Trabalho ref

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XX CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE
INTERFACES: PSICANÁLISE, MEDICINA E SAÚDE PÚBLICA
“É mais promissor, no trabalho científico, atacar o que quer que esteja imediatamente à nossa frente e ofereça uma oportunidade à
pesquisa. Agindo dessa forma, realmente com afinco e sem preconceito ou sem prevenções, e tendo-se sorte, então, desde que tudo
se relaciona com tudo, inclusive as pequenas coisas com as as grandes, pode-se mesmo partindo de um trabalho despretensioso, ter
acesso ao estudo dos grandes problemas.”
Sigmund Freud em Conferências Introdutórias (1915) – (Parapraxias)
Nestes 25 anos de trabalho meu interesse foi sempre voltado para a clínica. Nos
primeiros oito anos atendi em psicoterapia de base analítica e depois apenas em
psicanálise. É esta experiência, ou seja o atendimento clínico em psicanálise, a matriz
de onde retiro todas as questões que pretendo abordar neste trabalho.
Sou uma entusiasta dos resultados clínicos obtidos pelo trabalho em psicanálise. Por
este motivo sempre me ressinto da pouca quantidade e qualidade das divulgações feitas
a respeito de nossa ciência. Decidi desde logo fazer “a minha parte”. Tornei-me, com
certo orgulho, uma “militante” da psicanálise como brincam alguns colegas.
Estive, muitas vezes, em faculdades de psicologia de São Paulo e Ribeirão Preto,
fazendo palestras, sempre sobre o mesmo tema: Conversando sobre Psicanálise. Minha
intenção era desmistificar a psicanálise, trazendo-a para um plano mais acessível à
média dos estudantes de psicologia. Depois, já como candidata no Instituto de
Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo interessei-me pelo
Serviço de Atendimento, antigo Ambulatório, onde poderíamos atender em psicanálise
um maior número de pessoas a preços mais acessíveis. Fui diretora deste Serviço por
duas gestões. Na Sociedade de Psicanálise de Ribeirão Preto, tive participação ativa no
projeto da Clínica de Atendimento. Também participei do projeto “Divulgação da
Psicanálise” em Ribeirão Preto e ofereci gratuitamente, durante os oito anos que lá
residi, seminários clínicos aos alunos da do 5º ano de Psicologia da USP de Ribeirão
Preto.
Em 2004, dois anos depois de retornar à S.Paulo recebi um convite desafiador e
estimulante: Montar um Grupo de Atendimento em Psicanálise no Ambulatório do Jogo
Patológico e outros Transtornos do Impulso do Instituto de Psiquiatria do Hospital das
Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Fui para a primeira reunião com o dirigente do setor muito animada e saí muito
angustiada. Foi sugerido fazer psicoterapia em grupo com os “jogadores patológicos”.
Pela proposta teria apenas 20 sessões para realizar este trabalho. Minha angústia se
explicava pela evidente impossibilidade de se obter resultados mais efetivos com este
número de sessões.
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Trago um sonho para compartilhar meus conflitos com o leitor, depois da proposta
recebida. Nesta noite, sonho que estou dentro de um carro luxuoso e bastante espaçoso.
De repente todas as luzes se apagam e o carro se desgoverna. Não havia mais nenhuma
luz, tudo ficou completamente às escuras. A estrada era conhecida, descia uma serra
cheia de curvas. Fico apavorada tentando brecar, mas não consigo achar o pedal do
freio. A velocidade aumenta e eu nada posso fazer para parar o carro.
Peço ajuda a minha irmã que está no banco traseiro, mas percebo que ela está dormindo,
bêbada. Seu hálito cheira a álcool, eu percebo que não posso contar com ela. Meu
desespero aumenta e então me abaixo e tateando procuro encontrar o breque. Quando
localizo aperto com muita força e o carro para bruscamente. Quando para, as luzes se
acendem imediatamente e eu estou a poucos centímetros de um grande muro que me
mataria se o carro não tivesse brecado. Acordo assustada, mas logo pego no sono
novamente e é como se o sonho continuasse. Estou sentada em um sofá, junto com três
pessoas, meu marido e mais dois homens que pareciam ser colegas de meu marido.
