Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 . 210 LITERATURA, MÚSICA ERUDITA E POPULAR NO MODERNISMO BRASILEIRO Ernandes Gomes Ferreira1 [email protected] Resumo Este artigo propõe apresentar a necessidade dos diálogos entre a cultura erudita e a cultura popular, no âmbito da literatura e da música modernista, bem como os diálogos entre as artes como fundamentação da proposta artística do Modernismo, que teve seu início na Semana de Arte Moderna, em 1922. Os intelectuais ligados à literatura, que foram os principais mentores desse movimento, pautavam as suas renovações na valorização da cultura brasileira no diálogo com as artes, sendo uma das principais a música. Palavras-chave: Diálogos culturais; Diálogos artísticos; Modernismo. Abstract This article intends to show the necessity of dialogue between classical and popular culture inside modernist literature and music, and the dialogue between the different arts, which has as starting mark the Semana de Arte Moderna, in 1922. The main literary intellectuals of this artistic movement sustained their revolutionary propositions on a great importance for Brazilian culture and on the dialogue among the arts, with emphasis on music. Keywords: Cultural dialogues; Artistic dialogues; Modernism. A MÚSICA NO INÍCIO DO SÉCULO XX As manifestações e estilos da música sempre foram muito diversificados. As facetas da música que utilizaremos nesse artigo dizem respeito à música erudita, produzida num cenário acadêmico e ligada a uma classe artística intelectualizada, bem como à música popular, produzida por pessoas ligadas à classe baixa, moradoras dos grandes centros urbanos. É importante notar, que esses segmentos sociais não são estanques e que essas manifestações dialogam entre si e com outras formas de expressão artística. No início do século XX, os jovens músicos brasileiros eruditos provocaram discussões e polêmicas sobre a estética da música. E assim como nas outras artes, eles refletiam e se aproximavam da proposta do Modernismo brasileiro, pois retratavam a dinâmica social das camadas populares. Os compositores brasileiros aproximaram-se cada vez mais da cultura popular. Villa-Lobos, Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga e outros buscavam em suas criações a mistura e o espelhamento na cultura popular brasileira, 1 Professor de Língua portuguesa do SESI. Formado em Letras pela Universidade Estadual de Maringá e acadêmico de Licenciatura em Música na Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 . 211 principalmente a africana, como elemento nacionalista e original. Também podemos exemplificar no contexto musical as contrariedades ideológicas que ocorreram na pintura e na literatura: de um lado os mantenedores de ideias tradicionalistas, e de outro, proponentes de ideias renovadoras. Os músicos eruditos do novo estilo se voltaram para a música popular buscando nela uma representação do Brasil. Ela enriqueceu a música erudita e influenciou a poesia modernista brasileira, servindo de ponte entre essas duas manifestações. Nesse trânsito, agrupava novas informações da música e da literatura erudita, favorecendo a modernização e a renovação dessas manifestações. Muitos estudiosos trataram desse assunto, demonstrando as múltiplas influências entre elas. Em relação à música erudita, há o esclarecedor estudo O coro dos contrários (1977), de José Miguel Wisnik, professor de literatura, compositor e teórico musical, um pensador que ampliou o entendimento das relações entre a literatura e a música. Há nesse estudo um propósito de estabelecer relações contextuais entre esse gênero musical e a literatura modernista. Outros estudos mais minuciosos fazem essa aproximação com mais exemplos e definindo tanto os diversos estilos modernistas, quanto os diversos estilos de canção, como é o caso de Santuza Cambraia das Naves, em O violão azul (1998). Nesse esforço de explicitar os pontos de contato dessas duas linguagens artísticas, há também os estudos do linguista, professor e compositor Luiz Tatit, que auxiliou na teorização da canção popular como gênero autônomo. No Modernismo, devemos