CONTEXTO GLOBAL ATUAL, ECONOMIA CRIATIVA E COLABORATIVA Lala Deheinzelin, março 2013 “Um problema não pode ser solucionado com a mesma mente que o criou” Albert Einstein Vivemos hoje a emergência de novos modelos de desenvolvimento, em rede e sintetizados no conceito de “Economia Da Abundância”1. Esta abundância e a possibilidade de um futuro efetivamente sustentável resultam da passagem de milênios onde tudo se organizava em torno do material, tangível, finito para o mundo atual da centralidade de intangíveis, qual seja da sociedade em rede + economia criativa + processos colaborativos + riqueza multidimensional. A prosperidade pode ser partilhada por todos se for gerada por todos, a partir de seus muitos recursos, história, características, modos de viver. De suas potências, não das carências tantas vezes sublinhadas. O momento atual permite-nos perceber que a melhor forma de “lutar contra a pobreza” é revelar as riquezas existentes: identificar ativos e recursos, para além do financeiro, e como melhor aproveita-los. Nossa lógica: intangíveis e o crescimento exponencial A teoria de sistemas nos mostra o fenômeno da “emergência”: o processo pelo qual através de incontáveis interações dentro de um sistema simples, surge um novo sistema complexo, não controlado e com características próprias, não pertencentes ao sistema anterior. Isso caracteriza vida – e, portanto, todos os processos nos quais estamos imersos sejam eles biológicos ou sócioeconômicos. Dos átomos emergem as moléculas, destas formam-se compostos, deles emergem unidades vivas e assim por diante. Neurônios, que individualmente não tem cognição, quando articulados em rede produzem o mais bem acabado exemplo de propriedade emergente: a consciência. Algo semelhante está acontecendo na sociedade e na economia. Dos sistemas lineares, concentrados e controlados da política e economia tradicionais emergiram novos sistemas complexos, distribuídos, em rede. Neles buscaremos as chaves para viabilizar a geração de renda e qualidade de vida que o território necessita. São contextos nunca antes vividos 1 Veja Chris Anderson http://www.slideshare.net/Frankwatching/the-ecoonomics-of-abundance; Yochai Benkler. http://www.benkler.org/Benkler_Wealth_Of_Networks.pdf; P2P Foundation http://p2pfoundation.net/?title=Special%3ASearch&profile=default&search=%22economy+of+abundance%22&fulltext=Search Lala Deheinzelin, março 2013 pela humanidade, em que os avanços acontecem exponencialmente e ganha-se escala conectando uma diversidade de pequenas experiências ao nível micro. Isto é possível, pois o novo paradigma da centralidade dos intangíveis permite também passar de crescimento linear para crescimento exponencial. Que significa isso? No universo tangível, linear, 2 + 2 = 4, e toda nossa economia e política funcionam sobre esta premissa. Mas na soma de conhecimentos, nas múltiplas conexões que resultam das TICs, nos processos colaborativos que delas resultam e nas muitas formas de otimizar recursos que elas possibilitam verifica-se que 2 + 2 é bem mais que 4. Numa imagem apresentada por Peter Diamandis2 trinta passos lineares nos conduzem trinta metros além, enquanto trinta passos exponenciais (1,2,4,8, 16 etc) são um bilhão de metros ou 26 voltas no globo. Diz o inventor e futurista Ray Kurzweil3 “Devido à explosiva natureza do crescimento exponencial, o século XXI trará progressos equivalentes a 20.000 anos na velocidade atual de crescimento. Aproximadamente 1.000 vezes mais do que o século XX”. Crescimento exponencial como? O crescimento do PIB da China é um exemplo. Em um encontro de futuristas de 2009, os pontos focais da China, da rede de futuristas Millenium 4 Project , nos mostraram que: (1) A curva sobe em 1988, momento em que o país cria seu Plano Nacional de Inovação5, com foco não apenas em produtos, mas, sobretudo em processos. (2) De forma simplificada, o governo chinês considera dois tipos de poder, valor, tecnologias, ambientes: o hard (tangível, produtos) e o soft (intangível, processos)6. E a prioridade está no soft: criar ambiente favorável através de políticas (China é no 1 em incubadoras e empresas incubadas), educação, regulamentação, suporte institucional. Em “Abundance”, de Peter