Conversamos algo que não me recordo, saio da sala e entro no banheiro. Ao me olhar
no espelho levo um susto. Estou com o rosto cheio de creme branco e os cabelos
enrolados com bobies. Parecia estar fazendo uma destas máscaras de tratamento de pele.
A impressão era de que eu estava fazendo um tratamento para ficar bonita mais
rapidamente, usando então excesso de maquiagem. A sensação é de tamanho
desconforto que acabo acordando.
Ao acordar associo imediatamente à minha experiência do dia anterior no Hospital das
Clínicas. Sinto que o carro desgovernado, sem breque, pode estar ligado ao meu desejo
de querer trabalhar. É como se o sonho me alertasse sobre a escolha de um caminho que
é uma descida, aparentemente algo fácil e conhecido, mas se não tomo as providências e
busco o breque, poderia ser destruída. Sinto que meus “bons objetos” estão em perigo.
A presença de minha irmã , interpretei como sendo um aspecto meu “teimoso”, que quer
fazer as coisas do “ do meu jeito”. Ao fato de ela estar bêbada, a associação que faço é
de descontrole, de algo irresponsável. Imediatamente me lembro da proposta da terapia ,
com 20 sessões, supervisionada por uma psicanalista dentro de um hospital público. Me
vem á lembrança o rosto cheio de creme, que associo com mascara e com a violência
que é querer ficar bonita a qualquer preço, a ponto de perder a referência, pois, no
sonho, não percebia estar “maquiada”. Penso que os conflitos que trazem meu sonho é
em consequência da luta narcísica que estava sendo travada em meu mundo psíquico,
pois me era sedutor aceitar o convite que me foi feito.
Esta experiência emocional que “escutei” da forma descrita, me possibilitou fazer uma
análise mais sensata da situação e elaborar uma contraproposta e que, para minha feliz
surpresa foi bem aceita pelo dirigente do setor. Percebi, naquele momento que eu estava
com pré-conceitos em relação ao trabalho na Instituição maiores do que eu observei que
tinham em relação a mim.
Recebi todo o apoio para montar o projeto. Pelos termos que solicitei e fui atendida,
receberia em meu consultório uma vez por semana, por uma hora, os profissionais que
trabalham no Hospital das Clínicas e que coordenariam o chamado grupo piloto. Iniciei
com estas profissionais, ambas psicólogas, um estudo teórico do trabalho com grupos.
Utilizei textos de diversos autores, mas nos detivemos a estudar linha por linha o livro
“Experiências com Grupos” de Wilfred Bion. Como alegava com as participantes,
minha intenção era utilizar o texto para conversarmos e ampliarmos a escuta
psicanalítica. Nossa proposta é investigar as tensões existentes no grupo. Entendíamos o
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jogo como sintoma e, portanto, foi visto por nossa equipe como consequência das
dificuldades que aquelas pessoas tinham para lidar com seu “mundo mental”.
Apresentado o projeto obtivemos um ganho considerável. O total de atendimentos
passou para 60 sessões, o que daria, considerando os dias úteis, quase dois anos de
trabalho. O grupo teria no máximo 9 participantes. As sessões seriam de uma hora e
meia, uma vez por semana. As duas colegas trabalhariam em parceria com o grupo e eu
faria supervisão semanal deste trabalho, no mesmo local onde o grupo se reunia. Isto
quer dizer que teríamos um compromisso de nos dedicarmos duas horas semanais para
este projeto. Uma das duas colegas se interessa, então, por transformá-lo em sua tese
de mestrado.