levar em consideração os músicos que chegaram a ter contato e participação direta no movimento modernista, cujos principais representantes são Villa-Lobos, Darius Milhaud e Luciano Gallet. Foram relevantes nesse movimento, figuras que normalmente ficam à margem da configuração do cenário musical: os instrumentistas e os cantores eruditos. Os compositores e instrumentistas tiveram extensa recepção crítica, inclusive dos poetas modernistas, no que diz respeito à execução de obras compostas no Brasil e na Europa, e foram agentes culturais que disseminaram as novas ideias musicais da época. A crítica dos poetas relativa a músicos eruditos agitava o pensamento da época e possibilitava uma aproximação entre a música e a literatura, pois mesmo que os músicos não estivessem engajados na causa do movimento, eles participaram na execução e na divulgação do novo pensamento artístico brasileiro, apresentando a música moderna brasileira aos europeus e vice-versa. Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 . 212 A MÚSICA ERUDITA NO BRASIL A música modernista brasileira teve influência e influenciou a música erudita europeia, que como nas artes plásticas, passava por um momento de transformação intensa, principalmente na sua estrutura harmônica. O Impressionismo na música teve como nome principal o compositor francês Debussy. A sua estética foi uma das responsáveis pela finalização do tonalismo e pelo prenúncio do atonalismo, teorizado em obras como o Tratado Harmonia (1917), do austríaco Arnold Schoenberg. Esse livro é um marco no início da música atonal e propõe o modelo dodecafônico para teorizar a harmonia atonal, que toma visibilidade com compositores como Igor Stravinsky na composição Sagração da Primavera (1913). No Brasil, as discussões são mais influenciadas pelo politonalismo francês, na figura de Darius Milhaud, que propõe a sobreposição de tonalidades na música. O padrão tonal predominou na música erudita ocidental desde o século XVII. O tonalismo chegou aos seus limites com as obras Richard Wagner, como Tristão e Isolda (1865), que se desenvolve em uma tensão, em que o ouvinte não encontra claramente o centro tonal da resolução. Um retrato da chegada de tais mudanças do início do século no Brasil, se encontra no livro O coro dos contrários (1977), de José Miguel Wisnik, no qual ele apresenta um panorama da música ligada à Semana de Arte Moderna, partindo do programa de um poema-sinfônico que se intitularia Brasil, programa de autoria de Coelho Neto. Para Wisnik, Coelho Neto propôs, passo a passo, como deve ser a composição do poema-sinfônico, contendo a história do Brasil, desde a descoberta até a Independência. O escritor sugere uma música descritiva, a partir de seu argumento textual, inserida num viés ideológico que passa uma imagem “eufórica” do Brasil, fundindo a história e a música brasileiras por meio da literatura. Sobre o programa, diz Wisnik: se trata de um texto representativo, exemplar e, pelo que procurarei mostrar, um texto que contém as coordenadas básicas da discussão em torno da música na época do movimento modernista. Nele se apresenta claramente, do ponto de vista de um escritor, em um contexto pré-modernista, uma concepção de música unida a uma concepção do Brasil, consistindo no esforço principal a união explícita de uma concepção à outra num só projeto. Temos, portanto, uma tentativa marcadamente ideológica de fazer a música responder a interesses sociais, de aparelhá-la conceitualmente (revestindo-a de “literatura”) para que ela desempenhe uma determinada função (WISNIK, 1977, p. 21). A imagem de Brasil que Coelho Neto propõe em seu programa tem raízes no Romantismo musical europeu – no que tange ao conceito de música como uma linguagem universal – e no nacionalismo regionalista representado por Monteiro Lobato. Esse Romantismo reflete uma concepção de música que os compositores europeus como Wagner, Liszt e Mendelssohn tinham: de que a música pura reina sobre as outras artes, pois é uma linguagem superior, fala aos sentidos sem passar pelo crivo da razão: é a “linguagem Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 . 