Copyright © 2015 Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito Todos os direitos reservados e protegidos. Nenhuma parte deste livro, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados sem prévia autorização dos editores. Produção Editorial: Equipe Conpedi Diagramação: Marcos Jundurian Capa: Elisa Medeiros e Marcos Jundurian Impressão: Nova Letra Gráfica e Editora Ltda. CNPJ. nº 83.061.234/0001-76 Editora: Ediciones Laborum, S.L – CIF B – 30585343 Deposito legal de la colección: MU 859-2015 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) E56p Encontro de Internacionalização do CONPEDI (1. : 2015 : Barcelona, ES) I Encontro de Internacionalização do CONPEDI / organizadores: Enoch Alberti Rovira, Clerilei Aparecida Bier. – Barcelona : Ediciones Laborum, 2015. V. 6 Inclui bibliografia ISBN (Internacional): 978-84-92602-86-5 Depósito legal : MU 859-2015 Tema: Atores do desenvolvimento econômico, político e social diante do Direito do século XXI 1. Direito – Estudo e ensino (Pós-graduação) – Congressos. 2. Direito constitucional. 3. Direito internacional 4. Direitos humanos. I. Rovira, Enoch Alberti. II. Bier, Clerilei Aparecida. III. Título. CDU: 34 Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071 1º Impressão – 2015 EDICIONES LABORUM, S. L. CIF B-30585343 Avda. Gutiérrez Mellado, 9 - 3º -21- Edif. Centrofama Teléfono 968 88 21 81 – Fax 968 88 70 40 e-mail: [email protected] Diretoria - Conpedi Presidente Prof. Dr. Raymundo Juliano Feitosa - UFRN Vice-presidente Sul Prof. Dr. José Alcebiades de Oliveira Junior - UFRGS Vice-presidente Sudeste Prof. Dr. João Marcelo de Lima Assafim - UCAM Vice-presidente Nordeste Profa. Dra. Gina Vidal Marcílio Pompeu - UNIFOR Vice-presidente Norte/Centro Profa. Dra. Julia Maurmann Ximenes - IDP Secretário Executivo Prof. Dr. Orides Mezzaroba - UFSC Secretário Adjunto Prof. Dr. Felipe Chiarello de Souza Pinto - Mackenzie Conselho Fiscal Prof. Dr. José Querino Tavares Neto - UFG /PUC PR Prof. Dr. Roberto Correia da Silva Gomes Caldas - PUC SP Profa. Dra. Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini Sanches - UNINOVE Prof. Dr. Lucas Gonçalves da Silva - UFS (suplente) Prof. Dr. Paulo Roberto Lyrio Pimenta - UFBA (suplente) Representante Discente Mestrando Caio Augusto Souza Lara - UFMG (titular) Secretarias (Diretor de Informática) Prof. Dr. Aires José Rover - UFSC (Diretor de Relações com a Graduação) Prof. Dr. Alexandre Walmott Borgs - UFU 3 (Diretor de Relações Internacionais) Prof. Dr. Antonio Carlos Diniz Murta - FUMEC (Diretora de Apoio Institucional) Profa. Dra. Clerilei Aparecida Bier - UDESC (Diretor de Educação Jurídica) Prof. Dr. Eid Badr - UEA / ESBAM / OAB-AM (Diretoras de Eventos) Profa. Dra. Valesca Raizer Borges Moschen - UFES Profa. Dra. Viviane Coêlho de Séllos Knoerr - UNICURITIBA (Diretor de Apoio Interinstitucional) Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira - UNINOVE Rua Desembargador Vitor Lima, 260, sala 508 Cep.: 88040-400 Florianópolis – Santa Catarina - SC www.conpedi.org.br 4 Apresentação Este livro condensa os artigos aprovados, apresentados e debatidos no Iº ENCONTRO DE INTERNACIONALIZAÇÃO DO CONSELHO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO – CONPEDI, realizado entre os dias 08, 09 e 10 de outubro de 2014, em parceria com a Faculdade de Direito da Universidade de Barcelona – Espanha. O evento teve como tema os “Actores del Desarrollo económico, político y social frente al Derecho del siglo XXI”. Para o evento foram submetidos e avaliados mais de quinhentos artigos de pesquisadores do Brasil e da Europa. Após as avaliações foram aprovados em torno de trezentos artigos para apresentação e publicação. O principal objetivo do evento foi o de dar início ao processo de internacionalização e fundamentalmente, o de construir espaços para a inserção internacional e divulgação de pesquisas realizadas pelos Pesquisadores dos Programas de Pós-Graduação em Direito do Brasil, associados ao CONPEDI. A realização deste primeiro evento procurou estimular o debate e o diálogo sobre questões atuais do Direito envolvendo a realidade brasileira e espanhola. Os artigos apresentados analisaram o papel dos “Actores del Desarrollo económico, político y social frente al Derecho del siglo XXI” praticamente em todas as áreas do Direito. Considerando a amplitude do tema, as diversas abordagens e buscando uma aproximação entre as áreas de conhecimento optou-se pela organização de seis grupos de trabalhos (GTs), que foram constituídos da seguinte forma: a) Derecho Constitucional, Derechos Humanos e Derecho Internacional; b) Derecho Mercantil, Derecho Civil, Derecho do Consumidor e Nuevas Tecnologías; c) Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social; d) Derecho Administrativo, Derecho Tributario e Derecho Ambiental; e) Teoría del Derecho, Filosofía del Derecho e História del Derecho; f) Derecho Penal, Criminología e Seguridad Pública. Além da promoção do intercambio entre as Instituições e profissionais da área do Direito do Brasil e Europa, a possiblidade de ampliar e difundir a produção cientifica no âmbito internacional e a melhoria dos indicadores dos Programas de Pós-graduação brasileiros, com a realização do primeiro evento internacional 5 a atual Diretoria do CONPEDI também cumpre com um de seus compromissos assumidos quando eleitos. A transcendência da realização deste primeiro evento internacional para os pesquisadores brasileiros da área do Direito se reflete no resultado final obtido. A publicação de 15 livros, através da Ediciones Laborum da Espanha em parceria com o CONPEDI, com todos os artigos apresentados e debatidos nos GTs representa uma expressiva conquista que trará importantes resultados para os programas de Pós-graduação brasileiros e, fundamentalmente, para a área do Direito. Barcelona/Florianópolis, março de 2015. Os Organizadores 6 i encontro de internacionalização do conpedi Sumário Os Direitos Humanos, o Universalismo Interativo e o Dever de Solidariedade: Observações às Teorias de Justiça de Rawls e Habermas José Alcebíades de Oliveira Júnior e Andressa Fracaro Cavalheiro............9 Parlamentarismo e Sistema Político-Constitucional Brasileiro: Uma Boa Opção? Anderson Santos dos Passos e Paula Veiga ..............................................35 Participação e Proteção dos Direitos Humanos na Implantação de Políticas de Reurbanização: Um Estudo de Caso do Programa Polos de Cidadania Adriana Goulart de Sena Orsini e Nathane Fernandes da Silva..............69 Perspectivas do Acesso à Justiça ante a Chegada de um Novo Código de Processo Civil Lenio Streck e Lúcio Delfino..................................................................101 Políticas Públicas de Saúde para Idosos com Alzheimer em Persperctiva Internacional e Comparada Célia Barbosa Abreu e Eduardo Manuel Val ..........................................127 Quando as Intenções Não Bastam: A Incongruência entre o Discurso Parlamentar e o Perfil do Controle Concentrado de Constitucionalidade no Brasil Alexandre Araújo Costa e Alexandre Douglas Zaidan de Carvalho..........161 Reflexão Epistemológica Sobre o Estudo da Constituição e do Constitucionalismo no Brasil Monique Falcão e Ricardo Falbo............................................................195 Regularização Fundiária e as Favelas Cariocas. O Caso de Rio das Pedras Antonio Renato Cardoso da Cunha e Cláudia Franco Corrêa..................227 volume 06 7 i encontro de internacionalização do conpedi Solidarismo Internacional e Globalização Sustentável: Análise da Viabilidade do Intercâmbio Acadêmico na Educação Jurídica dos Alunos da Universidade de Palermo (Itália) na Universidade de Fortaleza (Brasil) Dayse Braga Martins e Randal Martins Pompeu.....................................249 Técnicas de Decisão na Jurisdição Constitucional e a Garantia de Direitos Fundamentais das Minorias pelo Stf Ana Paula Oliveira Ávila......................................................................275 Tratados Internacionais: Soberania Versus Indivíduo Luís Renato Vedovato e Daniel Francisco Nagao Menezes........................303 Uma “Boa” Jurisdição Constitucional Cibele Fernandes Dias e Andrea Abrahão Costa......................................325 Uma Nação Entorpecida: Os Direitos Fundamentais das Pessoas Portadoras de Deficiência Psiquíca no Brasil Gabrielle Bezerra Sales..........................................................................349 Uma Proposta de Reconfiguracão das Concepções e Tipologia do Estado Contemporâneo Luiz Henrique Urquhart Cademartori e João Luiz Martins Esteves.........369 8 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi os direitos humanos, o universalismo inter ativo e o dever de solidariedade: observações às teorias de justiça de r awls e habermas1 José Alcebíades de Oliveira Júnior2 Andressa Fracaro Cavalheiro3 Resumo No presente trabalho são analisados aspectos dos direitos humanos, desde sua configuração nos paradigmas liberal e social, até seu atual estágio na sociedade pós-moderna. A partir disto, apresentam-se as diferenças entre o universalismo substitucionista e o universalismo interativo, demonstrando-se a adequação deste último na busca pela efetivação dos direitos humanos, notadamente quando associado ao dever de solidariedade, entendido como constitutivo da própria natureza humana. Assim, as teorias de justiça de Rawls e Habermas são analisadas sob os pressupostos do universalismo interativo e do dever de solidariedade, do que resulta observações acerca de suas insuficiências para compreensão da sociedade pós-moderna, que plural, diversa e detentora de uma identidade cultural ambivalente, precisa ter seus membros reconhecidos como sujeitos situados que buscam pela efetivação dos seus direitos. Palavras-chave Direitos Humanos; Universalismo Interativo; Dever de Solidariedade; Teorias de Justiça. 1 Este trabalho é resultado das pesquisas desenvolvidas no primeiro semestre de 2014 com base nas temáticas estudadas na disciplina de Sociologia Judiciária ministrada junto ao PPGDir/ UFRGS. 2 Doutor em Direito. Professor Titular na Faculdade de Direito da UFRGS, Brasil. Líder do Grupo de Sociologia Judiciária do PPGDir/UFRGS. E-mail: [email protected] 3 Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Brasil. Mestre em Direito. Professora Assistente na Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste, Brasil. Membro do Grupo de Pesquisa de Sociologia Judiciária do PPGDir/UFRGS. Bolsista da Fundação Carolina. E-mail: [email protected] volume 06 9 i encontro de internacionalização do conpedi Abstract This paper analyses the human rights aspects since its configuration in the liberal and social paradigms, until its current stage in postmodern society. Then are presented the differences between the substitutionist universalism and the interactive universalism, demonstrating the suitability of the interactive universalism for the realization of human rights, especially when combined with the solidarity obligation, understood as constitutive of human nature itself. Thus, the theory of justice of Rawls and Habermas are analyzed under the assumptions of interactive universalism and solidarity duty, resulting in appointments of its inadequacies in understanding the postmodern society, which, being plural, diverse and holding a ambivalent cultural identity, must have its members recognized as people that seek for the human rights realization. Key words Human Rights; Interactive universalism; Situated subject; Duty of Solidarity; Theories of Justice. 1.introdução É inegável que a positivação dos direitos humanos – então compreendidos como fundamentais – foi uma grande conquista e trouxe inúmeros benefícios, possibilitando não só sua exigência, mas trazendo garantias à sua concreção. Todavia, ainda que no mundo ocidental a maior parte dos países tenha em seu texto constitucional direitos humanos formalmente garantidos, é fato que sua efetivação é ainda distante do ideal que todos buscamos. Todos os dias é possível verificar a ocorrência de violação aos direitos humanos, em menor ou maior escala, em países mais ou menos desenvolvidos. Na luta pela sua efetivação, várias propostas tem sido apresentadas e vários caminhos são traçados. Neste contexto, pretendemos trazer nossa contribuição, demonstrando como a adoção do universalismo interativo em substituição ao universalismo substitucionalista pode, em conjunto a revisão das teorias de justiça e reconhecendo a solidariedade e suas virtudes, como um dever moral, apontar um novo caminho para satisfação plena dos direitos humanos na sociedade pósmoderna. 10 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi 2.fases evolutivas de uma mesma moeda: os direitos humanos Os direitos humanos, pode-se afirmar com Bobbio, são produtos da história, constituindo uma classe variável, como bem demonstra a história dos últimos séculos. Por isso é que o elenco dos direitos humanos modificou-se, e continua a modificar-se, em virtude das condições históricas que podem ser entendidas como as carências e os interesses das classes do poder, os meios disponíveis para a realização dessas carências e interesses e, entre outras coisas, as transformações técnicas havidas na sociedade. Para confirmar-se tal fato, basta lembrar-se de direitos que declarados absolutos no final do século XVIII (propriedade, por exemplo), foram submetidos à limitações nas declarações contemporâneas. Do mesmo modo, direitos que sequer foram mencionados (ou mesmo pensados) nas declarações deste período, são hoje reconhecidos e exigíveis, como é o caso dos direitos sociais4. Em suas palavras exatas, [...] os direitos humanos são o produto não da natureza, mas da civilização humana; enquanto direitos históricos, eles são mutáveis, ou seja, suscetíveis de transformação e ampliação. [...] O desenvolvimento dos direitos do homem passou por três fases: num primeiro momento, afirmaram-se os direitos de liberdade, isto é, todos aqueles direitos que tendem a limitar o poder do Estado e a reservar para o indivíduo, ou para os grupos particulares, uma esfera de liberdade em relação ao Estado; num segundo momento, foram propugnados os direitos políticos, os quais – concebendo a liberdade não apenas negativamente, como não-impedimento, mas positivamente, como autonomia – tiveram como consequência a participação cada vez mais ampla, generalizada e frequente dos membros de uma comunidade no poder político (ou liberdade no Estado); finalmente, foram proclamados os direitos sociais, que expressam o amadurecimento de novas exigências – podemos mesmo dizer, de novos valores –, como os do bem-estar e da igualdade não apenas formal, e que poderíamos chamar de liberdade através ou por meio do Estado.5 (destaques no original). 4 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 18. 5BOBBIO, op. cit., p. 32. volume 06 11 i encontro de internacionalização do conpedi Nos dá Bobbio, portanto, uma bela introdução às fases históricas dos direitos humanos, correspondentes, por óbvio, às diversas configurações do próprio Estado e sua cultura política. Assim, por exemplo, para a cultura medieval o povo é uma realidade já dada e espontaneamente ordenada, não reduzível a uma soma de indivíduos abstratamente iguais, posto que sua identidade político-administrativa é obtida por meio dos vínculos que o ligam às comunidades, corporações, hierarquias. Já na cultura democrática inaugurada com a modernidade, vigora o paradigma do direito natural que, entre os séculos XVII e XVIII, através da ficção do “estado de natureza”, fragmenta a relação obrigatória entre o indivíduo e os corpos, entre o indivíduo e as hierarquias, considerando o sujeito titular de direitos fundamentais, fazendo com que a fundação da ordem política dependa da decisão contratual de sujeitos por natureza livres e iguais. O protagonista é o indivíduo, com seus direitos-poderes invioláveis6. Na modernidade é possível dividir a trajetória histórica dos direitos humanos em duas grandes fases, correspondendo, reciprocamente, ao Estado Liberal e ao Estado Social. Neste sentido, cabe não olvidar que a história dos direitos humanos retrata, antes de tudo, o percurso de uma ideia que brotou e se desenvolveu na civilização ocidental. Tais direitos são a tradução normativa de uma cosmovisão que remonta, essencialmente, à filosofia iluminista, razão pela qual há contestação quando ao caráter universal dos direitos humanos, que, ao serem impostos a civilizações que não partilham da tradição cultural ocidental, constituem-se violência ante à autodeterminação dos povos7. No paradigma liberal ocorreu o processo de positivação dos direitos humanos, fruto da necessidade de incorporação ordenamento jurídico dos direitos tidos por inerentes ao homem. É a positivação dos direitos humanos. Dentro do paradigma liberal, a positivação havida resulta da fórmula utilizada para a racionalização e a legitimação do poder pelo iluminismo e, considerada a lógica jurídica dominante à época, a única forma de garantir fossem tais direitos objeto de proteção por parte do Estado. Obviamente que esta é uma lógica perversa, na medida em 6 COSTA, Pietro. Soberania, representação, democracia: ensaios de história do pensamento jurídico. Curitiba: Juruá, 2010. p. 214. 7 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 19. 