Neste grupo, que se reúne semanalmente para estudo do texto teórico visando ampliar a
escuta analítica com relação a atendimentos com grupos, juntaram-se duas colegas,
também psicólogas que atendem grupos no Hospital do Servidor Público. Os grupos
coordenados por estas duas colegas, já estavam em andamento. Foi logo possível,
obtermos, pelos depoimentos das colegas, uma melhora na qualidade do trabalho. Isto
estimulou toda a equipe, pois observamos que a escuta psicanalítica poderia trazer mais
qualidade de atendimento a um número bem maior de pessoas que de outra forma não
poderiam freqüentar nossos consultórios. Estávamos presentes em dois dos maiores
hospitais de atendimento pela rede pública do Estado de S.Paulo.
Nossas conversas questionaram o setting no hospital do Servidor Público. Por exemplo:
Os pacientes esperavam os coordenadores dentro de uma sala, na medida que iam
chegando. Quando os dois coordenadores chegavam, iniciavam o grupo. Isto foi
alterado: Esperariam na sala de espera, só entrariam com o coordenador, para que
ficasse definido o inicio da sessão. Justifiquei teoricamente minha postura e as colegas
observaram que fazia sentido e que não tinham pensado nisto anteriormente. Frizei
também a importância do atendimento no horário estabelecido. O término do grupo,
também deveria ser rigorosamente observado e não alterado. Afinal estávamos lá para
estudar as tensões do grupo e o setting por si só criaria um campo fértil para a eclosão
destas tensões.
Embora o atendimento em grupo no hospital do Servidor Público se mantenha, foi
observado que, o fato de apenas um dos coordenadores de cada grupo receber o
treinamento que estava sendo proposto, trazia dificuldades na condução do trabalho. Foi
observada, também a importância da supervisão.
No primeiro dia de supervisão no ambulatório do Hospital das Clínicas, já tinha sido
informada pelas colegas que na única sala disponível para o trabalho havia uma grande
mesa, ao redor da qual o grupo se reunia. Observei que se encostássemos a mesa em
um canto e utilizássemos o espaço para colocação das cadeiras em círculo, isto
facilitaria uma proximidade maior entre os participantes. E proximidade, na escuta de
um analista, é geradora de tensão. As cadeiras eram diferentes uma das outras. Solicitei
que as cadeiras fossem iguais, inclusive das coordenadoras. Minha proposta seria não
incentivar a idéia de uma autoridade e sim deixar que emergissem no grupo as
dinâmicas referentes à questão da autoridade. Dessa forma teríamos mais elementos
para o trabalho analítico e para observarmos os pressupostos básicos que se fizessem
presentes (Bion, 1961).
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Na segunda sessão de supervisão as coordenadoras observaram que o grupo buscava um
modelo já estabelecido de funcionamento. Alguns participantes que já tinham
freqüentado outros grupos, agiam como se aquele grupo funcionasse da mesma forma.
Assim as coordenadoras eram solicitados a ficarem com o papel de líderes, à elas eram
dirigidas todas as perguntas, dúvidas, necessidades de compreensão e entendimento. Em
determinado momento a coordenadora mostra isto ao grupo e observa que um outra
dinâmica começa a existir, embora a repetição deste modelo se mostre presente em
vários momentos.
As coordenadoras observam que o próprio grupo vai trazendo situações geradoras de
questionamentos interessantes. Por exemplo Um dos participantes mostrava a
necessidade de dizer ao grupo o quanto ele se beneficiou de grupos freqüentados
anteriormente e o quanto estava bem, sem nenhum problema, sem nenhuma dificuldade.
Insistia tanto neste fato que se tornava uma espécie de líder “sano” pregando seu bem
estar aos colegas “insanos”. Um dos participantes perguntou a ele: Se se sentia tão bem
porque estava freqüentando aquele grupo? Com a pergunta uma nova dinâmica foi
estabelecida entre os participantes.
