Dinâmica da formação do sintoma devaneando com

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A DINÂMICA DA FORMAÇÃO DO SINTOMA: devaneando com Doctor Freud
Anelise Hauschild Mondardo1
Era uma manhã fria. Previsivelmente fria; um dos invernos mais rigorosos dos últimos
tempos. O dia, porém, prometia ser caloroso, estranhamente caloroso. Dobrei a esquina em
direção à rua Bergasse 19 e, por um instante, fiquei sem ar. Minhas pernas paralisaram. Era só
o que faltava, pensei, um ataque histérico agora, justo agora, a alguns instantes de encontrarme com Doctor Freud. Aliás, ele já devia estar a minha espera. Se a gagueira me impedisse de
falar, apelaria para as fórmulas protetoras tão usadas por Emmy Von N e diria: “Te organiza,
respira fundo e vai”.
Meus pensamentos foram interrompidos. A porta se abriu. Fui gentilmente convidada a
entrar e aguardar. Não podia acreditar: estava sentada à frente de sua escrivaninha – nossa,
para que tantas estatuetas? – e olhando para aquele divã. Vem cá, aquilo que cobre o divã, é
um tapete? Será que eu posso deitar? Não tive tempo de pensar em qualquer resposta; o cheiro
de charuto tomou conta do ambiente. Feliz estava eu de ter o olfato a salvo.
Pois bem, minha jovem, o que a traz aqui?, perguntou-me ele.
Estou aqui para te conhecer, ou melhor, te entrevistar. Sou analista em formação do CEP
e desejo compreender a dinâmica da formação do sintoma. Li os casos clínicos conduzidos por ti
e por Breuer, aqueles apresentados no trabalho “Estudos sobre a Histeria” de 1895, lembras?
Ora bolas, que pergunta mais infeliz, como poderia ele esquecer aqueles casos cuja
análise simplesmente inauguraram a Psicanálise? Li em seus olhos o apaixonamento por todas
aquelas senhoras e senhoritas histéricas.
Evidente, minha jovem, disse-me ele. Lembro-me em detalhes de cada análise, de cada
uma delas. E prossegiu: esta reflexão, também a fiz. Intrigava-me o fato de que o fenômeno
1
Psicóloga, membro provisório do CEPdePA.
histérico acometia jovens mulheres admiráveis, inteligentes e talentosas. Como podiam ser
classificadas como degeneradas? Não, não me parecia justo. Aliás, esse foi nosso desafio:
investigar a psicogênese da histeria. A percepção de que eram mulheres cujas dores psíquicas se
transformavam em dores físicas, forneceu-nos uma pista: o sintoma histérico era um símbolo
mnêmico de um sofrimento; o que repremiam em suas mentes, explodia em seus corpos.
Mas não estaria ligado ao desejo, às fantasias inconscientes? perguntei.
Sorrindo, Doctor Freud respondeu: Calma, minha jovem. Paciência e preseverança são
fundamentais na investigação analítica. Para compreender a dinâmica da formação do sintoma
histérico – disse ele, numa espécie de devaneio – observei e compreendi como ele se extinguia.
Já com Anna O, percebemos que se, durante a hipnose, ela conseguisse: “[...] narrar as
alucinações que tivera no decorrer do dia, despertava com a mente desanuviada e alegre.”
(p.63); e que: “[...] ficava inteiramente aliviada depois que, trêmula de medo e horror, havia
reproduzido as imagens assustadoras e dado expressão verbal a elas.” (p.64).
Limpeza de chaminé, exclamei.
Isso mesmo. Mais tarde, percebi que os métodos de catarse e ab-reação, juntamente
com o de associação livre, permitiriam desvendar os enigmas da mente. Desde o início –
continuou ele – aprendi a observar pistas importantes nas reações mais sutis das pacientes. Por
exemplo, observei que Emmy Von N: “[...] por conta própria, descobria a causa de seu mau
humor do dia, encerrando-se numa reprodução razoalvelmente completa das lembranças e das
novas impressões que a afetavam e, muitas vezes de maneira bem inesperada, progredia até as
reminiscências patogênicas [...],desabafando sem ser solicitada.” (p.86). Nessa época, minha
conduta terapêutica era reduzir a importância dessas lembranças, por vezes apagá-las de sua
memória, além de corrigir idéias patogênicas. Intrigava-me o: “[...] interesssante constraste
entre uma obediência completa em tudo o que não se vinculasse com os sintomas e a
obstinação com que eles persistem, por estarem profundamente enraizados e serem
inacessíveis à analise.” (p.122). A Sra. Von N., às vezes, retinha parte da história, completando-a
apenas após minhas insistências. “Comecei a ter sérias dúvidas quanto à validade da sugestão e
da hipnose” (p.122), pois só: “[...] os sintomas de que fiz uma análise psíquica, foram de fato
eliminados de forma permanente.” (p.123). A hipótese de que os afetos pertinentes a um
grande número de experiências traumáticas tinham ficado retidos, mas cuja atividade de sua
“[...] memória fazia aflorar”, (p.123) não mais me parecia suficiente. Havia algum fator
adicional na irrupção dos sintomas.
