A nova velha China A “surpresa” dos ocidentais com o avanço do país rumo ao posto de maior economia do planeta não se justifica. Talvez um observador do futuro olhe para trás e veja a Ásia sempre à frente da Europa, exceto por um curto período entre o fim do século XIX e o começo do XXI por Angelo Segrillo (C) Chungking / Shutterstock Diversos observadores preveem que em cerca de duas décadas a China ultrapassará os Estados Unidos e se tornará a maior economia do mundo. Isso é visto como um fenômeno surpreendente e recente. Mas, se olharmos com maior cuidado e amplitude histórica, esse fato se revelará nem tão surpreendente nem tão recente. Na visão eurocêntrica tradicional ensinada em nossas escolas, o avanço do Ocidente e o atraso da China e do Oriente são encarados como algo bastante antigo e consolidado: no mínimo desde a Renascença, por vezes Shenzhen, uma pequena aldeia noa anos 1970, tornou-se uma cidade vibrante, símbolo da nova economia chinesa desde a Grécia antiga. Entretanto, nas últimas décadas uma série de autores revisionistas "asiocêntricos" tem demonstrado, com vários estudos embasados, que o "avanço" econômico do Ocidente e o "atraso" do Oriente não são tão antigos e absolutos assim. É preciso olhar os números com frieza. Segundo o livro de estatísticas históricas The World Economy (OCDE, 2006), de Angus Maddison, até o século XIX a Ásia era o continente com a maior economia do mundo. Entre os países, a China e a Índia sempre se revezaram nos dois primeiros postos. Em 1820, a China tinha um Produto Interno Bruto (PIB) de 228,6 bilhões de equivalentes em dólares de 1990, maior que o de toda a Europa ocidental, de 160,1 bilhões. Em 1870, a China ainda tinha um PIB maior que o da Inglaterra, e a Ásia ainda era o continente com o maior PIB de todos – respondia por 38,3% da produção mundial, enquanto a Europa ocidental, por 33,6%. Foi apenas no último quartel do século XIX que a Ásia perdeu o posto de maior produtora de riquezas entre os continentes, e a China, o de maior entre os países. Nos últimos anos do século XX, a Ásia voltou a ser a maior economia entre os continentes, e há previsões de que a China recobrará o lugar de primeira economia do mundo ainda nesta primeira metade do século XXI. Posto dessa maneira, o quadro se afigura bem diferente da visão eurocêntrica tradicional. Em vez disso, talvez um observador do futuro olhe para trás e veja a Ásia sempre à frente da Europa exceto por um curto período entre o final do século XIX e início do XXI. As obras mais recentes dos historiadores asiocêntricos são pouco conhecidas no Brasil, pois grande parte delas ainda não foi traduzida para o português. O Laboratório de Estudos da Ásia da Universidade de São Paulo lançou o livro A Ásia no século XXI: olhares brasileiros (editora Cenegri, 2011), em que há referências introdutórias a esses autores e planeja publicar um estudo que descreve pormenorizadamente esse debate. Abaixo, os leitores de História Viva poderão conferir quem são os expoentes dessa escola de pensamento e o que trouxeram de novo sobre o papel da Ásia, e em particular da China, no mundo. NOVA VISÃO Uma obra seminal foi ReOrient (ReOriente), de Andre Gunder Frank. Nos anos 1960, ele foi um dos idealizadores da chamada Teoria da Dependência, juntamente com o sociólogo Fernando Henrique Cardoso e o economista Theotonio dos Santos. Na década de 1990, Frank revelou-se defensor do novo revisionismo asiacêntrico. Chamou a atenção para o fato de que não fazia sentido dizer que a economia mundial era centrada na Europa no último milênio, quando até o século XIX a maior parte da produção mundial era feita na Ásia, e a China sozinha tinha nela um peso maior que toda a Europa ocidental. A prova mais evidente disso, segundo o autor, era a seguinte: os europeus iam à Ásia em Guerra do Ópio: os cofres chineses estavam abarrotados de busca de riquezas, e não o contrário. Os prata europeia, mas o país não aceitava importar, para europeus importavam diversos produtos equilibrar a balança comercial manufaturados da China, como tecidos e porcelana, sem que o país