213 dos sentimentos”. Esse raciocínio também está presente no conceito de música programática: Ela é frequentemente concebida, então, como linguagem original, a linguagem primeira, a forma de expressão mais “natural” entre todas, oferecendo-se como o canal próprio para a espontânea expansão da sensibilidade. Essa hierarquização das artes que faz a música reinar sobre todas desenvolve-se, no entanto, em duas direções: alguns pensadores veem na música pura o ideal de uma expressão não referencial dos sentimentos, de uma arte conectada ao espírito mas não representativa: em outros pensadores, e especialmente em alguns compositores, a música é vista como a arte capaz de traduzir o texto poético e de incluir em si, com vantagem, a capacidade figurativa de outras artes. É o segundo caso, evidentemente, que conduz à música programática (WISNIK, 1977, p. 26). A partir dessa concepção de música programática, Coelho Neto propõe um programa para a composição de um poema sinfônico, uma música programática que passasse uma imagem harmoniosa do país. Isso estaria atrelado a um nacionalismo acrítico e idealizado, reforçando a união pacífica das três raças, para mostrar aos europeus um amadurecimento, ao mesmo tempo, musical e civil do Brasil. Coelho Neto dá diretrizes de como o poema sinfônico, forma comum no Romantismo musical, deve ser inserido numa atmosfera idealizada. Por exemplo, a representação do índio em um paraíso natural, o português como figura central, detentor exclusivo do sentimento, o negro cantando sua terra; em suma, o mito das três raças tristes, retratado em melodias suaves e saudosas, onde a harmonia entre exploradores e explorados toma o lugar dos conflitos na formação da nação. Assim, o autor do programa dá “elaboração culta” aos “motivos populares”, utilizando-se desses motivos para “fortalecer os símbolos institucionais da Nação” (WISNIK, 1977, p. 25). Nesse ponto, o nacionalismo do prosador é semelhante ao de Olavo Bilac, retratado no soneto intitulado Música brasileira: Tens, às vezes, o fogo soberano Do amor; encerras na cadência, acesa Em requebros e encantos de impureza, Todo o feitiço do pecado humano Mas sobre essa volúpia erra a tristeza Dos desertos, das matas e do oceano: Bárbara poracê, banzo africano, E soluços de trova portuguesa. És samba e jongo, chiba e fado, cujos Acordes são desejos e orfandades De selvagens, cativos e marujos: E em nostalgias e paixões consistes, Lasciva dor, beijo de três saudades, Flor amorosa das três raças tristes (apud: WISNIK, 1977, p. 58) Bilac associa a cultura indígena ao primitivo, o africano à tristeza e o português à saudade. Privilegia-se a convivência harmônica entre o índio, o negro e o português, Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 . 214 procurando, como Coelho Neto, omitir ou amenizar os conflitos e tensões que existiram na formação do país. Outra ideia ultrapassada de Brasil presente nos romances de Coelho Neto é a que separa a condição social do homem do campo da do homem da cidade, privilegiando este como símbolo da civilização, num retrato ideologicamente convergente com o do Jeca Tatu de Lobato. Wisnik chama de esquizofrênica a postura do autor do projeto, pois há uma tentativa de assimilar vozes díspares, uma intelectual narrando e outra dos personagens, homens rústicos, retratando a sintaxe e o vocabulário do homem do campo, separando-o como objeto exótico (WISNIK, 1977, p. 27). Coelho Neto diverge da proposta modernista, pois esta considera a miscigenação brasileira mais cosmopolita, procurando por em contato a cultura popular e a erudita. Contrapondo-se ao conceito musical romântico de Coelho Neto, o autor do Prefácio Interessantíssimo (1922) expõe uma “aproximação entre os processos de simultaneidade na poesia e os procedimentos harmônicos e polifônicos na música” (WISNIK, 1977, p. 32). Mas a música não é vista como programática por Mário de Andrade, e sim como parte do processo de composição poética, suas “alusões musicais passam a constituir o texto poético, ao fazer parte dele servindo a desenvolvimentos paródicos” (WISNIK, 