O IMPÉRIO DAS CARAPUÇAS Nação e identidade no Brasil Imperial

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ARIEL FELDMAN
O IMPÉRIO DAS CARAPUÇAS
Nação e identidade no Brasil Imperial (1808-1842)
Monografia de conclusão de curso. Departamento de
História, Faculdade de Ciências Humanas, Letras e
Artes da Universidade Federal do Paraná.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Geraldo Sivla
CURITIBA
2004
Agradeço ao meu pai. Meu ídolo. Seus
defeitos são decorrentes da sua maior
virtude: a sinceridade. É o cara mais
autêntico e verdadeiro que conheço.
Agradeço a minha mãe. A que mais
gosta de escutar o que tenho para dizer.
Minha melhor ouvinte. Escutou, inclusive,
histórias sobre o Padre Lopes Gama.
Agradeço, por fim, meu orientador Luiz
Geraldo. Leitor atento. Sempre me
atendendo com muita tranqüilidade e
paciência.
ii
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.....................................................................................................................1
CAPÍTULO 1 - A CONSTRUÇÃO DA NAÇÃO E O NASCIMENTO DA
IMPRENSA PERIÓDICA NO BRASIL (1808-1850)........................................................3
A CONSTRUÇÃO DO ESTADO E DA NAÇÃO NO BRASIL.................................................4
A IMPRENSA NO BRASIL DA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX.............................8
CAPÍTULO 2 – MIGUEL DO SACRAMENTO LOPES GAMA: O PADRE
CARAPUCEIRO.................................................................................................................14
O CARAPUCEIRO...............................................................................................................19
“NE QUID NIMIS” – NADA DE EXCESSOS....................................................................22
A TRAJETORIA POLÍTICA DE LOPES GAMA...............................................................25
CAPÍTULO 3 - ENCARAPUÇANDO A NAÇÃO...........................................................30
UMA BRASIL, UM REI, UMA CONSTITUIÇÃO: UMA NAÇÃO..................................30
O NOSSO GOSTO POR MACAQUEAR............................................................................33
A SEDE DE EMPREGO ENTRE NÓS................................................................................38
CONCLUSÃO.....................................................................................................................44
ANEXO 1 – CRONOLOGIA DA VIDA DE MIGUEL DO SACRAMENTO LOPES
GAMA...................................................................................................................................46
FONTES...............................................................................................................................48
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS..............................................................................48
iii
iv
1
INTRODUÇÃO
A formação do Estado e da nação no Brasil é um tema de alta complexidade. A
historiografia já se deu conta disso: inúmeros novos estudos sobre o tema vem sendo
realizados. Sob a organização de István Jancso, publicou-se em 2003 o livro Brasil:
formação do Estado e da nação.1Tal obra contém as mais novas pesquisas a respeito do
assunto e é uma constatação: existe uma demanda. O olhar dos historiadores de início do
século XXI se volta, dessa maneira, para dois séculos atrás. O estudo monográfico aqui
sugerido insere-se nessa tendência. É uma analise de um período, que como veremos, foi
altamente conturbado politicamente. A unidade do Brasil para nós hoje é algo dado,
constituído. No entanto, para os que aqui viviam na primeira metade do século XIX o
futuro era incerto e obscuro.
Essa pesquisa parte, também, do seguinte pressuposto: a vida de um homem pode
ser altamente reveladora. A vida de um homem pode nos ajudar a entender o tempo em que
vivia. Tendo isso como ponto de partida, eis nosso personagem – o Padre Miguel do
Sacramento Lopes Gama, que viveu na primeira metade dos oitocentos. Nesse estudo
pretendemos discutir onde Lopes Gama estava inserido politicamente. Quem eram seus
aliados? Quem eram seus inimigos? Que influencias recaiam sobre seu pensamento? Qual
foi a trajetória de sua vida?
Sendo assim, pretendemos analisar as idéias do Padre Lopes Gama a respeito de
identidade e nação no Brasil Imperial. Nossas fontes são os escritos que este deixou no
periódico O carapuceiro (1832-42). Tal jornal conferiria a Lopes Gama o apelido de Padre
Carapuceiro.
O primeiro capítulo é uma revisão bibliográfica. A primeira seção desse capítulo
trata do nosso tema de pesquisa: a formação do Estado e da nação. A segunda seção trata do
nosso objeto de pesquisa: a imprensa periódica da primeira metade do século XIX no
Brasil.
O segundo capítulo sugere uma analise da vida de Lopes Gama. Discutimos ali as
diretrizes centrais de suas idéias. Averiguaremos os grupos aos quais estava filiado.
1
JANCSO, István (org.). Brasil: formação do Estado e da nação. São Paulo/Ijuí : Editora
Unijuí/FAPESP/Hucitec, 2003.
2
Tentaremos pensar qual era o intuito de seus escritos. Alguns autores já se debruçaram
sobre a vida do Padre Carapuceiro. Esta bibliografia nos auxiliará nesse capítulo, bem
como algumas fontes.
O terceiro e ultimo capítulo é o centro nevrálgico da pesquisa: a analise das fontes.
Escolhemos vinte números de O carapuceiro. A idéia é discutir a pertinência dos termos
propostos por Lopes Gama a respeito da identidade e da nação no Brasil Imperial, mais
especificamente, no período regencial (1831-1840). A primeira seção desse capítulo
procurará mostrar a idéia que o Padre Carapuceiro tinha de Brasil. O que era o território
brasileiro? O que era a nação? Qual modelo político acreditava ser melhor para o Brasil? A
segunda seção tratará de uma característica que Lopes Gama atribui ao brasileiro da época
em que vivia: o gosto por macaquear tudo o que vem do estrangeiro. A terceira seção
discutirá outra peculiaridade brasileira verbalizada pelo Padre Carapuceiro: a sede por
empregos públicos.
Assim nosso estudo se situa dentro período regencial. Época de intensa
transformação dos espaços públicos. Época onde a nascente impressa periódica conquistava
seu terreno nas discussões políticas. Enfim, época em que circulou no Recife e no Brasil
esse polêmico e controverso jornal: O carapuceiro.
3
CAPÍTULO 1 - A CONSTRUÇÃO DA NAÇÃO E O NASCIMENTO DA
IMPRENSA PERIÓDICA NO BRASIL (1808-1850)
A CONSTRUÇÃO DO ESTADO E DA NAÇÃO NO BRASIL
Para Hobsbawm, nação é um conceito estritamente moderno. Tal termo só tomou a
configuração atual a partir do século XIX.2 Defende ainda o historiador inglês que os
Estados instituídos a partir da Revolução Francesa são conseqüência de um fenômeno
nacional pré-existente. Os nacionalismos é que deram origem à formação dos Estados
nacionais, ou seja, o sentimento nacional é anterior à nação como corpo político.3
Trago agora uma reflexão de José Carlos Chiaramonte. Para Chiaramonte, jamais se
deve iniciar uma analise acerca da formação de uma nação utilizando-se de definições
desse conceito.
(...) parece-nos que o que cabe ao historiador não é perguntar-se sobre o que pode definir como
nação, e sim interrogar os seres humanos de cada momento e lugar que empregavam o conceito e
indagar por que e como faziam e a que realidades o aplicavam.4
A observação acima é altamente pertinente quando se pretende discutir formação do
Estado-nação no Brasil. As formulações de Hobsbawm não se aplicam ao caso brasileiro. O
processo que se desencadeou no Brasil foi singular. Aqui o Estado precede a Nação. Não se
tinha uma “comunidade política imaginada”5 no momento da independência. A estrutura
política do Império Brasileiro teve que se consolidar internamente, muitas vezes através da
força, para só então poder ser pensada uma possível consciência nacional. As revoltas que
se desencadearam na primeira metade do século XIX são sintomáticas, e demonstram como
o processo de construção da nação foi lento e gradual no Brasil. A Confederação do
Equador (1824); a Revolução Farroupilha (1835-1845); a Sabinada (1837-1838); e a
Praieira (1848) são exemplos que demonstram como as áreas periféricas do Brasil
receberam a idéia de uma nação centralizada a partir do Rio de Janeiro. Sendo assim, a
historiografia brasileira contemporânea tende a enxergar a primeira metade do século XIX
2
HOBSBAWM, E. J. Nações e nacionalismos desde 1870 – programa mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1990, p. 27.
3
Ibidem, p. 19.
4
CHIARAMONTE, José Carlos. “Metamorfoses do conceito de nação durante os séculos XVII e XVIII” , in
JANCSO, István (org.). Brasil: formação do Estado e da nação. São Paulo/Ijuí : Editora
Unijuí/FAPESP/Hucitec, 2003. p. 82.
5
ANDERSON, Benetict. Nação e consciência nacional. São Paulo : Ática, 1989, p. 14.
4
como o período da difícil consolidação do Estado e, conseqüentemente, da nação brasileira.
Tal consolidação se constitui, pois, num processo altamente complexo e repleto de
singularidades. E é assim que tal tema deve ser analisado. István Jancsó escreve o prefácio
da mais recente coletânea de estudos sobre o tema.6 e nele explica qual foi o eixo central
de tais pesquisas:
(...) adotou-se como hipótese central de trabalho que, dada a inconsistência da idéia correntemente
aceita de o Estado brasileiro ser demiurgo da nação, convinha deslocar o eixo da perquirição para a
esfera das tensões, contradições e conflitos que perpassavam a simultânea moldagem de ambos.7
Assim, cabe empreender tal discussão nesse estudo monográfico levando em conta
as singularidades que estavam inerentes ao Brasil da primeira metade do século XIX. Podese dizer que a nação e o Estado no Brasil são conseqüências diretas da crise do Antigo
Regime. Para não presenciar o destronamento da monarquia, tal qual ocorreu na Espanha
após as invasões napoleônicas, a dinastia dos Bragança se instala nos trópicos em 1808.
Dessa nova metrópole, o Rio de Janeiro, a coroa portuguesa pretendia continuar
governando todo o Império. Todo um aparato institucional é desenvolvido. É o que Maria
Odila Leite da Silva denomina de a “interiorização da metrópole no Centro-sul” do país.8
Segundo a autora, as benesses trazidas pelo advento metropolitano só iriam afetar as elites
instaladas no Centro-sul do Brasil. Ou seja, a acomodação da corte joanina no Rio de
Janeiro9 está longe de representar uma unidade política no território Brasileiro. A pressão
fiscal sobre as províncias periféricas, por exemplo, nada mudou com o translado da
metrópole: tanto o Rio como Lisboa tiravam proveito dos impostos recolhidos nas demais
regiões da América Portuguesa.10
Illmar R. de Mattos, por sua vez, ressalta um acontecimento político do período
joanino como essencial para a futura unidade política-nacional: a elevação do Brasil à
6
JANCSO, István (Org.). Brasil: formação do Estado e da nação. São Paulo/Injuí : Hucitec/FAPESP/Unijuí,
2003.
7
Ibidem, p. 15.
8
SILVA, Maria Odila Leita da. “A interiorização da metrópole”, in MOTA, Carlos Guiherme (org.). 1822.
Dimensões. São Paulo : Perspectiva, 1986.
9
Iara Lis C. Souza mostra como a presença física do Rei e os cerimoniais realizados em seu entorno ajudam a
consolidar a monarquia nos Trópicos, e, conseqüentemente, emancipar o centro-sul. In SOUZA, Iara Lis C.
Pátria Coroada. O Brasil como corpo político autônomo (1780-1830). São Paulo : Editora UNESP, 1999,
cap. 5.
10
Sobre a questão fiscal ver COSTA, Wilma Peres. “Do Domínio à nação: os impasses da fiscalidade no
processo de Independência”, in JANCSO, István (org.). op. cit.
5
categoria de Reino.11 Mattos aponta dois pontos como sendo heranças do período préindependência que iriam pesar na construção do futuro Estado-nação: o nome e o território.
E a denominação “Reino Unido a Portugal e Algarves”, que foi concedida ao Brasil em
1815, engloba esses dois aspectos. Toda a América Portuguesa de outrora era agora um
Reino. A idéia de um Reino do Brasil ajudaria a conformar uma futura unidade política. “O
construtor era também um herdeiro;” - diz Ilmar – “o herdeiro sobretudo de um nome e
um território. E aquela herança definiria também os marcos de uma construção.”12
No entanto, as evidencias no sentido oposto são muito mais numerosas: o Estado
brasileiro seria muito mais uma construção do que uma herança.13 Um dos acontecimentos
de alta relevância no processo de separação do Império Português é analisado e discutido
por Márcia R. Berbel.14 Tal autora, ao analisar a atuação dos deputados brasileiros nas
Cortes de Lisboa (1821-1822), mostra como não havia entre esses um sentimento de
pertença a uma nação brasileira. Esses deputados, que acima definimos anacronicamente
como “brasileiros”15, eram muito mais ligados à sua pátria do que a uma possível nação
brasileira. Pátria seria o lugar de origem e nascimento desses deputados – Bahia, São Paulo,
Rio de Janeiro, etc... Se esses políticos tinham vínculos a uma nação, esta seria a nação
portuguesa. Assim sendo, se existia uma “comunidade política imaginada”, esta não era a
brasileira. Ou seja, uma possível identidade vinculada à terra de origem só era pensada em
caráter regional. István Jancso e João Paulo G. Pimenta, ao refletirem sobre o tema,
escrevem um artigo cujo título é bem sugestivo: Peças de um mosaico (ou apontamentos
11
MATTOS, Ilmar Rohloff de. “Construtores e herdeiros: a trama dos interesses na construção da unidade
política.” Comunicação realizada no Seminário Internacional Independência do Brasil: História e
historiografia. São Paulo : Usp, 2003.
12
Ibidem.
13
Wilma Peres Costa procura construir um recorte que funcione de fio condutor capaz de iluminar as
maneiras como operamos com o tema da independência, no presente, a partir de algumas balizas
historiográficas comuns. O termo que ela formula é “a dialética das continuidades e descontinuidades”.
Comunicação realizada no Seminário Internacional Independência do Brasil: História e historiografia. São
Paulo : Usp, 2003. Ver também, HOLANDA, Sergio Buarque de. “A herança colonial – sua desagregação”,
in HOLANDA, Sérgio Buarque de (org.). História geral da civilização brasileira. 6ª ed. São Paulo, Difel,
1985, t.II, v. 1, pp. 9-39.
14
BERBEL, Márcia R. A nação como artefato : Deputados do Brasil nas cortes portuguesas (1821-1822). São
Paulo : Hucitec/FAPESP, 1999.
15
Note que Márcia R. Berbel não comete esse erro, visto que o subtítulo de sua obra é “Deputados do Brasil
nas Cortes portuguesas”. Id. Ibid.
6
para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira).16 O Brasil era um grande
mosaico de identidades regionais. Ao se tornar um corpo político autônomo estava lançado
o desafio da construção de uma nação, de uma identidade nacional. Para Miriam
Dolhnikoff, antes de consolidada uma identidade nacional brasileira, existiria uma
“identidade de dupla face”:
O sistema colonial havia engendrado um grupo heterogêneo de regiões, com poucas ligações entre si
e nas quais prevalecia, no interior de elite branca, uma identidade de dupla face: lusitana e regional.
