
de poder moderador era conflitante com a identificação partidária de oficiais
militares [...] Contudo, e apesar da evidência histórica, o mito do papel moderador
proporcionou a racionalização para o controle militar autoritário do sistema político
depois de 1964.404
Caberá às Forças Armadas, neste momento, vestir a fantasia do Poder
Moderador, emascular a política e conter o poder popular. A construção desta
identidade militar ressalte-se, foi lenta e gradual; ela não brota em meio ao nada
em plena década de 60. O sentimento de tutor do povo brasileiro já se desenvolvia
nas Forças Armadas há muitos anos. A Constituição de 1891, ressalta Fábio
Carvalho Leite, “não apenas não afirmava expressamente o princípio da
supremacia civil sobre o poder militar, como ainda atribuía às forças armadas a
obrigação de sustentar as instituições constitucionais [...]”405Tal abertura
semântica permitia que as Forças Armadas pudessem se arrogar à definir o
conteúdo da constituição, compreendendo-se como instituição moderadora
competente para resolver os conflitos institucionais e salvar a nação. Como atenta
Raymundo Faoro, em passagem destacada por Fábio Carvalho Leite: “se as
403
BENEVIDES, Maria Victória de Mesquita. 1964: um golpe de classe? (Sobre um livro de René
Dreifuss). Disponível em <http://sala.clacso.org.ar/gsdl/cgi-bin/library?e=d-000-00---0luanova-00-0-0Date--0prompt-10---4------0-1l--1-es-Zz-1---20-about---00031-001-0-0utfZz-800&cl=CL2.1&d=HASH019572922773632323e28aec.12&x=1>. Acesso em 15 de julho de 2008.
404
DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe,
pp. 89-90.
405
LEITE, Fábio Carvalho. 1891: A constituição da matriz político-institucional da república no
Brasil. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2002; p. 113.
150
forças armadas podem sair da esfera de poder do governo, poderão destruí-lo,
em defesa do que entendem ser a constituição, com a faculdade de avaliar-lhe o
alcance e compreendiam o papel das Forças Armadas, explicita a autocompreensão daquela conteúdo”406. José Murilo de Carvalho, por sua vez, ao
relatar a forma como Góis Monteiro e Gaspar Dutra - emergentes chefes militares
da década de 30 – interpretavam o papel das Forças Armadas, explicita a autocompreensão daquela instituição como Poder Moderador:
Para eles, o Exército não devia ser instrumento político dos chefes civis, como era
a prática na Primeira República, nem fator de revolução social, como queriam os
“tenentes”. Devia ter papel tutelar, sobre o governo e a nação. Deveria ter um
projeto próprio para o país [...] Era um projeto de modernização conservadora ou,
na terminologia que se popularizou, de poder moderador, lembrança do papel
exercido pelo Imperador. 407
O período que atravessa o Estado Novo, e sua derrocada, é marcada, como
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pontua João Almino, pelo protagonismo das Forças Armadas como co-artífice do
regime. Como expõe o autor:
São os militares que são invocados pelos liberais em 35, 36 e 37 e que ajudam Vargas a
instaurar o regime do Estado Novo. São eles que conseguem manter esse regime e que, no
auge da guerra, podem reforçar a ideologia da segurança interna que desrecomenda que
eventuais divisões internas possam desviar as atenções da questão maior da guerra. São eles
que, mais uma vez invocados pelos liberais, fazem o golpe de 29 de outubro. Em todo o
período que vai da instauração do Estado Novo ao seu final e à organização do novo regime
político são, inclusive, as mesmas pessoas que estão em cena [...] É significativo que, na
406
FAORO, Raymundo. Democratização e Forças Armadas. Apud LEITE, Fábio Carvalho, op. cit.,
p.113.
407
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Editora
Brasileira, 2001; p. 105. Este sentimento emerge antes mesmo de 1930. Raymundo Faoro traça o
panorama que indica o sentimento das Forças Armadas na passagem do Império à República.
