literatura, música erudita e popular no modernismo brasileiro

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Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 .
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LITERATURA, MÚSICA ERUDITA E POPULAR
NO MODERNISMO BRASILEIRO
Ernandes Gomes Ferreira1
[email protected]
Resumo
Este artigo propõe apresentar a necessidade dos diálogos entre a cultura erudita e a cultura
popular, no âmbito da literatura e da música modernista, bem como os diálogos entre as
artes como fundamentação da proposta artística do Modernismo, que teve seu início na
Semana de Arte Moderna, em 1922. Os intelectuais ligados à literatura, que foram os
principais mentores desse movimento, pautavam as suas renovações na valorização da
cultura brasileira no diálogo com as artes, sendo uma das principais a música.
Palavras-chave: Diálogos culturais; Diálogos artísticos; Modernismo.
Abstract
This article intends to show the necessity of dialogue between classical and popular culture
inside modernist literature and music, and the dialogue between the different arts, which has
as starting mark the Semana de Arte Moderna, in 1922. The main literary intellectuals of this
artistic movement sustained their revolutionary propositions on a great importance for
Brazilian culture and on the dialogue among the arts, with emphasis on music.
Keywords: Cultural dialogues; Artistic dialogues; Modernism.
A MÚSICA NO INÍCIO DO SÉCULO XX
As manifestações e estilos da música sempre foram muito diversificados. As facetas
da música que utilizaremos nesse artigo dizem respeito à música erudita, produzida num
cenário acadêmico e ligada a uma classe artística intelectualizada, bem como à música
popular, produzida por pessoas ligadas à classe baixa, moradoras dos grandes centros
urbanos. É importante notar, que esses segmentos sociais não são estanques e que essas
manifestações dialogam entre si e com outras formas de expressão artística.
No início do século XX, os jovens músicos brasileiros eruditos provocaram
discussões e polêmicas sobre a estética da música. E assim como nas outras artes, eles
refletiam e se aproximavam da proposta do Modernismo brasileiro, pois retratavam a
dinâmica social das camadas populares. Os compositores brasileiros aproximaram-se cada
vez mais da cultura popular. Villa-Lobos, Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga e outros
buscavam em suas criações a mistura e o espelhamento na cultura popular brasileira,
1
Professor de Língua portuguesa do SESI. Formado em Letras pela Universidade Estadual de Maringá e
acadêmico de Licenciatura em Música na Escola de Música e Belas Artes do Paraná.
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principalmente a africana, como elemento nacionalista e original. Também podemos
exemplificar no contexto musical as contrariedades ideológicas que ocorreram na pintura e
na literatura: de um lado os mantenedores de ideias tradicionalistas, e de outro, proponentes
de ideias renovadoras.
Os músicos eruditos do novo estilo se voltaram para a música popular buscando nela
uma representação do Brasil. Ela enriqueceu a música erudita e influenciou a poesia
modernista brasileira, servindo de ponte entre essas duas manifestações. Nesse trânsito,
agrupava novas informações da música e da literatura erudita, favorecendo a modernização
e a renovação dessas manifestações.
Muitos estudiosos trataram desse assunto, demonstrando as múltiplas influências
entre elas. Em relação à música erudita, há o esclarecedor estudo O coro dos contrários
(1977), de José Miguel Wisnik, professor de literatura, compositor e teórico musical, um
pensador que ampliou o entendimento das relações entre a literatura e a música. Há nesse
estudo um propósito de estabelecer relações contextuais entre esse gênero musical e a
literatura modernista. Outros estudos mais minuciosos fazem essa aproximação com mais
exemplos e definindo tanto os diversos estilos modernistas, quanto os diversos estilos de
canção, como é o caso de Santuza Cambraia das Naves, em O violão azul (1998). Nesse
esforço de explicitar os pontos de contato dessas duas linguagens artísticas, há também os
estudos do linguista, professor e compositor Luiz Tatit, que auxiliou na teorização da canção
popular como gênero autônomo.