Tratava-se de elites cuja auto-imagem, valores e interesses foram construídos a partir de sua inserção
regional e de sua integração ao império português. Uma identidade fragmentada, na qual se
sobressaia a de extração regional, que servirá de substrato para a atuação de dos grupos provinciais
nas primeiras décadas do século XIX.17
Acima foi levantado o problema das identidades regionais. Problema derivado de
um território de dimensões continentais. Era mais rápido navegar de Belém a Lisboa do que
de Belém ao Rio de Janeiro em início do século XIX. O Brasil era um oceano repleto de
ilhas. Cada ilha continha seus próprios costumes, suas próprias sociabilidades, seu próprio
linguajar, etc... Cada ilha continha, também, sua própria elite dirigente. Assim, somado ao
problema das identidades encontra-se o problema de uma possível formação política. Como
coordenar uma estrutura política sólida em tão vasto território? Acima falamos do processo
de interiorização da metrópole no Centro-sul do país. A casa de Bragança deixava, então,
duas heranças para aquilo que viria a ser o Brasil: uma metrópole e um príncipe. Estava
configurado o caráter centrífugo da nação ainda estágio embrionário. Um centro para o
novo Estado já existia. Agora restava saber se as periferias aceitariam ser governadas a
partir de tal centro. Essa relação centro-periferia se constituía em um barril de pólvora.
Qualquer faísca causaria uma explosão. E a primeira metade do século XIX foi repleta de
tensões. Assim, estão lado a lado a questão política - a formação de um Estado – e a
questão das identidades - a formação da nação. No dizer de István Jancso e João Paulo G.
Pimenta:
(...) nunca se deve esquecer que a provisoriedade característica do período traduziu-se na
coexistência não apenas de idéias relativas ao Estado, mas também à nação e às correspondentes
16
JANCSO, István. PIMENTA, João Paulo G. Peças de um mosaico (ou apontamentos para o estudo da
emergência da identidade nacional brasileira). In: MOTA, Carlos Guilherme. Viagem incompleta: a
experiência brasileira (1500-2000). Formação: Histórias. São Paulo : Editora Senac, 2000.
17
DOLHNIKOF, Miriam. “As elites regionais e a construção do Estado”, in JANCSO, István (org.). Brasil:
formação do Estado e da nação. São Paulo/Ijuí : Editora Unijuí/FAPESP/Hucitec, 2003, p. 434.
7
identidades políticas coletivas, eventualmente reveladoras de tendências à harmonização entre si, ou,
quando não, expressando irredutibilidades portadoras de alto potencial de conflito.18
Assim, existem duas maneiras de se analisar a formação do Estado e da nação no
Brasil: a partir do centro, e a partir da relação centro-periferia. Ilmar R. de Mattos analisa a
partir do Centro. Para Mattos, o que ocorreu com o Império do Brasil a partir de 1822 foi
uma “expansão para dentro”.19 Um Império, por definição, é algo que está sempre em
crescimento, sempre em expansão. O Brasil, todavia, não tinha mais para onde crescer.
Após os impasses na banda oriental do Rio da Prata serem resolvidos em fins da década de
1820, restava à monarquia fluminense consolidar seus domínios. Os diversos conflitos do
período se constituíram, pois, em uma “expansão para dentro”. Um projeto político
centralista sendo imposto numa imensidão territorial chamada, a partir de então, de Império
Constitucional do Brasil – essa seria a visão de Mattos. Evaldo Cabral de Mello, por seu
lado, critica aquilo que ele chama de uma “visão saquarema” da independência.20 Mello diz
que é necessário analisar a fundo as peculiaridades regionais. Só assim a complexidade do
processo de formação do Estado seria abrangida. Miriam Dolhnikoff compartilha dessa
idéia:
(...)a unidade e a construção da do Estado foram possíveis não pela ação de uma elite bem –formada,
articulada ao governo central, mas graças a um arranjo institucional que foi resultado dos embates e
negociações entre as várias elites regionais que deveriam integrar a nova nação. Para compreender o processo
pelo qual se constituiu o Estado brasileiro é imprescindível que a analise não fique restrita à elite articulada
em torno do governo central e ao discurso por ela formulado. Torna-se necessário apreender a complexidade
das relações entre centro e regiões, examinando tanto um pólo quanto o outro, assim como o arcabouço
institucional tal como ele foi efetivamente engendrado, de modo que se inclua na analise o resultado concreto
e material da ação e do discurso político, o que permitirá também identificar os limites desse discurso.21
Para Dolhnikoff, o federalismo está na essência dos conflitos que se desencadeiam
na primeira metade do século XIX. Federalismo entendido como um arranjo institucional
adotado como estratégia de construção do Estado, cuja principal característica é a
coexistência de dois níveis autônomos de governo (regional e central), definidos
constitucionalmente.22 Dessa maneira, só ficaria consolidada a nação e o Estado no
18
Ibidem, p. 139.
MATTOS, Ilmar Rohloff de. “Construtores e herdeiros: a trama dos interesses na construção da unidade
política.” Comunicação realizada no Seminário Internacional Independência do Brasil: História e
historiografia. São Paulo : Usp, 2003.
20
MELLO, Evaldo Cabral de. “Frei Caneca ou a outra Independência”, in MELLO, Evaldo Cabral de (org.).
Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. São Paulo : Editora 34, 2001, p. 12.
21
DOLHNIKOF, Miriam. “As elites regionais e a construção do Estado”, in op. cit., p. 432.
22
KING, Preston. Federalism and Federation. Baltimore : The Johns Hopkins University Press, 1982, p. 13941. Apud DOLHNIKOF, Miriam. “As elites regionais e a construção do Estado”, in op. cit., p. 433.
19
8
momento em que o projeto político da elite fluminense conseguisse se articular com os
mais variados projetos políticos regionais. Povos tão dispersos só ficariam unidos por
federação.
Mas existiam, também, consensos nessa contraposição entre centro e periferia, pois
senão seria impensável uma possível unidade. Um ponto em comum permeia os mais
variados projetos políticos das elites e era algo notadamente consensual: a manutenção do
escravismo. O medo de uma revolta escrava, tal como a que ocorrera no Haiti em fins do
século XVIII, permeia o discurso de toda a elite, seja ela fluminense, pernambucana ou
maranhense. A manutenção do estatuto escravista era algo que parecia estar conformado na
complexidade da formação do emergente Estado-nação.23
Assim, a primeira metade do século XIX se constitui em um momento de incertezas
e de indefinição. Hoje o historiador de inícios do século XXI pode visualizar um Brasil uno
e solidificado. Mas essa visão retrospectiva não deve ser transplantada ao período que vai
de 1808 a 1842 com prejuízo de analises errôneas. O período que demarca a formação do
Estado e da nação no Brasil estava repleto de possibilidades. Com a crise de Antigo Regime
gerou-se um vazio de poder. A unidade articulada através da monarquia fluminense
centralizada era uma das opções que poderia preencher esse vácuo deixado na América
Portuguesa. Mas esse processo se deu a muito custo, e foi permeado de imposições e
concessões, foi repleto de contradições, conflitos e peculiaridades.
A IMPRENSA NO BRASIL DA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX
Na primeira seção desse capítulo falamos a respeito do nosso tema de pesquisa: a
formação do Estado e da nação no Brasil. Essa segunda seção irá traçar um panorama do
nosso objeto de pesquisa, a saber, a imprensa periódica. E o que chama nossa atenção é
caráter simultâneo do desencadeamento desses dois processos no Brasil – a consolidação de
uma impressa periódica se deu paralelamente à formação do Estado-nação. Nessa direção
Marco Morel e Mariana Monteiro de Barros fazem questão de frisar: “Imprensa e nação
23
A respeito do peso da população liberta e escrava na constituição do Estado-nação ver os estudos de Denis
Bernardes, Luiz Geraldo Silva e Hendrik Kraay, in JANCSO, István (org.). Brasil: formação do Estado e da
nação. São Paulo/Ijuí : Editora Unijuí/FAPESP/Hucitec, 2003.
9
brasileira são praticamente simultâneas. A palavra imprensa circulava e ajudava a
delinear identidades culturais e políticas.”24
O primeiro periódico a ser impresso no Brasil constituiu-se em função da instalação
da Corte no Rio de Janeiro – era a Gazeta do Rio de Janeiro. A imprensa régia foi instituída
logo em 1808. No mesmo ano, no dia 10 de setembro, é publicado o primeiro número da
Gazeta, cuja epígrafe era: “Doctrina sed vim promovet insitam, Rectique cultus pectora
roborant”.25 A primeira notícia desse número é vinda da França, e se refere à cidade de
Amsterdã, que estava sob o domínio napoleônico:
Amsterdão 30 de Abril. Os dois Navios Americanos, que ultimamente arribarão ao Texel, não podem
descarregar suas mercadorias, e devem immediatamente fazer-se á vela sob pena de confiscação. Isto
tem influído muito nos preços de vários generos, sobretudo por se terem hontem recebido cartas de
França, que dizem, que em virtude de hum Decreto Imperial todos os navios Americanos serão
detidos logo que chegarem a qualquer porto de França. 26
Esse pequeno trecho acima transcrito já é bem ilustrativo do caráter do jornal – é um
jornal descritivo. Os temas mais recorrentes de tal periódico eram a legislação, os atos
oficiais e a ciência política. E tudo passava por uma rigorosa censura régia. Ou seja, era um
jornal nos moldes do Antigo Regime, que servia apenas para apoiar e legitimar a monarquia
instituída. Assim não havia não período joanino um espaço de discussão pública, pois só
havia um veículo de comunicação que era fortemente controlado pela coroa. Assim, a
fundação de um imprensa régia no Brasil não significa uma transformação nos espaços
públicos prematura.Os espaços públicos continuavam a ser restringidos pela Coroa segundo
seus próprios interesses.27
(...) havia jornais produzidos na Europa e normalmente recebidos no Brasil pelo menos desde o
século XVIII. No entanto, a imprensa periódica, embora disseminasse informações, opiniões e idéias,
não praticava o debate e a divergência política, publicamente, no contexto do Absolutismo (ainda
que ilustrado) português. E é na Criação de um espaço público de crítica, quando as opiniões
publicizadas destacavam-se dos governos, que começa a instaurar-se a chamada opinião pública.28
O jornal que é considerado o fundador de um debate político é o Correio
Braziliense, escrito por Hipólito da Costa e imprensso em Londres. Costa inicia a
publicação de tal jornal em 1808, e faz críticas severas a atuação da Corte recém instalada
24
MOREL, Marco; BARROS, Mariana Monteiro de. Palavra, imagem e poder. O surgimento da imprensa no
Brasil do século XIX. Rio de Janeiro, D&PA, 2003.
25
“A instrução amplia os poderes naturais da mente...” HORÁCIO. Carmina. Livro IV, Ode IV.
26
Gazeta do Rio de Janeiro, 10 de setembro de 1808, n. 1.
27
A Gazeta do Rio de Janeiro foi um dos jornais que circularam nas repúblicas do Prata no período 1808-28.
Ver discussão sobre esse tema em PIMENTA, João Paulo G. Estado e Nação no Fim dos Impérios Ibéricos
no Prata (1808-1828). São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2002.
28
MOREL, Marco; BARROS, Mariana Monteiro de. op. cit, p. 17.
10
nos trópicos. Este é o modelo de jornalista panfletário, chamado de redator ou gazeteiro.29
Tal ator histórico entra em cena entre meados do século XVIII e início do século XIX, e é
peça essencial no processo revolucionário que se desencadeia no continente europeu. Atua
de maneira decisiva na formação de uma opinião pública, que é traço fundamental da
modernidade política ocidental. Hipólito da Costa é considerado por Marco Morel como
um dos criadores e expoentes do Reino da Opinião – “instituição abstrata, sem fronteiras
territoriais demarcadas, mas que se materializava em folhas de papel impresso e obtinha
força política considerável nas sociedades que buscavam destruir os valores os valores do
Absolutismo e implantar a modernas liberdades.”30
O jornal de Hipólito, no entanto, circulava de maneira clandestina no território
brasileiro. Desse modo, O Correio Braziliense lançou bases para uma transformação dos
espaços de discussão política. Mas tal transformação apenas foi iniciada no período
joanino(1808-1820). Não estava conformado um espaço amplo e livre para o debate
público. Assim, a imprensa do período entre 1808 e 1820 encontrou sérias restrições para
seu desenvolvimento. É o que defende Nelson Werneck Sodré, que estuda a imprensa sob
um viés marxista. Para Sodré o período joanino representa o período proto-histórico da
imprensa brasileira, onde o absolutismo lutava com todas suas forças para manter-se
arraigado na sociedade, tentando evitar a ascensão de valores tipicamente burgueses:
A característica principal da fase protohistórica da imprensa brasileira, válida apenas do ponto de
vista cronológico, foi a iniciativa oficial, de que o aparecimento da Gazeta do Rio de Janeiro
constituiu o primeiro fato. A iniciativa correspondia a determinadas causas- não era gratuita.
Era agora necessário informar, e isso prova que o absolutismo estava em crise. Já precisava dos
louvores, de ver proclamada as suas virtudes, de difundir seus benefícios, de, principalmente,
combater as idéias que lhe eram contrárias. Ao mesmo passo que, com a abertura dos portos, crescia
o número de impressos entrados clandestinamente, inclusive jornais, e não apenas o Correio
Brasiliense, apareciam as folhas que tinham bafejo oficial e que pretendiam neutralizar os efeitos da
leitura do material contrabandeado. O absolutismo luso precisava, agora, defender-se. E realizou a
sua defesa em tentativas sucessivas de periódicos, senão numerosas variadas. 31
Assim, observamos que no período joanino não existiam apenas o Correio
Brasiliense, atacando a coroa, e a Gazeta do Rio de Janeiro, defendendo a monarquia. Os
primórdios de um debate político já existiam. Mas as condições políticas que iriam permitir
a instalação de um intensa e movimentada imprensa periódica ainda estariam por vir. A
29
Ibidem, p. 15.
Ibidem, p. 17.
31
SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1966, p.
34.
30
11
liberdade de imprensa foi, aos poucos, implantada no Brasil32 por influências liberais que
adentravam na Península Ibérica. A constituição de Cadiz (1812) foi a primeira legislação
Ibérica a contemplar tal liberdade. E as leis de liberdade de imprensa sancionadas em
Portugal a partir de 1820, após a revolução liberal do Porto, enxergavam Cadiz como
principal fonte de inspiração. Assim sendo, a implantação da imprensa livre no Brasil
acompanhou o processo de transformação dos espaços públicos ibéricos.
O período entre 1820 e 1824 demarca um intenso crescimento da produção
jornalística. Às vésperas da independência fervilhavam calorosas controvérsias nos mais
diversos veículos de comunicação escritas. Não eram apenas jornais, eram panfletos, cartas,
cartazes.
33
Mas os periódicos impressos circulando livremente representavam uma
novidade na esfera política. Houve a tentativa de acabar com tal novidade por D. Pedro I.