1977, p. 32). Assim, as renovações estéticas musicais, que tiveram entre seus representantes Claude Debussy e Igor Stravinsky, ecoam na literatura modernista na conceituação de uma nova poética, que sugere uma reestruturação formal espelhada em conceitos musicais que, por sua vez, também passam por uma renovação. MODERNISMO MUSICAL NO BRASIL Villa-Lobos, músico que participou polemicamente da Semana de Arte Moderna, com composições, apresentações e combinando chinelos com fraque, utiliza em suas obras elementos sonoros mais próximos do estilo de Debussy, Bartók e Stravinsky (com o qual teve contato na Europa), que afetam a estrutura harmônica e primam por elementos estranhos, violentos, estridentes e fortíssimos (WISNIK, 1977, p. 36). O compositor busca, desde o início de sua carreira, o retrato de um Brasil composto por diferentes raças. Para tanto, funde a sugestão de Debussy, a força de acordes que não seguem a estrutura harmônica tradicional, com melodias de cantigas populares e folclóricas. Ele buscava a valorização do país utilizando elementos da cultura popular, não como elemento exótico, mas como parte da composição. Pelo título das peças, percebe-se essa preocupação: Danças africanas (1914), Amazônia (1917), Lenda do caboclo (1920), a série de Choros (1924-1926) entre outras. Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 . 215 Coelho Neto faz a leitura de um texto sobre Villa-Lobos, no intervalo de um concerto com obras desse músico, em 1925, questionando-o como músico, devido a uma declaração do próprio compositor em entrevista à revista Nosotros, da Argentina. A propósito desse questionamento, Manuel Bandeira se manifesta na crônica Villa-Lobos: um concerto em duas críticas, argumentando claramente a favor da qualidade musical do compositor brasileiro e contrapondo-se ao romancista (BANDEIRA, 1997, p. 236). O que leva Coelho Neto a não considerar Villa-Lobos como músico, segundo as palavras do próprio compositor na entrevista concedida à revista argentina, é o mesmo motivo que leva Bandeira a exaltá-lo em sua crítica: o estranhamento e a força na música do compositor, pois sua música é “uma festa de timbres, uma golfada de ritmos, onde os motivos selvagens constituem o substrato de humanidade profunda que sustenta o edifício sonoro” (BANDEIRA, 1997, p. 236). Como sintetiza Wisnik, Villa-Lobos já incorporava em suas obras elementos estranhos, devidos ao gosto pelas estridências e fortíssimos, violências veristas suportadas frequentemente por uma estrutura tonal, permeada, no entanto, por influências colhidas em Debussy, que afetam mais profundamente a estrutura harmônica tradicional (WISNIK,1977, p. 36). Esse compositor brasileiro agrada aos modernistas e é reconhecido pelos tradicionalistas, com certas ressalvas, o que dá à sua obra caráter revolucionário, representativo dos ideais modernistas e respeitabilidade artística, a partir de preceitos estéticos europeus. O brasileiro não se restringe ao desenvolvimento harmônico de tensão e relaxamento, dados pelos intercâmbios de tônica e dominante, ou seja, a um romantismo na maioria das vezes tomado pelo seu lado menor, torna-se impossível aceitar, em princípio, as texturas sonoras das peças de Villa-Lobos, empenhado muitas vezes na exploração de atritos harmônicos e timbrísticos (WISNIK,1977, p. 36). A atmosfera musical modernista também conta com a presença de europeus no Brasil, como a passagem de Darius Milhaud pelo Rio de Janeiro em 1917-1918. O músico agitou o pensamento dos críticos e compositores brasileiros, ampliou a música modernista no Brasil, em conceito e repertório, pois deu relevância a compositores brasileiros que utilizavam dos tangos brasileiros e maxixes, como Ernesto Nazareth e Marcelo Tupinambá. Vale lembrar, que esses ritmos não eram aceitos facilmente pelas elites intelectuais da época, apesar de apresentações musicais como a da primeira dama Nair Teffé, que executou o Corta Jaca, de Chiquinha Gonzaga, no palácio do Catete (VIANNA, 2007, p. 46). Além disso, o compositor francês teve um contato com Oswald Guerra, compositor, e Nininha, instrumentista e esposa de Guerra, principalmente pelo interesse que esses dois brasileiros tinham pela música modernista francesa, e aprofundaram o conhecimento de Milhaud na obra de seu mestre Eric Satie (WISNIK, 1977, p. 40). Esse casal teve influência Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 . 