No Modernismo, devemos levar em consideração os músicos que chegaram a ter
contato e participação direta no movimento modernista, cujos principais representantes são
Villa-Lobos, Darius Milhaud e Luciano Gallet. Foram relevantes nesse movimento, figuras
que normalmente ficam à margem da configuração do cenário musical: os instrumentistas e
os cantores eruditos. Os compositores e instrumentistas tiveram extensa recepção crítica,
inclusive dos poetas modernistas, no que diz respeito à execução de obras compostas no
Brasil e na Europa, e foram agentes culturais que disseminaram as novas ideias musicais da
época.
A crítica dos poetas relativa a músicos eruditos agitava o pensamento da época e
possibilitava uma aproximação entre a música e a literatura, pois mesmo que os músicos
não estivessem engajados na causa do movimento, eles participaram na execução e na
divulgação do novo pensamento artístico brasileiro, apresentando a música moderna
brasileira aos europeus e vice-versa.
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A MÚSICA ERUDITA NO BRASIL
A música modernista brasileira teve influência e influenciou a música erudita
europeia, que como nas artes plásticas, passava por um momento de transformação
intensa, principalmente na sua estrutura harmônica. O Impressionismo na música teve como
nome principal o compositor francês Debussy. A sua estética foi uma das responsáveis pela
finalização do tonalismo e pelo prenúncio do atonalismo, teorizado em obras como o
Tratado Harmonia (1917), do austríaco Arnold Schoenberg. Esse livro é um marco no início
da música atonal e propõe o modelo dodecafônico para teorizar a harmonia atonal, que
toma visibilidade com compositores como Igor Stravinsky na composição Sagração da
Primavera (1913).
No Brasil, as discussões são mais influenciadas pelo politonalismo francês, na figura
de Darius Milhaud, que propõe a sobreposição de tonalidades na música. O padrão tonal
predominou na música erudita ocidental desde o século XVII. O tonalismo chegou aos seus
limites com as obras Richard Wagner, como Tristão e Isolda (1865), que se desenvolve em
uma tensão, em que o ouvinte não encontra claramente o centro tonal da resolução. Um
retrato da chegada de tais mudanças do início do século no Brasil, se encontra no livro O
coro dos contrários (1977), de José Miguel Wisnik, no qual ele apresenta um panorama da
música ligada à Semana de Arte Moderna, partindo do programa de um poema-sinfônico
que se intitularia Brasil, programa de autoria de Coelho Neto. Para Wisnik, Coelho Neto
propôs, passo a passo, como deve ser a composição do poema-sinfônico, contendo a
história do Brasil, desde a descoberta até a Independência. O escritor sugere uma música
descritiva, a partir de seu argumento textual, inserida num viés ideológico que passa uma
imagem “eufórica” do Brasil, fundindo a história e a música brasileiras por meio da literatura.
Sobre o programa, diz Wisnik:
se trata de um texto representativo, exemplar e, pelo que procurarei mostrar, um texto que contém as
coordenadas básicas da discussão em torno da música na época do movimento modernista. Nele se
apresenta claramente, do ponto de vista de um escritor, em um contexto pré-modernista, uma
concepção de música unida a uma concepção do Brasil, consistindo no esforço principal a união
explícita de uma concepção à outra num só projeto. Temos, portanto, uma tentativa marcadamente
ideológica de fazer a música responder a interesses sociais, de aparelhá-la conceitualmente
(revestindo-a de “literatura”) para que ela desempenhe uma determinada função (WISNIK, 1977, p. 21).
A imagem de Brasil que Coelho Neto propõe em seu programa tem raízes no
Romantismo musical europeu – no que tange ao conceito de música como uma linguagem
universal – e no nacionalismo regionalista representado por Monteiro Lobato. Esse
Romantismo reflete uma concepção de música que os compositores europeus como
Wagner, Liszt e Mendelssohn tinham: de que a música pura reina sobre as outras artes, pois
é uma linguagem superior, fala aos sentidos sem passar pelo crivo da razão: é a “linguagem
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dos sentimentos”. Esse raciocínio também está presente no conceito de música
programática:
Ela é frequentemente concebida, então, como linguagem original, a linguagem primeira, a forma de
expressão mais “natural” entre todas, oferecendo-se como o canal próprio para a espontânea expansão
da sensibilidade. Essa hierarquização das artes que faz a música reinar sobre todas desenvolve-se, no
entanto, em duas direções: alguns pensadores veem na música pura o ideal de uma expressão não
referencial dos sentimentos, de uma arte conectada ao espírito mas não representativa: em outros
pensadores, e especialmente em alguns compositores, a música é vista como a arte capaz de traduzir o
texto poético e de incluir em si, com vantagem, a capacidade figurativa de outras artes. É o segundo
caso, evidentemente, que conduz à música programática (WISNIK, 1977, p. 26).