Logo após a dissolução da Assembléia Constituinte é cerceada a liberdade de imprensa
recém instituída. Todas as rebeliões que se configuraram na primeira metade do século XIX
podem ser encontradas influências da palavra impressa. A revoltosos de 1817, em
Pernambuco, já utilizaram, clandestinamente, uma máquina tipográfica. É notável o poder
que detém a imprensa divulgar ideais, congregar pessoas e, no limite, causar rebeliões. D.
Pedro tenta cortar esse viés de discussão pública. Assim, a imprensa periódica não cresceu
em um ascendente – houve avanços e retrocessos. Com a saída de D. Pedro I em 1831,
instala-se a regência, e, junto com esta, vem um período de relativa liberdade de opinião. O
início do Período Regencial (1831-40) demarcou uma notável explosão de novos
periódicos. 1833 é o ano em se computam o maior número de títulos de jornais publicados
no Rio de Janeiro até então.
32
Marco Morel e Mariana Monteiro de Barros mostram como a liberdade de imprensa não caminhou numa
constante no Brasil da primeira metáde do século XIX. Não houve um crescimento contínuo das liberdades de
imprensa a partir de 1820: houve avanços e retrocessos. MOREL, Marco. BARROS, M. M. de. op. cit, p. 24.
33
Acerca do debate político presente nos folhetos e impressos que surgiram no Rio de Janeiro entre 1820-22
ver, NEVES, Lúcia Maria B. Pereira das. “Os panfletos políticos e a independência do Brasil”. Comunicação
realizada no Seminário Internacional Independência do Brasil: História e historiografia. São Paulo : Usp,
2003.
12
Gráfico 1: Jornais (por título) publicados no Rio de Janeiro (1808-1840) Fonte: Catálogo de Jornais e
Revistas do Rio de Janeiro (1808-1889) existentes na Biblioteca Nacional. Anais da Biblioteca Nacional, Rio
de Janeiro, 1965, vol. 85, p. 1-208 (edição fac-similada). In: MOREL, Marco; BARROS, Mariana Monteiro
de. op. cit., p. 23.
Dessa maneira, fica nítido que a época que estamos analisando era repleta de
permanência e mudanças, seja no campo político, das leis, dos costumes ou das
sociabilidades. No campo político o constitucionalismo avançava, mas ainda fortemente
articulado à figura do Rei. No campo das leis, a liberdade de imprensa hesitava em se
firmar. Os costumes das elites sofriam fortes modificações com a chegada da Corte.34 Ou
seja, a primeira metade do século XIX é época onde as tradições fortemente arraigadas de
um passado colonial se confrontavam com transformações que influenciavam fortemente o
mundo ocidental, conformando um cenário híbrido e complexo. “Trate-se, portanto, - diz
Marco Morel – de época marcadamente híbrida entre práticas e valores consagrados
naquilo que passava a se chamar Antigo Regime e outros, que se pretendiam modernos.”35
Com os espaços públicos também se observa essa confluência de permanências e
transformações. A título de exemplo: 12 folhas manuscritas espalhadas em lugares públicos
foram suficientes para desencadear a repressão contra a tentativa de revolta que ficou
conhecida por Conjuração Baiana, em 1789. Folhas manuscritas colocadas em lugares
públicos constituíam uma prática corrente no Antigo Regime. Marco Morel mostra como
essas prática continuaram a existir mesmo após a instalação de uma imprensa periódica
34
Ver em MALERBA, Jurandir. A corte no exílio. Civilização e poder no Brasil às vésperas da
independência (1808-1821). São Paulo: Companhia das Letras, 2000, cap. 3. E também em FREYRE,
Gilberto. Sobrados e Mocambos. v. III. Rio de Janeiro : José Olympio, 1951, cap. IX.
35
MOREL, Marco. “Papéis incendiários, gritos e gestos: a cena pública e a construção nacional nos anos
1820-1830”, in Topoi: Revista de História. Rio de Janeiro : Programa de Pós-graduação em História Social
da UFRJ / 7letras, 2002, v.4, p. 39.
13
regular.36 Utilizando-se de relatos de diplomatas franceses que passaram pelo Rio de
Janeiro em meados do século XIX, Morel analisa outros meios de comunicação tipícos de
uma sociedade arcaica: vozes, discursos públicos e a teatralização da política.
A proliferação de manifestações como papéis incendiários, além de vozes, gritos e gestos nas ruas da
capital do Império (Rio de Janeiro) nas décadas de 1820-1830, marca uma série de transformações e
também permanências dos espaços públicos na polis. Da mesma forma, a sala do Teatro, na Corte,
aparece como cena desta teatralização política, em meio a tais expressões manuscritas, verbais e
gestuais (que permanecem após a consolidação da imprensa periódica). Em geral elas continham
aquilo que não podia ser impresso (ou mesmo falado) dentro dos limites vigentes e, ainda, permitiam
envolver setores mais amplos do que o público habitualmente leitor ou redator. Destaca-se a
importância de tais manifestações públicas para a política vivida no cotidiano, numa sociedade
caracterizada pela comunicação oral e visual e num momento de construção da ordem nacional. 37
A pesquisa que Morel faz no Rio de Janeiro é demonstrativa para todos os espaços
urbanos do Brasil na época do surgimento da imprensa periódica– os espaços públicos de
atuação política compartilhavam práticas arcaicas e modernas. Assim, pois, é certo que se
deve atribuir à palavra imprensa o poder de delinear identidades políticas e culturais, mas
isso não deve ser pensado descolando história da imprensa da conjuntura de uma época. Há
que se analisar a transformação dos espaços de atuação política de maneira minuciosa,
levando em consideração todas as sociabilidades inerentes a uma dada sociedade.
36
37
Ibidem, pp. 40-46.
Ibidem, p. 57.
14
CAPÍTULO 2 – MIGUEL DO SACRAMENTO LOPES GAMA: O PADRE
CARAPUCEIRO
No primeiro capitulo foi estabelecida uma periodização – a primeira metade do
século XIX. Tal período abarcou tanto a consolidação do Brasil como nação, bem como a
transformação dos espaços públicos, e, conseqüentemente, a conformação de uma imprensa
periódica. A primeira metade do século XIX foi, também, a época em que viveu Miguel do
Sacramento Lopes Gama. Nascido no Recife em 1793, veio a falecer na mesma cidade, no
ano de 1852.38 Não são necessários dados biográficos para se chegar a primeira conclusão
sobre Lopes Gama: ele vivenciou a formação do Brasil como nação.
As origens de Lopes Gama são urbanas.O pai de Lopes Gama, João Lopes Cardoso
Machado, era português. Formado em medicina na Universidade de Coimbra, foi nomeado
Delegado da Real Junta de Proto-Medicato em Pernambuco (1783). Sua mãe, a brasileira
Ana Bernarda do Sacramento Lopes Gama, provinha de uma família ilustrada. Seu tio-avô
materno, por exemplo, José Fernandes Gama, foi tradutor das obras de Ovídio.
39
Assim, percebe-se que já corria na veia de sua família materna, da qual Lopes Gama
extrai seu sobrenome, um sangue ilustrado. Não só ilustrado como também jornalístico e
político. José Fernandes Gama travou uma intensa discussão com Frei Caneca na recém
nascida impressa pernambucana. Entre as revoluções de 1817 e 1824, Frei Caneca escreve,
preso em Salvador, “Resposta às calúnias e falsidades da Arara Pernambucana”. Tal jornal
era escrito pelo tio-avô de Lopes Gama, e se manifestava contrário aos rebeldes liberais de
1817, chamando-os de assassinos. Por isso Caneca referia-se a José Fernandes Gama como
“o Rei dos Ratos”.40 Pode-se perceber, dessa maneira, que Lopes Gama descende de uma
família com certa influência política em Pernambuco – o “clã” dos Gama. Discutiremos a
respeito dessas influências mais adiante.
Lopes Gama iniciou seus estudos religiosos em 1805, no mosteiro de São Bento de
Olinda.Professou-se monge beneditino no ano de 1808, no mosteiro de São Bento da Bahia.
38
MELLO, Evaldo Cabral de. “Introdução”, in MELLO, Evaldo Cabral de (org.). O Carapuceiro: crônicas de
costumes. São Paulo: Cia das Letras, 1996, pp. 27-28.
39
MELLO, José Antonio Gonsalves de. Diário de Pernambuco. Economia e Sociedade no 2º. Reinado.
Recife : Editora Universitária da UFPE, 1996, p. 307-308.
40
MELLO, Evaldo Cabral de (org.) Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. São Paulo: Ed. 34, 2001, pp 123163.
15
Tornou-se, pois, o Frei Miguel Lopes Gama.41 Retornou ao Recife em data desconhecida e
secularizou-se em 1835.42 A partir de então ficou sendo conhecido como Padre Lopes
Gama. Teve diversas áreas de atuação: foi padre, político, educador, literato e jornalista.
Como Padre, deixou fama de excelente orador sacro. Pereira da Costa assim o
descreve:
Figura elegante, alto, bela fisionomia, olhar radiante, palavra e eloquente, gesticulação e transportes
naturais, tais eram os dotes que distuguiam-no; e a tudo isso unido a sua inteligência vigorosa e a
ilustração que ostentava em seus discursos, tornou-se um orador sagrado de primeira ordem,
conquistou louvores e renome e o título honorífico de pregador da Capela Imperial.43
Como político, foi diversas vezes deputado provincial por Pernambuco. Pertenceu
às seguintes legislaturas: 1.ª, 2.ª, 3.ª, 4.ª 5.ª e 7.ª. Sabendo-se que, pelo Ato Adicional de
1834, instaurador das Assembléias Provinciais, cada legislatura era de 2 anos e que se
iniciaram em 1835, é fácil determiná-las cronologicamente: 1835-36, 1837-38, 1839-40,
1841-42, 1843-44 e 1847-48.44 Por duas vezes, foi deputado geral na Corte Fluminense. A
primeira como suplente em 1840, pela Província de Pernambuco.A segunda entre 1845 e
1847, por Alagoas, na época em que seu irmão, Caetano Maria Lopes Gama, era presidente
da mesma Província. Em 1848 se candidatou à Assembléia Geral pela sua Província,
Pernambuco, mas não conseguiu se eleger.
45
Assim constata-se: Lopes Gama teve uma
intensa participação na vida política do Brasil. Seja no âmbito Provincial, seja no âmbito
nacional.
Como educador, foi visitador das aulas primárias e secundárias do Recife; diretor,
por mais de uma vez do Liceu Provincial, depois transformado em Ginásio
Pernambucano46; a mesma coisa tendo acontecido em relação ao curso jurídico de Olinda47;
diretor do colégios de órfãos48; e diretor geral dos Estudos, uma espécie de Secretário da
Educação ou de diretor técnico da Educação da época. Além de professor do Seminário, do
41
RICCI, Maria Lúcia de Souza Rangel. “Uma fábrica de carapuças”, in Notícia Bibliográfica e
Histórica.Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas. n. 170, ano XXX, julho/setembro 1998,
pp. 209-214.
42
QUINTAS, Amaro. O Padre Lopes Gama Político. Recife : Imprensa Universitária, 1958, pp. 59-60.
43
COSTA, F. A. Pereira da. Dicionário biográfico de pernambucanos célebres. Recife: Fundação de Cultura
do Recife, 1981, p. 723.
44
QUINTAS, A. op. cit, p. 82
45
Ibidem, p. 82
46
A respeito de sua atuação no Ginásio Pernambucano ver em MONTENEGRO, Olívio. Memórias do
Ginásio Pernambucano. Recife: Imprensa Oficial, 1943.
47
A respeito de sua atuação na Faculdade de Direito do Recife ver em VEIGA, Gláucio. História das Idéias
da Faculdade de Direito do Recife. V. II. Recife: Editora Universitária, 1981, p. 261-285.
48
QUINTAS, Amaro. op. cit, p. 75-78.
16
Liceu e do Colégio das Artes.49 Percebe-se como várias comissões de direção lhe foram
confiadas, mostrando a influência política que detinha em Pernambuco. Para Amaro
Quintas, “poucos pernambucanos podem se vangloriar de ter ocupado tantos cargos de
evidência no setor educacional de sua terra, quanto o Padre Miguel do Sacramento Lopes
Gama”50. Além dos cargos acima citados, ele também lecionava aulas particulares, como
mostra esse anúncio do Diário de Pernambuco, de 4 de novembro de 1844: “AVISOS
DIVEROS - O Padre Miguel do Sacramento Lopes Gama propõe-se a ensinar, mesmo
durante as férias, todos os preparatórios, à exceção de geometria e inglês. As pessoas que
quiserem aprender essas disciplinas, dirijam-se à casa do anunciante no Aterro da Boa
Vista.”51
Como Literato, traduziu várias obras para o português e publicou algumas de
própria autoria, como por exemplo Lições de eloqüência nacional (1847).52 Mas a área em
que mais se destacou, ganhando considerável notoriedade pública, foi a jornalística.53
Lopes Gama já havia transitado nos bastidores da recém-nascida imprensa
pernambucana.54 A partir de 1822 publicou O Conciliador Nacional, de efêmera duração.
Ás vésperas da independência do Brasil escreveu: “Perca-se embora o Brasil; percam-se
quatro brasis, mas não se perca a honra nacional (...) o sistema de Côrtes de Portugal
continua em seu espírito de oposição à felicidade do Brasil”. O primeiro número do ano de
1823, que saiu a 23 de janeiro, noticia com três meses de atraso os festejos da aclamação de
D. Pedro I como Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil. 55
Nesse ambiente de efervescência política, a imprensa pernambucana sempre teve
papel fundamental como elemento de aglutinação ideológica. Exemplos clássicos deste
fenômeno são os jornais dirigidos por Frei Caneca e Cipriano Barata. Tiphis Pernambucano
e Sentinela da Liberdade na Guarita de Pernambuco são, respectivamente, jornais desses
49
Uma biografia resumida de sua carreira educacional está em QUINTAS, A. op. cit, p. 75.
QUINTAS, Amaro. op. cit, p. 75
51
Diário de Pernambuco. 4 de novembro de 1844. In MELLO, José Antonio Gonsalves de. op. cit, p. 392.
52
MELLO, Evaldo Cabral de. “Introdução”, in MELLO, Evaldo Cabral de(org). op. cit, p. 27-28.
53
Ver, no anexo 1, a biografia datada de Lopes Gama.
54
Nelson Werneck Sodré mostra que a primeira máquina tipográfica do Recife auxiliou os revoltosos de 1817
a propagarem seus ideais. Após ser reprimida a rebelião tal máquina foi confiscada pela coroa. Mas a
imprensa periódica se instala de fato em Pernambuco apenas após serem promulgadas as leis de liberdade de
imprensa pelas Cortes de Lisboa, em 1820-21. SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, p. 40.
55
Cf. NASCIMENTO, Luis do. História da Imprensa de Pernambuco(1821-1954). 8 vol. IV. Recife: UFPE,
1969, p. 32.
50
17
autores que exerceram forte influência no cenário político às vésperas da revolta de 1824.
No entanto, após a Confederação do Equador ser debelada, forte repressão se instaurou nos
órgãos formadores de opinião pública. Exemplo disso foi o fechamento da imprensa livre
imposto por D. Pedro I, como meio de declarar o fechamento da Assembléia Constituinte
no Rio de Janeiro. Assim, o período regencial (1831-40) se constituiu em um momento de
estabilidade política no Recife, onde a impressa gozou de certa liberdade de atuação.56
Aproveitando esse clima de relativa liberdade, Lopes Gama inicia em 1832 a publicação de
O Carapuceiro. Tal jornal teria enorme repercussão, e conferiria a enorme notoriedade
pública ao Padre que, a partir de então, seria chamado de Padre Carapuceiro.