12 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi que considera que direitos não normatizados juridicamente não são passíveis de proteção. No Estado Liberal estabeleceram-se os chamados direitos de primeira dimensão, fruto das lutas travadas entre a burguesia e o Estado absolutista, marcadas pelo ideal do jusntauralismo, do racionalismo iluminista, do contratualismo e do liberalismo, baseando-se no princípio da liberdade. Entendidos, neste primeiro momento, como direitos inerentes à individualidade, atributos naturais do homem, são inalienáveis e imprescritíveis. São, conforme constata Alexy, destinados, em primeira instância a proteger a esfera de liberdade ou do indivíduo contra intervenções dos Poderes Públicos; são direitos de defesa do cidadão contra o Estado. Apesar dos inegáveis progressos que os direitos liberais trouxeram para a humanidade, a realidade mostrava a sua insuficiência para assegurar a dignidade humana8. O processo de industrialização, ocorrido a partir do final do século XVIII, realizado sob a lógica do mercado, acentuou o quadro de exploração do homem pelo homem, com a concentração de renda e dos meios de produção nas mãos de uma parcela ínfima da sociedade. Neste aspecto, revelava-se uma indisfarçável divisão de classes e tornava-se explícito o fato de que a maioria das pessoas achava-se alijada do sistema e desamparada por um Estado absenteísta. Com a revolução industrial surgiu na sociedade um cidadão até então desconhecido: o trabalhador das fábricas. Com as fábricas, vieram as máquinas que causavam o desemprego, obrigando os trabalhadores a viver em condições de miserabilidade, em habitações insalubres, cercadas por oficinas e em terrenos pantanosos, realizando jornadas excessivas de trabalho. O trabalho infantil e feminino foi incorporado pelo mercado, colaborando para uma diminuição ainda maior da remuneração percebidas pelos trabalhadores, aumentando, exponencialmente, os lucros da classe dominante. Uma passagem da obra de Engels ilustra bem a situação: A própria concentração das populações nas grandes cidades já exerce uma influência muito desfavorável; a atmosfera de Londres 8SARMENTO, op. cit., p. 31. volume 06 13 i encontro de internacionalização do conpedi não poderá ser tão pura, tão rica em oxigênio como a de uma região rural; dois milhões e meio de pulmões e duzentas e trinta mil casas amontoadas numa superfície de três ou quatro milhas quadradas consomem uma quantidade considerável de oxigênio que só muito dificilmente se renova por que a maneira como as cidades estão construídas torna difícil o arejamento. O gás carbônico produzido pela respiração e pela combustão permanece na ruas devido à densidade e porque a principal corrente de ventos passa por cima de todas as casas [...] Toda a matéria animal e vegetal que se decompõe produz gases incontestavelmente prejudiciais à saúde e se estes gases não têm saída livre, envenenam necessariamente a atmosfera. O lixo e os charcos que existem nos bairros operários das grandes cidades representam pois um grave perigo para a saúde pública, precisamente porque produzem estes gases patogênicos; o mesmo acontece com as emanações dos cursos de água poluídos. Mas não é tudo, ainda há mais. A maneira como a sociedade actual trata os pobres é verdadeiramente revoltante9. Dada esta realidade, surgem inúmeras críticas ao liberalismo econômico, donde surgiu e se nutria o capitalismo selvagem. O marxismo, o socialismo utópico e a doutrina social da Igreja, ainda que sob perspectivas distintas, questionavam o individualismo exacerbado do constitucionalismo liberal. Assim, com o passar do tempo, foi se consolidando a convicção de que o efetivo desfrute dos direitos individuais dependia, necessariamente, de garantir minimamente as condições de existência para cada ser humano10. Assim, já na primeira metade do século XIX, a Inglaterra criava as primeiras normas sociais para proteger o trabalhador e minimizar os nefastos impactos da Revolução Industrial sobre a classe operária. Na Alemanha, nas décadas de 60 e 70 também do século XIX, Bismark, pretendendo impedir os avanços dos socialistas e alcançar alguma paz social, esboçava uma legislação de proteção ao trabalhador e de assistência social. Em 1917 eclodiu a Revolução Russa e, 40 anos mais tarde, um terço da humanidade vivia em regimes diretamente derivados do modelo soviético de apropriação coletiva dos meios de produção. O medo de revoluções semelhantes ocorrerem em países desenvolvidos, diminuiu as 9 ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Tradução de Rosa Camargo Artigas e Reginaldo Forti. São Paulo: Global, 1985. p. 116/117. 10SARMENTO, ob. cit., p. 31 e 33. 14 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi resistências na transição do Estado Liberal para o Estado Social (ou do Bem-Estar Social), associado à extensão paulatina do direito do sufrágio a parcelas cada vez maiores da população, permitindo que mudanças também viessem a ocorrer no universo normativo11. Surge então, na virada do século XX, o Estado do Bem-Estar Social, e com ele a consagração constitucional de novos direitos que, por seu turno, demandam prestações estatais destinadas à garantia de condições mínimas de vida para a população. Está-se tratando, portanto, do advento dos direitos sociais que, de acordo com Luño, [...] tienen como principal objeto asegurar la participación en la vida política, económica, cultural y social de las personas individuales, así como de los grupos en los que se integran. Gurvich los definió, en fórmula que puede considerarse clásica, como ‘derechos de participación de los grupos y de los individuos, derivados de su integración en colectividades y que garantizan el carácter democrático de éstas’. Esta definición permite advertir los caracteres más salientes de los derechos sociales. Así, pueden entenderse tales derechos, en sentido objetivo, como el conjunto de las normas a través de las cuales el Estado lleva a cabo su función equilibradora de las desigualdades sociales. En tanto que, en sentido subjetivo, pueden entenderse como las facultades de los individuos y de los grupos a participar de los beneficios de la vida social, lo que se traduce en determinados derechos y prestaciones, directas o indirectas, por parte de los poderes públicos.12 Estabelecidos os paradigmas dos direitos humanos nos Estados Liberal e Social, necessário se faz abordar sua concepção contemporânea. Neste sentido, considerando uma pluralidade de significados, optamos por destacar a concepção introduzida pela Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, nascida como resposta às atrocidades e horrores praticados durante a Segunda Guerra Mundial. Neste contexto, e sendo necessária a reconstrução do valor dos direitos humanos como um paradigma e referencial ético, surge a Declaração como um código 11SARMENTO, ob. cit., p. 33 12 LUÑO, Antonio-Enrique Pérez. Los derechos fundamentals. 8. ed. Madrid: Tecnos, 2005. p. 184. volume 06 15 i encontro de internacionalização do conpedi de princípios e valores universais a serem respeitados pelos Estados. A Declaração Universal de Direitos Humanos demarca uma concepção inovadora de que os direitos humanos são direitos universais, cuja proteção não deve se reduzir ao domínio reservado do Estado, porque revela tema de legítimo interesse internacional13. A Declaração de 1948 consagra a ideia segundo a qual os direitos humanos compõem uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, na qual os direitos civis e políticos são conjugados com os direitos econômicos, sociais e culturais (acepção ampla dos direitos sociais14), introduzindo, assim, extraordinária inovação ao combinar o discurso liberal da cidadania com o discurso social, elencando tanto direitos civis e políticos quanto direitos sociais, econômicos e culturais. A Declaração Universal atribui aos direitos humanos o caráter de unidade indivisível, inter-relacionada e interdependente15. Assim, também a Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993, afirma, no item 5, de sua primeira parte, que todos os Direitos do homem são universais, indivisíveis, interdependentes e interrelacionados. A comunidade internacional tem de considerar globalmente os Direitos do homem, de forma justa e equitativa e com igual ênfase. Embora se devam ter sempre presente o significado das especificidades nacionais e regionais e os antecedentes históricos, culturais e religiosos, compete aos Estados, independentemente dos seus sistemas político, económico e cultural, promover e proteger todos os Direitos do homem e liberdades fundamentais.16 Deste modo, a concepção contemporânea de direitos humanos engloba o alcance universal destes direitos e a unidade indivisível e interdependente que assumem. Os Estados, portanto, devem garantir sua implementação e efetividade, porque indispensáveis à própria existência digna dos cidadãos. Entretanto, ainda que se deva considerar este um dever do Estado, é preciso reconhecer que ainda estamos longe de seu cumprimento integral, sendo neces13 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad, 2003. p. 92. 14LUÑO, ob. cit., p. 184. 15PIOVESAN, ob. cit., p. 92/93. 16 DECLARAÇÃO DE VIENA. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/ viena/viena.html.> Acesso em 13 de junho de 2013. 16 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi sário pensar-se em alternativas para garantir efetividade aos direitos humanos, nesse que se pode chamar de período pós-moderno, onde, nos dizeres de Bauman, a racionalidade moderna, na busca pelo “único” se deparou com o “múltiplo”, com o diverso, com a ambivalência. A pós-modernidade, prossegue, nada mais é do que a superação da condição moderna da existência humana.17 Por isso, enquanto na modernidade o que víamos eram direitos humanos formais, para sujeitos abstratos e buscando uma igualdade formal, na pósmodernidade, temos uma identidade cultural, um sujeito situado e a busca por uma igualdade material. Sobre os direitos humanos na pós-modernidade, as reflexões trazidas por Santos18 nos parecem pertinentes, razão pela qual, perfunctoriamente, as trazemos à lume. Assim, para este autor, os direitos humanos configuram-se em uma das principais promessas do projeto da modernidade e uma das que obteve maior grau de realização. Todavia, esse maior grau de realização não significa sua efetividade ou concretização verdadeiramente universal, enquanto experimentada por todos, em todos os lugares. É necessário reconhecer-se sua falta de efetivação. Para o autor, essa falta de completa efetivação se deve ao fato de que os direitos humanos, por encontrarem-se ancorados na jurídica estatal, partilham da crise do direito e da crise do Estado. A solução ao problema residiria no que chama de uma concepção pós-moderna dos direitos humanos, assentada em duas questões: a primeira relativa à natureza e ao âmbito dos direitos humanos por que se deve lutar, e a segunda, concernente aos tipos e objetivos das lutas que se devem empreender. Em relação à natureza e ao âmbito dos direitos humanos, propõe predomine um pensamento de emancipação concreta, um pensamento contextual que embora não recuse o caráter utópico dos direitos humanos, exija que sua utopia, por mais radical, se traduza num quotidiano diferente, num novo modo vida mais autêntico, onde ocorra uma verdadeira revalorização da sociologia dos direitos humanos. Onde se exija que a eficácia das declarações de direitos huma17 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 244 18 Reflexões concentradas na obra SANTOS, Boaventura de Sousa. Os direitos humanos na pósmodernidade. n. 10, Coimbra: Oficina do Centro de Estudos Sociais, 1989. p. 1-14. volume 06 17 i encontro de internacionalização do conpedi nos não seja apenas simbólica, mas real; onde se exija sejam os direitos humanos efetivamente aplicados. Para isso, há que se traçar o caminho inverso ao traçado pela modernidade: deve-se trivializar o direito e sacralizar os direitos. No que tange aos tipos e objetivos das lutas pelos direitos humanos a serem empreendidas, afirma que reclamam um novo internacionalismo, um internacionalismo de cidadania e uma concepção cada vez menos resignada com a mera promulgação dos direitos humanos, e cada vez mais atenta às práticas quotidianas em que se satisfazem efetivamente as necessidades básicas. Estas necessidades básicas não se reduzem somente às necessidades materiais, mas também às necessidades afetivas e expressivas, aquelas cuja satisfação nos confere um sentido e um lugar no mundo, num mundo de cidadãos. Por isso os novos movimentos sociais, assentes nos princípios da democracia de base, da autogestão, do direito à diversidade e à individualidade, da autonomia local e regional, da desprofissionalização e da descentralização, desempenham um relevante papel. De nosso lado, entendemos que uma das alternativas para a efetivação dos direitos humanos na pós-modernidade passa pela reformulação das teorias de justiça, que ao ancorar-se em sujeitos concretamente situados, podem traduzir o dever de solidariedade e dar aos direitos humanos não mais um universalismo substitucionista, mas interativo. Comecemos, então, com as questões relativas ao sujeito situado e à solidariedade, objetos do nosso próximo item. 3. o sujeito situado e a solidariedade Nosso esforço neste item estará concentrado em desenvolver os pressupostos para uma análise das teorias de justiça abordadas no item 4, o fazendo pelo desenvolvimento das ideias do universalismo interativo em contraposição ao universalismo substitucionalista. Para entendermos o significado destes termos, recorramos a Benhabid: Quiero distinguir el universalismo sustitucionalista del universalismo interactivo. El universalismo interactivo reconoce la pluralidad de modos de ser humano, y diferencia entre los humanos, sin inhabilitar la validez moral y política de todas estas pluralidades y diferencias. Aunque está de acuerdo en que las disputas normativas se pueden llevar a cabo de manera racional, y que la 18 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi justicia, la reciprocidad y algún procedimiento de universalidad son condiciones necesarias, es decir son constituyentes del punto de vista moral, el universalismo interactivo considera que la diferencia es un punto de partida para la reflexión y para la acción. En este sentido la ‘universalidad’ es un ideal regulativo que no niega nuestra identidad incardinada y arraigada, sino que tiende a desarrollar actitudes morales y a alentar transformaciones políticas que puedan conducir a un punto de vista aceptable para todos. La universalidad no es el consenso ideal des selves definidos ficticiamente, sino el proceso concreto en política y en moral de la lucha de los selves concretos e incardinados que se esfuerzan por su autonomía. Assim, em linhas gerais, temos que no universalismo interativo consideram-se as diferenças, que servem como ponto de partida para a reflexão e para a ação. O que se pretende, então, é uma universalidade que seja um ideal regulativo que não negue as identidades individuais, mas que desenvolva atitudes morais e fomente transformações políticas que possam conduzir a um ponto de vista realmente aceitável para todos. O universalismo interativo ancora-se em raciocínios de seres humanos con-cretos, situados, com uma história e uma identidade em construção. No universalismo interativo a elaboração moral reconhece a contingência. Por isso, assevera Toldy que o universalismo interativo supõe, pois, o reconhecimento da existência de uma pluralidade de pontos de vista morais, o ideal moral da reversibilidade de posições, isto é, o esforço de se colocar na posição do outro, e ainda a superação de uma noção de outro generalizado, em prol da consciencialização de que o outro é concreto19. Segundo Toldy, Seyla Benhabib define o ponto de vista do outro generalizado como aquele que parte do pressuposto de que cada indivíduo é uma pessoa moral dotada dos mesmos direitos morais que nós, uma pessoa moral que também é um ser racional e que age, capaz de um sentido de justiça ou de formular uma visão do bem, bem como de se comprometer numa ação que conduza ao mesmo. Por seu turno, o ponto de vista do outro concreto é aquele que nos permite ver 19 TOLDY, Maria Tereza Leal de Assunção Martinho. Da ética do cuidar ao universalismo interativo. In: Agregação-Interação, s/n., 2010, p. 15. Disponível em: <http://bdigital.ufp.pt/ bitstream/10284/3234/3/LIÇÃO_TToldy.pdf>. Acesso em 15 de junho de 2014. volume 06 19 i encontro de internacionalização do conpedi todas as pessoas morais como indivíduos únicos, com uma determinada historia de vida, com determinadas disposições e dotes, assim como com determinadas necessidades e limitações20. O universalismo interativo busca, assim, o ponto de vista do outro concreto, onde seja possível ver o sujeito como um indivíduo único, com necessidades e limitações determinadas, com disposições específicas, com uma determinada história de vida. É uma mudança de paradigma, portanto. É deixar de ver o outro generalizado e passar a considerar o outro concreto. Neste diapasão, vai o pensamento de Meyers, senão vejamos: La visión del sujeito moral que actualmente domina la discussión en la filosofia moral y política es una visión legalista [...] Con tal de hacer manejable el problema de la distribución social de bienes, se marginan las idiossincrasias personales, los profundos lazos interpersonales y las afiliaciones culturales, y se enumera un conjunto de interesses humanos universales que pueden ser equitativamente satisfechos. En consecuencia, el yo es visto como ampliamente independiente, transparente y racional. Pero esta concepción del sujeto moral guarda muy poca similitude con la gente que conocemos y estimamos21. Deste modo, ao assumir o ponto de vista do outro concreto, fazemos abstração do que constitui o comum. Tentamos compreender as necessidades do outro, suas motivações, o que busca e quais são seus desejos. Neste caso, assinala Benhabib, Nuestra relación con el otro es regida por las normas de equidad y reciprocidad complementaria, cada cual tiene el derecho a esperar y suponer de los otros formas de conducta por las que el otro se sienta reconocido y confirmado en tanto que ser individual y concreto con necesidades, talentos y capacidades específicas. en este caso nuestras diferencias se complementan en lugar de excluirse mutuamente. Las normas de nuestra interacción suelen ser privadas, no institucionales. Son normas de amistad, amor y cuidado. Estas normas exigen de varias formas que yo exhiba 20Ibidem, passim. 21 MEYERS, D.T. apud PALMERO, María José Guerra. ¿Tiene género la Justicia? Notas sobre el androcentrismo como tácita antropología normative. In: BLASCO, Pedro Luis. La justicia entre la moral y el derecho. Madrid: Trotta, 2013. p. 128. 