A partir dessa concepção de música programática, Coelho Neto propõe um programa
para a composição de um poema sinfônico, uma música programática que passasse uma
imagem harmoniosa do país. Isso estaria atrelado a um nacionalismo acrítico e idealizado,
reforçando a união pacífica das três raças, para mostrar aos europeus um amadurecimento,
ao mesmo tempo, musical e civil do Brasil. Coelho Neto dá diretrizes de como o poema
sinfônico, forma comum no Romantismo musical, deve ser inserido numa atmosfera
idealizada. Por exemplo, a representação do índio em um paraíso natural, o português como
figura central, detentor exclusivo do sentimento, o negro cantando sua terra; em suma, o
mito das três raças tristes, retratado em melodias suaves e saudosas, onde a harmonia
entre exploradores e explorados toma o lugar dos conflitos na formação da nação. Assim, o
autor do programa dá “elaboração culta” aos “motivos populares”, utilizando-se desses
motivos para “fortalecer os símbolos institucionais da Nação” (WISNIK, 1977, p. 25). Nesse
ponto, o nacionalismo do prosador é semelhante ao de Olavo Bilac, retratado no soneto
intitulado Música brasileira:
Tens, às vezes, o fogo soberano
Do amor; encerras na cadência, acesa
Em requebros e encantos de impureza,
Todo o feitiço do pecado humano
Mas sobre essa volúpia erra a tristeza
Dos desertos, das matas e do oceano:
Bárbara poracê, banzo africano,
E soluços de trova portuguesa.
És samba e jongo, chiba e fado, cujos
Acordes são desejos e orfandades
De selvagens, cativos e marujos:
E em nostalgias e paixões consistes,
Lasciva dor, beijo de três saudades,
Flor amorosa das três raças tristes (apud: WISNIK, 1977, p. 58)
Bilac associa a cultura indígena ao primitivo, o africano à tristeza e o português à
saudade. Privilegia-se a convivência harmônica entre o índio, o negro e o português,
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procurando, como Coelho Neto, omitir ou amenizar os conflitos e tensões que existiram na
formação do país.
Outra ideia ultrapassada de Brasil presente nos romances de Coelho Neto é a que
separa a condição social do homem do campo da do homem da cidade, privilegiando este
como símbolo da civilização, num retrato ideologicamente convergente com o do Jeca Tatu
de Lobato. Wisnik chama de esquizofrênica a postura do autor do projeto, pois há uma
tentativa de assimilar vozes díspares, uma intelectual narrando e outra dos personagens,
homens rústicos, retratando a sintaxe e o vocabulário do homem do campo, separando-o
como objeto exótico (WISNIK, 1977, p. 27).
Coelho Neto diverge da proposta modernista, pois esta considera a miscigenação
brasileira mais cosmopolita, procurando por em contato a cultura popular e a erudita.
Contrapondo-se ao conceito musical romântico de Coelho Neto, o autor do Prefácio
Interessantíssimo (1922) expõe uma “aproximação entre os processos de simultaneidade na
poesia e os procedimentos harmônicos e polifônicos na música” (WISNIK, 1977, p. 32). Mas
a música não é vista como programática por Mário de Andrade, e sim como parte do
processo de composição poética, suas “alusões musicais passam a constituir o texto
poético, ao fazer parte dele servindo a desenvolvimentos paródicos” (WISNIK, 1977, p. 32).
Assim, as renovações estéticas musicais, que tiveram entre seus representantes Claude
Debussy e Igor Stravinsky, ecoam na literatura modernista na conceituação de uma nova
poética, que sugere uma reestruturação formal espelhada em conceitos musicais que, por
sua vez, também passam por uma renovação.