Com estas e outras situações que foram se criando a partir deste trabalho, foram se
mostrando as defesas e sendo percebidos os progressos. Em outra situação uma das
participantes falava do seu bom casamento, falava também que saia todas as noites para
jogar e lá ficava até altas horas. Uma outra participante perguntou como era possível ter
um bom casamento dentro desta situação. E foi percebido pelo próprio grupo, sem a
interferência das coordenadoras, as defesas que se usa para não ter contato com a
verdade.
Algumas sessões tem sido bastante difíceis, a ponto dos coordenadores temerem que o
grupo não consiga se manter. No entanto, embora haja bastante faltas, algumas pessoas
se mantêm mais presente e obtendo ganhos expressivos com a atividade do grupo. Um
dos integrantes diz que sente bem melhor, que tem se sentido diferente em relação às
outras coisas em sua vida, por exemplo seu casamento, tem tido uma qualidade melhor
e não sabe dizer porque, mas o fato é que tem conseguido não jogar. Sente vontade,
mas não aquele impulso incontrolável (sic). Um outro mostra sua satisfação em ter sido
liberado do medicamento psiquiátrico.
Temos um compromisso em apresentar, a cada 20 sessões, relatório do andamento do
grupo para o dirigente do setor.
As coordenadoras até então acostumadas com outra proposta de trabalho em grupo,
estão entusiasmadas com este novo método. Sentiam, já de inicio, que poderia trazer
contribuições importantes à vida daquelas pessoas, embora observassem ser muito mais
difícil o manejo desta técnica.
Devido ao bom resultado inicial da proposta implantada, foi inserida em Simpósio
Internacional, que terá como tema “Dependência, Compulsão e Impulsividade”, que
será realizado no Rio de Janeiro de 02 a 05 de Novembro de 2005. A proposta de
discussão será : “Psicanálise e Farmacologia: Tradição e Novidade no Tratamento de
Jogadores Patológicos, com a coordenação do Dr. Richard Rosenthal da Universidade
da Califórnia, Los Angeles (EUA) e Hermano Tavares, dirigente do Ambulatório de
Jogos Patológicos do Hospital das Clínicas de S.Paulo. Além desta participação, as
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duas psicólogas que coordenam o grupo escreveram um pôster, trazendo a repercussão
que teve no trabalho delas o fato de estarmos fazendo o treinamento durante todo este
período. Dizem: “Este trabalho se fez necessário a partir da visão da supervisora e
percebido como fundamental pelas terapeutas, em função de experiências anteriores
realizadas pela dupla em atendimentos em grupo.
Outro dado significativo notado nas discussões no grupo de estudos é a diferença e a
importância de um preparo anterior no início do trabalho, refletindo na qualidade do
manejo desse grupo.”
O tripé formativo mostra-se mais uma vez efetivo, pois durante todo o processo teremos
a continuidade do trabalho teórico, a supervisão e a terapia de base analítica a que se
submetem as coordenadoras.
Os resultados atuais já na altura da 16ª. sessão, são animadores e nos permite afirmar
que estamos conseguindo neste setor do Hospital das Clínicas repercussões favoráveis
dentro da área médica, possibilitando uma maior e melhor divulgação do Atendimento
em Psicanálise de Grupo em Instituições Públicas.
A Interface com a Medicina:
No final de 2004 fui convidada a fazer parte de um projeto que envolvia o contato direto
com médicos, especialistas em nutrologia e nutricionistas, com a finalidade de dar
assistência a pacientes com o diagnóstico de “doenças crônicas”. Quando recebi o
convite da coordenadora do projeto já escutei no lugar de “doenças crônicas”, uma
possibilidade de contato com “doentes crônicos”. No entato, o que seria isto do ponto
de vista dos médicos? A resposta foi: Pessoas que tem que conviver com uma doença
que requer controle medicamentoso e alimentar constante. Quis ouvir mais. Onde
poderia ser útil o conhecimento da psicanálise, neste tipo de trabalho? A médica
respondeu: “Não sei o que acontece, o que eu observo é que estes pacientes precisam ser
escutados por alguém que entenda de mente humana, pois se esgota o que pode ser feito
na área médica. Sozinhos não damos conta destes pacientes, apenas percebemos sua
necessidade e urgência de tratamento. No entanto, se indicamos uma terapia ou análise,
temos ficado também sem o paciente, pois muitos deles ficam ressentidos com a
indicação.”