216 no pensamento do compositor francês e participava ativamente da vida musical carioca. Villa-Lobos foi outro compositor influenciado pela devoção do casal à música francesa. Foram eles, por exemplo, que apresentaram o Grupo dos Seis ao compositor brasileiro, do qual Milhaud fez parte e que foi comandado por Jean Cocteau e Eric Satie. Darius Milhaud não trouxe à cena somente os músicos instrumentistas e compositores para se relacionarem e tomarem conhecimento das inovações francesas: ele criticou a ignorância de alguns compositores em relação ao folclore do Brasil. Ernesto Nazareth e Marcelo Tupinambá são bem vistos pelo músico francês, por que utilizam a politonalidade em suas músicas. Wisnik observa que nos “tangos” de Nazareth há a junção dos contratempos e dos movimentos cromáticos no baixo, que alternam em relações intervalares de tônica (I grau da escala diatônica), dominante (V grau) e subdominante (IV grau) utilizando-se da musica tonal (nos caminhos melódicos e cromáticos do baixo) para desconstruí-la nos contratempos rítmicos e no cromatismo que afeta as relações harmônicas (WISNIK, 1977, p. 48). Seria desejável que os músicos brasileiros compreendessem a importância dos compositores de tangos, de maxixes, de sambas e de cateretês como Tupinambá ou o genial Nazareth. A riqueza rítmica, a fantasia indefinidamente renovada, a verve, a vivacidade, a invenção melódica de uma imaginação prodigiosa, que se encontram em cada obra desses dois mestres, fazem deles a glória e a preciosidade da Arte Brasileira (apud: WISNIK, 1977, p. 45). Um dos interesses do compositor francês é aproximar a atitude dos jovens compositores brasileiros à dos compositores franceses, buscando uma originalidade que não estivesse ligada aos compositores russos, como Stravinsky, nem aos alemães, como Schoenberg. A música brasileira incita a renovação da música francesa, pois possui elementos perturbadores do sistema tonal, estabelecendo uma renovação diferente da de Schoenberg, por incitar o politonalismo, “apresentar simultaneamente duas ou mais tônicas em atrito; e expor várias tonalidades minando a tonalidade não sucessivamente (por modulação cromática), mas simultaneamente (por aglomerados politonais)” (WISNIK, 1977, p. 47). Milhaud observa que “Cantos populares brasileiros, melodias do carnaval do Rio de Janeiro ligam-se, aí, da mais simples maneira, a duas, três e uma vez mesmo a quatro tonalidades” (WISNIK, 1977, p. 48). Luciano Gallet e Ernesto Nazareth, compositores de formação erudita que são valorizados por Milhaud, sobressaem-se por composições que alcançam o ideal modernista da utilização da cultura popular, não somente como tema, mas como técnica também: Da maneira pela qual se definirão as relações entre a técnica erudita e a técnica inerente ao material popular, dependerá a meu ver, o alcance da estilização, mais efetiva quando elementos técnicos da música popular afetam realmente a matriz construtiva da obra, e não quando servem de mero material (WISNIK, 1977, p. 50). Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 . 217 Entretanto, muitos músicos e compositores participaram do movimento musical em torno da Semana de Arte Moderna. Compositores que eram considerados velhos, com sessenta anos, como Henrique Oswald e Francisco Braga; e músicos com aproximadamente trinta anos, como Villa-Lobos e Luciano Gallet; homenageados como Glauco Velazques, que foi professor de Gallet. E nomes ligados a outras gerações que darão prosseguimento às renovações do início do século XX: Ernani Braga, Fructuoso Vianna, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, Radamés Gnatalli e Luis Cosme. Muitos desses compositores estarão em contato direto com poetas modernistas, fazendo inclusive música baseada em seus poemas, como é o caso de Guarnieri para a obra de Bandeira. Para