20 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi algo más que la simple afirmación de mis derechos y deberes de cara a tus necesidades. Al tratarte de acuerdo con las normas de amistad, amor y cuidado, no sólo confirmo tu humanidad sino tu individualidad humana. Las categorías morales que acompañan a tales interacciones son responsabilidad, vinculación y colaboración. Los sentimientos morales correspondientes son amor, cuidado y simpatía y solidaridad 22. Amizade, amor e cuidado, portanto, seriam condições para confirmar a humanidade e a individualidade humana e, por isso, cada um teria o direito de esperar dos outros formas de conduta pelas quais se sinta reconhecido de acordo com sua individualidade, suas necessidades, talentos e capacidades específicas. As interações sociais seriam acompanhadas pela responsabilidade, vinculação e colaboração, enquanto categorias morais, ao que corresponderia o amor, o cuidado e simpatia e a solidariedade. Sendo nosso escopo a análise de teorias de justiça, e considerando a solidariedade como elemento da interação social havida com o outro concreto, vejamos como justiça e solidariedade se relacionam, tomando por base o conceito de solidariedade de Pedro Luis Blasco23. Ainda que as elaborações teóricas dos últimos tempos tenham se detido mais sobre as questões de Justiça, Blasco nos informa sobre um novo caminho que insiste na solidariedade dos seres humanos e na necessária proteção e garantia dos direitos humanos dos mais débeis, desprotegidos e marginalizados.24 Assim, pretende Blasco, dar à solidariedade uma concepção sistemática, mais razoável e melhor embasada, atribuindo a ela uma consistência maior e uma fundamentação mais finalista. Para o autor, a solidariedade é uma virtude moral e não somente um fato sociológico, com a dimensão política que lhe é inerente, ou apenas um elemento importante da psicologia humana25. Para ele, 22BENHABIB, Seyla. El otro generalizado y el otro concreto. In: BENHABIB, Seyla e CORNELL, Drucilla (Comps.) Teoría Feminista y Teoría Crítica. Valencia: Ediciones Alfons el Magnánim, 1990. p. 132. 23 Exposto em BLASCO, Pedro Luis. Justicia jurídica y solidariedade moral. In: : BLASCO, Pedro Luis. La justicia entre la moral y el derecho. Madrid: Trotta, 2013. p. 165-207. 24 Ibidem, p. 167. 25Blasco, op. cit., p. 179. volume 06 21 i encontro de internacionalização do conpedi […] [la] solidaridad […] [es una] cualidad constitutiva del ser humano, previa a la solidaridad empírica y social o externa, y previa a una solidaridad interna meramente psicológica o emocional. Hay que pensar una solidaridad intrínseca a la naturaleza humana de cada individuo que es la que se manifiesta en las acciones concretas solidarias y que nos inclina a la ayuda al otro como su última razón de ser […].26 Para o autor, a solidariedade, sendo uma virtude moral, configura-se numa tarefa, num dever. Um modo de ser que é exigido pela própria natureza humana de cada pessoa, por e para sua própria plenitude, perfeição e felicidade. Por isso, diz que a solidariedade moral vai mais além do direito, vai mais além de todos os direitos e vai mais além da própria justiça. E explica: Todos los derechos son siempre derechos frente al otro; no son por ello causa de enfrentamiento, sino que, inversamente, son un modo justo de resolver enfrentamientos entre individuos: los derechos son defensa de uno mismo frente a la demanda y a las pretensiones injustas de otros, la manera de hacer valer y proteger legítimamente lo proprio de cada uno. De ahí la dimensión individualista de todos los derechos, incluidos los derechos humanos, bien que los derechos tienen también una función social imprescindible para la convivencia de los ciudadanos y como reconocimiento, en su caso, de la dignidad humana, para posibilitar una vida digna de la humanidad de los seres humanos Pero los derechos, considerados desde su inmanencia en la dimensión humana y moral de las personas que son los ciudadanos – porque nunca dejan de serlo – solamente son una parte, y una parte insuficiente por lo tanto, de lo que les es constitutivo por naturaleza: es necesaria la otra parte, transcendencia que nos vincula y unifica, la del compromiso personal con el otro, esencial asimismo a las personas y a los ciudadanos, demasiado oculta a veces bajo todos los roles sociales que desempeñan: la del deber de solidaridad. Junto a los derechos legítimos e inviolables hay que reivindicar el deber moral de la solidariedad, igualmente constitutiva de nuestra naturaleza humana como las personas y ciudadanos que somos. Es necesario para la plenitud y perfección humana vivir la solidaridad hasta donde humana y físicamente sea posible, sin limitaciones ni discriminaciones previas.27 26Ibidem, passim 27 Ibidem, p. 183/184 22 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi Portanto, o direito seria só uma parte da natureza humana que, para sua transcendência e plenitude, necessitaria da solidariedade. Por isso, quando se fala moralmente da justiça ou quando se entende a justiça como uma virtude moral, está-se falando, estritamente, não em Justiça, mas em solidariedade. Em razão disto, se, todavia, cabe falar da justiça como virtude, ou da virtude da justiça, deve-se falar da justiça como virtude jurídica. Em sendo assim, defendo o autor a existência de uma relação de prioridade da solidariedade sobre a justiça.28 Por fim, para Blasco, as virtudes solidárias, desenvolvidas que foram, inclusive, por outros filósofos, seriam a acolhida, a amizade, o apoio mútuo, a beneficência, a benevolência, o compromisso, o cuidado, a fraternidade, a generosidade, a hospitalidade, o perdão. E, claro, a justiça29. A escolha pela adoção desta entendimento acerca da solidariedade se justifica pelo fato de entendermos que a prática do universalismo interativo, o olhar sobre o outro concreto, torna-se muito mais fácil e factível se entendermos a solidariedade como um dever e facilitará, portanto, a análise pretendida. 4.as teorias de justiça analisadas sob a perspectiva do sujeito situado: do abstr ato ao real 4.1.breve descrição das teorias de justiça de r awls e habermas Nosso trabalho pretende analisar as teorias de justiça de dois grandes filósofos: John Rawls e Jürgen Habermas, mas sob uma nova perspectiva, a perspectiva do sujeito situado, como caracterizado pelo item acima. Para tanto, necessário se faz, primeiro, discorrer sobre ambas as teorias. Obviamente, em função das limitações impostas ao presente trabalho, as considerações feitas à tais teorias abordará o que se considerou seus principais pontos. Comecemos por Jonh Rawls, filósofo norte-americano nascido em Baltimore em 1921 e falecido em Lexington, 2002. Rawls doutorou-se em Filosofia em 1950, na Universidade de Princeton. Em 1962 começou a lecionar em Harvard, 28BLASCO, op. cit., p. 187/188 29 Ibidem, p. 205 volume 06 23 i encontro de internacionalização do conpedi onde tornou-se professor emérito em 1991. Sua principal obra é “Uma Teoria da Justiça”, publicada em 1971, onde Rawls levou a um plano superior de abstração a conhecida teoria do contrato social encontrada em Locke, Rousseau e Kant. Rawls inicia sua obra identificando a justiça como sendo a primeira virtude das instituições sociais, comparando-a à verdade, que é a primeira virtude dos sistemas de pensamentos. Afirma que cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode ignorar. Assim, para ele, a única injustiça tolerável seria aquele necessária a evitar uma injustiça maior ainda. E embora muitas espécies diferentes de coisas possam ser consideradas justas ou injustas, seu foco é o da justiça social. O objeto primário da justiça será a estrutura básica da sociedade. O autor esclarece seu objetivo é apresentar uma concepção da justiça que generaliza e leva a um plano superior de abstração a conhecida teoria do contrato social como se lê, digamos, em Locke, Rousseau e Kant. Rawls, a partir da impossibilidade de se pensar no contrato original como aquele que introduz uma sociedade ou estabelece um governo, propõe seja concebido como aquele que tem como objeto de consenso os princípios da justiça para a estrutura básica da sociedade. Estes seriam princípios que “pessoas livres e racionais, preocupadas em promover seus próprios interesses, aceitariam numa posição inicial de igualdade como definidores dos termos fundamentais de sua associação”30. A isso chama o autor de justiça como equidade, referindo que, sempre hipoteticamente, esses princípios são escolhidos sob um véu de ignorância, o que garantiria que ninguém fosse favorecido ou desfavorecido na escolha dos princípios pelo resultado do acaso natural ou pela contingência de circunstancias sociais. Convém ressaltar que o autor concebe as pessoas na situação inicial como racionais e mutuamente desinteressadas nos interesses das outras, afirmando que teriam escolhido, naquele momento, dois princípios bastante diferentes: o primeiro exige a igualdade na atribuição de deveres e direitos básicos, enquanto o segundo afirma que desigualdades econômicas e sociais são justas apenas se resultam em benefícios compensatórios para cada um, e particularmente para os membros menos favorecidos da sociedade. 30 RAWLS, John. Uma teoria da justiça.Tradução Almiro Pisetta e Lenita M.R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 12. 24 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi Rawls trata de justificar a posição original concebida quando da celebração do contrato original, ressaltando, uma vez mais, que a posição original é puramente hipotética. Para o autor, a estrutura básica da sociedade deve ser planejada primeiro para produzir o máximo bem no sentido do máximo saldo líquido de satisfação e, segundo, para distribuir satisfações de modo igualitário. Ao dizer que justiça como equidade nos aproxima mais do ideal filosófico; sem, obviamente, atingi-lo, presume Rawls que os princípios que caracterizam os juízos ponderados de uma pessoa são os mesmos para pessoas cujos juízos estão em estado de equilíbrio refletido, ou, caso não sejam, que seus juízos se dividem ao longo de algumas linhas mestras representadas pela família das doutrinas tradicionais que se propõe a discutir. Sublinha que, ainda que em estágios iniciais, uma teoria da justiça nada mais é do que uma teoria; uma teoria dos sentimentos morais que estabelece os princípios que controlam as nossas forças morais, ou, mais especificamente, o nosso senso de justiça. A teoria de Rawls pode ser dividida em duas partes principais: uma interpretação da situação inicial e uma formulação de vários princípios disponíveis para escolha ali, e uma demonstração estabelecendo quais dos princípios seriam de fato adotados. Nos interessa, aqui, saber quais seriam os princípios adotados que, inicialmente, são assim apresentados: Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdade básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdade para as outras. Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável e, (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos31. Diz o autor que esses princípios devem obedecer a uma ordenação serial, o primeiro antecedendo o segundo e que as violações das liberdades básicas iguais protegidas pelo primeiro principio não podem ser justificadas nem compensadas por maiores vantagens econômicas e sociais. Assevera o autor que as frases “vantajosas para todos” e “igualmente abertos a todos” são ambíguas, cada uma das 31RAWLS, ob. cit., p. 64. volume 06 25 i encontro de internacionalização do conpedi partes do segundo princípio têm dois sentidos correntes e, sendo independentes um do outro, possuem quatro significados possíveis. À primeira interpretação possível o autor denomina sistema de liberdade natural; A segunda interpretação proposta pelo autor à questão é denominada interpretação liberal; A outra interpretação é chamada aristocracia natural; A última interpretação proposta pelo Rawls é a concepção de igualdade democrática, a única que pode garantir “satisfação”. Rawls diz que se chega à igualdade democrática por meio da combinação do principio da igualdade equitativa de oportunidades com o principio da diferença. Para o autor, é com a concepção de igualdade democrática que se deve interpretar a primeira parte do segundo princípio de justiça. Ao tratar da igualdade equitativa de oportunidades e da justiça procedimental pura, Rawls vai iniciar os comentários à segunda parte do segundo princípio, a partir de agora entendido como o principio liberal da igualdade equitativa de oportunidades. O ponto nevrálgico desta ideia reside no fato de que o utilitarismo não interpreta a estrutura básica como um esquema de justiça procedimental pura, porque o utilitarista tem um padrão independente para julgar todas as distribuições. A tratar dos bens sociais primários como a base das expectativas, Rawls estabelece a discussão das expectativas e de como elas devem ser avaliadas, dizendo que a questão principal a ser discutida é “a de saber se deve ser maximizada em primeiro lugar a felicidade total ou a felicidade média”. Neste sentido, propõe estabelecer, com o principio da diferença, bases objetivas para as comparações interpessoais. A ideia do autor é, neste ponto, identificar elementos essenciais que expliquem os fatos que se quer, de verdade, entender; Assim, as partes de uma teoria da justiça devem representar características morais básicas de estrutura social, restando sua coerência demonstrada tanto por suas consequências quanto pela aceitabilidade de suas premissas. Afirma Rawls que é preciso identificar certas posições como mais básicas que as outras, sendo capazes de fornecer um ponto de vista apropriado para o julgamento do sistema social; Assim, na medida do possível, a justiça como equidade analisa o sistema social a partir da posição de cidadania igual e dos vários níveis de renda e riqueza, sendo necessário, entretanto, que em algumas oportunidades outras posições sejam levadas em consideração. 26 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi Para uma teoria completa do justo, propõe Rawls que as partes na posição original devem escolher, numa ordem definida, não apenas uma concepção de justiça, mas também os princípios que acompanham cada um dos conceitos principais subordinados ao conceito de justo. Diz o autor que, em contraste com as obrigações, a característica dos deveres naturais é que eles se aplicam a nós independentemente de nossos atos voluntários, razão pela qual, do ponto de vista da justiça como equidade, um dever natural fundamental é o dever da justiça. Deste modo, se a estrutura básica da sociedade é justa, ou justa como é razoável esperar que seja dentro de determinadas circunstancias, todos têm um dever natural de fazer a sua parte no esquema existente. Tratemos, agora, da teoria proposta por Jürgen Habermas, nascido em 18 de junho de 1929 em Düsseldorf. Entre 1949 e 1954 estudou filosofia, história, psicologia, economia e literatura alemã nas universidades de Göttingen, Zurique e Bonn, cidade onde doutorou-se. Pertenceu ao Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, ainda que não seja da mesma geração de Adorno e Horkheimer, fundadores da chamada Escola de Frankfurt. Autor profícuo, publicou diversas obras, do que aqui destaca-se Direito e Democracia: entre facticidade e validade, onde elabora sua teoria do agir comunicativo e analisa as instituições jurídicas, propondo um modelo onde se interpenetram justiça, razão comunicativa e modernidade. Ao se referir à facticidade e à validade, o autor aponta a dualidade do Direito moderno, pois, por um lado, considera que o Direito é facticidade quando se realiza aos desígnios de um legislador político e é cumprido e executado socialmente sob a ameaça de sanções, e por outro, é validade quando suas normas se baseiam em argumentos racionais ou aceitáveis por seus destinatários32. Habermas quer situar a legitimidade do Direito no plano discursivo e procedimental, razão pela qual lança mão de sua teoria do agir comunicativo, onde a linguagem supera a dimensão sintática e semântica, constituindo o medium de integração social, ou seja, o mecanismo pelo qual os agentes sociais se integram e fundamentam racionalmente pretensões de validade discursivas aceitas por todos. Em suas palavras, 32 DOMINGOS, Terezinha Oliveria. A teoria da justiça. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade Metodista, 2009. volume 06 27 i encontro de internacionalização do conpedi A razão comunicativa distingui-se da razão prática por não estar adscrita a nenhum ator singular nem a um macrossujeito sociopolítico. O que torna a razão comunicativa possível é o medium linguístico, através do qual as interações se interligam e as formas de vida se estruturam. Tal racionalidade está inscrita no telos linguístico do entendimento, formando um ensemble de condições possibilitadoras e, ao mesmo tempo, limitadoras. A linguagem, assim, assume uma posição central na filosofia habermasiana. Note-se que o direito é legitimado no plano discursivo e procedimental. Sua justiça é permitir que todos, em igualdade de condições, manifestem-se na busca pelo melhor argumento. Para que essa comunicação de fato ocorra, pressupõe Habermas que Na prática, os membros de uma determinada comunidade de linguagem têm que supor que falantes e ouvintes podem compreender uma expressão gramatical de modo idêntico. Eles supõem que as mesmas expressões conservam o mesmo significado na variedade de situações e dos atos de fala nas quais são empregados. No próprio nível do substrato significativo, o sinal tem que ser reconhecido como sendo o mesmo sinal, na pluralidade de eventos significativos correspondentes33. Habermas sustenta que nas sociedades atuais pós-metafísicas, o direito legítimo depende do exercício constante do poder comunicativo, sendo necessário, para o não esgotamento da justiça, que um poder comunicativo jurígeno esteja na base do poder administrativo do Estado. Assim, ainda que assumindo a perspectiva segundo a qual o ordenamento jurídico é emanado das diretrizes dos discursos públicos e da vontade democrática dos cidadãos, institucionalizadas juridicamente, dada a correção parcial, existe sempre a possibilidade de que a normatividade seja injusta, abrindo-se assim dois caminhos: (1) a permanecer injusta passa a constituir-se em arbítrio e, (2) ao tornar-se arbítrio surge a falibilidade e, assim, a presunção de que seja revista ou revogada. Não é sem razão, então, que Habermas acredita que a resolução dos conflitos será mais facilmente alcançadas quanto maior for a capacidade dos membros da 33 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre factiidade e validade. Tradução Fábio Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v. 1. p. 29 28 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi comunidade em compartilhar verdades estabilizadoras do conjunto da sociedade, possibilitando que grandes áreas de interação social desfrutem de consensos não problemáticos. 