asiático se interessasse em comprar os produtos europeus. Esse comércio unilateral resultava em acúmulo de prata (a moeda de pagamento dos importadores europeus) em enormes proporções nos cofres chineses. Por isso a importância da Guerra do Ópio em meados do século XIX entre China e Inglaterra: no ópio que obrigaram os chineses a aceitar, os ingleses encontraram uma primeira grande mercadoria que pudesse ser enviada aos chineses para evitar a sangria de prata. Kenneth Pomeranz, em seu livro The great divergence: Europe, China, and the making of the modern world (A grande divergência: Europa, China e a formação do mundo moderno), analisa o que, segundo ele, foi o grande ponto de divergência entre China e Ásia e Inglaterra e Europa: a Revolução Industrial. De acordo com Pomeranz, foi somente com a industrialização ao longo do século XIX que a Europa ocidental ganhou espaço antes ocupado pela China e pelos “tigres asiáticos” da época. Em outras palavras, o historiador rejeita a visão de uma antiga superioridade da Europa sobre a Ásia, ou mesmo de uma vantagem a partir do Renascimento, no século XV. Munido de várias estatísticas históricas, ele afirma que antes do século XIX os índices de desenvolvimento urbano, monetário, financeiro e manufatureiro, assim como o de renda per capita das regiões asiáticas mais avançadas não ficavam substancialmente abaixo dos de regiões europeias importantes. Os exemplos asiáticos são: Kanto, no Japão; o baixo Yangtzé, na China; e Gujarat na Índia. Os europeus, Inglaterra, Holanda e França. Para Pomeranz, às vésperas da Revolução Industrial não havia nenhuma vantagem inquestionável das partes mais avançadas da Europa sobre as da Ásia que demonstrasse que a industrialização aconteceria naquele continente e não neste. Ele lembra ainda que as economias dos dois continentes eram agrárias, e as manufaturas urbanas europeias não eram mais avançadas que as asiáticas – ao contrário, havia superioridade oriental em áreas como tecelagem, fabricação de porcelana e tintas. Por que, então, a Revolução Industrial ocorreu na Inglaterra e não na China, por exemplo? Segundo a polêmica teoria de Pomeranz, foi uma questão de sorte. A tecnologia básica que transformou o mundo na Revolução Industrial foi a máquina a vapor. A China chegou bem próxima de desenvolver seu próprio modelo – as partes essenciais de uma máquina a vapor foram descritas por Wang Chen no século XIV, faltando apenas alguns detalhes práticos finais. Estes estavam, em grande parte, relacionados com questões de bombeamento. Nas minas de carvão da Inglaterra, a principal ameaça era de inundação, ao contrário das chinesas, em que a aridez levava a problemas de autocombustão. Assim, os ingleses tiveram incentivo maior para desenvolver máquinas de bombeamento, enquanto os chineses se dedicavam mais aos problemas de ventilação das minas. Para o historiador, isso acabou levando a Inglaterra a obter a máquina a vapor antes de todos e a largar na frente da corrida da Revolução Industrial. John M. Hobson, em seu The Eastern origins of the Western civilization (As origens orientais da civilização ocidental) dá exemplos de como a China contribuiu para o próprio deslanchamento da Revolução Industrial na Europa. Tecnologias e produtos chineses importados pelos europeus foram fundamentais para os avanços nas áreas-chave de tecelagem e da máquina a vapor. De fato, com exceção do mecanismo de virabrequim, os chineses já tinham desenhado um projeto de máquina a vapor assemelhada à máquina de Wilkinson (a precursora da máquina de James Watt) no século XIV e no final do século XVII já tinham produzido uma forma de turbina a vapor. Os desenhos ingleses precursores da máquina a vapor eram influenciados por modelos chineses que tinham sido trazidos à Europa por missionários e viajantes ocidentais na Ásia. [continuação] Coleção Particular Às vésperas da Revolução Industrial, a China liderava o setor têxtil, e seus avanços na área da seda influenciaram muito a indústria inglesa baseada no algodão. O chamado “grande caixilho de fiar” chinês fazia para a seda o que o caixilho à