fazer um balanço das discussões que permeiam o universo musical do modernismo, podemos retomar as diferenças entre os pensamentos de Coelho Neto e VillaLobos. A estética proposta por este está mais próxima do pensamento modernista brasileiro que da concepção de música wagneriana daquele. Para os poetas modernistas, a música é um caminho didático utilizado para propor uma renovação da linguagem artística, em uma poética envolvida socialmente. Há também nesse entrelace, a questão da nacionalidade expressa no folclore, e da necessidade deste ser absorvido pela cultura erudita. Esse interesse pela música aparece na estruturação de poemas, em crônicas e críticas sobre concertos e composições publicadas em revistas especializadas, como é o caso do periódico Ariel. Assunto das cartas entre Mário de Andrade e Manuel Bandeira, a revista auxilia o desenvolvimento crítico do pensamento modernista. Villa-Lobos, o músico que esteve mais próximo dos modernistas, se embrenha na música moderna, ampliando seu universo de materiais sonoros, e na música de caráter selvagem e folclórica, mescla-as modernamente na adoção de “técnicas cosmopolitas concomitantes com a representação de um mundo mágico e selvagem” (WISNIK, 1977, p. 167), procurando um equilíbrio entre a cultura popular e erudita. Suas composições iniciais exemplificam, na prática, as ideias modernistas de renovação artística e estética, com o aproveitamento das características da música popular como tema e na elaboração de uma técnica renovadora. Isto, pois VillaLobos: avançava significativamente no interior da perspectiva ideológica, exatamente porque, com novos materiais que libera, dá um caráter novo à ideia de um “país novo”, o que serve a fazer mais convincente o horizonte de suas potencialidades, ainda que escandalize alguns parnasianos mais recalcitrantes (WINSIK, 1977, p. 170-171). Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 . 218 A MÚSICA POPULAR DA MODERNIDADE Tendo em vista o quanto a cultura popular auxiliou nos eixos estéticos e temáticos do pensamento modernista, localizaremos o contexto da música popular no início do século XX, no qual a dinâmica da modernidade se manifesta tanto na elite artística, quanto nos artistas populares da época. Ambos tinham contatos diretos e indiretos entre si, em críticas de periódicos e encontros na boemia. O ambiente da modernidade, com o funcionamento de fábricas, o ritmo da cidade, a reconfiguração da população – pela imigração e pelo êxodo rural – e o surgimento de novas tecnologias, são fatores comuns a todos que vivem nos grandes centros urbanos, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro do início do século XX. Esse amálgama propicia a construção de uma ideia de identidade brasileira, pautada na nova organização social e nas intersecções entre a cultura popular e a cultura erudita. Em O mistério do samba (2007), o antropólogo Hermano Vianna procura localizar a consolidação do samba como símbolo da identidade brasileira ou da “brasilidade”, pois o ritmo que é um cadinho do lundu africano e da polca europeia propicia um ponto de contato entre pessoas de classes diferentes. Vianna inicia seu livro com um encontro entre intelectuais modernistas e músicos populares relatado por Gilberto Freyre, uma reunião boêmia na qual estão presentes o próprio Freyre, antropólogo, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda, o poeta Prudente de Morais Neto e os músicos Villa-Lobos, Luciano Gallet, Pixinguinha e Donga. Gilberto Freyre é uma das referências de Vianna para a construção de um pensamento de brasilidade. Na época do encontro com Pixinguinha, Freyre estava elaborando Casa-grande e senzala (1933). O primeiro encontro entre o músico e o antropólogo foi quando este viu o outro tocar. Esse primeiro contato foi mediado por Sérgio Buarque, que conhecia Donga, um dos integrantes dos Oito Batutas, que entre outras companhias de boemia, teve ao seu lado os referidos modernistas cariocas do círculo de Bandeira. Outro importante encontro propiciado pelo historiador foi o de Blaise Cendrars com Pixinguinha, que levou o grupo de