A sexualidade? – indaguei, impulsivamente.
A própria, afirmou: “Dentre todas as informações íntimas que me foram dadas pela Sra
Von N., houve uma ausência completa do elemento sexual, que é, afinal de contas, passivel
mais do que qualquer outro de ocasionar traumas. Era impossivel que suas excitações nesse
campo não tivessem deixado quaisquer vestígios.” (p.124). O episódio da empregada
acompanhada de um homem no hotel, expurgada da memória, explicou a permanência da
gagueira. Uma história incompleta, não produz efeito terapêutico permanente. A peça que
completa o quebra-cabeça, via de regra, refere-se a um fator sexual: “Breuer e eu
comparávamos a sintomatologia da histeria com uma escrita pictografada que se torna
inteligível após a descoberta de algumas inscrições bilingues. Nesse alfabeto, estar doente
significa repulsa.” (p.146) e esta, geralmente associa-se a experiências ligadas à sexualidade.
E não estariam também ligadas ao desejo? – perguntei.
Pois é, disse ele, nesta época trabalhava com a hipótese da sedução. O desejo e as
fantasias infantis inconscientes só mais tarde foram por mim percebidos.
Absorta em suas explicações, continuei seu raciocínio dizendo: E este fator sexual,
fugindo à percepção consciente, liga-se, de maneira falsa, a outras lembranças, disfarçando
aquelas causadoras de repulsa, certo?
Rindo, prosseguiu Freud: A divisão da consciência tornava-se uma convicção. E nesta, o
fator sexual não está tão acessível à consciência quanto outras lembranças. Se o paciente diz
não saber, não lembrar, por um lado, é verdade; por outro, indica sua relutância em falar:
“Tenho observado que, quanto maior o esforço para recalcar alguma coisa, retirando-a da
cosnciência, maior a dificuldade de recorda.r” (p.150).
Então é por isto – continuei eu – que, na investigação da gênese do sintoma, a pimeira
pergunta a se fazer é se o próprio paciente tem consciência da origem e do fator precipitante de
sua doença e seguir, em sua companhia, a trilha pelo acervo de suas lembranças.
Sim – retrucou – e em: “[...] caso afirmativo, não se faz necessária nenhuma técnica
especial para permitir-lhe reproduzir a história de sua doença. O interesse que o médico
demonstra por ela, a compreensão que lhe permite sentir, as esperanças de recuperação que
lhe dá, tudo isso faz com que a paciente se decida a revelar seu segredo.” (p.155) Cheguei,
assim, ao processo que, mais tarde, transformei em um método regular e empreguei
deliberadamente: “[...] remover o material psiquico patogênico camada por camada [...]
gostávamos de compará-lo à tecnica de escavar uma cidade soterrada.” (p.155).
Cidade soterrada? – indaguei.
Sim, sobre as camadas mais superficiais das lembranças relatadas pelo paciente, há
sempre outra, mais profunda, cujo trabalho de recordação nunca é feito sem resistências, mas
quando completo é, definitivamente, recompensador para ambos, paciente e médico.
Analisemos Miss Lucy.
A paciente com alucinações olfativas de pudim queimado! – afirmei, com entusiasmo.
Pensei: estou adorando essa brincadeira de escavar a cidade soterrada.