56
MELLO, Evaldo Cabral de. “Introdução”, in MELLO, Evaldo Cabral de(org). op. cit, pp. 12-13.
18
Figura 1: O Padre Miguel do Sacramento Lopes Gama. Retrato a óleo existente na Faculdade de Direito do Recife (galeria de seus
diretores). O Padre Lopes Gama foi diretor da tradicional escola de Direito, assim como do Colégio Estadual de Pernambuco, hoje,
Ginásio Pernambucano. In: QUINTAS, Amaro. op. cit.
19
O CARAPUCEIRO
Dizendo escrever um “periódico sempre moral e só per accidens político”57, Lopes
Gama foi um dos precursores do jornalismo de costumes. O modelo de periodismo aí
instituído tem forte inspiração no jornal inglês The Spectator, editado entre 1711-14.58
Tendo esse como ícone, Gama traz ao Brasil uma imprensa de crítica social, na qual a idéia
é reformar a moral e os costumes através do humorismo, da sátira. Para o Padre Mestre,
como também era conhecido, “Ridendo castigat mores59 é o que quer o povo, e que
remédio há senão ir com ele?”60 Em outra ocasião escreveu: “Prossegue o Carapuceiro sua
tarefa, que vem a ser: combater por meio do estilo faceto os vícios ridículos.”61
Façam de contas que assim como há lojas de chapéus; o meu periódico é fabrica de Carapuças. As
Cabeças em que elas se assentarem bem, fiquem-se com elas, se quiserem; ou rejeitem-as, e andaram
(sic) com as calvas às moscas, ou mudem de adarme de cabeças, que é o mais prudente.62
Para Evaldo Cabral de Melo, tal jornal “não se contentou em comentar a luta dos
partidos políticos da sua província no período regencial e realizou igualmente um trabalho
de crítica social do Pernambuco da sua época que constitui uma fonte admirável à
disposição do historiador da vida privada.”63 No primeiro número, Lopes Gama apresenta
seu jornal ao público assim:
Enquanto os outros periódicos de alto coturno todos se empregam na política, uns explicando
direitos e deveres sociais, outros levantando questões sutilíssimas; entre dando alvitres, ora
acertados, ora equivocados com o pequeno defeito de serem impraticáveis (...) eu, que sou um piegas
no círculo dos gladiadores peridioqueiros, não me meterei nesses debuxos, nem é minha intenção
pôr-me a escarpelas e tracamundas com meu próximo, uns porque os respeito por bons, outro porque
os temo por ferrabrazes64
Luis do Nascimento, em sua obra História da Imprensa de Pernambuco assim
descreve tal periódico:
O Carapuceiro – Periódico sempre moral e só per acidens político – começou a publicar-se no dia
7 de abril de 1832, redigido unicamente pelo padre-frei Miguel do Sacramento Lopes Gama e
impresso na Tip. (sic.) Fidedigna, de José Nepomuceno, situada à rua das Flores, D. 18. Em formato
21 X 15, com quatro páginas de duas colunas, exibiu o título do interior de uma loja de chapeleiro,
57
Subtítulo de O Carapuceiro.
MELLO, Evaldo Cabral de. “Introdução”, in MELLO, Evaldo Cabral de(org). op. cit, p. 9. PALLARESBURKE, Maria Lúcia Garcia. Nísia floresta, O Carapuceiro e outros ensaios de tradução cultural. São Paulo
: Hucitec, 1996, p. 144.
59
“Com riso corrigen-se os costumes.”
60
O Carapuceiro, n. 73 (23/12/1837).
61
O Carapuceiro, n. 1 (17/01/1838).
62
GAMA, Lopes. O Carapuçeiro. In: PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. op. cit, p. 134.
63
MELLO, Evaldo Cabral de. “Introdução”, in MELLO, Evaldo Cabral de(org). op. cit, p. 8.
64
O Carapuceiro, n. 1 (07/04/1832).
58
20
de cujo balcão se aproximavam dois fregueses de aspecto importante; das paredes pendiam,
promiscuamente, barretinas, chapéus, coroas imperiais, mitras e carapuças, suspeitando-se, na figura
do lojista, o Padre Carapuceiro. Completou o cabeçalho a divisa abaixo, em latim e traduzida para
nossa língua: “Guardarei nesta folha as regras boas/ Que é dos vícios falar, não das pessoas”65
Figura 2: O cabeçalho do periódico “O Carapuceiro”.
Seria ingenuidade, no entanto, achar que O Carapuceiro não contempla temas
políticos. Basta dar uma folheada rápida em seus exemplares para constatar que ele é
repleto de discussões e intrigas políticas. Algo, porém, torna está fonte diferenciada para o
estudo da sociedade pernambucana, e, no limite, brasileira. O Carapuceiro articula a
discussão política – facilmente encontrada no discurso de qualquer membro da elite
brasileira – com o cotidiano. São inúmeros artigos que falam de costumes, modas, comidas,
danças, etc... Eis alguns títulos de seus números: Os curandeiros, As procissões, Os
mártires da moda, Os velhos namorados, Os festejos de São João, As constipações e as
65
NASCIMETO, Luis do. op cit, v. IV, p. 94.
21
belas indigestões, As festas de fim de ano, Os passatempos do natal, As quadrilhas e A
estultice do Bumba-meu-boi. Esses são apenas alguns exemplos dos temas, os mais
variados, que tratava Lopes Gama em seu jornal.
Há vários indícios que comprovam a popularidade desse periódico no Brasil
Imperial, por vezes até extrapolando as fronteiras provinciais. É o que demonstra PallaresBurke.
Embora não haja muita evidência sobre os verdadeiros leitores deste periódico pernambucano, e
menos ainda sobre o modo como vestiram as carapuças, há todavia sinais de que, longe de se manter
circunscrito à sua localidade, ‘O Carapuceiro’ transformou-se em elemento bastante poderoso na
nova e influente rede de comunicação que atravessava as fronteiras das províncias e as barreiras
políticas na primeira metade do século XIX no Brasil. Reeditado, aparentemente, algumas vezes ‘in
totum’ em Recife e no Rio, além de ter artigos específicos reproduzidos em diferentes periódicos,
tanto na época quanto mais tarde, ‘O Carapuceiro’ oferece bom exemplo da atividade dinâmica e
estimulante da incipiente imprensa brasileira. 66
Outro exemplo que comprova a popularidade do Padre Carapuceiro são anúncios
publicados no Diário de Pernambuco. Um anúncio de 19 de abril de 1938 indicava que na
loja de livros de Praça de Independência números 37 e 38 havia à venda uma coleção das
edições do Carapuceiro de 1837 e 1838. 67 Mais um fator que indica o grande alcance que
o Padre Mestre obteve com seus escritos foi a publicação de O Carapuceiro na corte, que
era feita no periódico carioca O Despertador. Isso ocorreu quando Lopes Gama assumiu a
suplência de deputado à Assembléia Geral Legisltiva em 1840, em substituição a Sebastião
do Rego Barros. Quando chegou ao Rio de Janeiro O Jornal do Comércio noticiou :
“ninguém há que não tenha lido os escritos deste insigne brasileiro... ninguém que não dê
ao ilustre escritor um dos mais subidos lugares entre os literatos que tem honrado a nossa
Pátria”. 68 Já O Despertador chama-o de “o La Bruyère do Brasil”. 69
O Carapuceiro não tinha periodicidade regular. O próprio Lopes Gama explica isso
no primeiro número que publicou no dia sete de abril de 1832. “Em que dia sairá esse
periódico? Sairá o pobrezinho quando Deus o ajudar, e conforme a generosidade que com
ele quiserem ter os Padrinhos que são os srs. Leitores”.
66
70
Em 1832, foram publicados 32
Segundo Pallares-Burke, os artigos de “O Carapuceiro foram reproducidos nos periódicos: Jornal do
Comercio (Rio, 1833); Gamenha (Recife, 1833); O Novo Carioca (Rio, 1834); O Sete de Abril (Rio, 1836); O
Despertador (Rio, 1840); A Carranca (Recife, 1835); Sentinella da Monarquia (Rio, 1845); Marmota
Fluminense (Rio, 1852). PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. op. cit, pg. 134.
67
IN MELLO, José Antonio Gonsalves de. op. cit, p. 308. .
68
Id. Ibid, p. 304
69
Id. Ibid, p. 304.
70
O Carapuceiro, n.1 (07/04/1832)
22
números. Terminou o ano de 1833 com um total de 85 edições, somando 340 páginas. Em
1834, são escritos mais 48 números. Durante os anos de 1835 e 1836, Lopes Gama
transferiu a matéria de seu pequeno jornal para as colunas do Diário de Pernambuco, sendo
interrompida temporariamente a publicação de O Carapuceiro, que volta em 1837
impresso, agora, nas oficinas do próprio Diário de Pernambuco. Ao fim de tal ano, são
contabilizados 73 números. Em 1838, também são publicadas 73 edições. Em 1839, 53
publicações são feitas. Em 1840, O Carapuceiro só é publicado até maio, somando 17
números. Volta apenas em 1842, com a publicação de 78 números. Há relatos de que
continuou a ser publicado em 1843 e 1847, no entanto a edição fac-similar que possuímos
para no ano de 1842.71 O Diário de Pernambuco, no entanto, continuou a publicar O
Carapuceiro, dentro de suas colunas, nos anos de 1843 e 1844.72 Como se pode notar, tal
fonte é vasta, e dá margem para o empreendimento de analises acerca dos mais variados
temas.
“NE QUID NIMIS” – NADA DE EXCESSOS73
Seria impossível, nesse sucinto trabalho, contemplar todas as idéias do Padre
Carapuceiro. Seus escritos são vastos, e abarcam os mais variados temas, como já vimos.
Cabe aqui, pois, traçar as principais diretrizes de seu pensamento. Não se trata de um
pensamento filosófico. Lopes Gama escrevia para um público, com certas intenções,
exercendo de algum modo uma militância. Trata-se então de um pensamento inserido no
contexto das transformações dos espaços públicos, isto é, concepções de uma época em que
a imprensa periódica ganhava força.
Lopes Gama era, antes de tudo, um religioso. Gilberto Freyre denomina-o de “um
ortodoxo brasileiro do século XIX” – no meio de um mundaréu de padres e frades sem a
mínima vocação religiosa, que utilizavam o celibato para ingressar no mundo político, o
71
GAMA, Miguel do Sacramento Lopes. O Carapuceiro (3 vols.). Edição Facsimilar da Coleção do Jornal
(1832-1842). Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1983.
72
Contemos alguns desses números publicados nas colunas do Diário de Pernambuco na coletânea realizada
por MELLO, J. A. G. de. op. cit.
73
O Carapuceiro, n. 10, 1834.
23
Padre Carapuceiro era uma exceção.74 Refletindo sobre sua profissão de jornalista, Lopes
Gama dizia:
Mas que importa que o Carapuceiro grite contra esses e outros vícios tão prejudiciais aos indivíduos,
às famílias e à sociedade? É a voz que clama do deserto, porque palavras não reforçam os homens. O
que os há de reformar é a boa educação religiosa e civil, é o governo enfim, que tem uma influência
imediata sobre os bons ou maus costumes dos Estados.75
Mas a religião que Gama defendia não era a catolicismo cego e supersticioso. Há,
em suas idéias, fundamentos do catolicismo ilustrado português de fins do século XVIII.
No entanto a linguagem que utiliza é jocosa e direta, e muito diferente da dos ilustrados
portugueses que escreviam a época de Pombal.76 Não bastava cumprir os santos
sacramentos e esquecer do bom tratamento ao próximo. Suas queixas constantes se voltam
contra as rezadeiras e rezadores que, ao saírem da igreja, não agem como verdadeiros
cristãos.
Infelizmente uma grande parte do povo não tem religião, senão certas exterioridades, que são boas
sem dúvida, quando correm unidas à justa e santa moral do Evangelho, e não o sendo só servem de
fazer hipócritas, jacobeus e inumeráveis velhacos. Ordinariamente essas práticas externas, essas
devoções e carolices, nenhum sacrifício, nenhum incômodo requerem das pessoas que as exercem,
pois que muitas as tomas não poucas vezes por mero divertimento, por passatempo e até por medidas
de estudado interesse. Pelo contrário, os preceitos essenciais da religião demandam esforços e
privações da parte da nossa natureza rebelde. Que custa, por exemplo, rezar em umas contas? Muitas
mulheres trazem-nas cosidas consigo, de forma que despachando contas saem a fazer visitas;
despachando padre-nossos e ave-marias, dão à tramela horas esquecidas com as amigas e camaradas;
despachando contas murmuram do próximo, desenterram mortos, sepultam vivos; despachando
contas descompõe bem descomposta uma vizinha, apalpam galinhas, mentem juram e praguejam, e
fazem mil outras coisas piores. E há ainda que crê que tais mulheres têm verdadeira religião? Muito
boa coisa é rezar contas, mas não é essencial. Muito melhor, porque é essencial, é não murmurar do
seu próximo, não mentir, não jurar falso, é guardar finalmente os mandamentos da lei de Deus e da
santa madre Igreja.77
Sempre criticando os costumes que vão contra a verdadeira moral religiosa, Lopes
Gama faz um dos primeiros relatos de que se tem notícia do bumba-meu-boi, dança
folclórica nordestina. Não agrada nada ao Padre Mestre tal bailado. O nome do artigo é “A
estultice do bumba-meu-boi”.
74
FREYRE, Gilberto. “Um ortodoxo brasileiro do século XIX”. Jornal do Comércio. Recife, 17 de setembro
de 1942. Coluna : Pessoas, Coisas e Animais. In Bilbiothèque Virtuelle Gilberto Freyre. Nesse artigo Freyre
discorre um pouco sobre o cotidiano do Padre Mestre. Resquícios de um memória oral são resgatados, pois
Freyre cita um certo senhor que conheceu pessoalmente o referido padre, por volta de 1850, no seu sítio de
Manguinho. Tal senhor fala do interior do Sítio, do altar onde Lopes Gama praticava suas preces e também de
como o Padre gostava de receber visitas de seus alunos.
75
O Carapuceiro, n. 32 (24/11/1832).
76
A respeito do catolicismo ilustrado português da segunda metade do século XVIII, ver em MAXWELL,
Kenneth. Marquês de Pombal. O paradoxo do iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
77
O Carapuceiro, n. 4 (04/05/1832).
24
De quantos recreios, folganças e desenfados populares há em nosso Pernambuco, eu não conheço um
tão tolo, tão estúpido e destituído de graça como o aliás bem conhecido bumba-meu-boi. Em tal
brinco não se encontra nenhum enredo, nem verossimilhança, nem ligação; é um agregado de
disparates. Um negro metido debaixo de uma baeta é o boi; um capadócio, enfiado pelo fundo de um
panacu velho, chama-se o cavalo-marinho; outro, alapardado sob lençóis, denomina-se burrinha; um
menino com duas saias, uma da cintura para baixo, outra para cima, terminando para a cabeça com
uma urupema, é o que chama a capoira. Há além disto outro capadócio que se chama o pai Mateus.