Achei plausível a observação da colega, pois sabemos que existem os ganhos
secundários da doença, e o paciente pode se “esconder” no sintoma. A idéia me
estimulou. Pensei que poderíamos “enganar o ego daquele paciente”, pois este paciente
dificilmente iria até nós. Não acredito que suas resistências permitissem tanto. Então
iríamos até ele. Apresentaríamos uma escuta que ele não conhece e que, portanto, nem
tem idéia do quanto poderá lhe ser útil.
Acredito que a psicanálise tenha uma coerência teórica que possibilita entrar em contato
com este tipo de paciente. Hoje, 100 anos após Freud ter nos apresentado suas propostas
teóricas e técnicas, dispomos de uma metodologia que nos aproximam mais do
paciente. Nossa escuta está aguçada e podemos experimentar chegar mais perto. Aceitei
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o convite. Seria uma chance de trabalhar com a escuta psicanalítica junto a este tipo de
paciente, mas igualmente estimulante seria introduzir a escuta psicanalítica junto à
equipe médica que tratará deste paciente.
O setting teria que ser cuidadosamente montado. Foi aberta uma clínica, com a proposta
de que cada médico mantivesse seu consultório particular e se deslocasse para esta
clínica apenas para atendimento destes pacientes específicos. O paciente terá à sua
disposição uma equipe interdisciplinar para atendê-lo.
Os médicos precisam ser especialistas em nutrologia, ciência que estuda as
propriedades químicas dos alimentos. Os nutricionistas teriam que ser especialista em
doenças degenerativas e crônicas e o terceiro membro da equipe, especialistas na área
de estudos do psiquismo. O centro clínico, recebe o encaminhamento do médico do
paciente, das mais diferentes áreas.
O paciente, ao procurar o centro clínico, já é informado pela secretária que será
atendido na clínica por três profissionais, durante um mês. As consultas serão de 40
minutos e, cada vez que comparecer à clinica, será consultado por dois profissionais
(separadamente). Na primeira semana fará as consultas com o nutrólogo e com o
nutricionista. Na segunda semana com o nutricionista e o psicanalista (ou psicólogo que
tem mestrado na área de doenças crônicas). Na terceira semana não virá à clínica.
Retornará na 4ª. semana e passará novamente pelo psicanalista (ou psicólogo) e pelo
nutrólogo. Neste período estes três profissionais já terão se reunido para decidirem
sobre a conduta com o paciente. Isto ocorre na 2ª. semana. Na 4ª. e última semana
teremos informações sobre o resultado inicial do trabalho. Uma vez por mês toda a
equipe que compõem a clínica se reúne, para troca de idéias de interesse científico a
respeito deste projeto.
Descrevo resumidamente a experiência que tivemos com a primeira paciente, para
demonstrar o diferencial no tratamento possibilitado pela nossa escuta.
A paciente veio encaminhada por seu médico ginecologista. A descrição da médica
nutróloga para mim foi a seguinte:
“Gestante obesa com 8 semanas de gestação – prenhez gemelar resultante de fertilização
in vitro. Ganhou peso aos 10 anos com piora progressiva após o casamento há 12 anos
(principalmente há 6 anos). Nega antecedentes patológicos pessoais importantes. Mãe
obesa e hipotireoidea. Nega diabetes na família. Fez regimes anteriores, um deles com
fórmula e perdeu bastante peso, mas voltou a ganhar peso novamente. Sono normal,
mais sonolenta na gestação. Ritmo intestinal obstipado desde sempre com piora na
gestação. Não fuma e bebe raramente. Sedentária – não tem tempo e não gosta de
nenhum exercício físico, mas está disposta a mudar seus hábitos. Foi medicada com
ácido fólico apenas e não está apresentando nenhuma sintomatologia ligada à gestação.