Diamandis, Free Press,pg 34. Veja estudo de Iolanda Évora em http://www.wfs.org/forecasts25/ http://www.millennium-project.org/. Sendo que a autora esta ligada à rede como fundadora do Núcleo de Estudos do Futuro, NEF. 5 Segundo PPT do Dr.Hu Shuhua, Wuhan University of Technology, http://www.pucsp.br/icim/portugues/downloads/programa_icim%202009.pdf 6 http://www.millennium-project.org/millennium/SoftTechnology.pdf 2 3 4 Lala Deheinzelin, março 2013 Combinando o fato que ativos intangíveis se multiplicam com o uso e o desafio do país de gerar riqueza para mais de um bilhão de pessoas, sem onerar tanto o meio ambiente, a Economia Criativa e Economia Verde fazem parte das dez prioridades estratégicas desde o plano quinquenal de 2005-20107. Uma questão central do presente documento é verificar se estamos cientes disto, priorizando e investindo nos elementos que permitem este crescimento exponencial, ou se ainda operamos com padrões do passado, que muitas vezes limitam nosso desenvolvimento sustentável. Ciclo virtuoso economia abundância da da Se no universo tangível, os dedos de nossa mão são apenas 5 + 5 = 10, no universo exponencial 5 5 = 15.625. Dar uma mão ao futuro fica mais fácil, além de possível: ganhamos escala exponencial de oportunidades, riqueza, tempo e conhecimentos, através de um ciclo virtuoso da abundância composto por quatro vetores ou pilares onde um tem o potencial de ativar o outro. E se estes vetores são em si mesmos infinitos e exponenciais, que dirá quando combinados. O primeiro é o dos recursos intangíveis (cultura, conhecimento, criatividade, atributos de marca), que não apenas não se esgotam como se renovam e multiplicam com o uso. Só esse fato já deveria fazer com que a economia criativa fosse prioridade estratégica – num momento em que o grande impasse é como seguir gerando renda e qualidade de vida se o planeta é um só, finito. Os atributos e características locais são um patrimônio precioso , a base para o branding do território, e uma vez reconhecidos irão gerar valor para todo tipo de produto e processo. Mas, se os átomos da Terra são finitos, os bits das novas tecnologias são o segundo pilar infinito. Com eles podemos criar muitos mundos virtuais e infinitas formas de potencializar, conectar, recriar e interagir. E isso gera o terceiro pilar: as infinitas formas em que a sociedade em rede se organiza, e produz. 7 http://www.worldbank.org/content/dam/Worldbank/document/China-2030-complete.pdf Lala Deheinzelin, março 2013 O quarto pilar é a chave para que de fato seja possível atuar com os pilares anteriores: uma visão multidimensional de riqueza, que simplificamos chamando Economia 4D, pois considera recursos e resultados não apenas na dimensão Financeira, mas também na Ambiental, Social e Cultural. Uma noção multidimensional de ativos ou recursos tem cada vez mais pesquisadores, como Katzman8 da CEPAL, Nações Unidas/Uruguai ou a equipe do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais 9 (INPE) do Brasil, buscando formas de medir a vulnerabilidade social e lidar com pobreza. Uma Economia da Abundância é possível, pois cada um destes pilares é infinito e ativa o outro, permite que ele deixe de ser potencial e se converta em realidade. O infinito 1, dos recursos intangíveis (cultura, conhecimento, criatividade, experiências), sempre existiu e é abundante em países e regiões consideradas “pobres”. Mas as novas tecnologias do infinito 2 fizeram com que se tornassem visíveis e acessíveis permitindo que seu potencial se concretize. A combinação dos dois infinitos gera o terceiro, aquele das novas formas de organizar pessoas, relações, empreendimentos, criação e produção, ou seja, a “sociedade em rede”. E finalmente, para viabilizar este processo precisamos “tangibilizar o intangível”: desenvolver métricas e indicadores que permitam reconhecer avaliar, trocar e monitorar recursos e resultados, para além do quantitativo / financeiro. E aqui está nosso quarto infinito: índices multidimensionais de riqueza. Por se tratar de outras lógicas de produção e distribuição os sistemas e ferramentas de mensuração e quantificação disponíveis não são ainda capazes de mensurar de fato a economia criativa e a economia