O sujeito do cavalo-marinho é o senhor do boi, da burrinha, da caipora e de Mateus. Todo o
divertimento cifra-se em o dono de toda esta súcia fazer dançar, ao som de violas, pandeiros e de
uma infernal berraria, o tal bêbado Mateus, a burrinha, a caipora, o boi (que com efeito é animal
muito ligeirinho, trêfego e bailarino). Além disto o boi morre sempre sem quê nem para quê, e
ressuscita por virtude de um clister que pespega o Mateus, coisa muito agradável e divertida para os
judiciosos espectadores. Até aqui não passa o tal divertimento de um brinco popular e grandemente
desengraçado. Mas de certos anos para cá não há bumba-meu-boique preste, se nele não aparece um
sujeito vestido de clérigo, e algumas vezes de roquete e estola para servir de bobo da função. Quem
faz ordinariamente o papel de sacerdote bufo é um brejeirote despejado, e escolhido para
desempenhar a tarefa até o mais porco e nojento ridículo. Em um país católico romano consente-se e
aplaude-se que na maior publicidade sirva de bobo um bandalho disfarçado em sacerdote, e com as
vestimentas do culto. E para complemento de escárnio esse padre bufo ouve de confissão ao Mateus,
o qual negro cativo faz cair de pernas ao ar o seu confessor, e acaba, como é natural, dando muita
chicotada no sacerdote! Quem acreditará que tal se consinta e aprove em uma província das mais
polidas do império? Como é possível ludibriar e escarnear mais o estado sacerdotal? (...) Querem
sinal menos equívoco de desprezo e abjeção a que tem chegado entre nós o ministério sagrado, e
conseguintemente a religião?78
A bem verdade, Lopes Gama se voltava contra qualquer tipo de exagero: seja da
gula, da moda, do luxo, da vaidade. Tudo pode ser proveitoso, se em doses moderadas.
“Nequid nimis”, dizia em latim: nada de excessos. Também se põe o Padre Carapuceiro
contra o excesso de luxo nos enterros e exéquias:
De que servem pois essas pompas, essas grandezas, essas vaidades nos enterros e exéquias dos
finados? Se é para as suas almas, estas pertencem à religião, e a religião detesta, e expressamente
condena, semelhantes; se é para honra do cadáver, este já não a sente, já se lhe não faz obséquio.
Enfim, dirigir zumbaias a um defunto é o mesmo que fazê-las a um pão ou a um pedra. (...) Muita
gente está persuadida que deixando de fazer exéquias suntuosas aos seus finados escandalizam o
público, e dá quebra na sua pessoa. Um diz daqui: Pois eu hei de enterrar a meu pai como a um
escravo? Outro diz: Minha mulher não é nenhuma cativa para ser sepultada sem pompa alguma. E
por este prejuízo, que se recebe da educação, vai-se perpetuando o luxo dos enterros e honras
funerais.
Na política Lopes Gama também se voltou contra os excessos. Mas isso é nítido e
evidente no período em que escreve O carapuceiro. Nem sempre o Padre Mestre se
posicionou no centro do espectro político. Seria prudente, tentar traçar a trajetória da
atuação política desse irreverente Frei beneditino convertido ao clero secular.
78
O Carapuceiro, n. 2 (11/01/1840).
25
A TRAJETORIA POLÍTICA DE LOPES GAMA
Gláucio Veiga tenta tentar encontrar uma classificação política para Lopes Gama,
classificando-o como um monarquista constitucional. 79 Mas essa definição de Veiga é um
tanto quanto simplificadora, e restringe a análise apenas ao pensamento de Gama da década
de 1830. Na década anterior sua posição foi com certeza bem mais conservadora. Escreveu
Alfredo de Carvalho que o Conciliador Nacional, periódico escrito por Lopes Gama,
reapareceu após o fracasso da Confederação do Equador, pois havia sido interrompida sua
publicação no final de 1823. Ao reaparecer, diz Carvalho que tal jornal “assumiu atitude
reacionária e, como órgão oficioso do governo do Presidente José Carlos Mairink da Silva
Ferrão, analisou, com exagerada acrimônia, os homens e os acontecimentos da
Confederação do Equador.”80Dessa maneira seria prudente não enquadrar Lopes Gama
dentro de um modelo político, pois o curso de sua vida se mostra muito mais complexo que
uma simples classificação política.
Por isso, acredito que devemos enxergar o pensamento político de Lopes Gama
confrontando com a trajetória de sua vida, levando em conta suas origens familiares, suas
vinculações políticas e o contexto político-social de cada período específico da primeira
metade do século XIX. Como vimos no início desse capítulo, seu tio-avô materno, José
Fernandes Gama, era inimigo político de Frei Caneca no início da década de 1820. Assim,
pode-se entender melhor o olhar crítico que o Padre Carapuceiro dirigiu à Confederação do
Equador durante toda sua vida – ele tinha vínculos familiares com os setores contrários aos
rebeldes de 1824. Sua rivalidade com Manuel Carvalho Pais de Andrade, líder do dito
levante, por exemplo, durou cerca de duas décadas. Quando Diretor do Colégio de Órfãos
em 1835, Lopes Gama atritou-se com o então Governador da Província de Pernambuco
Manuel de Carvalho Pais de Andrade (1834-1835). Gama solicitava mais verbas. Pais de
Andrade, por sua vez, acusava o Padre de exercer uma má gestão dos recursos. Para Amaro
Quintas, fica evidente que existia uma acirrada rivalidade entre essas duas personalidades
do mundo político do Recife da primeira metade do século XIX. Segundo o historiador
pernambucano, essa rivalidade muito se devia às criticas que Lopes Gama dirigiu, em seus
79
80
VEIGA, Gláucio. op. cit, p. 263.
CARVALHO, Alfredo de. In NASCIMENTO, Luiz do. op. cit, p. 33.
26
jornais, à Confederação do Equador (1824). Vinte anos depois de passado tal episódio,
Gama ainda fazia questão de repreender a Confederação do Equador, qualificando-a de
“quixotal revolta republiqueira” ( O Sete de Setembro, n. 35 de 1846). Trata-se de uma
briga política de longa data.81
Recuando um pouco mais no tempo, constatamos que em 1817 Lopes Gama
recebeu do governador Luiz do Rego a nomeação de lente de retórica do Seminário de
Olinda. Escreve Gláucio Veiga: “Alguns historiadores enxergam nessa nomeação a origem
do devotamento do Padre Carapuceiro a Luís do Rego e seu desdém pela revolução de
17.”82
Através desses fatos, chegamos à seguinte constatação: Lopes Gama iniciou sua
vida política e educacional amparado pelo setor mais conservador da Província. Por isso
Evaldo Cabral de Mello assim analisa o início da sua trajetória política
O percurso político de Lopes Gama antecipou, com dois ou três decênios de diferença, o roteiro de
vários dos estadistas do Segundo Reinado, como Nabuco de Araújo, para só citar o caso mais
conspícuo, os quais, tendo iniciado suas carreiras sob o signo conservador-consitucional, corrigiram
o rumo a meio caminho para dar-lhe um liberal. O fato é que Lopes Gama começou suas atividades
sob a proteção do setor mais reacionário da capitania, que era não a grande propriedade territorial,
mas os círculos de comerciantes reinois e de altos funcionários públicos a que estava ligado seu pai,
cirurgião português radicado na terra e casado com brasileira de família influente mas de origem
urbana. Apenas de regresso dos seus estudos com os beneditinos da Bahia, Lopes Gama foi nomeado
lente de retórica de célebre Seminário de Olinda pelo último governador e capitão general de
Pernambuco, Luís do Rego Barreto, que assumiria o governo na esteira do fracasso da revolução de
1817, movimento de que o Seminário havia constituído viveiro ideológico. Deposto Luís do Rego
pelo movimento de Goiana, em 1821, Lopes Gama começou sua marcha para o centro do espectro
político, lançando-se à atividade jornalística e colaborando com a junta presidida por Gervásio Pires
Ferreira, de cujo diário foi diretor.83
Se formos traçar um gráfico de sua trajetória política, ele se deslocaria da direita
conservadora, no início de sua carreira jornalística (1820-24), para a esquerda liberal, no
final de sua vida (1845-48). A fase intermediária, que compreenderia o período regencial
(1831-40), seria aquela em que assumiu a posição de meio-termo. Nesta fase, justamente,
foi quando escreveu O Carapuceiro.
O final de sua carreira jornalística pode ser classificada de liberal, pois em 1845 e
1846, ou seja, pouco antes da Revolução Praiera (1848), inicia a publicação do periódico
81
QUINTAS, Amaro. op. cit, p. 75-78
VEIGA, Gláucio. op. cit. p. 283.
83
MELLO, Evaldo Cabral de. “Introdução”, in MELLO, Evaldo Cabral de(org). op. cit, p. 13-14.
82
27
Sete de Setembro.84 Tal jornal teria um conteúdo eminentemente político, e o alvo de suas
críticas seria o “gótico castelo dos Rego Barros Cavalcanti”, família aristocrática que
detinha grande poder em Pernambuco. São intensas as críticas políticas, sociais e
econômicas que Lopes Gama faz à grande propriedade rural. Um número de tal jornal
levou Amaro Quintas a conferir-lhe o título de precursor da luta de classes no Brasil:
Há, em o número 17, de 4-11-1845, uma apreciação de Lopes Gama sobre as diferenças entre as
classes sociais que o coloca como um verdadeiro precursor – lembrem-se que é de 1845, enquanto o
85
Manifesto Comunista é de fevereiro de 1848 – da teoria da luta de classes de Marx.
Para Quintas, Lopes Gama situa a posição de praieros e guabirus86 dentro do
fenômeno do choque de classes. Veja o que disse o Padre Carapuceiro para levar Amaro
Quintas a fazer tão curiosa comparação:
Em todos os países, e em todas as épocas essas classes privilegiadas, ciosas das vantagens que
possuíam, desveladas por estendê-las todas as vezes que julgarão oportuno o ensejo, já por egoísmo,
já por orgulho, e cobiça sempre procurarão manter-se em um poder discricionário, e por isso sempre
se constituirão em guerra permanente com os povos por elas deserdados e oprimidos. (...) Todas as
páginas da História oferecem-nos exemplos desta verdade. Tal foi em Roma a luta dos plebeus e dos
patrícios; tal na Revolução Francesa a dos comuns nascentes contra o feudalismo; e ainda hoje,
pode-se dizer, que é a grande questão de todo o mundo civilizado. Posterguemos nomes que não
fazem ao caso; atentemos para as coisas, e conheceremos que os regressistas, os reorganizadores, os
ordeiros de agora são ou querem ser os patrícios em Roma, ou os senhores Feudais da meia idade.
Como estes, aqueles propugnam, não pelas invariáveis leis da vida social, senão por formas variáveis
de organização enferrujadas do tempo, destruídas na razão e consciência pública.... e será justo que
alguns membros da comunidade, absorvam à custa dos demais as vantagens reais, atribuam-se
direitos, que denegam aos restantes dos cidadãos assim atirados para a condição de um cativeiro real,
e concentrem em suas mãos ambiciosas o monopólio do poder e da riqueza? O povo excluído de fato
de todo o direito político, privado de toda a influencia legal em a decisão dos negócios comuns, e dos
que mais imediatamente o interessam, deverá ficar nesse estado de abatimento, e de torpor, e
carregar com todos os ônus da sociedade, sem outra compensação mais, do que a miséria, a nueza, e
a fome? Se pois todos os sentimentos de humanidade, se todos os ditames da justiça se revoltam
contra semelhante partilha dos bens, e males da vida; se era impossível que tão profundo vexame
subsistisse pro mais tempo, a facção reorganizadora, que trabalhava para isso, preparava comoções
terríveis e uma conflagração geral do Brasil. 87
Gláucio Veiga, no entanto, critica a comparação de Quintas, afirmando que o
discurso de Lopes Gama é tributário das idéias de Saint-Simon, e que de maneira alguma
seria um predecessor do postulado marxista.88
84
Único detentor de tais fontes, Amaro Quintas realizou um estudo sobre o pensamento político de Lopes
Gama praiero. O Padre Carapuceiro pode ser considerado, segundo Quintas, um militante da Revolução
Praiera. QUINTAS, Amaro. op. cit.
85
QUINTAS, Amaro. op. cit, p. 31-32.
86
A Revolução Praiera opôs praieros a guabirus. Assim eram denominadas, respectivamente, as facões
liberais e conservadoras de Pernambuco.
87
Sete de setembro, n. 17 (04/11/1845). In QUINTAS, Amaro. op. cit, p. 31-32.
88
VEIGA, Gláucio. op. cit, p. 264-267.
28
Traçados os principais elementos da vida de Miguel do Sacramento Lopes Gama,
cabe agora reiterar a periodização que acima propusemos. Tomemos a trajetória de sua vida
como pano de fundo da própria história do Império na primeira metade do século XIX.
O primeiro momento seria o final da década de 1810 e o início da de 1820. Período
conturbado para o Antigo Regime Luso-brasileiro estabelecido nos trópicos. Período
conturbado principalmente em Pernambuco. Período repleto de levantes e conspirações
políticas de caráter autonomista que, no limite, assumiam conotações liberais e
republicanas.89 Tais levantes foram sufocados por uma monarquia conservadora e
altamente centralizada no Rio de Janeiro. Ligado aos setores conservadores da Província e
iniciando sua carreira política, jornalística e educacional, era prudente a Lopes Gama
manter-se alinhado à posição de sua família. Foi isso que fez, e assim se lançou como
político, educador e jornalista. Esta foi a fase conservadora do Império, e também de Lopes
Gama.
Já o período final de sua vida passou-se no final da década de 1840. Era o começo
do segundo reinado, que marcou notáveis avanços de cunho liberalizantes. Ligado aos
setores urbanos, o Padre Carapuceiro engajou-se com o governo praieiro que se
posicionava contra o histórico e arraigado domínio aristocrático em Pernambuco. Esta foi a
fase liberal de Lopes Gama.
A fase intermediária foi a que escreveu O carapuceiro (1832-1842). Tempo da
Regência. Tempo em que o Estado-nação sofria sérias ameaças de fragmentação. Tempo
em que a unidade política estava seriamente comprometida. Revoltas de caráter federativo
explodiam em diversas localidades do Império. Mas não em Pernambuco. Segundo Evaldo
Cabral de Mello, a Regência constituiu-se em um período de relativa estabilidade política
em Pernambuco.90 Como vimos no gráfico 1 (p. 10), é a época na qual a imprensa periódica
mais cresce, ou seja, é uma época de relativa liberdade política. Esta é a fase meio-termo de
Lopes Gama. É também a fase em que discute os problemas de uma nação em
esfacelamento.
89
MELLO, Evaldo Cabral de. “A pedra no sapato”, in Folha de São Paulo (4 de janeiro de 2004). Caderno
Mais.
90
MELLO, Evaldo Cabral de. “Introdução”, in MELLO, Evaldo Cabral de(org). op. cit, pp. 12-13.
