Jornal A Tarde, sexta-feira, 26/10/1979 Assunto: UMA VELHA AMIGA No meu tempo de menino já lá vão setenta e tantos anos - as causas de doença e de morte e os remédios eram muito diferentes dos atuais. E há para isto mil explicações. Parece que o que mais mudou foram os remédios, porque as doenças de hoje já existiam com outros nomes, embora algumas delas hajam sido superadas pelas que foram trazidas pelo progresso, como os acidentes, a violência, as intoxicações, a ansiedade, as neuroses. Morria-se de congestão, de quedas do coração, de doenças dos rins, de tifo... Agora a congestão tem o nome de derrame, de hemorragia, de embolia cerebral; a queda de coração, a morte repentina, umas vezes é parada cardíaca, outras vezes é infarto (ou enfarte) do miocárdio, devido a afecções das artérias coronárias. Se é verdade que praticamente desapareceram as hemoptises dos tísicos de antigamente, outras infecções desafiam a medicina, tanto quanto o velho câncer que no passado matava sob outros nomes. Para fugir às enfermidades do pulmão aconselhava-se a mudança de ares, que os médicos europeus diziam só ser eficaz em lugares a cem ou mais quilômetros das grandes cidades. Ninguém sabia que já era a poluição a causadora das tais enfermidades. Morre-se atualmente menos de infecções e mais de doenças chamadas degenerativas, como os canceres, as afecções circulatórias, porque se descobriram medicações mais eficazes para determinadas infecções e estas se podem evitar melhor, dadas as novas condições de vida, o conhecimento dos mecanismos de disseminação dos germens, as vacinas, etc. Um doutor em dia com os adiantamentos e os problemas da medicina, falaria de tudo isto com mais segurança e acerto. Minha conversa é a de um leigo que se lembra dos tempos em que foi médico. Agora, em relação aos remédios, não é preciso saber muita medicina para recordar quantas mudanças ocorreram. Fui contemporâneo do óleo de rícino e cheguei a torrá-lo com essência de quenopódio e calomelanos, numa mistura repulsiva que os meninos eram forçados a engolir com suco de laranja ou com açúcar, tudo inútil para disfarçar o gosto e a contextura nauseantes, para a cura dos vermes. E os cristéis (aliás, clisteres) e lavagens. A tintura de iodo também era outro martírio: como ardia nos cortes, nas feridas, da mesma maneira que os sinapismos de mostarda nas bronquites, as papas quentes, às vezes quentíssimas, para os furúnculos, ou as ventosas para as pleurisias. Os “congestos” levavam às sangrias. Os que padeciam de maleitas, de malária ou de paludismo tinham que engolir as cápsulas, feitas de amido, com fortes doses de quinino (no masculino). E este alcalóide, presente nalguns comprimidos junto com a aspirina, provocava, nas constipações ou resfriados, terríveis urticárias. Depois vieram tantas novas medicações, a começar pelas sulfas, pelos antibióticos e quanta coisa mais, que um esculápio antigo que ressuscitasse não saberia o que receitar e também não encontraria mais uma farmácia em que se pudesse aviar suas indicações ou laboratório que fizesse suas poções, seus julepos, suas pílulas. Esta conversa toda vem a propósito da aspirina. Este velho medicamento é talvez o único sobrevivente de velhas eras. Não se fala mais em iodo, em óleo de rícino, em permanganato, em pomada mercurial, em iodofórmio, em quinino, em clorofórmio, em óleo canforado, em beladona... As multinacionais enchem os mercados de mil outras coisas, mas somente as vitaminas, que não tão antigas, e a aspirina, persistem, resistindo galardamente a todas as inovações terapêuticas e a todas as teorias e hipóteses sobre as causas e os mecanismos das doenças. Não é somente para a dor de cabeça - um enigma para os doutores - que a aspirina se mostra insubstituível. Usada, desde algum tempo, para afecções do aparelho circulatório e do sangue, é de novo prescrita, nos meios médicos mais adiantados e científicos, para males que atingem a tantos em nossos dias. E a seu lado voltam, nos mesmos círculos, as sangrias com que se tratavam ou aliviavam as congestões cerebrais e pulmonares e outras síndromes circulatórias. É um consolo para os doentes, diante dos inegáveis adiantamentos da medicina e dos novos problemas com que esta se debate, sem acertar soluções. Mas por muitas razões, não deve ser usada ao talento de cada um: só os médicos competentes têm condições de prescrevê-la para um emprego racional e não prejudicial ao organismo. O que não se pode deixar é de celebrar a constância dessa velha amiga, a qual, do contrário da imensa maioria dos medicamentos, ainda tem a virtude de não fazer exigências excessivas à bolsa dos seus usuários.