Pois bem – disse ele – ao questioná-la sobre a ocasião em que sentira pela primeira vez
o cheiro de pudim queimado, narrou-me uma cena, cujo questionamento detalhado esmiuçou
um princípio básico da formação do sintoma histérico: uma sensação objetiva associa-se a
outra, subjetiva. O cheiro estava associado a chegada de uma carta e, esta a uma cena em que
dois afetos antagônicos entraram em conflito – sua tristeza por separar-se das crianças e as
razões pelas quais desejava abandonar o emprego. Deduzi, então, que: “[...] o conflito entre os
afetos promovera o momento da chegada da carta a categoria de um trauma, e a sensação de
cheiro associada a esse trauma persistiu como um símbolo” (p.135). A essa altura, eu já sabia,
pela análise de casos semelhantes, que antes de a histeria ser adquirida pela primeira vez, “[...]
uma
condição
especial
precisa
ser
preeenchida:
uma
representação
precisa
ser
intencionalmente recalcada da consciência e excluída das modificações associativas. Em minha
opinião, esse recalcamento intencional constitui a base para a conversão total ou parcial da
soma de excitação” (p.135).
E neste caso, que representação era esta? – perguntei.
Pois arrisquei um palpite e interpretei seu amor pelo patrão.
Eufórica, indaguei: e qual foi a reação dela?
Curiosamente, concordou, embora tenha alegado não saber, ou melhor, disse não queria
saber, que desejava tirar isso da cabeça e não pensar mais no assunto. Apesar desta revelação,
continuou desanimada e deprimida.
Então, – prossegui eu, no meu mais novo espírito investigativo – se o sintoma não se
extinguira, haveriam mais camadas de lembranças, certo?
Para minha surpresa, a paciente revelou-me que agora era importunada não mais pelo
cheiro de pudim queimado, mas por um cheiro de fumaça. Só após muita insitência, lembrou-se
de mais uma cena: a cena em que o contador; ao tentar despedir-se das crianças com um beijo,
despertou a irritação do patrão, assustando a paciente; ambos estavam, nesta ocasião,
fumando charuto: “Essa portanto, foi uma segunda cena, mais profunda que, à semelhança da
primeira, funcionou como um trauma e deixou atrás de si um simbolo mnêmico.” (p.138): o
cheiro de fumaça. Mas Miss Lucy ainda reservava mais uma surpresa: uma terceira cena, mais
antiga, e que ofereceu à cena do contador sua potência traumática. Lembrou-se de uma
ocasião em que a fúria do patrão, recaindo sobre ela após uma senhora ter beijado as crianças
na boca, dissipara suas esperanças amorosas. “Foi obviamente a lembrança dessa cena aflitiva
que lhe veio, quando o contador tentou beijar as crianças e foi repreeendido pelo pai destas
últimas.” (p.139). Miss Lucy, após essa lembrança, recuperou-se.
Bom, Doctor Freud, estou entendendo que, para a irrupção da histeria, uma
incompatibilidade entre o ego e alguma ideia a ele apresentada torna-se a condição
fundamental; “[...] o método histérico de defesa, pois, reside na conversão da excitação em uma
inervação somática.” (p.140).
E mais – disse ele – a vantagem disso é que a ideia incompatível é forçada para fora do
ego consciente. Em troca, “[...] essa consciência guarda, então, a reminiscência física surgida
por meio da conversão (neste caso, as sensações subjetivas do olfato da paciente) e sofre por
causa do afeto que se acha ligado precisamente àquela reminiscência.” (p.140). Teorizando,
diria:
[...] o momento traumático real, portanto, é aquele em que a incompatibilidade se
impõe sobre o ego e em que este último decide repudiar a idéia incompatível. Essa
idéia não é aniquilada por tal repúdio, mas apenas recalcada no inconsciente. Quando
esse processo ocorre pela primeira vez, passa a existir um núcleo e centro de
cristalização para a formação de um grupo psíquico divorciado do ego – um grupo em
torno do qual tudo o que implicaria uma aceitação da idéia incompatível passa, então,
a se reunir. (p.141)
O desejo é eliminar uma ideia como se nunca houvesse existido, mas tudo o que se
consegue fazer é isolá-la psiquicamente.
As histéricas sofrem de reminiscências, suspirei.
Eis outro princípio básico para a formação do sintoma – prosseguiu ele: a ideia é de que
seja o momento traumático real aquele que impõe ao ego a incompatibilidade, mas são os
momentos auxiliares, reagrupando temporariamente as impressões na consciência, que geram
a necessidade da conversão. Um exemplo dessa dinâmica? Katharina, uma jovem de 18 anos,
acometida por sérios episódios de falta de ar. Questionada, lembrou-se de uma cena em que
avistou, da janela do quarto, o ato sexual de seu tio com uma mulher. Somente após um
intervalo de incubação, é que os sintomas histéricos irromperam.
