A ciência milenar de Terezinha Rêgo

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A ciência milenar de Terezinha Rêgo
A pesquisadora da flora medicinal no Maranhão que é mais conhecida fora do Brasil
CELIA DEMARCHI
A não ser no meio acadêmico e em alguns redutos fora do estado do Maranhão, a
farmacêutica Terezinha Rêgo, de 75 anos, é pouco conhecida no Brasil. Mas seu nome
começa a despontar na mídia, à medida que o país parece acordar para uma de suas
maiores riquezas: a diversificada flora medicinal. Doutora em botânica pela Universidade
de São Paulo (USP) e especializada em fitoterapia pela Universidade de Havana, Cuba,
Terezinha é uma das pioneiras na pesquisa de plantas com potencial terapêutico no
país, ramo em que atua há quase 50 anos. Seu trabalho é reconhecido
internacionalmente, como demonstram os prêmios que recebeu na Espanha, na
Inglaterra e na China.
Urucum: fórmula do xarope cedida para a China
Foto: Divulgação
Com este último país as relações da pesquisadora são mais próximas. Desde 2001,
universidades chinesas mantêm intercâmbio com a Universidade Federal do Maranhão
(UFMA), onde Terezinha coordena o Programa de Fitoterapia, que, além das pesquisas,
produz medicamentos e atende cerca de 10 mil pessoas por ano, de todas as classes
sociais.
Por meio desse intercâmbio, os chineses aprenderam a produzir o xarope de urucum, cuja fórmula lhes foi cedida. O
medicamento combate a pneumonia asiática e foi especialmente útil durante o surto da doença, em 2003. Atualmente, boa
parte da produção de urucum do Brasil é exportada para a China e vira xarope.
Mas foi com a fórmula da essência da cabacinha, planta que ocorre em todo o território nacional com nomes variados (como
buchinha ou paulistinha), que a cientista se projetou. A fórmula, usada contra sinusite, rinite alérgica e doenças relacionadas à
adenóide, lhe custou 20 anos de pesquisa e hoje é o carro-chefe do programa da UFMA.
No Brasil, o método milenar e tão empregado por seus primeiros habitantes, os índios, finalmente começa a reconquistar
espaço: em 2004, uma resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) regulamentou a produção de
fitoterápicos e, em maio de 2006, por meio da portaria 971, o Ministério da Saúde instituiu a Política Nacional de Práticas
Interativas e Complementares, que recomenda a adoção da fitoterapia, da homeopatia, da acupuntura e da terapia termal pelas
secretarias de estado da Saúde. Desde então, os fitoterápicos passaram a ser prescritos pelos médicos do Sistema Único de
Saúde (SUS). "Atualmente, o governo dá mais atenção à fitoterapia, mas ainda temos muita dificuldade com a lei de patentes e
a falta de recursos para pesquisa", diz Terezinha. A seguir, ela fala de sua experiência com as plantas medicinais ao longo de
sua vida.
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Problemas Brasileiros – Como surgiu seu interesse pelas plantas?
Terezinha Rêgo – Aos 8 anos, fiquei intrigada ao perfurar um amendoim e notar que a semente liberava um líquido amarelado,
que hoje sei tratar-se do óleo essencial. E decidi cultivar amendoins para observar seu ciclo de crescimento, no que não fui
bem-sucedida [ela ri].
PB – O que aconteceu com o experimento?
Terezinha – Na época, eu morava no centro de São Luís, numa dessas casas que chamamos por aqui de morada inteira, com
duas janelas pequenas, uma maior e uma porta na fachada. Embora não pareçam, essas casas antigas são grandes. A nossa
tinha 12 quartos, um porão habitável e um grande quintal, onde minha mãe cultivava dálias coloridas. Decidi plantar os
amendoins em volta das flores, o que não foi uma boa idéia: as sementes atraíram ratos, que dizimaram inclusive as dálias.
PB – Esse episódio a fez recuar?
Terezinha – Sim, porque minha mãe ficou furiosa. Mas o uso de plantas medicinais é muito tradicional no Maranhão. Meu avô
mesmo as estudava. Ele era coronel do exército e foi secretário de Estado, mas tinha uma grande sensibilidade para os
problemas sociais da nossa região. Então, ele pesquisava plantas para ajudar a população da pequena cidade de Cajapió,
onde passávamos as férias, e que não dispunha de praticamente nenhum acesso ao sistema de saúde para se tratar. Eu tinha
apenas um ano quando ele faleceu, mas cheguei a usar sua balança de plantas em meus estudos.