4.2.análise das teorias r awlsiana e habermasiana: sujeito situado e universalismo inter ativo Vimos que a intenção do universalismo interativo é, ao contrário do universalismo substitucionista, considerar o sujeito concreto, com suas idiossincrasias, com suas limitações e inseridos num determinado tempo e lugar. Também vimos que, a partir da concepção de Blasco, a solidariedade configurase em verdadeiro dever moral, sendo preferente à justiça que, enquanto virtude jurídica, seria apenas uma das virtudes da solidariedade, tal qual o perdão, a benevolência, o apoio mútuo, entre outras. Analisemos, então, a partir desses pressupostos, as teorias de justiça destacadas, começando pela rawlsiana. A teoria da justiça de Rawls deixa claro, desde o início, tratar-se de um universalismo substitucionalista, na medida em que baseia-se num consenso fictício. No caso de Rawls, o que vai garantir essa ficção e, portanto, a consideração de sujeitos abstratos, desconectados de suas idiossincrasias pessoais, de suas características culturais e falsamente homogêneos. Claramente assevera Rawls que se deve “anular os efeitos das contingências específicas que colocam os homens em posições de disputa, tentando-os a explorar as circunstancias naturais e sociais de seu próprio benefícios34”. Mas, se é verdade que nossa relação com o outro é regida por normas de equidade e reciprocidade complementar, as diferenças assumem papel relevante que não pode ser desconsiderado, posto que, em realidade, complementam-se e nos permitem confirmar a humanidade e a individualidade humana. Assim, ao simplesmente abstrair toda e qualquer contingência e colocar as partes que firmam “o contrato social” sob um véu de ignorância, Rawls, ao invés 34RAWLS, ob. cit., p. 147. volume 06 29 i encontro de internacionalização do conpedi de garantir equidade e, assim, a justiça, esconde os problemas e as vicissitudes sociais embaixo do travesseiro35. Uma concepção da pessoa determina a descrição mesma da “posição original”. As pessoas tem a capacidade de ter um sentido de justiça e a capacidade para formar, revisar e perseguir racionalmente uma concepção de bem. Por isso, a posição original de Rawls só poderia estar integrada por aqueles que compartilhem um conceito moral da pessoa e, que, além disso, tivessem interesse em realiza-lo em sociedade. Somente estes empreenderiam a construção específica da autonomia racional, encarnada nos princípios de justiça36. Por isso, segundo aduz Palermos, Benhabib considera que a posição original rebaixa suas pretensões universalistas para afrontar a auto compreensão dos sujeitos e a compreensão das situações históricas, razão pela qual esta concepção de pessoa não diz nada aqueles que não compartilhem sua estrutura motivacional. Alguns podem acha-la excessivamente formal, repressiva ou individualista37. Do mesmo modo a teoria de Justiça de Habermas, que centrada na teoria da ação comunicativa donde se insere o agir comunicativo, um tipo ideal de comunicação que opera sob a lógica de que só há um sentido racional a informar a capacidade de comunicação linguística, ou seja, de viabilizar entendimentos e acordos entre os seres racionais, também se afigura problemática, dado seu grau de abstração. Será possível considerar, como quer Habermas, que todos possuem a mesma competência comunicativa capaz de formular um consenso? Ora, para que sua teoria funcione é necessário proceder-se a partir de uma condição mínima e geral da identidade empírica e normativa para ser adstrita aos seres humanos, o que, considerando o outro em concreto, não parece ser possível ou mesmo desejável, se se pensar na questão do reconhecimento da humanidade do outro que provém, justamente, do reconhecimento de suas diferenças. Nos dizeres de Palermo: 35PALMERO, ob., cit,, p. 129, assim assevera: […] la escoba de la abstracción nunca logra barrer del todo el contenido, lo que hace es esconderlo debajo de la alfombra. 36 Ibidem, p. 130. 37PALMERO, ob. cit., p. 131 30 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi Este asunto [la formación de la voluntad discursiva], nos remete a la rémora de la falácia abstrativa: al abismo insalvable entre lo ideal y lo real, entre lo normativo y lo empírico. Las condiciones estructurales de la situación de habla no garantizan el “buen tino” de los participantes: no garantizan un ejercicio no prejuicioso y razonable. Lo decisivo aqui es la calidad y racionalidade de los argumentos. La indeterminación semântica es irredutible: nada nos garantiza a priori que sepamos reconocer la racionalidade y la verdade de las pretensiones en liza38. Assim, temos que essas situações ideais de fala ou de escolha de princípios em posição original, sob um véu de ignorância (1) partem de critérios de seleção do relevante que não está justificado e o os utiliza para desenhar descrições privilegiadas que aspiram à universalidade; (2) ocultam presunções materiais em sua pretensão de formalidade plena e renunciam a qualquer estratégia situacionista que dote de conteúdo a estrutura proposta porque isso colocaria em cheque a universalidade do modelo; (3) se concebem autossuficientes ao determinar critérios normativos a partir dos elementos selecionados e, em um curioso contorno, sem saírem, aparentemente, do mundo, recorrendo ao implícito, autoproclama-se ponto arquimédio e fundamento; e, (4) Apesar da profissão de fá falibilista do procedimentalismo, se protegem contra a refutação reforçando sua posição ao invocar uma controvertida teoria consensualista da verdade, que não pode ser objetada porque nunca alcançaremos a idealidade de condições que seriam necessárias para confirma-la39. Portanto, numa perspectiva onde se faz indispensável a análise do sujeito real, situado, reconhecido em suas diferenças e por suas diferenças, estas teorias estão longe do universalismo interativo e, assim, muito próxima de um universalismo idealizado; um universalismo irreal. 5.conclusões Os direitos humanos, na sociedade contemporânea e pós-moderna, uma sociedade que é, portanto, plural, diversa com uma identidade cultural 38 Ibidem, p. 133 39 Ibidem, p. 129. volume 06 31 i encontro de internacionalização do conpedi ambivalente, um sujeito situado que busca por uma igualdade material, ainda carece completa efetivação. Uma possível alternativa para tal efetivação passa pela reformulação das teorias de justiça que, levando em consideração sujeitos concretamente situados, compreendidos em sua diversidade e pluralidade, compreendidos em suas diferenças, podem traduzir o dever de solidariedade, qualidade constitutiva do ser humano, trazendo efetividade aos direitos humanos, cuja universalidade não deve mais ser substitucionista, mas realmente interativa. 6.referências BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. BENHABIB, Seyla. El otro generalizado y el otro concreto. In: BENHABIB, Seyla e CORNELL, Drucilla (Comps.) Teoría Feminista y Teoría Crítica. Valencia: Ediciones Alfons el Magnánim, 1990. BLASCO, Pedro Luis. Justicia jurídica y solidariedade moral. In: BLASCO, Pedro Luis. La justicia entre la moral y el derecho. Madrid: Trotta, 2013. p. 165-207. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. 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Acesso em 15 de junho de 2014. volume 06 33 i encontro de internacionalização do conpedi parlamentarismo e sistema políticoconstitucional br asileiro: uma boa opção? Anderson Santos dos Passos1 Paula Veiga 2 Resumo Nas linhas que se seguem busca-se discorrer sobre uma eventual implementação do Parlamentarismo no sistema jurídico-constitucional brasileiro, o que obriga a uma breve alusão à história, características fundamentais, vantagens e desvantagens desse sistema. Assim, começa-se por uma análise histórica da evolução do Parlamentarismo no seu berço (a Inglaterra), relatando os principais eventos que marcaram a fixação das respectivas características básicas. Seguidamente, discute-se sobre os pontos positivos e negativos intrínsecos ao sistema Parlamentar. E eis que se chega ao Brasil, relatando, em traços gerais, os dois momentos “parlamentaristas” brasileiros, a saber: (i) o período Imperial e (ii) o período republicano pré-ditadura militar. O percurso segue com os movimentos parlamentaristas durante a constituinte brasileira de 1987 e respectivos reflexos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (adiante, CRFB). A reflexão termina com uma análise da viabilidade contemporânea de adoção do sistema parlamentarista no Brasil, bem como de uma alusão a alguns aspectos jurídico-constitucionais relacionados com tal hipótese. Palavras-chave Parlamentarismo; Presidencialismo; Sistema Político Brasileiro. 1 Doutorando em Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI na Faculdade de Direito/ Economia/CES da Universidade de Coimbra-Portugal. Professor Universitário (licenciado) da Faculdade de Direito do Agreste –CESMAC/AL. Ex-pesquisador bolsista do PIBIC/ CNPQ/UFPE. Ex-Procurador Federal. Juiz de Direito. Currículo lattes em http://lattes.cnpq. br/1789202309352232 2 Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal), lecionando Direito Constitucional quer na Licenciatura, quer no Mestrado. Doutorada pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em 2011; Mestre pela mesma instituição em 2003; e Licenciada também pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, no Curso 1990-1995. volume 06 35 i encontro de internacionalização do conpedi Abstract In this article the authors try to discuss the possible implementation of Parliamentarism in the Brazilian constitutional system, which requires a brief reference to history, key features, advantages and disadvantages of this system. Thus, the authors begin with a historical analysis of the evolution of Parliamentarism in England, reporting key events that marked the establishment of the basic features of this system. Secondly, the authors discuss about the strengths and the weaknesses of the Parliamentary system. The main part of the article reports to the two “parliamentary” Brazilians moments, namely: (i) the Imperial period and (ii) the pre-republican period - military dictatorship period. The article continues with the parliamentary movements during the year before the approval of the Brazilian constitution (1987) and in the Brazilian Constitution (1988). The article ends with a serial analysis of contemporary viability of adopting the parliamentary system in Brazil. Key words Parliamentarism; Presidentialism; Brazilian Political System. 1.introdução – breves notas sobre a história do parlamentarismo É de bom alvitre que, antes de a reflexão se debruçar sobre o estudo dos elementos do sistema de governo parlamentarista, se refira, à guisa de nota introdutória, aos elementos históricos que levaram à consolidação do Parlamentarismo ao longo dos séculos. Nas palavras de Bonavides (2010, pág. 417) “nenhum teorista criou a forma parlamentar de governo. Se há um sistema de organização do poder político que resultou diretamente da história e do contínuo desdobramento das instituições, este sistema é o Parlamentarismo.” A afirmação de Bonavides parece estar plenamente correta, uma vez que os contornos específicos do sistema de governo parlamentarista não foram delineados em um único momento histórico, mas sim a partir de um longo processo de evolução histórica3, isto é, revelados através do 3 No mesmo sentido leciona Dalmo Dalari que “o Parlamentarismo foi produto de uma longa evolução histórica, não tendo sido previsto por qualquer teórico, nem se tendo constituído em 36 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi tempo, até aquele se consolidar, por volta do século XIX, no modelo que hoje se conhece4. A evolução do Parlamentarismo encontra-se intimamente ligada ao sistema jurídico e à história política inglesa, posto que o atual desenho parlamentarista nasceu, justamente, no direito consuetudinário da Inglaterra (AMARAL, 2012, pág. 57). Enquanto nos EUA ou na Europa continental o momento fundador se pode identificar com atos, na Inglaterra a fundação do constitucionalismo moderno (e do sistema parlamentarista) identifica-se com um longo ciclo histórico (AMARAL, 2012, pág. 58)5. Bem observa Dalmo Dalari (1998, pág. 83): A Inglaterra pode ser considerada o berço do governo representativo. Já no século XIII, o mesmo que assistiu à elaboração da Magna Carta, numa rebelião dos barões e do clero contra o monarca, iria ganhar forma o Parlamento. No ano de 1265 um nobre francês, Simon de Montfort, neto de inglesa e grande amigo de barões e eclesiásticos ingleses, chefiou uma revolta contra o rei da Inglaterra, Henrique III, promovendo uma reunião que muitos apontam como a verdadeira criação do Parlamento. Antes disso, em 1213, o próprio João Sem Terra convocara “quatro cavaleiros discretos” de cada condado, para com eles “conversar sobre assuntos do reino”. Mas Simon de Montfort deu à reunião o caráter de uma assembléia política, reunindo pessoas de igual condição política, econômica e social. Morrendo Simon em combate, no mesmo ano de 1265, continuou a praxe de se reunirem cavaleiros (nobres que não eram pares do reino), cidadãos e burgueses. E no ano de 1295 o Rei Eduardo I oficializou essas reuniões, consolidando a criação do Parlamento. objeto de um movimento político determinado.” DALARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 2ª Edição. São Paulo: Saraiva,1998, pág. 83. 4 Importante colacionar as palavras de Dalmo Dalari, que afirma que “suas características [as do Parlamentarismo] foram se definindo paulatinamente, durante muitos séculos, até que se chegasse, no final do século XIX, à forma precisa e bem sistematizada que a doutrina batizou de Parlamentarismo e que DUVERGER denomina de regime de tipo inglês, indicando-o como um dos grandes modelos de governo do século XX”. DALARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 2. Edição. São Paulo: Saraiva, 1998, pág. 83. 5 É, justamente, nesse sentido que J. J. Gomes Canotilho (2003, pág. 69) se refere ao movimento constitucional inglês como tendo “revelado a norma”. volume 06 37 i encontro de internacionalização do conpedi Contudo, o percurso não foi nem linear, nem definitivo. Depois da fase de relativo prestígio (acima citada por Dalari), o Parlamento voltou a perder poder para o Monarca, diante da ascensão da teoria absolutista e da consequente concentração dos poderes nas mãos do Rei. Se é certo que o Parlamento existia, já não possuía poderes políticos expressivos. Tal cenário transformou-se apenas no século XVII, com a Revolução Inglesa e a expulsão do Rei católico Jaime II, que fora substituído por Guilherme de Orange e Maria, ambos protestantes, de modo que “a partir de 1688, o Parlamento se impõe como a maior força política, e altera, inclusive, a linha de sucessão, com a exclusão do ramo católico dos Stuarts” (DALARI, 1998, pág 83). No reinado de Guilherme e Maria surgiu o costume de o soberano convocar um grupo de conselheiros de gabinete para o auxiliar em algumas questões do reino, sobretudo nas relações exteriores. Tal costume continuou a ser respeitado pela sucessora, a Rainha Anna, até a sua morte. Seguidamente, subiram ao trono, sucessivamente, os Monarcas Jorge I e Jorge II. Ambos eram alemães, não tinham muito apreço pelos problemas políticos ingleses (DALARI, 1998, pág. 84) e, traço que parece fundamental para a radicação do Parlamentismo, não sabiam falar inglês. Diante deste quadro, de clara dificuldade de comunicação entre o Parlamento e o Rei, o Gabinete passou a realizar reuniões mesmo sem a presença do soberano6. Um dos ministros, Robert Walpole7, tomou posição de destaque, sendo logo popularmente conhecido por “Primeiro-Ministro”. 6 Importante colacionar as palavras de Paulo Bonavides sobre o tema: “Causas históricas determinantes desse desfecho, onde claramente se vê o extraordinário acréscimo de força, prestígio e influência no poder do Parlamento, fazendo que este prepondere definitivamente sobre o poder da Coroa, abrangem os seguintes fatos da vida política inglesa: a deposição do último Stuart pelas armas da aristocracia insurreta, assinalando iniludivelmente a vitória da causa do Parlamento; a origem da nova dinastia no consentimento e convocação da autoridade parlamentar; o procedimento irônico dos ‘reis alemães’ da dinastia de Hannover, a chamada série dos ‘reis impossíveis’(1714-1837), que foram: Jorge I, um estrangeiro que não esquecia o lugar de origem, jamais aprendeu a falar inglês, e teve sempre dificuldade de comunicarse em latim com os seus ministros, em suma, um rei completamente alheio dos negócios públicos, propiciando ao Gabinete reunir-se na ausência do monarca; Jorge II, um rei fraco, que não forceja por recuperar a influência perdida pelo antecessor; Jorge III, obstinado, cego, demente, autoritário e irresponsável, faz de sua existência ‘uma espécie de museu de defeitos de um rei constitucional’; Jorge IV, monarca desidioso e depravado, um roi fainéant, cuja vida conjugal escandaliza a sociedade inglesa e desprestigia a Coroa. O Parlamento fortaleceu pois sua influência e ascendência na direção política do país, valendo-se do esvaziamento e desuso de algumas prerrogativas da realeza” (BONAVIDES, 2010, pág. 418). 