Trecho do manifesto de 14 de maio de 1887, demonstrando inconformismo de setores do exército
com o governo imperial, é, na perspectiva do autor, elucidativa: [...] a consciência pública tem
certeza de que o Exército brasileiro é a mais estável segurança da paz, da legalidade, da
organização civil do Estado. Seja qual for a posição a que as circunstâncias nos levem, a segurança
individual, a tranqüilidade pública, as instituições constitucionais, as tradições livres da nação
encontrarão sempre no Exército um baluarte inexpugnável e em cada peito de soldado uma arma
de cidadão. FAORO, Raimundo. Os donos do poder, 2001, p. 545. Das palavras do manifesto,
pontua Faoro: “sobressai o espectro [...] de que a força armada não é mera dependência do
governo, senão que constitui a primeira coluna de paz e da legalidade. Não por meio das formas
jurídicas atua o Exército, mas, sobre elas, no seio da nação.” Ibidem, p. 545. Benjamin Constant
Botelho de Magalhães trilha mesmo entendimento, ainda naquele ano, conforme relata Faoro ao
trancrever suas palavras: “A intervenção das força armada para derrubar e erguer ministérios seria
sediosa, incompativel com a lealdade militar e missão natural do Exército. Pode, porém, e deve
[...] quando são conspurcadas pela tirania as liberdades públicas, quando são falseadas as garantias
constitucionais e o poder constituído se torna um inimigo da nação, intervir como libertador da
pátria, para uma transformaçao política.” Ibidem, p. 554.
151
chamada “redemocratização” de 1945, os dois principais candidatos à Presidência da
República sejam militares [...]408
Assim, no início dos anos 60 as Forças Armadas já nutriam robusto
sentimento tutelar pela Nação, respaldado por seu patriotismo e por sua força
moral. A manifestação de Eugênio Gudin, em artigos veiculados na imprensa em
novembro de 1962, traduz bem os efeitos da tradição das Forças Armadas
entenderem-se como tutores da soberania nacional. Em um primeiro momento
Gudin argumenta sobre a necessidade de reativar um correspondente funcional ao
Poder Moderador, na qualidade de exímio corretivo das arbitrariedades
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democráticas:
Se no regime republicano de 1889 foi mantida a democracia representativa, mas se,
de outro lado, o nível de educação cívica e política não se modificou pela simples
proclamação da República, a que mãos, pergunta-se, se deveria passar o Poder
Moderador, corretivo indispensável do sistema democrático na América Latina? É
claro que, sendo o exercício desse poder destinado, como no Império, a corrigir,
em circunstâncias excepcionais, de decisiva importância para o País, os erros ou
desmandos do Executivo ou do Legislativo, havia o Poder Moderador ser exercido
por um organismo estranho e independente.409
Após declamar a indispensabilidade de uma instituição moderadora, Gudin
conclama as Forças Armadas a reinstalar a ordem no país, na condição de herdeira
do Poder Moderador. Após apresentar argumentos pelos quais tal tarefa não
deveria recair sobre o Judiciário, afirma que caberia às Forças Armadas atuar na
qualidade de Poder Moderador por, dentre outras razões, nunca ter se apossado do
poder em momentos de crise e pelo fato de seus membros terem “formação em
ambiente de civismo e educação de caráter, afastados dos torvelinhos das paixões
e interesses”
410
. A preconizada neutralidade das Forças Armadas imbricar-se-ia,
assim, com a retórica da superioridade moral. Eis um ponto que merece ser
aprofundado.
O caráter moral - e elitista - do detentor do poder neutro integra a
formulação teórica do próprio Montesquieu. Como visto no início deste segundo
capítulo, em seu modelo monárquico cabe à nobreza o papel eqüidistante de poder
moderador não apenas pela posse de bens que garantam seu fausto. Sua condição
408
Os democratas autoritários: liberdades individuais, de associação política e sindical na
constituição de 1946. São Paulo: Brasiliense, 1980; pp. 69-70.
409
GUDIN, Eugênio. Análise de problemas brasileiros: coletânea de artigos – 1958-1964. Rio de
Janeiro: Agir, 1965, p.118.
410
Ibidem, p. 118.