MODERNISMO MUSICAL NO BRASIL
Villa-Lobos, músico que participou polemicamente da Semana de Arte Moderna, com
composições, apresentações e combinando chinelos com fraque, utiliza em suas obras
elementos sonoros mais próximos do estilo de Debussy, Bartók e Stravinsky (com o qual
teve contato na Europa), que afetam a estrutura harmônica e primam por elementos
estranhos, violentos, estridentes e fortíssimos (WISNIK, 1977, p. 36).
O compositor busca, desde o início de sua carreira, o retrato de um Brasil composto
por diferentes raças. Para tanto, funde a sugestão de Debussy, a força de acordes que não
seguem a estrutura harmônica tradicional, com melodias de cantigas populares e folclóricas.
Ele buscava a valorização do país utilizando elementos da cultura popular, não como
elemento exótico, mas como parte da composição. Pelo título das peças, percebe-se essa
preocupação: Danças africanas (1914), Amazônia (1917), Lenda do caboclo (1920), a série
de Choros (1924-1926) entre outras.
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Coelho Neto faz a leitura de um texto sobre Villa-Lobos, no intervalo de um concerto
com obras desse músico, em 1925, questionando-o como músico, devido a uma declaração
do próprio compositor em entrevista à revista Nosotros, da Argentina. A propósito desse
questionamento, Manuel Bandeira se manifesta na crônica Villa-Lobos: um concerto em
duas críticas, argumentando claramente a favor da qualidade musical do compositor
brasileiro e contrapondo-se ao romancista (BANDEIRA, 1997, p. 236).
O que leva Coelho Neto a não considerar Villa-Lobos como músico, segundo as
palavras do próprio compositor na entrevista concedida à revista argentina, é o mesmo
motivo que leva Bandeira a exaltá-lo em sua crítica: o estranhamento e a força na música do
compositor, pois sua música é “uma festa de timbres, uma golfada de ritmos, onde os
motivos selvagens constituem o substrato de humanidade profunda que sustenta o edifício
sonoro” (BANDEIRA, 1997, p. 236). Como sintetiza Wisnik, Villa-Lobos
já incorporava em suas obras elementos estranhos, devidos ao gosto pelas estridências e fortíssimos,
violências veristas suportadas frequentemente por uma estrutura tonal, permeada, no entanto, por
influências colhidas em Debussy, que afetam mais profundamente a estrutura harmônica tradicional
(WISNIK,1977, p. 36).
Esse compositor brasileiro agrada aos modernistas e é reconhecido pelos
tradicionalistas, com certas ressalvas, o que dá à sua obra caráter revolucionário,
representativo dos ideais modernistas e respeitabilidade artística, a partir de preceitos
estéticos europeus. O brasileiro não se restringe
ao desenvolvimento harmônico de tensão e relaxamento, dados pelos intercâmbios de tônica e
dominante, ou seja, a um romantismo na maioria das vezes tomado pelo seu lado menor, torna-se
impossível aceitar, em princípio, as texturas sonoras das peças de Villa-Lobos, empenhado muitas
vezes na exploração de atritos harmônicos e timbrísticos (WISNIK,1977, p. 36).
A atmosfera musical modernista também conta com a presença de europeus no
Brasil, como a passagem de Darius Milhaud pelo Rio de Janeiro em 1917-1918. O músico
agitou o pensamento dos críticos e compositores brasileiros, ampliou a música modernista
no Brasil, em conceito e repertório, pois deu relevância a compositores brasileiros que
utilizavam dos tangos brasileiros e maxixes, como Ernesto Nazareth e Marcelo Tupinambá.
Vale lembrar, que esses ritmos não eram aceitos facilmente pelas elites intelectuais da
época, apesar de apresentações musicais como a da primeira dama Nair Teffé, que
executou o Corta Jaca, de Chiquinha Gonzaga, no palácio do Catete (VIANNA, 2007, p. 46).