PB – Além da faculdade e dos estudos de seu avô, quais foram suas principais fontes de pesquisa?
Terezinha – As informações populares, inclusive dos índios canelas, aqui do Maranhão. Passei muitos dias na aldeia de Barra
do Corda, no final dos anos 1970, pesquisando, e lá consegui catalogar 75 espécies. Esse trabalho foi premiado no Congresso
de Etnobotânica de Córdoba, Espanha, o primeiro de que participei, em 1983. Depois, foi publicado pela Sociedade Botânica
do Brasil.
PB – A senhora retornou à aldeia depois?
Terezinha – Sim. Descobri que eles nem sempre usavam as dosagens mais apropriadas, principalmente do mastruz
(empregado como vermífugo e ainda contra doenças das vias respiratórias). Mas não consegui convencê-los a mudar. Dei um
curso a eles porque achei que era correto voltar à origem e devolver algo. Eles fizeram uma cartilha com base no meu trabalho,
mas o ponto de vista deles permaneceu, embora eu tenha colocado na cartilha as informações que tínhamos obtido
cientificamente.
PB – Nem sempre o chá, o modo mais comum de emprego de plantas com fins terapêuticos, funciona. Por quê?
Terezinha – A fervura geralmente elimina parte do princípio ativo. Além disso, é preciso saber em que parte da planta ele se
concentra e em que região foi feito o cultivo, pois a composição e a quantidade de substância ativa variam de acordo com as
características do solo.
PB – Sua tese de doutorado, concluída na Universidade de São Paulo (USP), trata desse tema, não é?
Terezinha – Exatamente. Pesquisei a Tagetes minuta, o cravo-de-defunto, para desenvolver um anti-helmíntico, especialmente
contra a tricuriose, para a qual, em 1960, quando concluí a tese, ainda não havia vermífugo alopático. Procurei o óleo essencial
nas folhas, no caule, nas raízes e não o encontrei, ou encontrei muito pouco. Descobri que a substância se concentrava em
maior quantidade somente no invólucro da flor.
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Então, para obter resultados com plantas, é necessário conhecê-las muito bem. É preciso considerar, ainda, que os
fitoterápicos também podem causar efeitos colaterais.
PB – Mas é possível evitá-los?
Terezinha – Essa é uma de nossas preocupações. Não queremos repetir exatamente o que criticamos nos medicamentos
alopáticos, que são os efeitos colaterais desencadeados pela soma de substâncias que reagem entre si. Evitamos misturar
princípios ativos, que podem interagir e criar substâncias incompatíveis com o resultado que se almeja.
PB – A pesquisa que a projetou foi a da planta popularmente conhecida como cabacinha ou buchinha. Por que a senhora se
interessou por essa planta?
Terezinha – Havia muitas informações populares a respeito de suas funções terapêuticas. Quando fui para São Paulo fazer o
doutorado, em 1959, levei várias plantas para selecionar qual seria o objeto de meu estudo. Uma delas foi a Luffa operculata,
nome científico da cabacinha, que ocorre em todo o Brasil e é usada para tratar sinusite, rinite alérgica e adenóide. Só consegui
a fórmula depois de 20 anos de pesquisa, mas hoje ela é o carro-chefe do Programa de Fitoterapia da universidade e é
aplicada em dois medicamentos – um de uso pediátrico e outro para adultos.
PB – Por que levou tanto tempo?
Terezinha – A cabacinha, cujo tipo mais potente é o que cresce aqui no nordeste, possui um alcalóide corrosivo, que tivemos
muito trabalho para isolar. Sabíamos que o uso popular pressupunha a fervura de apenas um oitavo do fruto para inalação e
ainda assim causava sangramentos.
PB – A senhora patenteou a fórmula?
Terezinha – Não, porque o processo é muito complicado e caro no Brasil. Os pesquisadores não têm recursos para patentear
suas fórmulas. Recentemente, foi editada uma lei de amparo aos fitoterápicos que prevê o monitoramento do uso pela Anvisa,
mas nada diz sobre patentes.
PB – E os laboratórios não se interessam pelas patentes?
Terezinha – É claro que sim. Existem laboratórios da Índia e da China querendo patentear nossas fórmulas. Os estrangeiros
levam nossas plantas, pesquisam e patenteiam lá fora. Os japoneses patentearam a babosa (Aloe vera) e estão tentando
patentear o Peumus boldus, o boldo brasileiro, porque descobriram que essa planta contém ácido acetilsalicílico, o princípio
ativo da aspirina.
PB – Por que o Brasil não consegue desenvolver mais essa área?