samba desse chorão a uma turnê internacional. Nos anos que se seguem à Semana de Arte Moderna, muitas crônicas de Gilberto Freyre tomam como exemplo de brasilidade a cultura negra nascente no Rio de Janeiro, conseguintemente, a de sua música popular. A definição de identidade brasileira e de brasilidade é discutida por Freyre a partir do contraponto entre “dois brasis”, como as outras dualidades do modernismo: um que está pautado pelo modelo europeu, e outro mais autêntico, que é exemplificado por Vianna com o surgimento do samba: Quando falo, talvez um tanto forçadamente, em grande mistério, não me refiro aos problemas que muitos pesquisadores da música popular brasileira gostam de debater: a origem etimológica da palavra samba; o local de nascimento do samba; a identidade dos primeiros sambistas; ou mesmo a lista Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 . 219 completa dos compositores de Pelo Telefone, tido como o “primeiro” samba. Penso especificamente na transformação do samba em ritmo nacional brasileiro, em elemento central para a definição da identidade nacional, da “brasilidade” (VIANNA, 2007, p. 28). Sem um projeto de renovação, como o dos modernistas, mas inserido num contexto em que a construção de uma identidade brasileira era a preocupação de intelectuais e políticos, o samba começa a tomar forma e, assim como o movimento modernista, teve um momento de recusa social, por ser proveniente dos terreiros e de uma cultura de classe baixa, e outro de aceitação e exaltação, chegando a símbolo nacional da identidade brasileira. Os motivos de recusa e de aceitação do samba e do modernismo têm diferentes repercussões. Ambos revolucionam e chocam a sociedade em diferentes instâncias. O modernismo desestrutura o pensamento acadêmico que, por sua vez, se abre à transposição e à difusão da cultura popular a outras classes sociais, não a restringindo num espaço marginalizado. O primeiro é negado intelectualmente e o segundo socialmente. E ambos são negados pelo pensamento burguês novecentista e conservador de uma ideologia ligada aos modelos estéticos europeus do século XIX. A inovação do samba através do sincretismo rítmico permite o contato da classe popular com a classe intelectual, e a renovação intelectual valoriza esse contato porque enriquece as proposições de renovação dos modernistas. A música popular foi bastante utilizada pelos intelectuais em debates sobre o que é a cultura brasileira. Mário de Andrade e Gilberto Freyre a viam como forte característica do Brasil e do espírito nacional, pois ela possibilita a interação social. Partindo do pensamento de Antônio Candido, que valoriza na música a sua possibilidade de transpor barreiras sociais, Hermano Vianna conclui que ela serve “de elemento unificador ou de canal de comunicação para grupos bastante diversos na sociedade brasileira” (VIANNA, 2007, p. 33-34). A relação entre a classe intelectual brasileira e a música popular aparece em vários momentos da história do Brasil, como por exemplo, no século XVIII, quando o compositor brasileiro Domingos Caldas Barbosa faz sucesso nos salões aristocráticos de Lisboa com as modinhas brasileiras. No final do século XIX, a fama da canção popular brasileira acompanha Catulo da Paixão Cearense, que reivindica seu espaço na literatura acadêmica e na música popular sertaneja. Esse modinheiro e poeta, depois de trabalhar como estivador, está presente em salões e saraus lítero-musicais frequentados pela alta sociedade. Catulo desenvolve suas canções com temas sertanejos e nortistas. Seu reconhecimento musical o leva ao Instituto Nacional de Música, onde tem contato com músicos como Alberto Nepomuceno. Influente no meio intelectual e empenhado na música popular, Catulo auxilia na divulgação de músicos como Donga, Pixinguinha e Heitor dos Prazeres, que até então restringiam suas criações ao âmbito da casa da Tia Ciata, na Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 . 