152
desapaixonada pelo poder decorre, mais precisamente, de sua nobre superioridade
que a afasta das disputas comezinhas pelo poder. Tal qual as Forças Armadas na
concepção de Gudin, a nobreza para Montesquieu aparta-se dos torvelinhos das
paixões e interesses. Em verdade, Montesquieu não se refere expressamente à
moral, e sim à “honra”. As formulações não são idênticas, mas herdeiras de uma
mesma concepção: trata-se de atribuir a função de moderador da democracia
àquele que, por características morais, se distingue dos demais seres incapazes de
comportamento equilibrado diante do exercício do poder. A condição moral – ou
honorífica - da nobreza a coloca acima das demais classes, pairando sobre os seus
conflitos, tornando-a apta a amortecê-los. O burguês poderá gozar de riqueza
inconteste, mas jamais será talhado moralmente para exercer a função
moderadora. Na concepção de Montesquieu não é a riqueza, e sim a honra o valor
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social mais elevado; é ela que marca a distinção entre a elite e o povo.
Os articuladores do golpe de 64 fazem do discurso moral peça fundamental
para legitimação das Forças Armadas como herdeira do Poder Moderador.411 A
ausência deste poder como instituição oficial demandava maior recorrência à
retórica moralista. Não por coincidência, a UDN operou como pilar civil que
sustentou o golpe. De fato, as articulações entre UDN e Forças Amadas nos
preparativos do golpe revelam como a retórica da moralidade foi utilizada para
legitimar a intervenção militar na democracia. A reação udenista após o golpe
reflete o tom; a primeira nota oficial do partido saúda a vitória contra a “subversão
dos ideais cristãos” e contra o “câncer da corrupção.”412 Conforme ressalta Maria
411
O editorial do jornal O Globo de 02 de abril de 1964 é emblemático para demonstrar a forma
pela qual o golpe de 64 calcou-se, em larga escala, no discurso da moralidade e do salvacionismo.
Sob o título Ressurge a Democracia ali se discorre: “Vive a Nação dias gloriosos. Porque
souberam unir-se todos os patriotas, independentemente de vinculações políticas, simpatias ou
opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem.
Graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas [...] o Brasil livrou-se do Governo
irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua vocação e tradições. Como
dizíamos, no editorial de anteontem, a legalidade não poderia ser a garantia da subversão, a escora
dos agitadores, o anteparo da desordem [...] Aliaram-se os mais ilustres líderes políticos, os mais
respeitados Governadores, com o mesmo intuito redentor que animou as Forças Armadas. Era a
sorte da democracia no Brasil que estava em jogo. A esses líderes civis devemos, igualmente,
externar a gratidão de nosso povo. Mas, por isto que nacional, na mais ampla acepção da palavra, o
movimento vitorioso não pertence a ninguém. É da Pátria, do Povo e do Regime. Não foi contra
qualquer reivindicação popular, contra qualquer idéia que, enquadrada dentro dos princípios
constitucionais, objetive o bem do povo e o progresso do País [...]Mais uma vez, o povo brasileiro
foi socorrido pela Providência Divina, que lhe permitiu superar a grave crise, sem maiores
sofrimentos e luto. Sejamos dignos de tão grande favor.” Jornal O Globo, 02 abril de 1964.
412
BENEVIDES, Maria Vitória. A UDN e o udenismo: ambigüidades do liberalismo brasileiro.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 128.