Além disso, o compositor francês teve um contato com Oswald Guerra, compositor, e
Nininha, instrumentista e esposa de Guerra, principalmente pelo interesse que esses dois
brasileiros tinham pela música modernista francesa, e aprofundaram o conhecimento de
Milhaud na obra de seu mestre Eric Satie (WISNIK, 1977, p. 40). Esse casal teve influência
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no pensamento do compositor francês e participava ativamente da vida musical carioca.
Villa-Lobos foi outro compositor influenciado pela devoção do casal à música francesa.
Foram eles, por exemplo, que apresentaram o Grupo dos Seis ao compositor brasileiro, do
qual Milhaud fez parte e que foi comandado por Jean Cocteau e Eric Satie.
Darius Milhaud não trouxe à cena somente os músicos instrumentistas e
compositores para se relacionarem e tomarem conhecimento das inovações francesas: ele
criticou a ignorância de alguns compositores em relação ao folclore do Brasil. Ernesto
Nazareth e Marcelo Tupinambá são bem vistos pelo músico francês, por que utilizam a
politonalidade em suas músicas. Wisnik observa que nos “tangos” de Nazareth há a junção
dos contratempos e dos movimentos cromáticos no baixo, que alternam em relações
intervalares de tônica (I grau da escala diatônica), dominante (V grau) e subdominante (IV
grau) utilizando-se da musica tonal (nos caminhos melódicos e cromáticos do baixo) para
desconstruí-la nos contratempos rítmicos e no cromatismo que afeta as relações
harmônicas (WISNIK, 1977, p. 48).
Seria desejável que os músicos brasileiros compreendessem a importância dos compositores de
tangos, de maxixes, de sambas e de cateretês como Tupinambá ou o genial Nazareth. A riqueza
rítmica, a fantasia indefinidamente renovada, a verve, a vivacidade, a invenção melódica de uma
imaginação prodigiosa, que se encontram em cada obra desses dois mestres, fazem deles a glória e a
preciosidade da Arte Brasileira (apud: WISNIK, 1977, p. 45).
Um dos interesses do compositor francês é aproximar a atitude dos jovens
compositores brasileiros à dos compositores franceses, buscando uma originalidade que
não estivesse ligada aos compositores russos, como Stravinsky, nem aos alemães, como
Schoenberg. A música brasileira incita a renovação da música francesa, pois possui
elementos perturbadores do sistema tonal, estabelecendo uma renovação diferente da de
Schoenberg, por incitar o politonalismo, “apresentar simultaneamente duas ou mais tônicas
em atrito; e expor várias tonalidades minando a tonalidade não sucessivamente (por
modulação cromática), mas simultaneamente (por aglomerados politonais)” (WISNIK, 1977,
p. 47). Milhaud observa que “Cantos populares brasileiros, melodias do carnaval do Rio de
Janeiro ligam-se, aí, da mais simples maneira, a duas, três e uma vez mesmo a quatro
tonalidades” (WISNIK, 1977, p. 48).
Luciano Gallet e Ernesto Nazareth, compositores de formação erudita que são
valorizados por Milhaud, sobressaem-se por composições que alcançam o ideal modernista
da utilização da cultura popular, não somente como tema, mas como técnica também:
Da maneira pela qual se definirão as relações entre a técnica erudita e a técnica inerente ao material
popular, dependerá a meu ver, o alcance da estilização, mais efetiva quando elementos técnicos da
música popular afetam realmente a matriz construtiva da obra, e não quando servem de mero material
(WISNIK, 1977, p. 50).
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Entretanto, muitos músicos e compositores participaram do movimento musical em
torno da Semana de Arte Moderna. Compositores que eram considerados velhos, com
sessenta
anos,
como
Henrique
Oswald
e
Francisco
Braga;
e
músicos
com
aproximadamente trinta anos, como Villa-Lobos e Luciano Gallet; homenageados como
Glauco Velazques, que foi professor de Gallet. E nomes ligados a outras gerações que
darão prosseguimento às renovações do início do século XX: Ernani Braga, Fructuoso
Vianna, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, Radamés Gnatalli e Luis Cosme. Muitos
desses compositores estarão em contato direto com poetas modernistas, fazendo inclusive
música baseada em seus poemas, como é o caso de Guarnieri para a obra de Bandeira.