220 década de 1910, que era frequentada, entre outros, pelo “poeta do sertão” (VIANNA, 2007, p. 51). Essa casa era um refúgio dos músicos populares e, portanto, um dos agentes culturais que propiciaram a união de ritmos presentes na cultura brasileira. Em O século da canção (2004), o estudioso Luiz Tatit diz ser a canção um “território livre, muito frequentado por artistas híbridos que não se consideravam nem músicos, nem poetas, nem cantores, mas um pouco de tudo isso e mais alguma coisa” (TATIT, 2004, p. 12). Esse território livre é onde se encontram os cancionistas e de onde se origina uma das mais ricas criações da modernidade: a canção, considerada no fim do século XX como um gênero autônomo. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesse turbulento início do século XX nascem transformações que se estendem até o século XXI. As mudanças artísticas e sociais, a população urbana periférica numerosa, negra, recém-emancipada, que em sua cultura mistura polcas, lundus e batuques de Candomblé e Umbanda, que se misturam no fundo das casas das “Tias” baianas, entre outros fatos, estabelecem uma identidade cultural urbana. Levando essa mistura para a rua e futuramente para o rádio e, dali, para o Brasil, o cancionista se profissionaliza e a invenção de um produto cultural consolida (VIANNA, 2007, p. 33). Essa profissionalização fomenta o tema da unidade e da diversidade no Brasil, que encontra em sua capital um centro cultural, econômico e político. A partir disso, podemos ter uma dimensão do contexto histórico e dos intercâmbios que ocorreram no início do século XX. Outro contato bastante caro ao intercâmbio entre os intelectuais modernistas e os representantes da cultura popular é a atividade do poeta francês Blaise Cendrars, considerado pelos próprios modernistas uma influência para o aprofundamento da cultura popular e folclórica. Um exemplo dessa influência é o Manifesto Pau-Brasil (1924), de Oswald de Andrade, dedicado ao poeta francês. Cendrars é considerado pelos modernistas como um guia para a redescoberta do Brasil. Entretanto, os estudos dos novos artistas, voltados para a sua cultura popular, datam de antes disso. O que, provavelmente, esse poeta francês incitou foi uma nova reflexão sobre a cultura popular e o nacionalismo brasileiros. O contato com artistas estrangeiros auxiliou na consolidação da consciência dos artistas brasileiros, populares ou intelectuais. Tanto Manuel Bandeira e Mário de Andrade quanto Donga e Pixinguinha entraram em contato com Blaise Cendrars e Darius Milhaud. Estes levaram o choro para a Europa e conheceram de perto a cultura afrobrasileira, utilizando-a em suas propostas renovadoras e incitando os modernistas brasileiros a utilizarem-na também. Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 . 221 Diante desses fatos, podemos inferir que há muitos diálogos entre a música erudita, a música popular e a literatura na formação do pensamento modernista que, por sua vez, propunha o diálogo entre as artes e o diálogo entre as culturas popular e erudita, consolidando ambas. Assim, podemos observar a formação de uma arte genuinamente brasileira, no âmbito erudito ou popular, estabelecendo seus próprios padrões mediante esses diálogos. Vê-se, ao longo do século XX, o desdobramento dessas propostas modernistas, que se manifestam na poesia concreta, no movimento tropicalista, na poesia marginal, na música de protesto, no Quarteto Novo, no Baião, no Mangue Beat entre outras tantas manifestações e diálogos que reforçam a cultura brasileira e suas facetas. REFERÊNCIAS BANDEIRA, Manuel. In: GUIMARÃES, Júlio Castañon (Org.). Seleta de Prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. ______.; ANDRADE, Mário. Correspondência. (org. Marcos Antônio Moraes) São Paulo: Edusp, 2001. CÂNDIDO, Antônio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 5. ed. São Paulo: Nacional, 1976. NAVES, Santuza Cambraia. O violão azul: modernismo e música popular. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1998. TATIT, Luiz. O século da canção. Cotia: Ateliê Editorial, 2004. VIANA, Hermano. O mistério do samba. 6. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. WISNIK, José Miguel. O coro dos contrários: a música em torno da Semana de 22. São Paulo: Duas Cidades, 1977.