7 “Walpole was a British Whig statesman, considered to the first holder of the office of prime minister, who dominated politics in the reigns of George I and George II (…) In 1714, George 38 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi A atuação de Robert Walpole foi decisiva para se firmar uma das principais características do Parlamentarismo: a divisão do poder executivo entre duas figuras, ou seja, entre o Chefe de Estado e o Chefe de Governo, conforme será delineado mais adiante.8 Outro fator de destaque para a radicação do Parlamentarismo na Inglaterra foi a nomeação do Lord North, pelo Rei Jorge III, para a função de PrimeiroMinistro, no ano de 1770. Lord North passou a responsabilizar-se pela política do Reino e entrou em conflito com representantes da Câmara dos Comuns, sobretudo com John Wilkes. Após anos de embates, o Monarca se viu obrigado a demitir Lord North, estabelecendo-se, desde então, que a Câmara dos Comuns deveria dar sua aquiescência à escolha do Primeiro-Ministro9. Assim se firmava a supremacia da representação popular, como também, na mesma época, a França o desejava (DALARI, 1998, pág. 84). I came to the throne. George distrusted the Tories, whom he believed opposed his right to the throne, and as a result the Whigs were in the ascendant again. In 1715, Walpole became first lord of the treasury and chancellor of the exchequer. He resigned in 1717 after disagreements within his party but in 1720 was made paymaster general. He avoided the scandal that surrounded the collapse of the South Sea Company and was subsequently appointed first lord of the treasury and chancellor of the exchequer again. In this position he effectively became prime minister, although the term was not used at the time. He remained in this position of dominance until 1742”. Disponível em http://www.bbc.co.uk/history/historic_figures/ walpole_robert.shtml, acedido em 12 de junho de 2014. 8 Walter Bagehot (2009, pág. 125/126) noticia que: “a century ago the Crown had a real choice of Ministers, though it had no longer a choice in policy. During the long reign of Sir R. Walpole he was obliged not only to manage Parliament but to manage the palace. He was obliged to take care that some court intrigue did not expel him from his place. The nation then selected the English policy, but the Crown chose the English Ministers. They were not only in name, as now, but in fact, the Queen’s servants. Remnants, important remnants, of this great prerogative still remain. The discriminating favour of William IV. made Lord Melbourne head of the Whig party when he was only one of several rivals. At the death of Lord Palmerston it is very likely that the Queen may have the opportunity of fairly choosing between two, if not three statesmen. But, as a rule, the nominal Prime Minister is chosen by the legislature, and the real Prime Minister for most purposes—the leader of the House of Commons—almost without exception is so.” 9 “A primeira prova a que foi posta essa regra nova do direito constitucional inglês se verifica em 1782, quando Lord North, no exercício das funções de primeiro-ministro, se demite da chefia do governo, em face da oposição parlamentar que lhe era movida, sem embargo de contar com a plena confiança do rei Jorge III. Temia porém o Primeiro-Ministro que se consumasse a ameaça pendente do impeachment, caso não resignasse à sua função ministerial, após receber duas moções de censura e desconfiança”. BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2010, pág. 420. volume 06 39 i encontro de internacionalização do conpedi Posteriormente, o Parlamento decidiu fazer uso de mecanismos para forçar o afastamento dos Primeiros-Ministros quando não havia concordância com a política que estava a ser desenvolvida. Inicialmente, o instrumento utilizado foi o impeachment. Tal instrumento, de natureza penal, poderia conduzir à responsabilização criminal do Primeiro-Ministro, com o consequente afastamento da função. O decurso do tempo levou o Governo a perceber que seria mais “inteligente” afastar-se logo no início de uma investigação parlamentar, a fim de evitar a responsabilização penal. Diante disto, o costume evoluiu para “a responsabilidade política, com a obrigatoriedade da demissão do Gabinete sempre que este receber um voto de desconfiança” (DALARI, 1998, pág. 84). Percebe-se assim que não foi apenas com a Glorius Revolution que se solidificou o regime parlamentarista inglês. Foi necessário ainda percorrer muitos anos para que as características finais estivessem consolidadas. Como bem se pronuncia Paulo Bonavides (2010, pág. 421) Vê-se consequentemente o exagero dos que datam de 1688, da “Gloriosa Revolução”, o início do sistema parlamentar, na Inglaterra, o qual, para instaurar-se de modo definitivo com a adoção e prática da responsabilidade ministerial, percorreu ainda quase um século de vagaroso desenvolvimento das instituições. Como refere Duguit (1927, apud BONAVIDES, 2010, pág 422), são as seguintes as causas históricas que concorreram para a formação do Parlamentarismo inglês: a) a vitória de 1688 do Parlamento sobre a realeza; b) o controle parlamentar sobre o governo na votação da proposta tributária anual; c) a formação de dois grandes partidos homogêneos, os “Whigs” e os “Tories”; d) a alta cultura da aristocracia inglesa, e, por fim, e) o já mencionado advento de uma linhagem estrangeira de reis, em que o primeiro da série, por ignorância da língua inglesa, se mostrou incapaz de acompanhar os debates e deliberações de seu ministério. Por fim, a soma de todos estes fatores contribuiu para a criação de um sistema de governo próprio e original na Inglaterra, onde a centralidade do poder político está nas mãos do Parlamento, servindo de modelo para inúmeros outros países na Europa10 e no resto do mundo. Deve ressaltar-se, inclusive, o acentuado viés 10 Com se sabe, o governo parlamentar nasceu em Inglaterra e foi, posteriormente, transportado para o continente europeu, durante o século XIX, alinhando-se ao pensamento dominante na 40 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi democrático e republicano, como, entre outros, bem ensina Norberto Bobbio (1987, pág. 107), Ora, na medida em que também nas monarquias, a começar da inglesa, o peso do poder se desloca do rei para o Parlamento, a monarquia, tornada primeiro constitucional e depois parlamentar, transformou-se numa forma de governo bem diversa daquela para a qual a palavra foi cunhada e usada durante séculos: é uma forma mista, metade monarquia e metade república. 2. car acterísticas fundamentais do parlamentarismo O Parlamentarismo surgiu com um claro objetivo: limitar o poder do Rei, sujeitando-o à fiscalização do Parlamento. Contudo, cabe observar que, além do Parlamentarismo “puro”, existem várias outras manifestações concretas do Parlamentarismo e cada uma delas possui peculiaridades específicas. Apesar disso, há linhas gerais que, segundo se crê, podem ser enumeradas. Antes de enumerar essas linhas gerais, busque-se uma definição mínima para o conceito de Parlamentarismo. Se é verdade que a tentativa de se definir algo sempre trará o vício da imperfeição (posto que as palavras são insuficientes para descrever toda a riqueza de detalhes dos fenômenos sociais), num trabalho científico, necessária se torna a delimitação do objecto em análise. Assim, e baseando-se na definição de STROM, WOLFGANG e BERGMAN (2006, pág 12/13), pode dizer-se que o Parlamentarismo é o sistema de governo onde o Primeiro-Ministro e o Gabinete concentram grande parte das competências executivas e são politicamente responsáveis perante a maioria dos membros do Parlamento, além de poderem ser retirados da função, a qualquer momento, através de um voto de não confiança11. A presente definição foca apenas as duas época e às condições histórico-culturais dos países continentais, o que nem sempre foi tarefa fácil, como refere Paula Veiga em O Presidente da República: contributo para uma compreensão republicana do seu estatuto constitucional (Tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra), polic., Coimbra, 2010, pág. 62 e seguintes. 11 Neste sentido, e para o sistema de governo português, vide CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 7ª Ed. 2003, págs. 599 e 560. volume 06 41 i encontro de internacionalização do conpedi características mais marcantes do Parlamentarismo: a responsabilidade política do Governo perante o Parlamento e o papel central do Gabinete. Contudo, existem outras características, nomeadamente: i) a diarquia do executivo (há um Chefe de Estado e um Chefe de Governo e a atividade executiva é entre eles partilhada12). Maurice Duverger (1970, pág 135) fala mesmo em executivo dual, no qual o Chefe de Estado tem função de representação do País e o Chefe de Governo concentra a maior parte do poder de direção política. Naturalmente que se nas monarquias parlamentaristas, a função de Chefe de Estado fica a cargo do Monarca, nas repúblicas parlamentares, tal função é exercida por um Presidente; ii) a responsabilidade do Gabinete perante o Parlamento, sendo a nomeação do Primeiro-Ministro (Governo) feita pelo Chefe de Estado (que, como já se disse, pode ser o Monarca ou o Presidente, conforme os casos). De salientar que, antes da nomeação, o Governo deve obter a confiança por parte do Parlamento. Assim, não obstante formalmente a nomeação ser feita pelo Chefe de Estado, este fá-lo de acordo com a vontade do Parlamento. Após ser nomeado, o Primeiro-Ministro é responsável politicamente apenas perante o Parlamento (CANOTILHO, 2003, pág. 583), não podendo o Presidente ou o Monarca destituí-lo do cargo. Em regra, o Primeiro-Ministro é o líder do grupo político que detém a maioria do corpo parlamentar13. Havendo mudança na composição da maioria, em razão de novas eleições ou alianças, poderá ocorrer a substituição do Primeiro-Ministro/Gabinete por outro que represente 12 Assim, recentemente, embora sobre o sistema francês, BRANCHET, Bernard. La Fonction Présidentielle sous la Ve République, L.G.D.J., Paris, 2008, págs. 13 e 14. 13 “O sistema constitucional britânico apresenta-se como paradigma, e a sua característica principal reside no facto de o Governo ser formado em conformidade com o Parlamento, do qual depende, respondendo politicamente apenas perante ele. Neste quadro, tanto sua na formação, como na sua manutenção, o Governo dependerá exclusivamente do Parlamento e na sua composição traduzirá o reflexo dos partidos políticos com assento no órgão representativo.” (PINTO; CORREIA; SEARA, 2005, pág. 252 e ss). 42 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi a nova configuração do Parlamento. Assim se compreende que é ao Parlamento que cabe controlar os rumos da política desenvolvida pelo Chefe de Governo. Por isso, caso haja descontentamento com as opções políticas do Primeiro- Ministro pode ocorrer a aprovação de uma moção de censura (ou a rejeição de um voto de confiança), que, obrigatoriamente, leva à demissão do Chefe de Governo. Como bem descreve Bagehot (2009, pág. 126/127): We have in England an elective first magistrate as truly as the Americans have an elective first magistrate. The Queen is only at the head of the dignified part of the Constitution. The Prime Minister is at the head of the efficient part. The Crown is, according to the saying, the “ fountain of honour”; but the Treasury is the spring of business. Nevertheless, our first magistrate differs from the American. He is not elected directly by the people; he is elected by the representatives of the people. He is an example of “ double election”. The legislature chosen, in name, to make laws, in fact finds its principal business in making and in keeping an executive. Em suma, o Primeiro-Ministro não é eleito diretamente pelo povo, mas, na prática, é eleito pelos representantes do povo, sendo politicamente responsável perante estes. iii)Dissolução do Parlamento pelo Chefe de Estado. No sistema parlamentarista existe a possibilidade do Chefe de Estado determinar a dissolução do Parlamento. Como bem explica o Professor de Coimbra J. J. Gomes Canotilho (2003, pág. 583) “a dissolução é feita por decreto presidencial ou real (consoante se trate de república ou monarquia), mas trata-se de um acto de iniciativa do Gabinete que assume a responsabilidade política do mesmo através da referenda (dissolução ministerial ou governamental)”. Ou seja, pode haver dissolução do Parlamento por parte do Chefe de Estado. Contudo é necessário que haja um prévio pedido do Chefe de Governo (Primeiro- Ministro) direcionado ao Chefe de Estado. Apenas por força deste último é que será decretada a dissolução do legislativo com a imediata convocação de novas eleições. volume Ressalte-se que tal instituto tem claro caráter democrático, deixando a cargo do Povo a decisão final em caso de controvérsia séria entre o Pri06 43 i encontro de internacionalização do conpedi meiro- Ministro e o Parlamento. Como relata Paulo Bonavides (2010, pág. 429): Não devem todavia tais temores prevalecer com respeito ao governo parlamentar, onde a dissolução é ‘natural, legítima e quase necessária’, constituindo, segundo o mesmo Esmein, ‘o derradeiro meio que resta a um gabinete para manter-se no poder’, depois de haver caído em minoria no Parlamento. Neste, uma política contrária ao interesse nacional, abraçada contra a vontade do ministério, não vingará se o corpo de eleitores, chamado a pronunciar-se soberanamente, em conseqüência da dissolução, eleger novo Parlamento, desta feita favorável ao gabinete, cuja linha de governo fora impugnada pelo Parlamento anterior na matéria que determinou a crise de confiança, da qual duas saídas apenas restavam ao ministério ameaçado: a renúncia ou a dissolução. Conclui-se, portanto, que a dissolução do Parlamento é um instrumento democrático próprio do sistema parlamentar. No entanto, não deve esquecer-se que, na Inglaterra, a Câmara Alta (a Câmara dos Lordes) não é eleita. Os seus membros são indicados pelo Monarca e os cargos são vitalícios (com exceção dos Lordes Espirituais14). Em contrapartida, esta Câmara não interfere na formação ou manutenção dos Ministérios, bem como não sofre dissolução (MALUF, 2003, pág. 287). iv)Eleição indireta do Chefe de Estado nas repúblicas parlamentares. Tratando-se de forma republicana, o Chefe de Estado (Presidente) será eleito pelo Parlamento, para um mandato fixo. O Presidente eleito é irresponsável politicamente, não podendo ser deposto por meio de moções de desconfiança. Já nos casos das monarquias parlamentares, é óbvio que a função de Chefe de Estado está a cargo do Monarca, sendo este substituído apenas pela sucessão hereditária. v) Chefe de Governo sem mandato fixo. A permanência do Primeiro-Ministro no poder vai depender da manutenção da confiança depositada pelo Parlamento. Assim, não há um período pré-fixado para duração do 14 Os Lordes Espirituais mantêm-se no cargo enquanto ocuparem suas funções eclesiásticas. 44 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi Governo. Este pode perdurar durante toda uma legislatura ou apenas poucos dias. vi)Aprovação do Programa de Governo: a manutenção do Primeiro-Ministro e do seu Conselho de Ministros depende da apresentação de um Programa de Governo ao Parlamento, e da respectiva aprovação daquele por este, assumindo, assim, os representantes do povo uma forte responsabilidade no destino político estatal. Tal característica se confirma (como acima já explanado) diante do poder que tem o Parlamento de determinar a queda do Primeiro-Ministro (através da moção de censura) quando não houver mais anuência da maioria com o Gabinete. Karl Loewenstein (1979, pág. 106) ressalta que Fundamentalmente, la función de determinar la decisión política está distribuida entre el gobierno y el Parlamento. Y ambos colaboran necessariamente en la ejecución de la decisión política fundamental por medio de la legislación. Aqui reside uma das grandes virtudes do Parlamentarismo: a possibilidade de substituição do Chefe de Governo quando o mesmo se mostrar incapaz de cumprir o programa político a que se propôs. Nos sistemas presidencialistas, o Presidente só será retirado do cargo se for desonesto (impeachment), enquanto no Parlamentarismo, o Chefe de Governo poderá ser substituído se a maioria assim o quiser. Cabe, ainda, destacar que o Governo é exercido por um corpo coletivo orgânico, de modo que as medidas governamentais implicam intervenção de todos os Ministros, e respectivos ministérios (SILVA, 1992, pág. 237). vii)O Governo é formado por membros do Parlamento. Existe uma estreita ligação entre o Parlamento e o Governo. Esta circunstância é comprovada pelo fato do Governo ser composto, em regra, por membros do Parlamento. Karl Loewenstein (1976, pág. 105) destaca claramente que este principio se basa en Inglaterra el la costumbre constitucional o en convenciones, sin ninguna relación jurídico-formal. Desde Walpole, volume 06 45 i encontro de internacionalização do conpedi el primer ministro ha sido siempre miembro de una de las cámaras, y hoy rige esta regla para todos los ministros. A ideia subjacente a esta característica é a da realização de um controle mais rigoroso dos atos do Governo, posto que sendo o Primeiro-Ministro uma “peça” que saiu do próprio Parlamento, ter-se-ia maior capacidade de fiscalização e verificação dos atos por ele praticados. Loewenstein (1976, pág. 106) novamente explica que El sentido íntimo de esta disposición yace en el fecho de que la asamblea pude exercer un mejor control sobre sus proprios miembros que sobre elementos extraños a ella; de esta manera podrá someterles a una serie de preguntas y respuestas, pidiéndoles cuentas sobre el desempeño de su cargo, y exigiéndoles de esta manear responsabilidad política. Graficamente, pode representar-se o Parlamentarismo a partir da seguinte imagem, retirada de uma obra de Pinto, Correia e Seara (2005, pág. 254): 46 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi 3. vantagens do sistema parlamentar Após haverem sido apontadas as características fundamentais do sistema parlamentar, pode questionar-se quais os pontos positivos que tal estruturação do poder pode trazer para uma sociedade. A primeira e marcante vantagem do Parlamentarismo é a relativa flexibilidade e elasticidade do sistema, em comparação com o Presidencialismo, porque neste último o Governo (concentrado no Presidente da República) não responde politicamente perante o Parlamento, de modo que a realização de uma política presidencial completamente contrária aos interesses do povo (representado pelo Parlamento) não poderá ser paralisada, ante a ausência de instrumentos semelhantes às já citadas moções de censura. Tal engessamento poderá gerar resultados desastrosos para o Estado do ponto de vista político, visto que será necessário aguardar o fim do mandato (por vezes ainda longo) para que possa haver uma substituição de um Presidente que não mais desejado. Por outro lado, no Parlamentarismo, há a possibilidade de substituição do Governo a qualquer momento, garantindo flexibilidade e respeito pelos interesses democráticos através das moções (de censura ou de confiança), com a consequente queda do Governo, o que permitirá a superação - de forma simples e dentro das regras - das crises e escândalos políticos que venham a ocorrer. Medeiros e Albuquerque, na obra Parlamentarismo e Presidencialismo no Brasil, explana que: “o regime parlamentar tem exatamente a vantagem de permitir, por um lado, a permanência no poder ‘enquanto bem servirem’ por tempo indefinido e ‘sem perigo algum’ dos bons governos; por outro lado, a eliminação imediata dos maus” (ALBUQUERQUE, 1932, pág. 43/44). 