Necessita dieta balanceada e normocalórica, no sentido de garantir ganho de peso
adequado ao desenvolvimento fetal, minimizando o risco gestacional pelo grande ganho
de peso durante a gestação.”
O relatório da nutricionista foi o seguinte:
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“A paciente informou que sempre almoça fora de casa. Costuma tomar café da manhã
na padaria, quando então come apenas misto quente. Prepara o jantar em casa e costuma
utilizar alimentos industrializados. Não gosta de tomates. Só gosta de alface americana
ou crespa. Só gosta de legumes, se for em creme (sopa batida e coada). Não gosta de
abacate, caqui. Não toma muito liquido, não se lembra de beber água. Usa somente
azeite para cozinhar, refere que o óleo de soja não é saudável. Tem muita preferência
por frituras. Gosta muito de industrializados, de embutidos e muito mais ainda de doces.
“Adora” salgados, principalmente esfiha. Gosta de batatas e cenouras.”
Meu relatório:
“Observo a paciente bastante defendida do contato com alguma dor mental. Mostra-se
visivelmente incomodada por estar conversando comigo. Após algum tempo de
conversa disse que perdeu um dos bebês. Racionaliza dizendo que foi melhor para o seu
corpo e para sua dinâmica de vida. Tentou conter sua emoção quando disse que ficou
triste e chorou. Mostra-se como alguém “sem problemas ou dificuldades”. No decorrer
da conversa fala de que a morte de seu pai, ocorrida há 10 anos foi um golpe terrível.
Depois desta época começou a engordar. Quando se deu conta tinha engordado 30 kilos.
Alega que faz sentido a frase “Querer não é poder” dita por mim. Traz alguns exemplos
me mostrando sua percepção a respeito disso “Se querer fosse poder eu teria o
manequim 40” (sic). Isto foi vivido isto muita dor psíquica, que insistia em negar, sem
se dar conta. Sabe estar em guerra, que não será fácil lutar contra a balança, mas o fato
de se sentir acolhida por vários profissionais lhe dá mais vontade de lutar. Tem a
sensação que conseguirá. Sente-se mais disposta a acolher a si mesma, porque agora
existe também o bebê.
Digo-lhe que teremos uma nova consulta e gostaria que tivesse a oportunidade, neste
período, de olhar e observar suas sensações, seus sentimentos a respeito dos momentos
de desejo frustrado e a forma com que lida com eles. Converso com ela sobre nossos
perseguidores internos que agem “na surdina”, travestidos de colaboradores. Informo
que nossa mente, ao contrário do que podemos pensar, não é a nossa melhor
companheira. Pode até ser em alguns momentos, mas as vezes, torna-se nosso maior
tormento. Neste sentido alego que a famosa frase “Eu mereço este doce hoje” fica
questionável: Estamos diante de um momento de acolhimento ou caímos em uma
armadilha. Me pareceu animada com nossa proposta.
Tenho a impressão que estamos em um momento favorável com esta paciente, na
medida em que engordou 30 kilos quando perdeu seu pai. É possível que no momento
de “nascimento” possa ser acionado em seu psiquismo uma condição de perder os kilos
que “ganhou”. Esta é uma hipótese para irmos avaliando durante o nosso trabalho.”