Para fazer um balanço das discussões que permeiam o universo musical do
modernismo, podemos retomar as diferenças entre os pensamentos de Coelho Neto e VillaLobos. A estética proposta por este está mais próxima do pensamento modernista brasileiro
que da concepção de música wagneriana daquele. Para os poetas modernistas, a música é
um caminho didático utilizado para propor uma renovação da linguagem artística, em uma
poética envolvida socialmente. Há também nesse entrelace, a questão da nacionalidade
expressa no folclore, e da necessidade deste ser absorvido pela cultura erudita.
Esse interesse pela música aparece na estruturação de poemas, em crônicas e
críticas sobre concertos e composições publicadas em revistas especializadas, como é o
caso do periódico Ariel. Assunto das cartas entre Mário de Andrade e Manuel Bandeira, a
revista auxilia o desenvolvimento crítico do pensamento modernista. Villa-Lobos, o músico
que esteve mais próximo dos modernistas, se embrenha na música moderna, ampliando
seu universo de materiais sonoros, e na música de caráter selvagem e folclórica, mescla-as
modernamente na adoção de “técnicas cosmopolitas concomitantes com a representação
de um mundo mágico e selvagem” (WISNIK, 1977, p. 167), procurando um equilíbrio entre a
cultura popular e erudita. Suas composições iniciais exemplificam, na prática, as ideias
modernistas de renovação artística e estética, com o aproveitamento das características da
música popular como tema e na elaboração de uma técnica renovadora. Isto, pois VillaLobos:
avançava significativamente no interior da perspectiva ideológica, exatamente porque, com novos
materiais que libera, dá um caráter novo à ideia de um “país novo”, o que serve a fazer mais
convincente o horizonte de suas potencialidades, ainda que escandalize alguns parnasianos mais
recalcitrantes (WINSIK, 1977, p. 170-171).
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A MÚSICA POPULAR DA MODERNIDADE
Tendo em vista o quanto a cultura popular auxiliou nos eixos estéticos e temáticos do
pensamento modernista, localizaremos o contexto da música popular no início do século XX,
no qual a dinâmica da modernidade se manifesta tanto na elite artística, quanto nos artistas
populares da época. Ambos tinham contatos diretos e indiretos entre si, em críticas de
periódicos e encontros na boemia. O ambiente da modernidade, com o funcionamento de
fábricas, o ritmo da cidade, a reconfiguração da população – pela imigração e pelo êxodo
rural – e o surgimento de novas tecnologias, são fatores comuns a todos que vivem nos
grandes centros urbanos, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro do início do século XX.
Esse amálgama propicia a construção de uma ideia de identidade brasileira, pautada na
nova organização social e nas intersecções entre a cultura popular e a cultura erudita.
Em O mistério do samba (2007), o antropólogo Hermano Vianna procura localizar a
consolidação do samba como símbolo da identidade brasileira ou da “brasilidade”, pois o
ritmo que é um cadinho do lundu africano e da polca europeia propicia um ponto de contato
entre pessoas de classes diferentes. Vianna inicia seu livro com um encontro entre
intelectuais modernistas e músicos populares relatado por Gilberto Freyre, uma reunião
boêmia na qual estão presentes o próprio Freyre, antropólogo, o historiador Sérgio Buarque
de Hollanda, o poeta Prudente de Morais Neto e os músicos Villa-Lobos, Luciano Gallet,
Pixinguinha e Donga.
Gilberto Freyre é uma das referências de Vianna para a construção de um
pensamento de brasilidade. Na época do encontro com Pixinguinha, Freyre estava
elaborando Casa-grande e senzala (1933). O primeiro encontro entre o músico e o
antropólogo foi quando este viu o outro tocar. Esse primeiro contato foi mediado por Sérgio
Buarque, que conhecia Donga, um dos integrantes dos Oito Batutas, que entre outras
companhias de boemia, teve ao seu lado os referidos modernistas cariocas do círculo de
Bandeira. Outro importante encontro propiciado pelo historiador foi o de Blaise Cendrars
com Pixinguinha, que levou o grupo de samba desse chorão a uma turnê internacional.