15 Outra vantagem do Parlamentarismo é a aproximação do povo com o centro de poder. Como no sistema parlamentar os rumos da direção política do país 15 José Joaquim Medeiros e Albuquerque (1932, pág. 43/44) ainda complementa: “Não há dificuldade alguma em mostrar que o governo instável é o presidencial. Estável para o mal, instável para o bem. Nele quando se elege um mau Presidente, há que suportá-lo por todo o período; em compensação, quando se tem um Presidente bom, há que pô-lo fora ao cabo desse período, interrompendo o que estiver fazendo (…) Nada, portanto, mais irracional do que atribuir, de um modo fixo, o mesmo prazo aos bons e aos maus governos, sem o mínimo discernimento.” volume 06 47 i encontro de internacionalização do conpedi dependem fortemente do Parlamento e como a permanência do Governo também depende da anuência do Legislativo, é este último poder que toma a posição de protagonista da política nacional. Em consequência, sendo óbvio que o povo tem maior probabilidade de contato com os parlamentares do que com o Presidente, observa-se um incremento da aproximação política do povo, com uma valorização da opinião pública. Tanto é assim que as eleições parlamentares passam a ter um papel central (diferentemente do sistema presidencialista, onde as eleições parlamentares são puramente secundárias e de pouco interesse popular). No mesmo caminho, afirma Bonifácio de Andrada (1997, pág. 34/35) que O Poder Legislativo, com todos os seus defeitos, é o mais democrático. Suas manifestações, decisões e providências são às claras aos olhos do povo, que tem toda a facilidade em recorrer ao Deputado, em conversar, discutir, e até influir nas suas posições (…) Se o povo tem facilidades de se aproximar do Deputado, por intermédio dele terá certeza de que seus interesses e clamores passarão a ter o pleno conhecimento do governante. As interpelações ao Governo, obrigando o Ministro e o Presidente do Conselho a comparecerem à Câmara, constituem normas de importância democrática extraordinária. Como bem resume o célebre britânico Walter Bagehot (2009, pág. 124), referindo-se à Constituição Inglesa, The efficient secret of the English Constitution may be described as the close union, the nearly complete fusion, of the executive and legislative powers. No doubt by the traditional theory, as it exists in all the books, the goodness of our constitution consists in the entire separation of the legislative and executive authorities, but in truth its merit consists in their singular approximation. The connecting link is the Cabinet. By that new word we mean a committee of the legislative body selected to be the executive body. The legislature has many committees, but this is its greatest. Essa aproximação entre o executivo e o legislativo, e, em consequência, entre o Governo e o povo, é o grande trunfo democrático do Parlamentarismo. Assim, os defensores do Parlamentarismo consideram-no, de fato, mais racional e menos personalista, porque o sistema atribui responsabilidade política ao Chefe do Executivo e transfere para o Parlamento, onde estão representadas todas as grandes 48 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi tendências do povo, a competência para fixar a política do Estado, ou, pelo menos, para decidir sobre a validade da política fixada (DALARI, 1998, pág. 86). Outro ponto positivo do Parlamentarismo é a necessidade contínua do trabalho em equipe por parte dos ministérios, posto que o insucesso de uma pasta pode colocar em risco todo o Governo16. Diferentemente, no Presidencialismo não há qualquer correlação de natureza política entre os ministérios. Na verdade, ocorre uma inteira separação das ações, e, em alguns casos, uma verdadeira disputa entre os Ministros presidencialistas, o que, na maioria dos casos, se revela prejudicial. Nestes termos, explica Bonifácio de Andrada (1997, pág. 36) que: enquanto o Presidencialismo favorece o trabalho individualista e isolado, o Parlamentarismo impõe o trabalho de equipe […] os Ministros não são aqui concorrentes na disputa do apreço presidencial; formam, isto sim, um grupo em que os destinos se juntam, onde do bom êxito de um dependem os demais, e viceversa […] propiciando a unidade governamental tão necessária à obra administrativa. Ressalte-se, ainda, que recentes estudos empíricos indicam a menor propensão a atos de corrupção nos sistemas parlamentares, quando comparados aos sistemas presidencialistas, em razão da diluição do poder.17 16 Paulo Bonavides explica, do ponto de vista histórico, a responsabilidade solidária de todo o Gabinete: “A Câmara dos Comuns, impotente em face dessa prerrogativa real, tomou porém um caminho que acabou por conduzi-la satisfatoriamente ao domínio do gabinete, quando o impeachment, empregado para esse fim, transitou do seu caráter inicial de responsabilidade penal, concepção vigente no século XVIII, para o de responsabilidade política, responsabilidade perante a opinião pública, ‘que expõe à perda do poder, e se impõe coletivamente a todo o ministério, obrigando-o consequentemente à exoneração solidária. A responsabilidade penal, brandida como ameaça sobre Lord North, obrigou-o a demitir-se com todo o gabinete. Daí por diante, tornou-se na praxe do sistema uma arma fadada a ‘enferrujar-se’, substituída que foi, segundo Esmein, ‘por um instrumento mais flexível e mais seguro’: a responsabilidade política e coletiva do Gabinete” (BONAVIDES, 2010, pág. 427). 17 “Democracy reduces corruption by 0.7 points; presidential systems in a democracy, as opposed to parliamentary systems, increase corruption by 0.8 points; each additional 20 years of uninterrupted democracy reduce corruption by 0.5 points; and 50 points more in the freedom of press index (as from the level of Turkey to the level of the United Kingdom) reduces corruption by 0.5 points. These main results are robust to the inclusion of the government wages variable in the right hand side, which typically reduces the sample to less than 200 observations.” A citação e o estudo completo pode ser encontrado em LEDERMAN, Daniel; LOYAZA, Norman; SOARES, Rodrigo R.. Accountability and Corruption: Political volume 06 49 i encontro de internacionalização do conpedi Outra característica positiva do Parlamentarismo é a maior facilidade e velocidade no processo de aprovação das leis (BATES, 1986, pág. 114-123). Isto ocorre porque o Governo sempre vai ter a maioria do Parlamento como aliada, não havendo grandes conflitos para a aprovação das normas de interesse do Executivo. Por outro lado, no sistema presidencialista, o Presidente é um órgão independente, podendo deter, ou não, a maioria do Parlamento, de forma que as leis de seu interesse e necessárias ao desenvolvimento da política estatal podem ser barradas no Legislativo, por razões meramente partidárias. 4. desvantagens do parlamentarismo Obviamente, que o sistema parlamentar não apresenta apenas pontos positivos. E o rigor científico obriga a mencionar algumas críticas apontadas a este sistema de Governo. A primeira delas é a excessiva instabilidade do Governo. O grande exemplo citado pelos críticos é o Parlamentarismo francês da Terceira República, que se prolongou de 1875 a 1940, onde houve nada mais nada menos do que 105 (cento e cinco) ministérios. O Parlamentarismo da Quarta República, que vai de 1946 a 1958, conheceu 16 ministérios. Ou seja, a média de duração de cada ministério não ultrapassou 9 (nove) meses (BONAVIDES, 2010, pág. 437/438). Contudo, os parlamentaristas rebatem tal crítica dizendo que no Parlamentarismo a substituição do Governo é algo natural, não tendo todas as consequências maléficas que uma queda do Presidente no sistema presidencialista gera. Neste último sistema, o afastamento de um Chefe de Governo acarreta o esfacelamento da Administração, em razão de que (sobretudo no Brasil), Governo e Administração “têm uma identificação acentuada, alterando-se os quadros administrativos facilmente, com qualquer alteração havida no Governo” (ANDRADA, 1997, pág. 41). Por outro lado, no Parlamentarismo há uma tendência clara de se traçar uma linha divisória entre Governo e Administração, de modo que a substituição do primeiro não atinge gravemente a segunda. Bonifácio de Andrade relata que no Parlamentarismo a própria psicologia do regime tende a uma separação orgânica Institutions Matter. 2001. World Bank Policy Research Working Paper No. 2708. Disponível em SSRN: http://ssrn.com/abstract=632777. Acedido em 13 de junho de 2014. 50 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi entre o Governo e a Administração. Aquele, praticamente representado pelos Ministérios ou Gabinetes, altera-se nas quedas e formações de novas equipes, mas a Administração tende a permanecer a mesma (ANDRADA, 1997, pág. 41) gerando “problemas” menos graves em caso de formação de um novo Gabinete. No mesmo sentido, relata-se que na própria França a instabilidade foi mais aparente do que verdadeira. Isto porque a França republicana testemunhou muitas quedas de ministérios, mas, em compensação, no período de 65 anos, teve apenas uma Constituição e nenhuma revolução (BONAVIDES, 2010, pág. 437/438). Ou seja, há menos estabilidade dos Primeiros-Ministros, mas tem-se mais estabilidade nas instituições republicanas. Outra desvantagem atribuída ao Parlamentarismo (nomeadamente, no Brasil) seria a sua suposta incompatibilidade com o Federalismo. Diz-se que, no plano doutrinário, “a incompatibilidade entre sistema parlamentar e federação resultaria da posição secundária do Senado (Câmara Alta) em relação à Câmara dos Deputados (Câmara Baixa), que só ela governaria o País, ‘só ela poderia instituir, destituir e reconstruir Gabinetes’, na expressão de Sampaio Dória, citado por Kildare Gonçalves Carvalho (2008, pág. 135). Este último autor cita ainda Rui Barbosa, nos seguintes termos: “Também Rui Barbosa via incompatibilidades essenciais entre o Parlamentarismo e forma federal de Estado, pela predominância da Câmara dos Deputados, circunstância que contrariava a equiponderância do bicameralismo federal” (CARVALHO, 2008, pág. 135). No entanto, atualmente tende a acreditar-se que esta incompatibilidade teorizada entre Parlamentarismo e Federalismo não se manifesta na prática. Para tanto basta observar que Estados Federais tais como o Canadá, a Austrália, a Índia, a Áustria e a Alemanha adotam tranquilamente sistemas parlamentaristas (GROFF, 2003, pág. 137/146). Obviamente que são necessárias algumas adaptações pertinentes à realidade concreta de cada País, mas não se pode afirmar que haja uma incompatibilidade teórica e absoluta. 5. parlamentarismo no br asil 5.1. o pseudo-parlamentarismo do br asil imperial O Brasil teve duas experiências supostamente parlamentares em sua história. A primeira ocorreu durante o 2.º Reinado, no período entre os anos de volume 06 51 i encontro de internacionalização do conpedi 1847 e 1889. Pouco tempo antes, em 1824, Dom Pedro I havia outorgado a Constituição Imperial de 1824. Nela, com clara inspiração nas ideias de Benjamin Constant, definiu-se um modelo quadripartido de “poderes”, com a presença do Legislativo, Executivo, Judiciário e do Poder Moderador.18-19 Este último foi deferido exclusivamente ao Imperador como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente velasse sobre a manutenção da Independência, equilíbrio, e harmonia dos demais Poderes Políticos20. A Constituição de 1824 conferia, também, ao Imperador o poder de dissolver a Assembleia, convocar novas eleições, nomear e demitir Ministros de Estado.21 Ocorre que o governo absolutista de Dom Pedro I, imbuído de tantos poderes, não agradou nem aos partidos políticos, nem à Câmara dos Deputados, tendo18 BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil de 25 de março de 1824 - Art. 10. Os Poderes Politicos reconhecidos pela Constituição do Imperio do Brazil são quatro: o Poder Legislativo, o Poder Moderador, o Poder Executivo, e o Poder Judicial. Obs. Texto mantido no português original. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constituicao24.htm. Acessado em 01 de abril de 2014. 19 Também em Portugal, a Carta Constitucional de 1826 consagrou o Poder Moderador, justamente por influência da Constituição Brasileira. Neste sentido, vide Paula Veiga, O Presidente da República: contributo para uma compreensão republicana do seu estatuto constitucional, polic., Coimbra, 2010, págs.242 e segs.. 20 BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil de 25 de março de 1824 - Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organisação Politica, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independencia, equilibrio, e harmonia dos mais Poderes Politicos. Obs. Texto mantido no português original. Disponível em http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm. Acessado em 01 de abril de 2014. 21 Raul Pilla, comentando esse primeiro momento da Constituição de 1824, afirmou que: “Era a constituição de uma monarquia simplesmente constitucional e representativa, não de uma monarquia parlamentar. Era uma constituição presidencialista: já ali se encontravam as disposições, as próprias expressões que se tornariam, mais tarde, a definição do Presidencialismo em nosso país: independência e harmonia de poderes, livre nomeação e demissão dos ministros de Estado. Era, ainda mais, uma Constituição superpresidencialista, graças à prerrogativa, que se arrogava o Imperador, de dissolver as Câmaras.” O trecho citado se encontra no livro FRANCO, Afonso Arinos de Melo; PILLA, Raul. Presidencialismo ou Parlamentarismo? - Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 1999, pág 130. A referida obra é composta por manifestações dos então Deputados Federais Afonso Arinos de Melo Franco e Raul Pilla. O primeiro apresenta no livro parecer contrário à emenda constitucional parlamentar proposta pelo Deputado Raul Pilla, a qual buscava a instalação do Parlamentarismo no Brasil. Este último juntou ao livro seus fundamentos para a emenda parlamentar e a resposta ao parecer de Melo Franco. O curioso é que, anos mais tarde, Afonso Arinos de Melo Franco converteu-se ao Parlamentarismo, tornando-se um fervoroso defensor deste sistema de governo. 52 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi se travado sérios embates na época. Já bastante desgastado politicamente, em 1831, Dom Pedro I abandonou o Trono e voltou para Portugal. Por força da lei, o Imperador deixou o Governo nas mãos de uma regência integrada por três representantes, em razão da pouca idade do sucessor Dom Pedro II (o qual, na oportunidade, possuía apenas cinco anos e quatro meses de idade). Foi nesse período regencial que as primeiras características de um suposto Parlamentarismo começaram a despontar. Os regentes reuniam-se (como que em um Gabinete) para decidir as políticas do Império, com o objetivo de barrar o crescente prestígio da Câmara dos Deputados. A partir destas reuniões, surgiu a figura do Primeiro-Ministro (que era chamado de Ministro-Presidente). Atingida a maioridade de Dom Pedro II (maioridade esta que foi abreviada para a idade de quinze anos), o Imperador foi coroado e assumiu o Trono do Império brasileiro. Dom Pedro II, diante da situação de crise política que se encontrava a nação, criou expressamente o cargo de Presidente do Conselho de Ministros, através do Decreto nº 523, de 20 de Julho de 184722. Boa parte da doutrina brasileira considera o referido momento o ponto inicial de um regime parlamentar no Brasil.23 Compreende-se facilmente a importância da inovação. Até então, os ministros ligavam-se diretamente à pessoa do Monarca e não constituíam um verdadeiro corpo coletivo; criada a Presidência do Conselho, surgia formalmente o Chefe do Governo, em face do Chefe do Estado, configurando-se, claramente, o Governo de Gabinete (FRANCO, 1999, pág. 139). 22 BRASIL. Decreto nº 523, de 20 de Julho de 1847- Crea hum Presidente do Conselho dos Ministros. Tomando em consideração a conveniencia de dar ao Ministerio huma organisação mais adaptada ás condições do Systema Representativo: Hei por bem crear hum Presidente do Conselho dos Ministros; cumprindo ao dito Conselho organisar o seu Regulamento, que será submettido á Minha Imperial Approvação. Francisco de Paula Sousa e Mello, do Meu Conselho d’Estado, Ministro e Secretario d’Estado dos Negocios do Imperio, o tenha assim entendido, e faça executar. Palacio do Rio de Janeiro em vinte de Julho de mil oitocentos quarenta e sete, vigesimo sexto da Independencia e do Imperio.” Obs. Texto no Português original. Disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto523-20-julho-1847-560333-norma-pe.html. Acedido em 01 de abril de 2014. 23 Por exemplo, Pedro Lenza (2013, pág. 546) afirma: “o Parlamentarismo se consolidou com a criação do cargo de Presidente do Conselho de Ministros pelo Decreto n. 523, de 20.07.1847, conforme o qual D. Pedro II escolhia o Presidente do Conselho e este, por sua vez, escolhia os demais ministros, que deveriam ter a confiança dos Deputados e do Imperador, sob pena de ser dissolvido (...)”