29
Assim sendo, passamos para o capítulo final de nosso estudo, cujo objetivo é
discutir, através do jornal O carapuceiro, os elementos que Lopes Gama nos traz a respeito
da nação em formação.
30
CAPÍTULO 3 - ENCARAPUÇANDO A NAÇÃO
Neste derradeiro capitulo de nosso estudo, iremos discutir a especifidade do
pensamento de Lopes Gama acerca de identidade e nação. Nossas fontes são os seus
escritos em O carpuceiro (1832-1842). Selecionamos 20 artigos de tal jornal, que versam
sobre o tema, de modo a direcionar a analise aqui proposta.
Quais são, para o Padre Mestre, os problemas da nação em formação? Qual seria o
modelo de nação brasileira que este propõe? O que seriam costumes tipicamente
brasileiros? Por quê? O que seriam vícios peculiarmente brasileiros? Esses são alguns
questionamentos que irão nortear a discussão.
A grande novidade que esta tão rica fonte nos oferece há de ser aproveitada:
adentrar em questões cotidianas a respeito da identidade brasileira em formação. Enquanto
grande parte das fontes escritas pela elite da primeira metade do século XIX se restringe à
discussão política, O carapuceiro articula esta à questão dos costumes. Assim, teremos
como eixo relacionar essas duas dimensões. Não consideramos o plano político menos
importante. Partindo do pressuposto que Lopes Gama não escreve só per accidens sobre a
política, e que este viés é deveras importante e influente em seu pensamento, iniciaremos a
discussão com sua visão acerca de tais elementos constitutivos da nação brasileira.
UMA BRASIL, UM REI, UMA CONSTITUIÇÃO: UMA NAÇÃO
Como vimos no capítulo 2, a fase em que Lopes Gama escreve O carapuceiro é o
momento em que assume um meio-termo político. Ele escreve com relativa liberdade, que
foi característica da imprensa do período regencial como vimos no gráfico 1 do primeiro
capítulo. Assim, foi possível caminhar rumo ao centro do espectro político. Voltava-se
contra os extremos: nem liberalismo, nem absolutismo. Defendia a Monarquia
Constitucional. Sempre se voltou contra os revolucionários de 1817 e 1824. Gabava-se:
“nunca entrei em clubes revolucionários, nem concorri com meu voto para libertar minha
pátria por meio de assassínios”. Para ele “o povo do Brasil era tão apto para a democracia
como o muçulmano para conhecer a jurisdição do papa”.91 Em sua opinião seria uma
91
O Carapuceiro, n. 1 (17/01/1838).
31
grande piada pensar em democracia, ou até mesmo soberania popular, em um país repleto
de escravos.92 “Igualdade no Brasil! É um sonho, é uma utopia, por que se há pais
eminentemente aristocrático, é o nosso”93, concluía.
Mas também não lhe agradava nem um pouco o partido absolutista. Muito pelo
contrário: atacava abertamente os “colunas”, que almejavam restituir o trono de D. Pedro I
e implantar um governo de caráter absoluto. Em 1832 publicou A Columneida – Poema
herói-comico em quatro cantos (Typ. Fidedigna).94 Tal poema era uma sátira a esses
absolutistas com ideais restauradores. São recorrentes, em O carapuceiro, ironias a rebeldes
radicais - fossem de direita ou de esquerda. Ao despedir-se de seus leitores, escrevendo o
último número do Carapuceiro de 1832 antes de sair de férias, ironiza tanto os liberais,
como os restauradores.
Adeus, meus ilustres senhores, até janeiro de 1833, se antes disso Pinto Madeira e o Benze-cacete,95
escapulindo da prisão em que se acham, não capitanearem alguma falange de cristão velhos, amigos
do trono, do altar e das coisas alheias, e não vierem dar cabo de todos os liberais, que já estão
vestidos e calçados no inferno por sentença de boas e piedosas cacholas; e de envolta com aqueles
não tirarem o vulto ao pobre Carapuceiro, que aliás só lhes deseja menos ignorância e mais
vergonha, porque para ser escravo voluntário são precisas muita estupidez e demasiada safadeza. Por
este ano disse.96
Assim, chama os absolutistas de “escravos voluntários”, e rebeldes liberais de
“assassinos”. Dessa maneira, põe-se contra qualquer tipo de desordem e ameaça a ordem
vigente. Em uma década em que a nação estava prestes a esfacelar-se, ele clamava pela
manutenção do regime monárquico constitucional representativo. O Regime Representativo
se apresenta, para o Padre Mestre, como um sistema de transição, uma necessidade de
época, uma passagem para um futuro mais feliz. Para ele, esse futuro poderia até ser
republicano, mas seria um futuro longínquo. Sobre isso reflete: “Já nos conveio a
monarquia, hoje convém-nos a monarquia sim, mas constitucional, representativa e federal.
Para o diante, em seu tempo adequado, só nos convirá a república, que é a natural tendência
92
Lopes Gama já tinha, na época em que escrevia O Carapuceiro, idéias anti-escravagistas.
O Carapuceiro, n. 19 (28/05/1839).
94
A publicação de A Calumneida rendeu uma resposta a Lopes Gama. O padre Marinho Falcão escreveu
Mygueleida. Só restam relatos oriundos de uma memória oral acerca desse escrito que, como tudo indica, era
uma sátira de Lopes Gama. COSTA, F.A.P. op. cit., p.724.
95
Joaquim Pinto Madeira, fazendeiro e coronel de milícias na Vila de Jardim (Ceará), promoveu em 18311832 uma rebelião em favor da restauração de dom Pedro I no trono imperial, sendo coadjuvado pelo padre
Antonio Manuel de Souza, de alcunha o Benze-cacete.
Cf. MELLO, Evaldo Cabral de(org). op. cit, p. 108.
96
O carapuceiro, n. 36 (24/11/1832).
93
32
da América.”97 Ao bem da verdade, acreditava que apenas uma lenta e pacífica revolução
nas idéias, nos hábitos e nos costumes garantiriam um futuro melhor.
Embora não se considerasse idólatra de nenhuma forma de governo, e reconhecesse
insuficiências na Constituição de 1824, defendia com unhas e dentes, durante o período
regencial, a Monarquia Constitucional Representativa. “Quando em 1824” –dizia Gama“houve aquela quixotada da Confederação do Equador, escrevi combatendo esses
devaneios e sustentando a Monarquia constitucional”. E quando, na segunda metade da
década de 1830, estouram revoluções de caráter federativo em diversas partes do Brasil – a
farroupilha no Rio Grande do Sul, a sabinada na Bahia, e a cabanagem no Pará – aumenta o
tom de suas críticas aos “republiqueiros”. “Que Deus nosso Senhor nos preserve de
Repúblicas de Piratini e da Bahia” 98– diz Lopes Gama.
Assim, o Padre Carapuceiro sustenta a idéia de um Brasil único. Tudo aquilo que
fora outrora a América Portuguesa deveria então se tornar uma só nação. É muito provável
que chegasse aos ouvidos de Lopes Gama notícias dos nossos vizinhos latino-americanos,
que, na primeira metade dos oitocentos, encontravam-se em uma imensa crise política – a
antiga América Espanhola esfacelava-se em pequenas nações. Isso Gama não desejava ao
Brasil. Queria uma nação grande e unificada. Para isso sustentava que a única solução era a
Monarquia Constitucional Representativa. República era sinônimo de desordem, morte e
anarquia. Em um artigo de 1839, intitulado “O bairrismo”, ele discorre sobre o tema:
Ainda que este vocábulo não venha em os Dicionários de nossa língua, todos sabem que ele significa
o excessivo amor, a indiscreta predileção pelas cousas, e pessoas da localidade, em que nascemos: e
não há dúvida, que o bairrismo é um vício, que nos pode levar às mais terríveis desgraças. Esta
paixão vil, baixa, e ignominiosa não deve ser confundida com amor à Pátria, amor, que quando bem
regulado, é o manancial das mais heróicas virtudes. A nossa Pátria pois é o Brasil, e todos os
Brasileiros constituem uma só, e a mesma família. Do que servem esse ciúmes, essas rivalidades, que
de dia em dia vão tomando galga entre as províncias do Império, se não para desunir os Brasileiro,
de retalhar este vasto continente em pequenas, e fraquíssimas frações, e conseguintemente reduzirnos aos horrores d’anarquia e precipitar-nos na voragem da guerra civil, do que temos dolorosos
exemplos em os nossos conterrâneos d’América do Sul? O Brasil todo unido sob o Regime
Monárquico Constitucional Representativo já é alguma coisa na escala das grande nações, e pode
chegar ao fastigio da prosperidade, e da glória; mas o Brasil retalhado em Provícias é um povo
miserável, pobre e continuamente batido pelas ondas sempre agitadas das facções, e fácil preza
d’ousados aventureiros.99
97
O Carapuceiro. (1834).
Alusão à Revolução farroupilha e à sabinada. O carapuceiro, n. 73, (23/12/837).
99
O carapuceiro, n. 20, (30/05/1839)
98
33
Acima vimos que Lopes Gama utiliza o termo pátria. Segundo os estudos de István
Jancso e João Paulo Garrido Pimenta, tal terminologia teria outro significado à época das
cortes constituintes de Lisboa (1821-22). Pátria, para os deputados brasileiros (baianos e
paulistas) presentes nas cortes, seria seu lugar de origem. Este não seria o Brasil, e sim a
comunidade que os elegeu - a Província. A nação a qual estes deputados se sentiam parte
seria a portuguesa. O Brasil, à época da independência, se enquadraria apenas no conceito
de país. Assim, segundo o discurso desses deputados brasileiros, São Paulo e Bahia seriam
suas pátrias. O Brasil seu país. Portugal sua nação.100
Como observamos no trecho de O carapuceiro acima transcrito, esses três conceitos
se fundem. O Brasil era, para Lopes Gama, sua pátria, seu país e sua nação. Dessa maneira
pode-se notar que há uma virada na utilização desses conceitos no espaço de tempo
compreendido entre a independência e a Regência.
As idéias políticas de do Padre Carapuceiro são vastas e mereceriam um estudo
mais apurado. Como percebemos, seu jornal não só per accidens político. Mas dadas as
dimensões reduzidas desse estudo monográfico, passemos agora para discussão acerca dos
costumes.
O NOSSO GOSTO POR MACAQUEAR101
Vimos qual era a idéia que Lopes Gama tinha do Brasil. Para ele o Brasil era tudo
aquilo que outrora foi a América Portuguesa. Cabe agora, pois, analisar o que ele
considerava ser o brasileiro. O que seriam costumes típicos de um Brasileiro da primeira
metade do século XIX? O Padre Carapuceiro responde:
Cada povo tem o seu caráter peculiar, seus usos, seus costumes e certa fisionomia, que o distingue de
todos os mais. O Inglês é grave, taciturno e eminentemente orgulhoso; o francês é alegre, jovial,
trêfego e desinquieto; o italiano é afeminado, mesureiro e moquengo; o espanhol, bazofio e paroleiro
etc. etc. Qual será o gênio ou caráter distintivo dos brasileiros? Parece que a nossa divisa é o
arremedo; nada temos de próprio, tudo queremos macaquear do estrangeiro, não já o que este tem de
bom e de proveitoso (que tal imitação sempre será louvável), senão as piores coisas, as mais
disparatadas e que menos convém às nossas circunstâncias.102
100
JANCSO, István; PIMENTA, João Paulo G.. “Peças de um mosaico (ou apontamentos para o estudo da
emergência da identidade nacional brasileira)”, in op. cit., p. 130-131.
101
Título do artigo de O Carapuceiro, n. 3 (14/1/1840).
102
Ibidem
34
Segundo Lopes Gama, tudo o que vinha da Europa ou dos Estados Unidos, o
brasileiro imitava, mesmo coisas totalmente descabidas e não aplicáveis ao Brasil ou ao
brasileiro. Os ingleses e franceses criaram a instituição do júri, a qual o Padre Mestre
considera muito saudável. Os brasileiro, em vez de instituir o júri apenas nas principais
cidades do litoral, espalharam tal instancia “por toda a parte sem atender à falta de
instrução, à incapacidade da maior parte da gente desses sertões
para dar o devido
andamento a essa instituição.” Para Lopes Gama, o resultado de tal macaqueação foi o
“progresso dos mais horrorosos crimes na razão direta da impunidade.” Diz ele que,
adentrando povoações ou lugarejos, “há um certo número de poderosos, que são os
ferrabrases do lugar, a cuja vontade e brutais caprichos tudo se dobra e obedece; e ai do juiz
que se quer mostrar reto e observador da lei.” Por fim, ironiza: “Muito nos parecemos com
a França, Inglaterra e Estados Unidos!”103 Relata outras macaqueações, tal qual a criação da
guarda nacional:
A França, uma das mais antigas nações da Europa, a França, foco da civilização e das luzes, a França
onde se não conhece a horrível distinção, a incomensurável distância de senhor e escravo, a França,
cuja população é toda homogênea, criou guardas nacionais. Ergo cá os nossos macaquinhos também
as devem ter tais e quais. E quantos negócios nossos são decididos a trouxe-mouxe só por arremedo
à Inglaterra e à França.104
Dessa maneira, Lopes Gama discorre sobre diversos aspectos copiados do
estrangeiro, e que não considera adaptável ao Brasil. Dentre esses, um nos chama muito
atenção: os costumes, as modas. Quando fala das modas da época, repreende aqueles que
aceitam, e usam, tudo o que vem de Paris. A moda – diz ele – tem por “templo Paris; os
seus sacerdotes são os caprichos; os franceses são os verdadeiros crentes; e todos nós,
pobres papalvos, não somos mais do que escravos convertidos, que sem reflexão, sem
idéias próprias, seguimos maquinalmente as leis arbitrárias dessa divindade fantástica.”
Continua sua reflexão, tomando como exemplo o uso que andavam fazendo, por aquelas
épocas, dos pentes:
Os pentes, quanto a mim, não foram inventados senão para prender e segurar os cabelos. Este foi o
uso que sempre tiveram. Agora, porém, pelo contrário, é preciso que os cabelos, escorados por
grampos, arrumados em oiterinhos, sejam os que sustentem os pentes debaixo das regras do
equilíbrio, sob pena de ir à terra a charlota de tartaruga, e evaporem-se em um instante trinta e
103
104
Ibidem
Ibidem
35
quarenta réis, com grande mágoa de quem o comprou e repiques das lojas francesas. (...) Dizem que
é a ultima moda de Paris. 105
É importante pensar o contexto que Lopes Gama escrevia de uma maneira mais
ampla. Temos a conjuntura política e cultural que se inicia com abertura dos portos em
1808 como ponto de partida de nossa analise. Uma enxurrada de novas idéias e mercadorias
vindas da Europa desembarcavam em terras brasileiras. Segundo Freyre, a europeização
dos costumes só se daria após a chegada da Corte. Antes disso a cultura brasileira era mais
uma mescla de valores orientais e africanos com lusitanos, devido ao confinamento
comercial que a América Portuguesa tinha dentro do império ultramarino português.