Terezinha – Nossa lei de patentes não dá cobertura para as universidades fazerem pesquisa, o que custa caro e demanda
tecnologia. A grande vantagem de países como Japão e China é a tecnologia. Eles têm meios de descobrir as substâncias das
plantas em minutos, enquanto nós levamos anos. Os poucos estudos que existem no Brasil são resultado do interesse de
pesquisadores abnegados. De qualquer modo, o governo brasileiro agora está mais voltado para os fitoterápicos, que inclusive
já são prescritos por médicos do SUS.
PB – Há resistência por parte dos médicos a receitar fitoterápicos?
Terezinha – No início, a resistência era incrível. Hoje, eles nos procuram. Vários médicos da nossa universidade tratam seus
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filhos aqui conosco e muitos pediatras recomendam o tratamento. Não se pode exigir que os médicos receitem fitoterápicos
porque eles não têm o mesmo embasamento que nós, farmacêuticos. Mas há receptividade. Tanto que estamos criando uma
disciplina para formar 400 médicos do Programa de Saúde da Família em Fitoterapia. A importância disso é enorme, pois os
fitoterápicos causam menos efeitos colaterais e são muito mais baratos, o que facilita o acesso da população ao tratamento.
PB – Por que demoramos tanto para começar a valorizar esses conhecimentos?
Terezinha – A fitoterapia é milenar, mas foi marginalizada no Brasil devido a interesses de multinacionais que perderiam
mercado para seus produtos alopáticos.
Todos os medicamentos têm um princípio ativo extraído das plantas ou, no caso dos alopáticos, sintetizado a partir do natural –
a vantagem das substâncias químicas é que podem ser produzidas em volume muito maior.
PB – A senhora acredita que a fitoterapia sozinha seria suficiente para tratar da saúde do brasileiro?
Terezinha – Aí é que está o ponto. A fitoterapia nunca vai nos fornecer a quantidade de princípios ativos suficiente para uma
grande indústria, até porque as plantas devem ser usadas racionalmente para não ser extintas, já que também não existe apoio
ao seu cultivo. Aqui no Maranhão temos uma pré-Amazônia, onde todas as plantas amazônicas poderiam ser cultivadas, mas,
em vez disso, elas estão desaparecendo.
PB – A participação desses medicamentos no mercado poderia ser maior, se houvesse incentivo?
Terezinha – Poderia ser muito ampliada de modo a complementar a medicina alopática. Um exemplo que o Brasil e todos os
outros países da América deveriam seguir é o de Cuba, que conheço bem porque fiz especialização na Universidade de
Havana. Eles têm uma flora com poucas espécies, não essa diversidade que temos aqui, e no entanto sabem aproveitá-la.
Grande parte dos medicamentos distribuídos em Cuba é à base de plantas medicinais.
PB – A UFMA envia regularmente alguns fitoterápicos para a China, que já a premiou por seu trabalho. Fale sobre esse
intercâmbio.
Terezinha – Esse programa começou em 2001 e foi especialmente útil em 2003, para combater o surto de pneumonia asiática.
Mandamos três medicamentos para a China, mas o principal é o xarope de urucum (Bixa orellana), utilizado no tratamento da
doença. Foi por essa fórmula, que inclusive passamos para eles, que recebi o prêmio. Mas também enviamos aos chineses a
tintura de assa-peixe (Vernonia ruficoma), desenvolvida para os diabéticos que não podem ingerir o xarope, e a essência da
cabacinha, para aliviar sintomas da pneumonia, como congestão nasal e dificuldade para respirar.
PB – Como se iniciou esse relacionamento com os chineses?
Terezinha – A embaixada da China no Brasil soube do nosso trabalho e nos procurou. Atualmente, a UFMA mantém convênio
com universidades chinesas para pesquisa e fabricação de medicamentos. Eles têm comprado quase toda a produção dos
agricultores que cultivam urucum no Brasil para fazer o xarope.
PB – E como surgiu a idéia de criar hortas comunitárias de ervas medicinais no Maranhão?
Terezinha – Assim que concluí a faculdade, em 1957, comecei a visitar as invasões, onde se concentram os migrantes do
interior do estado. Eles se mudam para a capital em busca de melhor qualidade de vida, mas acabam ocupando áreas
inóspitas da cidade, como os mangues, de terras inférteis, onde é impossível manter a tradição maranhense do cultivo de ervas
medicinais. Queria criar condições para eles continuarem se tratando da maneira como estavam acostumados. Hoje, há mais
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de 40 desses hortos no estado.
PB – Como funcionam esses hortos atualmente?