Nos anos que se seguem à Semana de Arte Moderna, muitas crônicas de Gilberto
Freyre tomam como exemplo de brasilidade a cultura negra nascente no Rio de Janeiro,
conseguintemente, a de sua música popular. A definição de identidade brasileira e de
brasilidade é discutida por Freyre a partir do contraponto entre “dois brasis”, como as outras
dualidades do modernismo: um que está pautado pelo modelo europeu, e outro mais
autêntico, que é exemplificado por Vianna com o surgimento do samba:
Quando falo, talvez um tanto forçadamente, em grande mistério, não me refiro aos problemas que
muitos pesquisadores da música popular brasileira gostam de debater: a origem etimológica da palavra
samba; o local de nascimento do samba; a identidade dos primeiros sambistas; ou mesmo a lista
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completa dos compositores de Pelo Telefone, tido como o “primeiro” samba. Penso especificamente na
transformação do samba em ritmo nacional brasileiro, em elemento central para a definição da
identidade nacional, da “brasilidade” (VIANNA, 2007, p. 28).
Sem um projeto de renovação, como o dos modernistas, mas inserido num contexto
em que a construção de uma identidade brasileira era a preocupação de intelectuais e
políticos, o samba começa a tomar forma e, assim como o movimento modernista, teve um
momento de recusa social, por ser proveniente dos terreiros e de uma cultura de classe
baixa, e outro de aceitação e exaltação, chegando a símbolo nacional da identidade
brasileira. Os motivos de recusa e de aceitação do samba e do modernismo têm diferentes
repercussões. Ambos revolucionam e chocam a sociedade em diferentes instâncias. O
modernismo desestrutura o pensamento acadêmico que, por sua vez, se abre à
transposição e à difusão da cultura popular a outras classes sociais, não a restringindo num
espaço marginalizado. O primeiro é negado intelectualmente e o segundo socialmente. E
ambos são negados pelo pensamento burguês novecentista e conservador de uma
ideologia ligada aos modelos estéticos europeus do século XIX. A inovação do samba
através do sincretismo rítmico permite o contato da classe popular com a classe intelectual,
e a renovação intelectual valoriza esse contato porque enriquece as proposições de
renovação dos modernistas.
A música popular foi bastante utilizada pelos intelectuais em debates sobre o que é a
cultura brasileira. Mário de Andrade e Gilberto Freyre a viam como forte característica do
Brasil e do espírito nacional, pois ela possibilita a interação social. Partindo do pensamento de
Antônio Candido, que valoriza na música a sua possibilidade de transpor barreiras sociais,
Hermano Vianna conclui que ela serve “de elemento unificador ou de canal de comunicação
para grupos bastante diversos na sociedade brasileira” (VIANNA, 2007, p. 33-34).
A relação entre a classe intelectual brasileira e a música popular aparece em vários
momentos da história do Brasil, como por exemplo, no século XVIII, quando o compositor
brasileiro Domingos Caldas Barbosa faz sucesso nos salões aristocráticos de Lisboa com as
modinhas brasileiras. No final do século XIX, a fama da canção popular brasileira
acompanha Catulo da Paixão Cearense, que reivindica seu espaço na literatura acadêmica
e na música popular sertaneja. Esse modinheiro e poeta, depois de trabalhar como
estivador, está presente em salões e saraus lítero-musicais frequentados pela alta
sociedade. Catulo desenvolve suas canções com temas sertanejos e nortistas. Seu
reconhecimento musical o leva ao Instituto Nacional de Música, onde tem contato com
músicos como Alberto Nepomuceno. Influente no meio intelectual e empenhado na música
popular, Catulo auxilia na divulgação de músicos como Donga, Pixinguinha e Heitor dos
Prazeres, que até então restringiam suas criações ao âmbito da casa da Tia Ciata, na
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década de 1910, que era frequentada, entre outros, pelo “poeta do sertão” (VIANNA, 2007,
p. 51).