153
Vitória Benevides, em 1962 o jornalista Júlio de Mesquita Filho, por meio do
diário O Estado de S.Paulo, já dirigira aos militares apelo para realização do
golpe clamando pela realização de um “saneamento político e moral”.413 Otávio
Mangabeira, udenista de primeira linhagem, outrora se referira à convergência
entre seu partido e os militares em prol da moralidade: “a união das Forças
Armadas é condição de nossa sobrevivência, como democracia que aspira à
Ordem, à Justiça, e à Estabilidade, dentro das normas rigorosas da moralidade.”414
No entanto, é Maria Vitória Benevides que melhor sintetiza como a moralidade,
um dos pontos de convergência entre a UDN e os militares, serve de fermento
para a gestação do golpe de 64:
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[...] a relação da UDN com as Forças Armadas não deve ser vista apenas em termos
de apego às candidaturas militares para a presidência da República e à intervenção
“salvadora” no processo político, mas sobretudo pela ótica de uma certa concepção
de nação, de segurança e de “moralidade” (onde o udenismo certamente se
acomodava) que se consubstanciaria no arcabouço ideológico de 64.415
Este discurso em prol da moralidade expressava-se não apenas pelo aspecto
individual da probidade pessoal, como também, pelo brandir contra à corrupção e
pelo elitismo416, que pressupunha a “presciência das elites em relação aos grandes
movimentos populares”417 A retórica moral imbricava-se, portanto, com uma
tradição liberal demofóbica, expressa, na certeza de que o povo não sabe
conduzir-se bem nas suas decisões políticas, a exigir uma intervenção pedagógica
da elite nacional. Esta visão moralista e elitista, expõe Benevides, traduz a “antiga
crença de que o ‘país não está amadurecido para um verdadeiro regime
democrático, porque o povo não sabe escolher seus representantes’.”418
Em recente artigo, Maria Inês Nassif demonstra como o discurso moral
encontrou guarida nos oficialato militar, cioso de seu papel de tutor nacional:
No passado - e no limite -, a emocionalização do discurso moral encontrou abrigo
não apenas nos setores médios da sociedade, mais vulneráveis a ele, mas também
nos setores militares. A UDN foi o braço civil do golpe de 64; o propagandista do
movimento político e militar; o partido que mobilizou os setores médios e
conservadores [...] Na retórica udenista, os julgamentos morais são reiterados e
413
Ibidem, pp. 128-129.
Ibidem, p 145.
415
Ibidem,pp. 142-143.
416416
BENEVIDES, Maria Vitória. A UDN e o udenismo, p. 267.
417
ARINOS, Afonso. O Estado de S. Paulo, 21 de março de 1976 apud BENEVIDES, Maria
Vitória. A UDN e o udenismo, pp. p. 252.
418
BENEVIDES, Maria Vitória. A UDN e o udenismo, pp. p. 249.
414
154
repetidos como verdade, mesmo que exagerados ou injustos, porque se trata
também de fixar, perante um segmento da opinião pública, aquela parte como a
legítima julgadora moral dos demais atores que se movem no cenário político. É
aquele que domina a retórica agressiva, o depositário da verdade, o juiz da moral
nacional, o fiscalizador - e todos os contrários à retórica são os objetos da
desconfiança nacional, os desonestos e impatriotas.419
Ao contrário do esperado pelos udenistas, as Forças Armadas não se
despiriam do traje de Poder Moderador. É o poder militar, agora, que se constitui
o repositório da moralidade nacional, legitimando-se timoneiro natural da
democracia sem povo. A moderação aos arroubos democráticos não tardaria e se
desenvolve como manifestação da função tutelar e pedagógica responsável por
ensinar a cartilha democrática ao povo-criança, explicitada na missão militar de
“colocar o povo na prática e na disciplina do exercício democrático.”420 Os
dispositivos legais de bloqueio ao poder constituinte são conhecidos: os atos
institucionais, por meio dos quais a ditadura militar submete o país a seus
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desígnios, determinaram o retorno do processo de verticalização das decisões
públicas e de controle sobre o sistema de representação parlamentar. Esta função
moderadora não explicita abertamente sua intenção contra-majoritária; ela é
insidiosa, procura legitimar-se pelo discurso da intervenção na democracia para
salvar a democracia. Desta tentativa deriva a constante menção, nos preâmbulos
dos atos institucionais, à suposta Revolução deflagrada pelas Forças Armadas no
exercício do poder constituinte.421
Além da expressa usurpação do poder constituinte, a edição dos referido
atos revela o aprofundamento institucionalizado do controle militar sobre a
composição das instituições: pelo AI-1 os chefes militares se concedem o direito
de suspender direitos políticos e cassar mandatos legislativos das três esferas da
federação (art. 10º); o AI-2 estabelece eleições indiretas para presidente (art. 9º) e
extinção dos partidos políticos (art. 18); as eleições indiretas seriam adotadas para
419
NASSIF, Maria Inês. O juiz da moral e a moral do juiz. Jornal Valor Econômico; 03 de
dezembro de 2009, p. A6.