colaborativa. Ganhando escala através da microeconomia local em rede Modelos da macroeconomia de escala tiveram sua importância e função na sociedade de massa, mas na sociedade do nicho e da diversificação são necessários outros. Nosso maior desafio é fazer esta mudança de paradigma: do foco no tangível, quantitativo (infraestrutura, mercado financeiro, competição) para o foco no intangível, qualitativo 8 http://www.eclac.cl/deype/mecovi/docs/TALLER5/24.pdf, ver anexo ou http://www.dpi.inpe.br/geocxnets/wiki/lib/exe/fetch.php?media=wiki:publications:anazawa_et_al_geografia_2012.pdf Lala Deheinzelin, março 2013 (economia criativa, novas tecnologias, colaboração). Devemos levar em conta as condições e características destes tempos, onde os cenários mudam tão rapidamente. A crise de 2008 leva a Espanha, em parte endividada por políticas focadas em infraestrutura, a uma severa crise. A Islândia10 por sua vez, ao investir no ciclo virtuoso dos intangíveis (economia criativa + TICs + foco no social) tornou-se referência mundial de recuperação pós-crise. Anualmente Hollywood produz 1.000 horas de conteúdo e tem uma audiência de 2.6 bilhões de pessoas. O Youtube, criado em 2005, produz essa quantidade de conteúdo em vinte e um minutos e tem essa mesma audiência em vinte e um dias. Neste novo cenário de futuro, a questão não é de escassez, mas de acessibilidade: revelar e ativar riquezas potenciais não acessadas é nosso principal objetivo e enfatizaremos a necessidade de mudanças culturais para que esse “Olhar para Abundância ” possa acontecer. Exemplos clássicos dessa lógica da abundância são energia e conhecimento. Não há escassez de energia, apenas não adotamos (ainda) as tecnologias para acessar plenamente a energia do sol, vento, marés, movimento humano. Em breve será possível ter a Enernet11, uma malha de distribuição de energia nos mesmos moldes da Internet.Não há escassez de conhecimento se reconhecermos o valor dos saberes e fazeres locais. Ou se utilizarmos as TICs para ampliar o acesso ao conhecimento global existente e ganhar escala somando microconhecimentos como fez a Wikipedia. Eis aí nossa chave: pela primeira vez na história da humanidade podemos ganhar escala através da integração de vários pequenos. Esta possibilidade também é interessante como etapa de transição, passível de implementação imediata, pois podemos avançar através da integração dos muitos, pequenos e diversos. É possível ir testando novos modelos até que as condições sejam suficientes para ampliar as ações para formatos mais “mainstream”, ou mesmo para que se tenha mais claro o impacto e funcionamento desta nova economia da abundância, colaborativa. A P2P Foundation, maior base de dados global sobre processos colaborativos em rede, fez um extraordinário estudo para a União Europeia, “Synthetic Overview of The Collaborative Economy12”, mostrando seu impacto sobre negócios, governos, sociedade civil. Para dar uma ideia do volume de recursos que ela pode movimentar citam um relatório de 2007 da Capital Trade para a American Computer and Communications Industry Association13, quantificando apenas os resultados de uso compartilhado de informações e sistemas digitais. Verifica a contribuição das indústrias apoiadas em “Fair Use” para a economia dos EUA chega a US$ 4.4 trilhões, ou um sexto do PIB. Como podemos acessar essa abundância latente? Conhecendo as novas práticas e ampliando nossos conceitos e paradigmas. Economia Criativa é gerar experiências únicas, 10 Uma entre muitas matérias. Note que na crise optaram por investir nas pessoas http://internacional.elpais.com/internacional/2012/03/09/actualidad/1331323885_752952.html 11 http://www.youtube.com/watch?v=cA811EPzwLI; http://www.fendel.com.br/enernet.html 12 http://p2pfoundation.net/Synthetic_Overview_of_the_Collaborative_Economy 13 http://www.wired.com/images_blogs/threatlevel/2010/04/fairuseeconomy.pdf. Página 6. Lala Deheinzelin, março 2013 que dependem de diversidade e hibridismo. A grande dificuldade, herança da colonização, é reconhecer aquilo que o território, sua gente e comunidades têm de único e próprio, pois este é seu maior patrimônio e normalmente não o vemos. Esta é tanto a grande dificuldade quanto a grande