Relatório da reunião feita com toda a equipe que atendeu a paciente: Nutróloga,
nutriciconista e psicanalista:
“Foi trazido a questão do problema dos hábitos da paciente pela nutricionista e pela
nutróloga a informação do quadro clínico. Foi trazido pela psicanalista os dados
informados na ficha, adicionando informações tais como a percepção de uma certa
angústia da paciente em relação as cobranças do marido e parentes e que a analista
escuta como sendo cobranças suas em relação a si mesma. O aspecto severo da
cobrança do marido e de outros só fazem eco, na medida que é usado como objetos
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externos para expressar objetos internos (projeção). Neste sentido a paciente informa
sua fragilidade e nos dá a dimensão, que ela não alcança, de que esta situação está lhe
trazendo muito sofrimento psíquico, que está acobertado pelo sintoma. Um deles é sua
dor narcisíca de perceber que faz o que pode e não o que quer.”
Após leitura e discussões de todos os relatórios foi feito a seguinte pergunta?
Como trataremos esta paciente caso chegue com um kilo a mais, sabendo que isto
coloca em risco o bebê e ela própria?
Esta foi a novidade: A analista informa que, em sua opinião, esta questão deveria ficar
em um plano secundário. Neste momento nossa equipe teria que funcionar como um
“útero” que poderá ajudar a nascer este bebê e esta mãe. Neste sentido acolheríamos a
paciente com uma abordagem de que “podemos perder uma batalha e não a guerra” e
começamos de novo.
Nutróloga e nutricionista se surpreenderam com esta escuta. A nutróloga disse que sua
atitude seria de chamar a atenção da paciente para a responsabilidade em relação ao seu
estado de saúde e a nutricionista também. No entanto, ambas acreditam fazer sentido
esta nova escuta e decidimos seguir nesta direção.
Relatório do segundo retorno com a Psicanalista:
“ Conversamos durante 40 minutos e foi possível observar que a paciente estava muito
menos “defendida”. Falou que tem passado muito bem, que está animada com a dieta
que lhe foi passada pela nutricionista, pois não tem sentido tanta fome, ao contrário, está
se alimentando muito bem. Informa que o que eu lhe disse fez muito sentido e tem
pensado muito sobre isto: A história sobre os perseguidores internos. Esclarece:
“Perceber que eles existem é de muita ajuda, é como se a gente pudesse esclarecer um
monte de pensamentos”. Sentiu-se mais fortalecida em relação a isto e que, este
conhecimento, possibilitou negociar com seus desejos e sente que pode ter créditos. Não
cedeu às ofertas “generosas” do marido, convidando-a a comer um Big Mac e doces.
Disse que não é questão de gostar e querer, mas sente que tem algo maior, o bebê, a
gravidez e ela própria.
Frizou o prazer de estar sendo cuidada por uma equipe, onde ela é a comandante. Esta
observação se refere a um modelo que usei no encontro anterior: Estamos numa guerra,
onde ela é o comandante e nós os soldados. Podemos dizer onde estão os inimigos, mas
será ela quem decidirá como atacá-los. Disse que lhe deu uma sensação de
responsabilidade e gostou. O modelo foi associativo a experiência emocional que
estávamos vivendo. Minha proposta foi no sentido da paciente perceber a existência de
um mundo interno e consequentemente observar que pode haver “alimentos indigestos”
que necessitarão ser bem mastigados. Os limites impostos pela necessidade física, como
requer uma dieta, pode ser um deles.”
No retorno com a nutróloga, foi observado que a paciente emagreceu acima do
esperado.
Os resultados em outros casos clínicos que estamos atendendo são animadores. Os
médicos não têm mais dúvidas da importância da escuta psicanalítica no sucesso do
tratamento destes pacientes. Sabemos que muito temos para aprender.
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O conceito de identificação projetiva tem sido muito útil neste trabalho. O contato com
pacientes muito debilitados fisicamente e emocionalmente, muitas vezes coloca em
risco nossa “escuta”. As teorias psicanalíticas e a experiência clínica tem se mostrado
nossas melhores aliadas. Por este motivo meu lugar é no consultório psicanalítico e
minha colaboração a este projeto, tem se limitado a seis horas, divididas em três vezes
na semana. Nossa idéia é que mais psicanalistas se interessem pelo projeto e possam vir
a fazer parte da equipe.