Essa casa era um refúgio dos músicos populares e, portanto, um dos agentes
culturais que propiciaram a união de ritmos presentes na cultura brasileira. Em O século da
canção (2004), o estudioso Luiz Tatit diz ser a canção um “território livre, muito frequentado
por artistas híbridos que não se consideravam nem músicos, nem poetas, nem cantores,
mas um pouco de tudo isso e mais alguma coisa” (TATIT, 2004, p. 12). Esse território livre é
onde se encontram os cancionistas e de onde se origina uma das mais ricas criações da
modernidade: a canção, considerada no fim do século XX como um gênero autônomo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse turbulento início do século XX nascem transformações que se estendem até o
século XXI. As mudanças artísticas e sociais, a população urbana periférica numerosa,
negra, recém-emancipada, que em sua cultura mistura polcas, lundus e batuques de
Candomblé e Umbanda, que se misturam no fundo das casas das “Tias” baianas, entre
outros fatos, estabelecem uma identidade cultural urbana. Levando essa mistura para a rua
e futuramente para o rádio e, dali, para o Brasil, o cancionista se profissionaliza e a invenção
de um produto cultural consolida (VIANNA, 2007, p. 33). Essa profissionalização fomenta o
tema da unidade e da diversidade no Brasil, que encontra em sua capital um centro cultural,
econômico e político. A partir disso, podemos ter uma dimensão do contexto histórico e dos
intercâmbios que ocorreram no início do século XX.
Outro contato bastante caro ao intercâmbio entre os intelectuais modernistas e os
representantes da cultura popular é a atividade do poeta francês Blaise Cendrars,
considerado pelos próprios modernistas uma influência para o aprofundamento da cultura
popular e folclórica. Um exemplo dessa influência é o Manifesto Pau-Brasil (1924), de
Oswald de Andrade, dedicado ao poeta francês. Cendrars é considerado pelos modernistas
como um guia para a redescoberta do Brasil. Entretanto, os estudos dos novos artistas,
voltados para a sua cultura popular, datam de antes disso.
O que, provavelmente, esse poeta francês incitou foi uma nova reflexão sobre a
cultura popular e o nacionalismo brasileiros. O contato com artistas estrangeiros auxiliou na
consolidação da consciência dos artistas brasileiros, populares ou intelectuais. Tanto
Manuel Bandeira e Mário de Andrade quanto Donga e Pixinguinha entraram em contato com
Blaise Cendrars e Darius Milhaud. Estes levaram o choro para a Europa e conheceram de
perto a cultura afrobrasileira, utilizando-a em suas propostas renovadoras e incitando os
modernistas brasileiros a utilizarem-na também.
Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 .
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Diante desses fatos, podemos inferir que há muitos diálogos entre a música erudita,
a música popular e a literatura na formação do pensamento modernista que, por sua vez,
propunha o diálogo entre as artes e o diálogo entre as culturas popular e erudita,
consolidando ambas. Assim, podemos observar a formação de uma arte genuinamente
brasileira, no âmbito erudito ou popular, estabelecendo seus próprios padrões mediante
esses diálogos. Vê-se, ao longo do século XX, o desdobramento dessas propostas
modernistas, que se manifestam na poesia concreta, no movimento tropicalista, na poesia
marginal, na música de protesto, no Quarteto Novo, no Baião, no Mangue Beat entre outras
tantas manifestações e diálogos que reforçam a cultura brasileira e suas facetas.
REFERÊNCIAS
BANDEIRA, Manuel. In: GUIMARÃES, Júlio Castañon (Org.). Seleta de Prosa. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
______.; ANDRADE, Mário. Correspondência. (org. Marcos Antônio Moraes) São Paulo:
Edusp, 2001.
CÂNDIDO, Antônio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 5. ed. São
Paulo: Nacional, 1976.
NAVES, Santuza Cambraia. O violão azul: modernismo e música popular. Rio de Janeiro,
Fundação Getúlio Vargas, 1998.
TATIT, Luiz. O século da canção. Cotia: Ateliê Editorial, 2004.
VIANA, Hermano. O mistério do samba. 6. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
WISNIK, José Miguel. O coro dos contrários: a música em torno da Semana de 22. São
Paulo: Duas Cidades, 1977.
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