oportunidade. Não se trata apenas de desenvolver a cultura, mas sim de desenvolver o paíse seus territórios através da cultura. Recursos nas quatro dimensões da sustentabilidade Para lidar com o universo tecnonatural criamos ferramentas: métricas, moedas, indicadores, lentes para enxergar o macro e o micro. Lentes que foram úteis para dissecar e compreender o universo tangível, dos produtos e da forma, conduzindo a pensamento e ação analíticos, setorizados, compartimentados. No contexto da centralidade do intangível torna-se necessário o mesmo: outras métricas e formas de dar valor, “lentes” que permitam tangibilizar o intangível, enxergar abundância e diversidade. Da mesma forma que os óculos 3D nos permitem uma experiência sensorial de maior profundidade, necessitamos ”óculos” para compreender as dinâmicas do universo intangível (sociedade e cultura) através de processos, função, propósito. Uma visão sistêmica, sintética, convergente. Didaticamente chamaremos estes óculos de 4D, por tratarem de recursos, resultados, objetivos e processos sistêmicos, que considerem simultaneamente as quatro dimensões da sustentabilidade: as tangíveis (Dimensões Ambiental e Financeira) e as intangíveis (Dimensões Social e Cultural). Estas quatro dimensões se relacionam com o supracitado Ciclo Virtuoso da Economia da Abundância sistematizado a partir de observação de práticas bem sucedidas em gestão pública, empresas, ONGs, projetos. Por que são melhores práticas? Por que dinamizam e criam fluxos entre estas quatro dimensões, o que possibilita um contexto de sustentabilidade real. Se nosso objetivo final é gerar fluxos de recursos sociais, ambientais, culturais e Lala Deheinzelin, março 2013 financeiros. Para isso precisamos identificar o que há, quais os recursos 4D14 do território, e que podem ser conectados e intercambiados, gerando estes fluxos. Essa é nossa lógica: buscaremos sempre identificar os recursos, ou ativos 4D já existentes e como otimiza-los, lembrando sempre de considerar os excedentes, aquilo que é pouco usado ou desperdiçado. A Economia Criativa pode ser uma solução de desenvolvimento sustentável para o território, sendo um fator de avanço e competitividade para todas as áreas( não apenas aquelas ligadas à cultura) desde que se tenha uma ação integrada e transversal entre áreas. Esta necessidade de governança integrada é a grande fraqueza (pois geralmente está ausente), e a grande oportunidade, pois quando ela existe os avanços são enormes. Identificando excedentes e criando fluxos que os ativem criamos mercados internos e consequentemente viabilizamos a produção, que então pode expandir-se externamente. Trabalhar exclusivamente para o mercado externo não é aconselhável, pois gera uma riqueza que não está lastreada no cotidiano. Além disso, o Valor de um processo ou produto vai depender de que ele seja genuíno, significativo e diverso. E isso só acontece se fizer sentido também para público interno. Os sabores e saberes, celebrações e cultura do território devem ser antes desfrutados pela população e aí serão mais capazes de mobilizar a atenção externa. Conseideramos três campos de atuação, que vão em escala crescente de abrangência pavimentando o caminho para gerar negócios sustentáveis . O primeiro é o fomento das Artes e setores da Indústria Criativa, enquanto linguagens e setores.O segundo campo, que talvez mereça mais o nome “Economia Criativa”, são os valores e atributos gerando valor a todo tipo de produto e serviço. O terceiro é o da mudança cultural, de mentalidade pessoal e institucional, para que se possa de fato aproveitar o “atraso” e transformá-lo em oportunidade, qual seja pular o século XX e ir direto para o século XXI com sua nova economia baseada em intangíveis, TICs e processos colaborativos. Essa mudança cultural não necessariamente implica ruptura com paradigmas anteriores, mas sim ampliação. 14 Considerando recursos de conhecimentos, espaços ociosos, atributos do país, permutas, horas de trabalho, etc. Mais informações sobre esta abordagem em http://laladeheinzelin.com.br/wp-content/uploads/2012/09/Economia-Criativa-%C3%B3culos-4-D-e-umam%C3%A3ozinha-para-ter-futuros-sustent%C3%A1veis.pdf Lala Deheinzelin, março 2013