420
Preâmbulo do Ato Institucional nº 2 (AI-2). ANDRADE, Paes; BONAVIDES, Paulo. História
Constitucional do Brasil. Brasília: Paz e Terra, 1988; p. 775.
421
Preâmbulo do AI-1: “Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e, ao
apoio inequívoco da Nação, representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte.”
No preâmbulo do AI-2 lê-se que a auto-referida revolução “edita normas jurídicas sem que nisto
seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória, pois graças à ação das Forças Armadas e ao
apoio inequívoco da Nação, representa o povo e em seu nome exerce o Poder Constituinte de que
o povo é o único titular.” Na mesma linha seguem os AI nº 3, 4 e 5. BONAVIDES, Paulo. História
Constitucional do Brasil, pp. 770-791.
155
o acesso ao cargo de governador pelo AI-3; por meio do AI-4 a ditadura convoca
o Congresso Nacional para elaborar sua Carta; por fim, o AI-5 que, a partir de 13
de dezembro de 1968, reintroduziu no país a possibilidade do presidente da
República decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias
Legislativas e Câmaras de Vereadores (art. 2º), decretar intervenção nos Estados e
Municípios e suspender a garantia do habeas corpus (art. 10).
Analisados tais aspectos, se depreende que o Poder Moderador não foi
usado pelos militares apenas como parte da retórica que o legitimou a condutor do
golpe de 64. Como demonstra Marcelo Ciottolla em seu trabalho Os atos
institucionais e o regime autoritário no Brasil, o regime militar procurou se
institucionalizar valendo-se de um arcabouço jurídico que lhe desse respaldo
legal. Este aparato prestou-se a conferir ao militares o poder de moldar o sistema
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representativo a seu gosto, enquanto emprestava mínimas feições democráticas ao
regime ditatorial pela permanência de um Congresso manietado. Este arranjo
permite alcançar semelhantes objetivos àqueles atribuídos por Renato Lessa ao
Poder Moderador no Império e à política dos governadores na Primeira
República: o controle da dinâmica legislativa, o resultado das eleições, e o
alinhamento das administrações regionais ao poder central. Por certo, todos os
fatores internos e externos que agiram sobre cada momento os tornam específicos,
e não mera reprodução um do outro. No entanto, a equivalência funcional dos
diversos aparatos dos quais se valeram, os colocam numa mesma linhagem de
contenção e moderação da democracia e usurpação do poder constituinte.
Ultrapassado este breve e generalizado percurso por momentos diversos da
vida política nacional, podem ser tecidos sucintos comentários sobre o papel da
teoria do Poder Moderador no Brasil. De saída, resta evidente o papel contramajoritário que ela desempenha. Este aspecto se reflete no fato de que, em todos
os momentos analisados, se observa um ataque, direto ou sinuoso, ao parlamento
nacional, restringindo a competitividade eleitoral pelos diversos modos insidiosos
de direcionar sua composição ou mesmo negando-lhe atuação. Em segundo plano,
a participação popular nas decisões públicas é drasticamente inibida, a
espontaneidade de agenciamentos entre sujeitos constituintes suprimida. Como
corolário, a influência da teoria do poder moderador contribui como mecanismo
de concentração de poder nas mãos de poderes constituídos que se arrogam
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oráculo do poder constituinte, centro de convergência da soberania nacional que,
posto em patamar superior, rege o destino do país. Por fim, o ideal do poder
moderador encontra-se vinculado aos diversos estratagemas de que a elite
oligárquica brasileira se valeu para legitimar sua ordem de dominação
necessariamente refratária às demandas igualitárias da democracia.
Com efeito, o Brasil emergiu como nação independente, moldado pela
teoria do poder moderador e, desde então, tem sua história pontuada por aspectos
que remontam a uma propalada necessidade de moderar a democracia, de salvar o
“povo” de si mesmo. Convém questionar, portanto, se a redemocratização lenta e
distendida que se completou com a Constituição de 1988, conseguiu arrostar da
atuação das instituições nacionais os últimos laivos de Poder Moderador,
condição necessária rumo a um nível minimamente aceitável de práticas
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institucionais democráticas.
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