Terezinha – Eles são criados de acordo com a demanda da comunidade, que encaminha pedido à pró-reitoria de extensão, à
qual o programa está vinculado. A equipe vai até o local e seleciona uma área, depois que os moradores responderam a duas
perguntas: qual o tipo de doença mais comum na comunidade e quais as ervas medicinais que já cultivam. É um trabalho de pé
no chão. Mas os hortos surgiram também da necessidade de obtermos matérias-primas isentas de agrotóxicos – para o
controle de pragas, usamos inseticidas naturais, feitos a partir das próprias plantas.
PB – Como é o Programa de Fitoterapia da UFMA?
Terezinha – Na universidade, tratamos e orientamos de 8 mil a 10 mil pessoas por ano, de todas as classes sociais. Temos
programas dirigidos a três públicos: crianças, terceira idade e adolescentes (jovens e meninos de rua, principalmente, que
entram muito cedo na vida sexual, contraem doenças sexualmente transmissíveis e não têm como se tratar porque os
medicamentos tradicionais são caríssimos). Para os idosos, criamos a Universidade da Terceira Idade, que ministra cursos de
fitoterapia específicos para a faixa etária, com duração de seis meses, portanto, duas vezes por ano. Nós os ensinamos a
preparar medicamentos caseiros para os males característicos da idade, como reumatismo e artrite. O atendimento e a
orientação se baseiam sempre em levantamento sobre os principais problemas de saúde de cada público.
PB – Esse programa funciona em outros estados?
Terezinha – Sim, já ministrei cursos para agentes de saúde em Xapuri, no Acre, trabalho pelo qual fui premiada na Inglaterra.
Também dei cursos em Manaus e em vários estados do país. Enfim, levei essa experiência ao Brasil inteiro e diversas
universidades já a adotam, como a Federal de Viçosa (MG), a Federal do Ceará, a Federal Rural de Pernambuco. Trocamos
muitas informações e mudas de plantas para pesquisa.
PB – Há também um trabalho nas escolas do Maranhão, não é?
Terezinha – Estamos começando a criar hortas em áreas não aproveitadas das escolas de ensino médio. O Liceu Maranhense
já tem mais de 80 plantas diferentes. Vou até lá, faço as consultas, e eles começam a usar os produtos. Já temos 69 fórmulas
abertas para a comunidade, todas regulamentadas.
PB – Como funciona o atendimento a pacientes com HIV?
Terezinha – Esse trabalho foi iniciado em 1982, em Campinas, a partir da experiência de uma professora da Venezuela com a
chanana (Turnera ulmifolia), que ocorre em todo o Brasil, mas Campinas trabalhava com a chanana do nordeste, que tem mais
concentração de princípio ativo por causa do clima tropical. Ela era usada sob a forma de chá. Anos depois, em 1990, comecei
a fazer a tintura, que tem maior poder terapêutico. A tintura de chanana é energética e melhora o estado geral e a qualidade de
vida do paciente, mas não cura a doença. Utilizamos 12 produtos fitoterápicos para tratar de infecções oportunistas que
resultam da deficiência imunológica, como pneumonia e estomatite, de modo a substituir os medicamentos alopáticos, que
podem trazer ainda mais efeitos colaterais, além dos provocados por aqueles destinados a combater especificamente o HIV.
PB – A UFMA tem milhares de plantas catalogadas. Como esse trabalho começou?
Terezinha – Temos uma horta modelo no próprio campus. E o Herbário Ático Seabra, criado em janeiro de 1984, do qual sou
curadora. No herbário, registrado internacionalmente, há 10,8 mil espécies catalogadas, ou seja, toda a flora maranhense,
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graças ao apoio do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico].
PB – Quais são as doenças mais comumente tratadas por meio da fitoterapia?
Terezinha – Aqui em São Luís, que fica numa ilha, onde há muita variação climática, as principais são as doenças do sistema
respiratório, como bronquite, asma, rinite, adenóide, sinusite, para as quais temos resultados muito significativos, assim como
para pneumonia, tuberculose, gastrite e diarréia.
PB – A senhora publicou dois livros: Fitogeografia das Plantas Medicinais no Maranhão e 50 Chás Medicinais da Flora do
Maranhão. Pretende escrever mais algum?
Terezinha – No momento, continuo orientando monografias. Já orientei 280, só na graduação, cinco de mestrado e fui coorientadora em dois doutorados na Universidade Federal de Mato Grosso. Tenho 75 anos, atendo diariamente a população, e
acho que já está na hora de parar o trabalho acadêmico
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