Bibliografia
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Medicina Moderna? (2002)
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___
“ Experiência en Grupos” – Editora Paidós
Davanzo, Hernán – texto: “Algunas diferencias entre Psicoanális, Psicoterapia de
Orientácion Analítica y Psicoterapia Analítica de Grupo
Farkas, Melanie – texto: “O Psicanalista fora do Consultório: Os diferentes settings
(2003)
Franco Filho, Odilon de Mello – texto: “P.A.G.: Um Campo Minado – Como Tornar
Proveitoso esse Mau Negócio?”
Freud, Sigmund – texto: “A Psicologia dos Processos Oníricos” – cap.VII – livro “A
Interpretação dos Sonhos” (parte II) Vol. V – Edição Standard Brasileira – Editora
Imago
______
- texto: “Introdução ao Narcisismo” (1914) – Edição Standard
Brasileira – Editora Imago
Klein, Melanie – texto: Notas Sobre Alguns Mecanismos Esquizóides – Editora Zahar
Lanzoni, Maria da Penha Zabani – texto “O Jogo no Divã” (2004)
Mattos, José Américo Junqueira de – texto “Dos Distúrbios Obsessivo-Compulsivos às
Relações Continente-Contido” – Revista Latino Americana de Psicanálise – Fepal –
v.3,n.1, julho 1999
Della Nina, Milton – texto “ O psicanalista, a Clínica e o Psicossomático: Um enfoque
em nosso meio” (2003)
_________
- texto “O grupo de Vínculos Terapêuticos e Criatividade no Âmbito
Hospitalar” (2004)
Portillo, Isabel Diaz – “Bases de la Terapia de Grupo” – Editora Pax México.
Saddi, Luciana Stefno – texto “Um Breve Ensaio sobre Uma Teoria da Alimentação
(2005)
Marta Regina de Moraes Foster
Membro Efetivo Sociedade Brasileira
Psicanálise de S. Paulo
Rua Padre João Manoel, 222-cj.74
Tel. (11) 3061.5854
e.mail – [email protected]
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INTERFACES : PSICANÁLISE, MEDICINA E SAÚDE PÚBLICA
RESUMO
A proposta deste trabalho é demonstrar que a “escuta psicanalítica” pode ser uma
grande aliada no trabalho em Instituições Públicas e na Medicina. Para isto descrevo
minha experiência em dois projetos em que a psicanálise atua em conjunto com médicos
em atendimentos de grupos em Hospital Público e pacientes com doenças crônicas em
Centro Clínico.
Unitermos: escuta analítica . medicina . doenças crônicas . saúde pública . grupos .
jogos patológicos . obesidade
INTERFACIES: PSYCHOANALYSE, MEDICINE AND PUBLIC HEALTH
SUMMARY
The propose of this work is to demonstrate that “pychoanalystic listening” can be a
great alied on the work in Public Institutions and the Medicine. For this I describe my
experience in two projects that the psychoanalysis acts in set with doctors attending
groups in Public Hospital and patients with chronic illnesses at Clinical Center.
Terms: analytical listening, chronic medicine, illnesses, public health, groups,
pathological game, fatness.
INTERFACES: PSICOANALISIS, MEDICINA Y SALUD PÚBLICA
RESUMEN
La propuesta de este trabajo es mostrar que la “escucha psicoanalitica” puede ser una
gran aliada en el trabajo en Instituciones Públicas y en Medicina. Para estos efectos
describo mi experiencia en dos proyectos en los que el psicoanalisis actua en conjunto
con médicos en un Hospital Public y en pacientes con enfermedades crónicas en una
clínica.
Unitermos: escucha psicoanalitica, medicina crónica, enfermedades, salud pública,
grupos, juego patológico, obesidade.
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