É que até a transferência da Corte de Portugal ao Rio de Janeiro, o primado europeu de cultura
no Brasil significaria o primado português ou ibérico, abertas, apenas, exceções para os
efêmeros domínios de franceses, no Rio de Janeiro e no Maranhão, de Holandeses, no nordeste e
de ingleses, na Amazônia. E o primando Ibérico nunca foi, no Brasil, exclusivamente europeu,
mas em grande parte, impregnado de influências mouras, árabes, israelitas, maometanas. De
influencias do Oriente não de todo dissolvidas nas predominâncias do Ocidente sobre Portugal
ou sobre a Ibéria. 106
Esse fenômeno muito nos interessa. O choque entre a cultura Oriental adaptada aos
trópicos e a cultura Ocidental vinda de um clima temperado é ponto central na reflexão de
Freyre. Segundo o mestre de Apipucos107, um oriente tropicalizado faria parte de uma
identidade brasileira ligada ao clima, ligada à terra:
Pois não se vence o trópico sem de algum modo ensombrá-lo à moda dos árabes ou dos orientais .
Sem ruas estreitas. Sem xales, panos de Costa, guarda-sóis orientalmente vastos para as caminhadas
sob o sol dos dias mais quentes. Sem sombras de grandes árvores asiáticas e africanas, como
mangueira, a jaqueira, a gameleira, em volta das casas, nas praças e à beira das estradas. Sem telha
côncava nos edifícios. Sem largos beirais arrebitados nas pontas em corno de lua. Sem casas de
telhado acachapado no estilo dos pagodes da China. Sem varanda ou copiar , à moda indiana, ou
bangalôs da Índia, nas habitações rústicas. Sem cortinas, sem rótulas ou sem gelosias nas casas ou
sobrados de cidade. Sem esteiras dentro das casas forrando o chão. Sem colchas da Índia nas camas
dos ricos. Sem refrescos de tamarindo, de limão, de água de coco, nas horas de calor mais ardente.
Sem muito azeite açafrão avermelhando a comida, avivando-a, requeimando-a para melhor
despertar o paladar um tanto indolente das pessoas amolecidas pelo calor. E esses valores orientais, o
Brasil assimilara-os através do português, do mouro, do judeu, do negro. O Brasil fizera-os valores
seus. Ao findar o século XVIII eram valores brasileiros. Ligavam amorosamente o homem e a sua
casa à América tropical. Não podiam deixar de afetar a mentalidade ou o espirito dos homens, certo
como é que o hábito tende a fazer o monge: tanto como o hábito-trajo como o hábito costume. 108
A temática de uma cultura ocidental não adaptada aos trópicos é recorrente em O
Carapuceiro. Costumes macaqueados do estrangeiro, que não tem razão de existir no
Brasil. Costumes que não se adaptam ao clima, que não se adaptam à terra. Uma identidade
105
O Carapuceiro, n. 25 (06/10/1832).
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mocambos. v. III. Rio de Janeiro : José Olympio, 1951, p. 739.
107
Como é conhecido Gilberto Freyre.
108
FREYRE, Gilberto. op. cit, p. 747.
106
36
ligada a esse aspectos – clima e terra – é verbalizada por Lopes Gama. Quando critica a
macaqueação de costumes vindos da Europa, ele está definindo um aspecto importante da
identidade brasileira: o de não ter uma identidade definida. Nesse trecho que se segue, ele
fala das contradanças, no qual deixa explícito esses aspectos acima levantados.
Todos sabem que as contradanças foram inventadas na Europa com o fim primário de agitar e
esquentar o corpo contra os rigores do frio, que em alguns países chega a matar. Nós, brasileiros,
mormente os que ficamos mais próximos, embora vivamos em um clima adusto, como temos um
prurido irresistível para macaquear, também contradançamos, não para espantarmos o frio, porque o
não há, mas para aumentarmos a calma e moermos os nossos corpos debaixo de simetria e
compasso. (...) Ainda que nada entendo de danças, o simples e bom senso me diz que em país como
nosso, onde a transpiração é quase contínua, onde os raios de sol nos ferem tão de perto, só assentam
bem as danças moderadas, e (se assim me posso exprimir) as mais macias. 109
Assim, poder-se-ia dizer que o Padre Mestre seria um crítico da europeização dos
costumes então em voga e defensor dos valores tradicionais, ou até mesmo um defensor da
sociedade patriarcal. Tal idéia não agrada a Evaldo Cabral de Mello110, e a mim também não
parece convincente.
Por fim, gostaria de levantar um ultimo ponto a respeito do “nosso gosto por
macaquear”. Gostaria de especular a respeito de uma possível identidade ligada ao idioma,
ligada à Língua Portuguesa. Lopes Gama critica a falta de amor próprio que o brasileiro
tinha para com sua própria língua. Era época em que se falava um português afrancesado –
expressões em francês eram corriqueiras no vocabulário da elite.
Em um artigo intitulado “As quadrilhas”, fala a respeito dessa dança: mais um
modismo macaqueado da França. Segundo ele, “quadrilha a solteira, quadrilha a casada,
ainda que esteja com a barriga à boca, até quadrilha a viúva, talvez que por penitência e por
alma do seu defunto, que Deus tenha; quadrilha a moça magrinha e esbelta, e quadrilha
também a revelhusca balofa e obesa.” Ao final desse artigo, Lopes Gama escreve um
diálogo fictício entre dona Mariposa, mr. Pirueta e Titire. O diálogo é irônico, e satiriza o
português afrancesado falado na época. O Mr. Pirueta diz: “as quadrilhas e o vapor são
duas potências, que tem mudado a face do mundo. Que insípida, que desagradável, que
triste não seria a sociedade, se não fossem as divinas quadrilhas”. Mr. Pirueta continua
falando. Fala de suas credenciais como dançarino: “cheguei a formar-me na Escola
Politécnica de Danças de Paris, tenho os mais honrosos atestados da Escola Normal de
109
110
O Carapuceiro, n. 32 (24/11/1832).
MELLO, Evaldo Cabral de. “Introdução”, in MELLO, Evaldo Cabral de. (org.). op. cit, p. 11.
37
Grotescos e saltos mortais, e sou sócio correspondente das escolas de pinotes de Berlim, de
Madri, de Londres, de São Petesburgo, de Amsterdã, da Filadelfia etc. etc.” Encantado,
Titire exclama: “Quanto invejo as vossas prendas e títulos, mr. Pirueta! Sem lisonja, vós,
senhor, dançais, ma foi, comme il faut.” Maravilhada, dona Mariposa diz: “Que belo!
Quadrilhas e pedacinhos de francês... que coisas de encantar a gente! Que faria, se eu
entendesse o francês?” Titire continua: “Se alguma coisa valho no departamento da dança,
é por que fui discípulo de mr. Pirueta: de tudo lhe sou redevable.” Dona Mariposa cativada
exclama: “Bravo! A melhor, a melhor. Que bonita palavra. Mas creio que não vem no
caderno das contradanças.” Titire responde: “Esta lindíssima palavra francesa corresponde
na nossa miserável a devedor.” O dialogo prossegue, cheio de termos em francês e ironias.
Podemos perceber dessa maneira, que Lopes Gama é um contumaz crítico do
português afrancesado muito em voga na época. Quando diretor do curso jurídico de
Olinda, Lopes Gama preocupava-se com mau uso da língua portuguesa por parte dos
pretendentes ao cargo de bacharel em direito. No relatório de 1839, ano em que abandonou
as funções gestoras do Curso Jurídico, ele critica veementemente essa situação: esbraveja
“pela lástima de tanto bacharel ignorante”, tantos incapazes, no Curso Jurídico, de
“entender os próprios compêndios” e ao final “condecorados com um título de acadêmico...
objeto de escárnio público.” Com violência ele conclui: “...pouco ou nada distam de
qualquer idiota, faltos das mais ordinárias noções de literatura falando miseravelmente e
escrevendo com imperdoáveis solecismos, barbarismos e neologimos.”111
O tema da língua portuguesa foi recorrente na sua vida, visto que foi professor de
retórica em diversas instituições de ensino de Pernambuco. Em 1846, Lopes Gama publicou
no Rio de Janeiro, pela tipografia Imparcial, Lições de eloqüência nacional. Não tive
acesso a tal obra, mas acredito que ela se constitua em um material de imenso valor para
uma possível pesquisa acerca da emergência de um nacionalismo vinculado ao idioma
português.
Hobsbawm e Anderson realizaram estudos amplos acerca da emergência dos
nacionalismos.112 Fenômeno que, segundo esses autores, teve seu ápice no século XIX. Já
vimos, no primeiro capítulo, que a aplicação desses modelos teóricos ao caso brasileiro tem
111
112
Cf. VEIGA, Gláucio. op. cit., p. 268-270.
HOBSBAWM, E. J. op. cit; ANDERSON, Benetict. op. cit.
38
certas ressalvas. No entanto, quero fazer aqui uma breve ponte entre essas analises clássicas
a respeito da formação das nações e o Padre Carapuceiro. Hobsbawm e Anderson
consideram a identificação a um idioma em comum, e, também, a uma terra, como
elementos centrais na constituição das nações. Lopes Gama escreve sobre esse dois temas:
a terra e o idioma. Nos dois casos aponta uma insuficiência de valores nacionais próprios
solidificados. Será que essa carência de identidades tem relação com o difícil e intrincado
processo de consolidação de um Estado-nação no Brasil?
A SEDE DE EMPREGO ENTRE NÓS113
O Brasil estava constituindo-se como Estado e como nação na primeira metade do
século. Já enfatizamos bastante esse asepecto. Vimos no capítulo 1 que um aparato político
começa a ser instituindo no Rio de Janeiro com o translado da metrópole para os trópicos. É
o que Maria Odila Leite da Silva denomina de a “interiorização da metrópole no Centrosul” do país.114 O crescimento de aparelhos institucionais, restrito inicialmente ao Centrosul, vai aos poucos se expandindo pelo território brasileiro. Em 1820 são compostas as
juntas governativas das províncias, com o intuito de substituir os antigos governadores e
capitães generais. Outros aparatos políticos forma sendo instituídos ao longo do Império.
Assim, queremos chamar a atenção para o seguinte fenômeno: milhares de cargos públicos
eram criados ao longo do território brasileiro. A nação emergia e, junto com ela, surgiam
diversos empregos. São as origens do funcionalismo público brasileiro. A criação das
assembléias provinciais, que ocorreu através do ato adicional de 1834, faz parte desse
processo.
Vivendo nesse contexto, Lopes Gama observava tudo isso. Assim, ele formula outra
característica que considera distintiva da personalidade brasileira: a sede por empregos
públicos. Segundo ele, todos largariam o que fazem para ingressar na máquina governativa.
Diz o Padre Mestre: “tal é entre nós a sede de empregos públicos, que o negociante larga o
comércio, o agricultor desampara o campo, o médico abre mão da sua clínica, o alfaiate
deixa a tesoura e a agulha, o sapateiro abandona os couros, a sovela etc. para se atirarem
113
114
Título de O carapuceiro, n. 22 (15/06/1842).
SILVA, Maria Odila Leita da. “A interiorização da metrópole”, in op. cit.
39
aos mares tempestuosos da política, para viverem sempre assustados de favores do
governo.”115
“Mares tempestuosos da política”.
É assim que Lopes Gama se refere às
turbulências que fazem do cargo público algo extremamente instável na primeira metade
dos oitocentos. Um governo provincial, por exemplo, toma posse. Junto com ele milhares
de funcionários estabelecidos. Um empregado público, por mais que seja competente e
honesto, será certamente despedido quando o próximo governo assumir. Diz o Padre
Carapuceiro:
A cada mudança de ministério, a cada alteração de gabinete treme o mísero empregado, vendo a hora
em que lhe tiram o pão, por que o ofício, que honrada e dignamente servia, bem pode ser
ambicionado pelo sr. deputado F. já para si, já para um parente, um amigo etc. E é da índole do
sistema de transações o contentar os amigos, que nos ajudaram a subir o poder, e nele os sustentam,
embora para isso se posterguem todas as regras da decência, da eqüidade e da justiça. Além disso, à
vista do que cotidianamente se está observando acerca da instabilidade dos empregos, qual será o
funcionário público que faça o sacrifício de ser fiel, assíduo e limpo de mãos, se está bem certo que
nada disto lhe aproveita para ser conservado? Se teme que a cada momento lhe tirem o bocado para o
dar a algum dos inumeráveis esfomeados que achou bom padrinho? Tal cidadão naturalmente
cuidará de encher-se o mais possível, e de fazer o seu pecúlio para quando lhe chegar o dia fatal e
quase infalível de sua demissão: e eis como tal sistema semeia e cultiva, a meu ver, a imoralidade
por todo Brasil.116
Assim, Lopes Gama enxerga na instabilidade dos cargos uma das mais importantes
causas para o desvio de verbas públicas. Propõe ele, então, uma maior estabilidade para os
cargos públicos no Brasil. Podemos notar assim que os males ainda presentes na burocracia
brasileira são males há muito enraizados na nossa tradição política.
Lopes Gama propõe algumas soluções para minimizar o apadrinhamento de
funcionários públicos. Sugere que o baiano venha ser Presidente da Província de
Pernambuco. Que o pernambucano vá ser Presidente no Maranhão. Que o maranhense vá
ser Presidente na Paraíba e assim por diante. Essa sugestão mataria dois coelhos com uma
cajadada só: reduziria com o “bairrismo” vigente nos governos provinciais, e diminuiria o
imenso número de funcionários públicos apadrinhados. Para Lopes Gama um “filho de uma
província é menos idôneo para ser presidente nela.” Essa proposta, que seria vitoriosa no
2º. Reinado, é no fundo uma crítica ao ato adicional, contra o qual O Padre Mestre tem
sérias restrições.117
115
O carapuceiro, n. 22 (15/06/1842).
Ibidem.
117
O carapuceiro, n. 20, (30/05/1839).