água do inventor Richard Arkwright faria posteriormente para o algodão. Exceto por um detalhe tecnológico fundamental, as máquinas orientais realizavam o trabalho equivalente à máquina de fiar Máquina de fiar "spinning Jane", um dos avanços ocorridos às vésperas da spinning Jane, de James Revolução Industrial Hargreaves, e à lançadeira volante de John Kay, dois inventores britânicos. Os modelos europeus das máquinas industriais de tecelagem do algodão foram diretamente influenciados pela competência asiática no trabalho com a seda. Intermediários europeus, em especial italianos, copiaram as tecnologias chinesas. O inglês John Lombe, cujas máquinas de produção de seda, em Derby, foram cruciais para gerar desenvolvimento análogo na área do algodão, foi o grande exemplo disso: o inventor “pirateou” desenhos italianos que, por sua vez, eram baseados nas máquinas chinesas. POLÍTICA Roy Bin Wong, em China transformed: historical change and the limits of European experience (A China transformada: mudança histórica e os limites da experiência europeia), chama a atenção para a precocidade de alguns aspectos da experiência política e social chinesa. O país promoveu no século III a.C., com o chamado Primeiro Imperador, Qin Shi Huangdi, uma centralização política que em muitos aspectos antecipava à que os países europeus fariam só após o final da Idade Média, com os reis absolutistas. A partir de Shi Huangdi, a China padronizou seus pesos, medidas e moedas. Criou ainda uma burocracia avançada, recrutada por meio de concursos meritocráticos, que desempenhava tarefas somente assumidas pelos Estados europeus na era moderna. Por exemplo, recenseamentos regulares ocorriam no país asiático já no primeiro milênio d.C., enquanto nos países europeus os censos sistemáticos nacionais foram adotados apenas no século XIX. As medidas de bem-estar social, que em países como a Inglaterra no início da era moderna se reduziam basicamente a obras de caridade da Igreja, eram uma política de Estado na China. Por exemplo, o sistema de planejamento de construção de silos de armazenamento de grãos por todo o país, para o caso de necessidade de redistribuição de comida em épocas de má colheita, era de uma amplidão impensável nos países europeus até a época contemporânea. [ Na Europa, os iluministas lutavam ainda no século XVIII para afastar a influência da Igreja sobre a ciência e política. Na China, havia mais de um milênio o confucionismo era uma filosofia basicamente secular e racional, que guiava a burocracia na tarefa de governar o Estado chinês. Não era à toa que Voltaire, ressabiado com a indolente nobreza hereditária francesa, admirava o fato de os mandarins (oficiais burocratas) chineses serem escolhidos não por hereditariedade, mas por concursos baseados no mérito. (C) RDA / Rue des Archives Em Lost modernities (Modernidades perdidas), Alexander Woodside mostra que vários aspectos das burocracias confucianas milenares antecipavam elementos de modernidade. Nos concursos para mandarim, verdadeiros vestibulares, havia multidões de candidatos e uma grande preocupação com a manutenção do sigilo das provas – quem as recebia não era quem as corrigia, a identificação do concorrente não ficava disponível etc. Ou seja, alguns dos pontos apontados pelo sociólogo alemão Max Weber como expressivos da modernidade ocidental, como uma burocracia impessoal e o secularismo, estavam presentes Um mandarim, burocrata qualificado na China imperial de forma já discernível. Por isso, escolhido por mérito para ocupar cargos Woodside argumenta que o conceito de uma modernidade imperiais única, surgida apenas no Ocidente após o fim da era feudal, precisa ser revisto. Independentemente de quem está certo, se os autores eurocêntricos ou asiocêntricos, o estudo histórico de longo prazo da China pode trazer elementos para compreensão das origens de nossa própria civilização – e também diminuir um pouco da “surpresa” com que o mundo recebe hoje o avassalador ritmo de desenvolvimento econômico chinês, em direção a uma (re)tomada do posto de maior economia do mundo nas próximas décadas.