Lendo em meu semblante minha confusão, continuou: Estimulada a prosseguir em suas
lembranças, narrou-me dois grupos de histórias mais antigas: as investidas sexuais do tio contra
ela própria e uma situação ambígua com o mesmo. Na ocasião, tinha 14 anos e não
compreendeu o que estava acontecendo. Já sabíamos que em: “[...] todas as análises de casos
de histeria baseados em traumas sexuais, as impressões do período pré-sexual que não
produziram nenhum efeito na criança, atingem um poder traumático, numa data posterior,
como lembranças,quando a moça ou mulher casada adquire uma compreensão da vida sexual.”
(p.150).
Os dois conjuntos de experiências sexuais foram os momentos traumáticos, e a cena da
descoberta do casal, o momento auxiliar? - arrisquei.
Exatamente:
Naquela ocasião, ela carregava consigo dois conjuntos de experiências de que se
recordava, mas não compreendia [...] Quando vislumbrou o casal no ato sexual,
estabeleceu de imediato uma ligação entre a nova impressão e aqueles dois conjuntos
de lembranças. Começou a compreendê-los e a rechaçá-los. Seguiu, então, um curto
período de incubação, após o qual os sintomas de conversão se instalaram. [...] Isto
solucionara o enigma. Ela não sentira repulsa pela visão das duas pessoas, mas pela
lembrança que aquela visão despertara, a saber, a investida do tio contra ela naquela
noite em que sentira o corpo dele. (p.148).
Na última cena (descoberta do casal), uma nova impressão forçou uma ligação
associativa entre o grupo de representações separadas do ego, conferindo a ela potencial
igualmente traumático.
Então, indaguei: o passado deixa um rastro traumático, mas é o presente que,
associando as lembranças e fornecendo-lhes sentido, coloca tudo em cena?
Doctor Freud, tragando seu charuto, confirmou.
Sorrindo, perguntei-lhe: e Elizabeth?
Não te é suficiente o que conversamos até agora? questionou-me.
Num misto de timidez e atrevimento, desafiei-o: posso? Posso eu tentar esboçar aqui,
agora, contigo, o raciocício analítico?
Por favor, vá em frente – respondeu, parecendo divertir-se com a situação:
24 anos, dores nas pernas e dificuldades para andar. Chamou tua atenção a expressão
de prazer e não de dor, ao pressionar a pele e os músculos hiperalgésicos de suas pernas, assim
como a alegria com que ostentava seus sintomas. A investigação da primeira camada de
lembranças foi uma decepção: não explicaram seus sintomas e não produziram efeito curativo.
A descoberta da primeira conversão revelou a associação entre as dores nas pernas e a figura
do pai: este costumava apoiar a perna machucada nessas regiões do corpo de Elizabeth. Bingo:
a zona histerogênica como um simbolo mnêmico. Entretanto, as dores continuaram. Foi a
lembrança da visita à estação das águas que forneceu a recompensa:
Esta moça sentia pelo cunhado uma ternura cuja aceitação na consciência deparara
com a resistência de todo o seu ser moral. Ela conseguiu poupar-se da dolorosa
convicção de que amava o marido da irmã induzindo fortes dores físicas em si mesma.
E foi nos momentos em que esta convicção procurou impor-se a ela (no passeio com o
cunhado [...] no banho e junto ao leito da irmã) que suas dores surgiram, graças à
conversão bem sucedida. (p.170).
Vê-la: “[...] rodopiando numa dança animada.” (p.172) foi a prova inquestionável de sua
melhora.
Conduzindo-me a porta, sem me dar outra chance de prosseguir, perguntou: Minha
jovem, só não compreendo por que, ao invés de estudar esses casos clínicos, não leste outros
textos em que faço esse raciocínio? Não te seria também interessante?
Sorrindo – respondi – Se o fizesse, jamais teria vivido este devaneio e jamais teria me
identificado, não só com tuas idéias, mas com os primeiros tempos de tua trajetória analítica. A
escrita desses casos clínicos revela um Freud descritivo, mas tranformando-se, pouco a pouco,
em analítico. E é exatamente neste momento da formação psicanalítica em que me encontro,
abandonando características anteriormente adquiridas em detrimento à construção de uma
identidade como psicanalista.
REFERÊNCIA
FREUD, S. Estudos sobre a Histeria. Casos clínicos. In: FREUD, Sigmund. Obras psicológicas
completas. Rio de Janeiro: Imago, 1986, p. 57-189. Trabalho original publicado em 1895.
(Edição Standard Brasileira, 2)
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