. volume 06 53 i encontro de internacionalização do conpedi Contudo, não obstante a opinião da doutrina, deve observar-se que o sistema instituído por Dom Pedro II possuía desvirtuamentos que claramente lhe retiraram o caráter parlamentar. O primeiro deles foi o fato do Presidente do Conselho (cargo equivalente ao Primeiro-Ministro inglês) ser politicamente responsável perante o Imperador, e não perante o Parlamento. Nesse sentido, muitos doutrinadores chegaram a chamar o regime de “Parlamentarismo às avessas” (LENZA, 2013, pág. 546). Observe-se que, em verdade não houvera no Império a mencionada consciência democrática, que postulasse o Parlamentarismo; tampouco existiu a separação citada entre poder Moderador e poder Executivo, pois, embora suas atribuições fossem diversas, ambos competiam ao Imperador. A situação, em geral, não muda muito com a criação, em 1847, do cargo de Presidente do Conselho, porque este, com os demais Ministros, era nomeado e demitido livremente pelo Imperador. A única diferença é que agora se deu alguma organicidade ao Ministério, que passara a decidir os assuntos mais importantes reunido em Conselho de Ministros. Mas seu Presidente não passava de simples coordenador do Ministério. Suas atribuições não eram, nem podiam ser, as de Chefe de Governo, porque o Imperador persistia chefe do poder Executivo. (SILVA, 1990, pág. 622). O Imperador fez uso exaustivo de suas prerrogativas como Poder Moderador, nomeando e demitindo os Presidentes do Conselho inúmeras vezes e sem observar a composição da maioria parlamentar presente na Câmara dos Deputados, realizando, simplesmente, um rodízio entre os dois partidos mais significativos da época24. Da mesma forma, em várias situações o Imperador dissolveu a Câmara dos Deputados quando julgou ser oportuno, mas sem justificativas aparentes. Uma outra caraterística que comprova a ausência de um verdadeiro sistema parlamentar no segundo Império brasileiro foi a ineficiência de institutos básicos do Parlamentarismo, tais como as moções de censura ou de confiança (SILVA, 24 Durante cinqüenta anos, 36 Gabinetes sucederam-se no poder. Os conservadores foram os que mais tempo dominaram o Governo do Império: 29 anos e dois meses. Os liberais, malgrado seus 21 Gabinetes, governaram apenas 19 anos e cinco meses. 54 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi 1990, pág. 622), já que os Governos eram substituídos em sua grande maioria pela vontade única do Rei. Em suma, não se pode, do ponto de vista científico, qualificar como parlamentar o sistema de governo instituído no Brasil no Segundo Império. Prova disso é que boa parte dos requisitos relacionados neste trabalho como sendo características básicas do Parlamentarismo não estavam presentes, nomeadamente: i) não havia separação entre o Chefe de Estado e o Chefe de Governo, posto que, de fato, o Imperador conservava todas as funções executivas em suas mãos; ii) não havia responsabilidade do Governo perante o Parlamento, na medida em que a dissolução do Governo dependia exclusivamente do Imperador, não existindo consulta ao Parlamento, nem respeito pela maioria parlamentar; iii)a dissolução do Parlamento poderia ocorrer por ato uníssono do Imperador, não havendo a necessidade de pedido prévio do Presidente do Conselho de Ministros; iv)era irrelevante a anuência, ou não, do Parlamento ao Programa de Governo do Presidente do Conselho de Ministros, de modo que a política estatal não era controlada pelo Parlamento, e sim pelo Imperador; v) a maioria dos Governos caíram não por moções de censura ou de confiança do Parlamento, mas sim por vontade exclusiva do Imperador (MALUF, 2003, pág. 285). Concorda-se, por isso, que não houve, de fato, governo parlamentar no Brasil Imperial (SILVA, 1990, pág. 622). 5.2.o fugaz parlamentarismo republicano O segundo momento histórico brasileiro relacionado com o Parlamentarismo ocorreu na década de 60 do século passado. A eleição presidencial de 1960 elegera como Presidente Jânio Quadros, candidato de extrema-direita apoiado pelos militares. Contudo, como Vice-Presidente fora eleito João Goulart, de ideologia mais progressista (SILVA, 1990, pág. 623). volume 06 55 i encontro de internacionalização do conpedi Ocorre que, apenas sete meses após a posse, Jânio Quadros renunciou à presidência de República, abrindo espaço, nos termos constitucionais, para a posse do Vice-Presidente João Goulart. Contudo, os Ministros militares opunham-se veementemente ao nome de João Goulart como Presidente da República, declarando, inclusive, que o retorno de João Goulart ao Brasil (que no momento da renúncia de Jânio Quadros estava em viagem à República Popular da China) era completamente inconveniente. A crise tomara grandes proporções, assumindo o risco de uma guerra civil.25 A solução política para o impasse foi a votação, às pressas, de uma emenda constitucional que transformaria o Brasil numa República parlamentar, com o objetivo de permitir a posse de João Goulart, mas subtraindo-lhe poderes. A emenda referida foi a nº 4, de 02 de setembro de 1961, chamada de Ato Adicional. Aprovado o Ato Adicional passou a determinar-se que o Poder Executivo seria exercido pelo Presidente da República e pelo Conselho de Ministros, cabendo ao Conselho a direção e a responsabilidade política do Governo e da Administração Federal.26 Nas palavras de José Afonso da Silva (1990, pág. 623): Esse período provou que o Presidente, no Presidencialismo, é detentor de grandes poderes, mas numa realidade cambiante, multipartidarista, não encontra base de sustentação estável. Tornase assim, muitas vezes um poder fraco. A concentração de poder, na pessoa de um Presidente, com mandato fixo, é, na mais das 25 “No Rio Grande do Sul, sede do III Exército, o Governo local armava-se para enfrentar qualquer ação que impedisse a legítima posse de João Goulart, fundamentados sob o manto da legalidade e da constitucionalidade. Nesse contexto é que o líder do III Exército, Marechal Lopes, aderira ao movimento, opondo-se expressamente a orientação dos ministros militares de veto à posse do legítimo mandatário da vontade popular, numa promessa de obediência à Constituição.” PAIVA, Leonardo Carlo Biggi de. As Origens do Parlamentarismo e a sua Manifestação no Brasil. Disponível em http: www.infoescola.com/formas-de-governo/asorigens-do-parlamentarismo-e-sua-manifestacao-no-brasil/. Acesso em 01/04/2014. 26 BRASIL. Emenda Constitucional nº 04 de 02 se setembro de 1961. Ato Adicional. Institui o sistema parlamentar de govêrno. Art. 1º O Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República e pelo Conselho de Ministros, cabendo a êste a direção e a responsabilidade da política do govêrno, assim como da administração federal. Obs. Texto no português original. Texto disponível em http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=113505. Acesso em 02/04/2014. 56 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi vezes, empecilho à solução das crises de poder. Um poder forte, sem mecanismo flexível de solução de crises governamentais, se torna, no fundo, num poder fraco, sob a perspectiva democrática. Os poderes do Presidente da República estavam descritos na Emenda parlamentar, podendo destacar-se os seguintes: nomear o Presidente do Conselho de Ministros e, por indicação deste, os demais Ministros de Estado e exonerá-los, quando a Câmara dos Deputados lhes retirar a confiança; presidir às reuniões do Conselho de Ministros, quando julgar conveniente; representar a Nação perante os Estados estrangeiros; celebrar tratados e convenções internacionais, ad referendum do Congresso Nacional; declarar a guerra depois de autorizado pelo Congresso Nacional ou sem essa autorização, no caso de agressão estrangeira verificada no intervalo das sessões legislativas; fazer a paz, com autorização e ad referendum do Congresso Nacional; exercer, através do Presidente do Conselho de Ministros, o comando das Forças Armadas. Quanto ao Conselho de Ministros, a Emenda estatui, expressamente, dentre outras competências, que o Conselho responderia coletivamente perante a Câmara dos Deputados pela política do Governo e pela administração federal, e cada Ministro de Estado, individualmente, pelos atos que praticasse no exercício de suas funções; que todos os atos do Presidente da República deveriam ser referendados pelo Presidente do Conselho e pelo Ministro competente, como condição de validade (referenda ministerial). Contudo, tal sistema possuía vícios que o levaram a um rápido abandono. Primeiro, fora criado em um momento de crise e como instrumento para retirada do poder de um Presidente da República específico27, ou seja, nasceu não como um instrumento de disseminação da democracia, mas sim beirando um golpe de Estado. Segundo, o mecanismo previsto para a nomeação do Governo era extremamente burocrático e complicado (SILVA, 1990, pág. 623)28. 27 “Nenhuma circunstância favorecia, por conseguinte, a consolidação daquele Parlamentarismo condenado pelo berço espúrio, pelo caráter de enxertia de que se revestiu, pelo atentado que representou ao princípio monista do poder democrático, fazendo o governo dualista, tanto na sua formação como no seu exercício” (BONAVIDES, 2010, pág. 447). 28 BRASIL. Emenda Constitucional nº 04 de 02 se setembro de 1961. Art. 8º O Presidente da República submeterá, em caso de vaga, à Câmara dos Deputados, no prazo de três dias, o nome volume 06 57 i encontro de internacionalização do conpedi Ressalta, ainda, José Afonso da Silva (1990, pág. 624) que um outro fator para a derrocada do sistema foi a previsão da obrigatoriedade de desincompatibilização (afastamento do cargo) dos membros do Conselho de Ministros para que participassem das eleições parlamentares. Contudo, o principal ponto para a falência do sistema foi a redação do art. 25 do Ato Adicional29, a qual prescrevia a possibilidade de realização de um plebiscito que decidiria pela manutenção do sistema parlamentar ou a volta do sistema presidencial. Interessado em retomar os plenos poderes, João Goulart conseguiu convencer o Conselho de Ministros a realizar um plebiscito em 1963, em desacordo com o prescrito no artigo 25 da Emenda 04/61, na medida em que nesta só se previa a possibilidade de realização de plebiscito nove meses antes do término do mandato do atual Presidente da República, o que ocorreria apenas em 1966. Realizado o plebiscito, a maioria absoluta do povo decidiu pelo retorno ao sistema presidencialista, pondo fim à única e rápida experiência (minimamente) parlamentar da história política brasileira.30 do Presidente do Conselho de Ministros. A aprovação da Câmara dos Deputados dependerá do voto da maioria absoluta dos seus membros. Parágrafo único. Recusada a aprovação, o Presidente da República deverá, em igual prazo, apresentar outro nome. Se também êste fôr recusado, apresentará no mesmo prazo, outro nome. Se nenhum fôr aceito, caberá ao Senado Federal indicar, por maioria absoluta de seus membros, o Presidente do Conselho, que não poderá ser qualquer dos recusados. Art. 9º O Conselho de Ministros, depois de nomeado, comparecerá perante a Câmara dos Deputados, a fim de apresentar seu programa de govêrno. Parágrafo único. A Câmara dos Deputados, na sessão subseqüente e pelo voto da maioria dos presentes, exprimirá sua confiança no Conselho de Ministros. A recusa da confiança importará de nôvo Conselho de Ministros. Art. 10. Votada a moção de confiança, o Senado Federal, pelo voto de dois terços de seus membros, poderá, dentro de quarenta e oito horas, opor-se à composição do Conselho de Ministros. Parágrafo único. O ato do Senado Federal poderá ser rejeitado, pela maioria absoluta da Câmara dos Deputados, em sua primeira sessão. Obs. Texto no português original. Texto disponível em http://legis.senado.gov.br/legislacao/ ListaPublicacoes.action?id=113505. Acedido em 02/04/2014. 29 BRASIL. Emenda Constitucional nº 04 de 02 se setembro de 1961. Art. 25. A lei votada nos termos do art. 22 poderá dispor sobre a realização de plebiscito que decida da manutenção do sistema parlamentar ou volta ao sistema presidencial, devendo, em tal hipótese, fazerse a consulta plebiscitaria nove meses antes do termo do atual período presidencial. Obs. Texto no português original. Texto disponível em http://legis.senado.gov.br/legislacao/ ListaPublicacoes.action?id=113505. Acedido em 02/04/2014. 30 Após o retorno ao regime presidencialista e mantendo João Goulart a função de Presidente da República, mas agora exercendo sozinho a função de Chefe de Estado e Chefe de Governo, 58 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi Contudo, como bem ressalta Sahid Maluf (2003, pág. 287), “o fracasso dessa experiência parlamentarista não chega a depor contra a excelência do sistema, mesmo porque, em última análise, o Ato Adicional de 1961 não continha senão um tímido arremedo de Parlamentarismo”. 5.3.o parlamentarismo e a constituição de 1988 A Constituição brasileira de 1988 quase foi parlamentar. Esta afirmação pode parecer inverídica e impossível, porque o sistema de governo descrito na referida carta política é o Presidencialismo. Contudo, numa análise mais atenta, notarse-á que a ideia inicial era a da criação de um sistema parlamentar no Brasil. Após o fim da ditadura militar, instaurou-se a Assembléia Constituinte de 01 de fevereiro de 1987, com a missão de criar um novo texto constitucional para consolidar o processo de redemocratização. Durante a elaboração do texto, a Comissão III (Organização dos Poderes e Sistema de Governo) era composta por três outras subcomissões (uma dedicada ao Poder Legislativo, outra ao Poder Judiciário e ao Ministério Público, e a última dedicada ao Poder Executivo). A subcomissão responsável pelo Poder Executivo apresentou uma proposta inovadora, prevendo que o sistema de Governo a ser adotado pelo Brasil na nova Constituição seria o parlamentar. Submetido à votação na Comissão III, o Projeto parlamentar foi aprovado. Neste sentido, José Afonso da Silva cita o texto do projeto, afirmando o seguinte (SILVA, 1990, pág. 668/669): Era uma proposta coerente, na qual se separava devidamente a Presidência da República do Governo. O Presidente da República seria o Chefe de Estado e comandante supremo das Forças Armadas, cabendo-lhe garantir a unidade, a independência, a defesa nacional e o livre exercício das instituições democráticas. Seria eleito por sufrágio universal, direto e secreto, por maioria absoluta em dois turnos, se necessário, para um mandato de cinco anos (…). O Governo seria exercido pelo Primeiro Ministro e instaurou-se uma forte crise política que acabou por culminar no nefasto Golpe Militar de 1964. volume 06 59 i encontro de internacionalização do conpedi pelos integrantes do Conselho de Ministros, que dependeriam da confiança da Câmara dos Deputados e seriam exonerados quando ela lhes faltasse. Contudo, a proposta parlamentar não agradou ao então Presidente da República, nem à maioria dos Governadores dos Estados, os quais não desejavam perder qualquer parcela do poder que já possuíam (e tinham esperança de mantêlo em novas eleições). Por esse motivo, houve uma grande pressão sobre os Deputados constituintes para que, no Plenário, rejeitassem o Parlamentarismo. Submetida a proposta em votação plenária, o projeto parlamentar foi rejeitado pela Assembleia Constituinte.31 Ainda se tentou aprovar uma proposta de sistema misto (denominado Presidencialismo parlamentarizado, mas não houve sucesso). Embora derrotado, os defensores do Parlamentarismo conseguiram inserir no texto da Carta Constitucional de 1988 o artigo 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o qual convocara um plebiscito para o dia 7 de setembro de 1993, no qual os brasileiros poderiam escolher a forma de governo (República ou Monarquia constitucional) e o sistema de governo (Presidencialismo ou Parlamentarismo). O mais interessante do citado artigo é que ele possui uma prescrição constitucional potencialmente “suicida”, ante o fato de que se houvesse escolha pela forma monárquica, toda a Constituição estaria revogada, devendo uma outra ser elaborada, ante a absoluta incompatibilidade do texto positivado com a monarquia. Contudo, tal problema não chegou a ocorrer, em razão da vitória da República e do Presidencialismo no plebiscito realizado em 1993, mantendo-se o texto da Constituição de 1988. 31 “Houve indecente pressão do Presidente da República, de seus Ministros e da Maioria dos Governadores do Estado contra o Parlamentarismo. Foi a única vez em que compareceram todos os quinhentos e cinquenta e nove membros da Assembléia Constituinte. A mobilização envolveu recursos de toda a ordem, aviões para buscar constituintes, ofertas de favores especiais para constituintes votarem contra o Parlamentarismo e em favor de uma das propostas de Presidencialismo. (…) A vitória do Presidencialismo foi a maior prova do poder pessoal do Presidente da República. Mesmo quando este não goza, em nível nacional, de prestígio e de credibilidade, assim mesmo dispõe de uma máquina governamental capaz de fazer votos parlamentares em prol de seus interesses políticos.” (SILVA, 1989, pág 671). 60 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi 6. conclusão - parlamentarismo, por que não? A derrota do Parlamentarismo no plebiscito de 1993 arrefeceu as discussões sobre a questão do sistema de Governo no Brasil. No entanto, nos últimos anos, e diante as numerosas crises políticas, a doutrina retomou o debate sobre a viabilidade, ou não, da mudança do sistema instituído. De tudo quanto se escreveu neste trabalho, a primeira conclusão a que se chega é que nunca não houve, efetivamente, a implantação de um sistema parlamentar no Brasil (ou, pelo menos, não houve por período suficiente) para que se possa fazer uma análise empírica do comportamento da sociedade brasileira no referido sistema. Contudo, a ausência de elementos empíricos não impede que o Parlamentarismo possa ser uma boa opção para superar os problemas políticos existentes no Brasil. O primeiro ponto a favor é a constatação de que o Parlamentarismo é um regime mais democrático, porque submete o governante à vontade popular não apenas no momento das eleições, mas, também, durante todo o período de Governo, em razão da possibilidade de aprovação de uma moção de censura e/ou afastamento do Primeiro-Ministro a qualquer tempo. Além do mais, a possibilidade de dissolução do Parlamento e de convocação de novas eleições permite que o povo se pronuncie directamente, em momentos de graves crises políticas e desavenças entre o Chefe de Estado, o Chefe de Governo e o Parlamento, e decida quais devem ser os titulares dos cargos. Em uma República parlamentar, mesmo uma eventual eleição indireta do Chefe de Estado (Presidente) não deixa de ser um mecanismo democrático, pois permite aos representantes do povo escolherem quem será o mediador entre os inúmeros interesses em jogo no cenário político, com um mandato temporalmente fixado. O Executivo e o Legislativo trabalhariam num intenso regime de colaboração, já que nenhum Governo se manteria no poder sem a anuência da maioria do Congresso, evitando-se o fenômeno da constante “compra” de apoio e votos32 dos parlamentares. 