116
40
Outra especificidade do Brasil Imperial é, para Lopes Gama, a causa da “sede dos
empregos entre nós”: a escravidão. Segundo ele, em um país onde grande parte do trabalho
manual é feito por escravos, todos querem ganhar direito com o suor dos outros. Diz ele:
Em um país como o nosso, onde tudo é feito à força do azorrague por braços escravos, forçosamente
o trabalho manual cai em descrédito e tem-se por coisa vil. Nada mais direi a respeito da importação
de africanos. O tempo, esse grande mestre das coisas humanas, e talvez que uma triste e horrorosa
experiência virão a decidir o problema, e a futura geração fará à presente a devida justiça. Entretanto
o certo é que no Brasil ninguém quer dar-se à agricultura, ao comércio, às artes etc... O que a todos
estimula é a sede dos empregos públicos.118
Assim, mesmo sendo contra neologismos, o Padre Carapuceiro define um novo
vocábulo: o “vadiismo”. Tal palavra significaria “a qualidade, o vício de ser vadio”.119 Essa
qualidade não se restringe apenas a funcionários públicos. Muitos filhos de famílias ricas,
já em idade avançada, não tinham ocupação nenhuma na cidade do Recife. Lopes Gama
descreve uma mulher que passa o dia alternando três tarefas: comer, se vestir, e ficar
sentada na varanda.120 Vestir-se de acordo com as ultimas moda de Paris, e ajudada por
duas ou três escravas. Sentar-se na varanda a espera de “gamenhos”121. Dessa maneira, ele
critica uma hábito eminentemente aristocrático–que é não realizar trabalhos manuais - e
traz a tona um tema burguês por excelência – que é a valorização do trabalho. Lopes Gama
chama isso de Industrialismo. Como vimos, Amaro Quintas compara as idéias de Lopes
Gama com as de Marx. Acho descabida e exagerada a comparação de Quintas. Mas vale a
pena adentrar um pouco mais neste tema recorrente nos escritos de O carapuceiro..122 O
Padre Mestre apresenta o industrialismo como um contraponto à questão da sede de
empregos. Assim ele define tal conceito, fazendo uma comparação com o conceito de
liberalismo:
O liberalismo já teve seu préstimo: ele serviu para demolir: mas terminado tem a sua tarefa; agora
trata-se de reedificar, e para isso cumpre, que apareça o Industrialismo. O Liberalismo é um
sentimento, é uma paixão, que muito pode servir para o impulso revolucionário: o Industrialismo
porém é um fato, e só esse é capaz de neutralizar os partidos, de por termo às facões, de promover a
paz, de garantir a segurança, e destarte produzir todas as vantagens da sociedade. O Industrialismo
não tem pretensões políticas, só anela o sossego, e independência, e procurando a prosperidade
individual, promove a pública; pelo que é este o espírito, que convém infundir no povo, é este o
118
O carapuceiro. n. 22. (15/06/1842).
O carapuceiro, n. 18 (17/06/1837).
120
Ibidem.
121
Segundo Lopes Gama, gamenho é “todo aquele indivíduo que não tem outro ofício, outro emprego, outro
cuidado, senão embonecar-se para namorar”. O carapuceiro, n. 11 (07/07/1832).
122
Título de O carapuceiro n. 40 (13/07/1839).
119
41
espírito, que releva, tenha preponderância nas leis e na administração da república. Quem dúvida,
que o dinheiro é o sangue arterial do corpo político? Receita, e despesa são as molas do Estado.123
Gláucio Veiga confere a este pensamento uma matriz Sait-Simoniana.124 Pode ser
coerente a afirmação de Veiga. No entanto acredito que uma pesquisa mais apurada a
respeito dos correntes de pensamento que influenciaram Lopes Gama poderia ser realizada.
Uma maneira de se averiguar isso seria analisar as obras que O Padre Carapuceiro traduziu
para o português. E não foram poucas: várias obras de autores europeus foram traduzidas
por Lopes Gama e então publicadas no Brasil.125 Verificar as correntes políticas e
econômicas que influenciaram o pensamento de Padre Mestre seria uma bela pesquisa, sem
dúvida. Mas isso não será feito nesse breve estudo. O que desejo, ao adentrar por esses
assuntos, é chamar a atenção para outra sugestão proposta por Lopes Gama para melhorar a
maquina governativa imperial: aumentar o número de homens industriosos nos ministérios,
nas assembléias provinciais, na corte fluminense. Quando se refere a homens industriosos
também está se referindo também aos agricultores. Está se referindo, enfim, a todos aqueles
que exercem alguma atividade produtiva.
Lopes Gama deixa bem explícita essas idéias no Carapuceiro n. 35, de 20 de agosto
de 1839. O título desse número é “Diálogo entre Roberto Agricultor, Franklin Comerciante,
e Rodrigo Empregado Público”. Trata-se, novamente, de um diálogo fictício, cheio de
ironias e sátiras. O comerciante reclama dos altos impostos.O agricultor diz que não é justo
pagar tantas tarifas para sustentar um bando de funcionários públicos. O funcionário
público justifica sua função, falando da importância que as instituições governamentais têm
para a manutenção da ordem. A critica de Lopes Gama é direta, e se dirige aos altos
impostos. Em outro artigo intitulado “Os nossos impostos”, reflete sobre o tema:
Os impostos vão-nos crescendo anualmente em um progresso espantoso. A Assembléia Geral impõe,
impõe as Assembléias Provinciais, as Câmaras Municipais também impõe: o que é, que o nosso
Brasil não impõe? Mas está a boa, e vantajosa aplicação de tantos tributos? Que cabedal se não
desbarata em superficialidade, em dar de comer a afilhados, afora o que desaparece, não se sabe em
que! Só com o artigo Diplomacia, isto é, com as Legações, e Consulados, ajudas de custo, e
despesas imprevistas 121:520$000 réis.126
Assim, Lopes Gama acredita que o único jeito de se controlar essa fúria, que são os
crescentes impostos, é aumentar o número de homens industriosos nos cargos governativos.
123
Ibidem.
VEIGA, Gláucio. op. cit, p. 264-267.
125
Uma lista das obras traduzidas para o português por Lopes Gama está em COSTA, F.A.P. op. cit., pp. 725726.
126
O carapuceiro, n. 33 (2/08/1939)
124
42
Estes não teriam nenhum interesse em aumentar os impostos, pois seriam os próprios
prejudicados. Note que, segundo José Murilo de Carvalho, os cargos públicos da corte
eram, em sua minoria, ocupados por homens “industriosos”. Carvalho, em seus estudos
sobre a elite imperial, dividiu esta em três categorias. A que denominou de “economia”,
ocupava a menor parte dos cargos governativos. Observe a tabela que se segue, atentando
para os períodos de 1822-31 e 1831-40. Note que o senado, durante o primeiro reinado e a
regência, tinha uma minoria de cadeiras ocupadas por homens “industriosos”. A influencia
de homens ligados a economia era ínfima na elite política da primeira metade dos
oitocentos.
Tabela 1: Ocupação dos Senadores por Períodos. In CARVALHO, José Murilo de. A Construção da
Ordem. A elite política imperial. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ / Relume-Jumara, 1996, p. 93.
Se para José Murilo de Carvalho o domínio dos magistrados em cargos
governativos foi essencial para a unidade da nação, para Miguel do Sacramento Lopes
43
Gama esse domínio dos magistrados se constituía em um “bacharelismo pedante”,
responsável pela instituição dos altos impostos, tão prejudiciais para o Brasil. Note que o
Padre Mestre, em suas atividades como educador, militou contra essa cultura bacharelesca.
Não agradava a ele o grande número de Bacharéis que se formavam todos os anos no Curso
Jurídico de Olinda. Voltava-se ele contra o bacharelismo pedante, inútil, ignorante e
“empreguista”. Como já vimos, no relatório de 1839, ano em que abandonou as funções
gestoras do Curso Jurídico, ele critica veementemente essa situação: esbraveja “pela lástima
de tanto bacharel ignorante”, tantos incapazes, no Curso Jurídico, de “entender os próprios
compêndios” e ao final “condecorados com um título de acadêmico... objeto de escárnio
público (...) pouco ou nada distam de qualquer idiota, faltos das mais ordinárias noções de
literatura falando miseravelmente e escrevendo com imperdoáveis solecismos, barbarismos
e neologismos.” De temperamento extremamente forte, Gama atritou-se com vários
quintoanistas. Não titubeava em reprová-los, negando-lhes o canudo. No relatório de 1836
critica a tradição que ia se cimentando “como princípio estável e incontroverso, nesta
Academia, desde o seu começo, que o quinto ano era um ano de formalidade, e que o
mesmo era ser nele matriculado que ter o direito inquestionável à carta de bacharel”.
44
CONCLUSÃO
É muito arriscado enquadrar o pensamento de um individuo a um modelo. Digo isto
por que uma pessoa está sempre suscetível a mudanças, seja por influencia externas, seja
por vivencias próprias. O historiador tem como pressuposto que as sociedades humanas se
transformam ao longo do tempo. Sendo assim, o individuo também sofre transformações ao
longo de sua vida. Observação elementar, mas que muitas vezes é deixada de lado por
pesquisadores que se debruçam sobre uma biografia. Quando Gláucio Veiga diz que Lopes
Gama foi um monarquista constitucional127, ele não está fazendo uma afirmação errada, e
sim incompleta. O Padre Carapuceiro teve uma fase de sua vida na qual ele defendia a
monarquia constitucional. Essa foi a fase na qual escreveu O carapuceiro. Essa foi fase
correspondente ao período regencial (1831-40).
Lopes Gama viveu outros momentos, teve idéias distintas. Na década de 1820 sua
posição era muito mais conservadora. A década de 1820 é distinta do decênio seguinte.
Enquanto a primeira foi bastante repressora em Pernambuco, a segunda foi bem mais
permissiva. A década de 1830, por sua vez, é distinta da década de 1840. Como vimos, em
1845-46 o Padre Mestre escreveu um periódico com idéias nitidamente liberais. Sua
militância política foi decisiva nos acontecimentos que desembocaram na Revolução
Praieira (1848). Assim percebemos como o momento político do Império influenciou de
maneira determinante o pensamento de Lopes Gama.
Assim, o período em que escreve O carapuceiro é especifico na vida de Lopes
Gama. Da mesma maneira que o período regencial é especifico na história do Império. É a
época em que o Padre Carapuceiro se dirige para o centro do espectro político.
Desvinculando-se lentamente de suas origens conservadoras, ele vai assumindo uma
posição de meio-termo: “nada de excessos”- dizia.
O período regencial constituiu-se, como vimos, em um período de relativa liberdade
em Pernambuco. Mas em se falando de unidade nacional, levando em conta que o Brasil
deveria ser tudo aquilo que outrora foi a América Portuguesa, nada estava definido. Assim,
O carapuceiro é escrito em uma época de liberdade no Recife e de crise nacional. Tudo
127
VEIGA, Gláucio. op. cit, p. 263.
45
isso tem que ser levado em conta quando se discute as idéias que Lopes Gama tinha a
respeito da identidade e da nação brasileira no período de 1832-42.
A idéia de que apenas a Monarquia Constitucional Representativa poderia unir a
nação é estratégica. Lopes Gama se põe contra as demandas autonomistas que ameaçavam
dividir o país. Demandas essas que no limite assumiam um caráter republicano ou até
mesmo absolutista. Assim, em uma época onde os extremismos políticos oriundos de um
autonomismo regional ameaçavam a unidade da nação, o Padre Carapuceiro opta pela
moderação. Dizer, no entanto, que Lopes Gama era um moderado é uma afirmação
incompleta. Isso só corresponde ao período analisado nesse estudo.
Assim, as características que Lopes Gama atribui ao brasileiro em O carapuceiro
estão altamente relacionadas com a crise do período regencial. Em uma época de futuro
incerto, de ameaças separatistas, o Padre Mestre aponta para a falta de identidade que o
brasileiro tinha com a terra, com o clima tropical e com o idioma português – tudo queria
macaquear do estrangeiro. Aponta, também, um vício que considerava nocivo na
construção desse novo Estado: a sede de empregos públicos.
Analisar uma figura de personalidade tão controversa e complexa é um desafio para
o historiador. Mas é algo extremamente prazeroso e dignificante. Peço desculpas se abordei
assuntos que fogem ao meu tema de pesquisa. O fato é que as fontes que tive em mãos
tratam praticamente sobre tudo. Exageros a parte, constato: é muito difícil filtrar tudo
aquilo que li e escrever apenas sobre identidade e nação no Brasil Imperial. O carapuceiro
contém diversas discussões interessantíssimas e difíceis de serem deixadas de lado. Por fim,
deixo uma recomendação, uma dica: leia O carapuceiro, se tiver oportunidade. É uma
leitura muito agradável.
46
ANEXO 1 – CRONOLOGIA DA VIDA DE MIGUEL DO SACRAMENTO LOPES
GAMA128
1793 – Nasce no Recife, em 29 de setembro, Miguel do Sacramento Lopes Gama, filho de
João Lopes Cardoso Machado, natural de Lisboa, médico pela Universidade de Coimbra e
delegado da Real Junta do Protomedicato e Pernambuco, e de sua mulher, Ana Bernarda do
Nascimento, da família Fernandes Gama.
1805 – Ingressa como noviço no mosteiro de São Bento de Olinda, onde fez seus primeiros
estudos.
1807 – Transfere-se para o mosteiro de São Bento da Bahia.
1808 – Professa-se em Salvador como monge beneditino.
1815 – Havendo regressado ao Recife em data desconhecida, ordena-se religioso secular.
1817 – É nomeado lente de retórica do Seminário de Olinda pelo governador Luís do Rego
Barreto, ultimo capitão general de Pernambuco.
1822 – Publica O Conciliador Nacional e dirige o Diário da Junta de Governo.
1824 – Após o fracasso da Confederação do Equador, dirige o Diário do Governo de
Pernambuco e pública a segunda fase de O Conciliador Nacional.
1825 – É nomeado visitador das escolas públicas, lente de retórica e diretor do recémcriado Liceu, futuro Ginásio Pernambucano.
1826 – Por motivos de saúde, retira-se à vida privada.
1829 – Regressa ao jornalismo; escreve para o Diário de Pernambuco e publica O
Constitucional (1829-31).
1830 – Pública O Popular, de vida também efêmera.
1832 – Inicia a publicação da primeira fase de O carapuceiro e imprime A coluneida, sátira
poética contra a Sociedade Colunas do Trono e do Altar.
1834 – Abandona a ordem beneditina.
1835 – Dirige o Colégio dos Órfãos e o Curso Jurídico de Olinda, sendo também eleito
deputado provincial
1837 – Publica três traduções: Memórias sobre quais são os meios de fundar a moral de um
povo, de Destut Tracy; Refutação completa da pestilencial doutrina do interesse propalada
128
MELLO, Evaldo Cabral de. “Introdução”, in MELLO, Evaldo Cabral de(org). op. cit, pp. 27-28.
47
por Hobbes, de Torombert; e Princípios gerais de economia pública e industria, de
Turanne.
1839 – Encerra sua direção do Curso Jurídico de Olinda e aposenta-se como professor do
Colégio das Artes. Publica a tradução de A religião cristã demonstrada pela conversão e
apostolado de são Paulo, de Lyttelton.
1840 – Como suplente, assume a cadeira de deputado geral por Pernambuco; inicia a
divulgação de O carapuceiro na corte pelas colunas de O Despertador; publica a tradução
do novo curso de filosofia, de Geruzes.
1841 – De sua autoria, publica A farpeleira e a sátira intitulada Código criminal da semirepública do Passamão na Oceania.
1842 – Reinicia a publicação de O carapuceiro, desta vez nas colunas do Diário de
Pernambuco.
1844 – Publica novo jornal, O Pernambucano, de que só se conhecem oito números.
1845 – Publica O sete de setembro e é eleito deputado geral por Alagoas.
1846 – Publica no Rio de Janeiro as Lições de Eloqüência nacional, em dois volumes.
1847 – Dirige pela segunda vez o Curso Jurídico de Olinda.
1850 – Dirige O Liceu pela segunda vez. Publica Observações críticas sobre o romance do
sr. Eugênio Sue, “O judeu errante” e a tradução de Uma lição acadêmica sobre a pena de
morte, de Carmignani.
1851 – È nomeado diretor geral da instrução pública em Pernambuco.
1852 – Escreve na Marmota Fluminense e publica a tradução de Os deveres dos homens, de
Silvio Pellico. Falece no Recife, em 9 de dezembro.
48
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