32 Os noticiários brasileiros são fartos de exemplos onde o Presidente ou Governador, após eleito e precisando conquistar o apoio da maioria do Congresso ou da Assembleia Legislativa para poder aprovar as leis de seu interesse e imprimir as políticas que entende necessárias, distribui Ministérios, cargos públicos e demais benesses entre os Partidos políticos que aderem ao Governo. volume 06 61 i encontro de internacionalização do conpedi Outro ponto importante seria a rápida e legítima solução para as crises políticas. Com efeito, a flexibilidade do sistema parlamentar permite a imediata substituição dos Governos que se envolvam em atos de corrupção (tão comuns no Brasil) através de mecanismos de responsabilização política. Diferentemente, no atual regime (presidencialista), o afastamento do governante corrupto só poderá ocorrer após um difícil e longo processo judicial por atos de improbidade administrativa ou em caso de condenação penal, os quais, em razão dos entraves legislativos/processuais e falta de estrutura do Judiciário brasileiro, demoram anos (quiçá décadas) para serem julgados, sendo o povo obrigado a conviver com um mau político durante todo o resto do mandato. Alguns argumentam que o Presidencialismo possui o impeachment para a solução de tais crises. Contudo, a prática demonstra que os requisitos para a sua efectivação são demasiadamente rigorosos e sujeita ainda o cenário político a um processo de instabilidade por demais perigoso. A ausência de tempo fixo para a permanência do Governo é algo que se perspectiva verdadeiramente de positivo, inclusive para se permitir o prolongamento de uma boa gestão. Como já se referiu acima, o Presidencialismo é estável para o mal e instável para o bem (ALBUQUERQUE, 1932, pág. 43), posto que prolonga demasiadamente os maus Governos e finda inevitavelmente os bons Governos. Ainda que, como o leitor já se apercebeu, se defenda uma eventual experimentação da institucionalização do sistema parlamentar no Brasil, ciente do risco de Governos perpétuos, poder-se-ia sempre estabelecer um período máximo, ainda que longo, para a manutenção de um mesmo Primeiro-Ministro no cargo. A valorização dos partidos e do seu caráter ideológico, além da predisposição para um maior envolvimento político do povo, afiguram-se como ganhos imensuráveis, inclusive como instrumentos de inclusão política e mecanismos de formação de novos quadros políticos. Com efeito, a posição de destaque dos partidos no regime parlamentar é proclamada por Clóvis de Souto Goulart (1979, pág. 47) nos seguintes termos: São efetivamente eles, na condição de veículos de expressão das ideias e das aspirações nacionais, que governam o Estado. Só 62 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi através deles, como entes catalisadores e organizadores da opinião pública, a maioria dos cidadãos, pela via da representação política, terá condições de exercitar o poder. Em suma, só com eles a democracia será possível. Por fim, pode o leitor perguntar-se qual seria o instrumento jurídico apropriado para uma mudança do sistema de governo. Entende-se que uma Emenda Constitucional poderia, perfeitamente, conduzir a uma modificação do sistema, sem necessidade de nova manifestação do poder constituinte originário, desde logo porque, dentre as cláusulas pétreas (imodificáveis) previstas na Constituição Federal brasileira de 1988, não consta o sistema de governo.33 A implementação do Parlamentarismo no Brasil não atingiria a forma federativa de Estado (primeira cápsula pétrea), em razão de que, conforme acima debatido, não há incompatibilidade entre o Parlamentarismo e o Federalismo. A segunda cláusula pétrea (voto direto, secreto, universal e periódico) também não seria maculada, ante a persistência de eleições diretas para os membros do Parlamento. A separação dos Poderes (terceira cláusula pétrea) não seria anulada, tendo em vista que no Parlamentarismo também existe uma separação dos poderes, embora diferente porque se incrementam as relações entre o Executivo e o Legislativo. Por fim, não se perspectiva um desrespeito à quarta (e última) cláusula pétrea expressa, considerando que o sistema parlamentar é plenamente compatível com o respeito pelos direitos e garantias fundamentais. Em suma, do ponto de vista formal, não se encontra obstáculo. No entanto, diga-se, em abono da verdade, não se está aqui a afirmar que o Parlamentarismo vai, como que em um passe de mágica, solucionar todos os problemas políticos brasileiros. Obviamente que não! Tal configura-se impossível. O que se pretendeu demonstrar nesta pequena reflexão foi que o Parlamentarismo possui instrumentos jurídicos e políticos que se creem mais efetivos para uma evolução democrática no Brasil34. Ou, pelo menos, que os 33 As cláusulas pétreas da Constituição Federal brasileira de 1988 estão previstas no artigo 60, § 4º. São elas: a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; e os direitos e garantias individuais. 34Em sentido aproximado, embora para a realidade político-constitucional portuguesa, escrevem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira que “[a] principal alteração estrutural volume 06 63 i encontro de internacionalização do conpedi políticos tenham a coragem de experimentar se tal faria funcionar melhor o sistema político-constitucional brasileiro, na busca de um efetivo desenvolvimento econômico, político e social neste século XXI. Recorde-se, como bem explanou Raul Pilla (1999, pág. 130), que “o êxito dos regimes depende muito mais do espírito com que são aplicados e da correspondência com o meio social que pretendem governar, do que da sua estrutura jurídica.” 7.referências ALBUQUERQUE, José Joaquim de Campos da Costa de Medeiros e. Parlamentarismo e Presidencialismo no Brasil. Brasil: Editor Calvino Filho, 1932. AMARAL, Maria Lúcia. 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A partir da metodologia do estudo de caso, foram analisadas situações em que restou demonstrado como a participação popular é imprescindível para possibilitar a efetivação dos direitos humanos-fundamentais em processos de intervenção pública que buscam o desenvolvimento de comunidades excluídas. Concluiu-se, por fim, que a abertura de canais dialógicos entre a comunidade e o Poder Público, por meio da metodologia da mediação, pode ser um instrumento fundamental para se aliar desenvolvimento e garantia de acesso à ordem jurídica justa. Palavras-chave Políticas públicas; Desenvolvimento sociourbano; Direitos humanos-fundamentais; Participação; Mediação. 1 Professora Doutora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Membro do corpo permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG. Juíza Federal da 47ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte – TRT 3ª Região. Coordenadora do Programa RECAJ UFMG. 2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Geras (UFMG) – orientação: Profa. Dra. Adriana Goulart de Sena Orsini. Professora Adjunta da Faculdade de Estudos Administrativos – FEAD MG. Mediadora de Conflitos. Subcoordenadora do Programa RECAJ UFMG. volume 06 69 i encontro de internacionalização do conpedi Abstract This article will address the issue of urban and socioeconomic development of clusters of slums, promoted by sociourban public policies , and some problems which arise from them, especially in relation to rape and no guarantee of fundamental human rights in these sites. In order to demonstrate this situation, debates were hold concerning problems arising from the implementation of the Program Vila Viva, a public policy of the city of Belo Horizonte in vulnerable communities, with effects in the urban, legal and socioeconomic spheres. Based on the case study methodology, we analyzed situations which demonstrated that popular participation is essential to enable the realization of fundamental human rights in processes of public intervention aiming the development of excluded communities. Final conclusion was that the opening of dialogic channels between the community and the government, through the methodology of mediation can be a key tool to combine development and guarantee of access to fair legal system. Key words Public policies; Sociourban development; Fundamental human rights; Participation; Mediation. 1.introdução O cenário urbano brasileiro se remodelou rapidamente nas últimas décadas, o que acarretou mudanças alinhadas ao crescimento econômico e demográfico do país e a novas configurações políticas e jurídicas nacionais. Novos grupos sociais se constituíram, novas necessidades surgiram e outras formas de regulação, de aplicação do direito e de solucionar conflitos emergiram (GUSTIN; PEREIRA, 2012, p. 21). Nesse contexto, o desenvolvimento das cidades não vem ocorrendo de forma harmônica e homogênea, o que torna a sociedade e as relações sociais ainda mais complexas. A este conjunto, soma-se a falta de planejamento adequado das cidades, o que acaba por gerar uma ocupação desordenada e ilegal do território, e, consequentemente, o aumento das áreas de exclusão e de risco social, nas quais o acesso à justiça3 3 O termo “acesso à justiça” aqui é compreendido como o direito dos cidadãos de verem suas questões analisadas pelo Estado, serem ouvidos por este e, simultaneamente, usufruírem 70 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi e a efetivação de direitos humanos-fundamentais4 é uma realidade distante. Em Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais – Brasil –, por exemplo, quase um quinto da população vive em vilas e favelas5, terrenos não regularizados e desprovidos de infraestrutura adequada. Nestes espaços, o quadro de populações em situação de risco, de exclusão e de violação de direitos, com acesso à justiça insuficiente ou até mesmo inexistente, é uma alarmante realidade nos contextos urbanos. O Estado, em parte de sua atuação, não se mantém inerte diante das desigualdades sociais, econômicas e jurídicas provocadas pelo desenvolvimento urbano não adequadamente ordenado. Diversas ações são pensadas, planejadas e executadas para a melhoria das condições da população de modo geral e para a diminuição das diferenças socioeconômicas das regiões intramunicipais. Todavia, muitas dessas ações são realizadas de modo insatisfatório, inadequado ou até mesmo prejudicial, o que, se não agrava, mantém a situação de vulnerabilidade de certas regiões. São exemplos de ações que não atingem o escopo de realização esperada pela atuação estatal algumas políticas públicas adotadas no intuito de se promover a reurbanização e a regularização fundiária dos espaços informais das grandes cidades. Em boa parte das intervenções, a população local ou não é consultada ou é pouco escutada, e projetos que não atendem às comunidades são implantados, portanto, de forma autoritária, imposta e não dialogada. Sob o argumento e visão de que se está a levar o desenvolvimento a essas localidades, o Poder Executivo, de modo satisfatório dos serviços públicos (SENA, 2010, p.157). Este conceito extrapola a definição clássica de acesso à justiça como somente acesso ao Poder Judiciário e ao devido processo, para englobar o acesso a uma ordem jurídica efetiva e justa. 4 O uso da expressão direitos humanos-fundamentais no presente artigo tenciona reforçar a importância da efetivação de tais direitos, tutelados nacional e internacionalmente. Tal expressão substancia a ideia de direitos e não meras concessões, tendo em vista a formalização dos direitos humanos no plano internacional, por meio da Carta das Nações Unidas, e dos mesmos enquanto direitos fundamentais no plano nacional, através da Constituição da República de 1988. A autora Mariá Brochado afirma que “o espírito das leis do nosso tempo são os direitos humanos-fundamentais” (BROCHADO, 2010, p. 38). 5 Informação retirada do site da Prefeitura de Belo Horizonte, que, por meio de dados levantados pela Diretoria de planejamento da URBEL – Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte –, afirma que 19% (451.395 habitantes) da população da cidade de Belo Horizonte vivem em terrenos irregulares, caracterizados como vilas e aglomerados de favelas (PREFEITURA, 2012). volume 06 71 i encontro de internacionalização do conpedi por vezes, acaba desrespeitando os direitos fundamentais e humanos de seus moradores e agravando a situação socioeconômica destes, produzindo mais exclusão e vulnerabilidade social. A difícil tarefa de reversão do quadro de desigualdades criadas ou agravadas em virtude do desenvolvimento social, econômico e urbanístico deve ser realizada com a imprescindível participação popular, afim de que todos os cidadãos se envolvam e se impliquem nos destinos das cidades. À população deve ser franqueada participação ativa nas questões da cidade, de modo que o desenvolvimento urbano traga melhorias efetivas em suas condições de vida, assumindo, assim, uma postura emancipatória e de mobilização; no mesmo diapasão, a população deve, portanto, ser ouvida pelos governantes para que, de forma conjunta e dialógica, políticas públicas adequadas sejam alcançadas e se tornem uma realidade nesses espaços, representando um desenvolvimento verdadeiramente sustentável6. As questões levantadas não têm sido debatidas satisfatoriamente pelos governos e pela sociedade civil, e as ações empreendidas não têm merecido o aprofundamento devido por estudos e pesquisas da comunidade acadêmica, de modo geral. São problemas que, na maioria das vezes, estão à margem das discussões, e que envolvem diretamente a (falta da) realização do direito e do acesso à justiça no desenvolvimento do país. No presente artigo, será abordada a questão do desenvolvimento urbano em aglomerados de favelas, das políticas públicas municipais voltadas para essas comunidades e suas relações com a realização dos direitos humanos e fundamentais e do acesso à justiça. De modo a ilustrar os problemas gerados pelo desenvolvimento das cidades, com enfoque na violação de direitos humanosfundamentais e na necessidade de abertura de canais de diálogo para a promoção desses direitos, será trazido ao debate a situação dos Aglomerados Serra e Santa Lúcia frente à política de reurbanização de vilas e favelas da prefeitura municipal 6 A ideia de desenvolvimento sustentável envolve a elaboração e execução de projetos e intervenções pelo Poder Público que possibilitem um salto de qualidade de vida para a população, levando-se em consideração não apenas a preservação do meio ambiente, mas também questões sociais, culturais, econômicas e urbanísticas, dentre outras. As políticas públicas sustentáveis devem visar todos os setores sociais, sob pena de se tornarem perversas e excludentes para determinados grupos. A sustentabilidade destas políticas se encontra, em parte, no respeito ao pluralismo e à participação social nas etapas do processo. 72 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi de Belo Horizonte, denominada Programa Vila Viva, ação vinculada ao PAC – Programa de Aceleração do Crescimento – do governo federal, uma ação de desenvolvimento sociourbano. Será utilizada, para tanto, a técnica metodológica do estudo de caso, a fim de se buscar informações sobre os eventos em questão e compreendê-los em determinado contexto, analisando e/ou buscando possíveis soluções para a situação pesquisada. O estudo de caso envolve a coleta de informações sobre determinado objeto – que pode ser um processo social, como no presente estudo – a fim de se conhecer como opera em um contexto real, indicando porque certas decisões ou intervenções foram tomadas ou implantadas e quais foram seus resultados (CHIZZOTTI, 2011, p. 135). A partir da experiência vivenciada no Programa Polos de Cidadania, atividade de pesquisa e extensão da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG –, será relatada e analisada a intervenção municipal nos referidos Aglomerados em dois momentos distintos: no Aglomerado da Serra, após a implantação do Programa Vila Viva, e no Aglomerado Santa Lúcia, durante o processo de implantação do referido programa, que teve início com a discussão do projeto elaborado para esta localidade, mas antes do seu término (em relação ao Aglomerado Santa Lúcia, o corte temporal da pesquisa se deu entre os anos de 2010 e início de 2012, período em que as discussões foram acompanhadas pelas autoras do presente artigo). O que se pretende demonstrar é a necessidade de que a formulação de políticas públicas ocorra em parceria efetiva com as comunidades que sofrerão intervenções de cunho urbanístico e social, de modo a evitar que o pretenso ou real desenvolvimento destas localidades ceda lugar ao agravamento dos problemas socioeconômicos vivenciados pelas mesmas ou por outras comunidades com histórico de exclusão em um contexto regional. Será demonstrado, também, como o uso de técnicas da metodologia da mediação7 pode ser uma importante ferramenta nestes processos de elaboração e implantação de políticas públicas urbanizadoras, na perspectiva de que tal mé7 Vale ressaltar, desde já, que a mediação a que o presente artigo se refere foi especialmente desenvolvida e adequada aos contextos urbanos em que o Programa Polos de Cidadania atua, voltando-se essencialmente para a solução pacífica de conflitos por meio da promoção da responsabilização e da emancipação de seus usuários. volume 06 73 i encontro de internacionalização do conpedi todo, para além da resolução consensual de conflitos, é um instrumento de acesso à justiça, de emancipação social e de exercício da cidadania pela participação. A escolha de tal metodologia para ser aplicada em contextos vulnerabilizados justifica-se, portanto, pelo fato da mediação ser uma alternativa para a minimização ou superação de riscos e danos destes segmentos sociais (GUSTIN, 2005). Isto porque a mediação promove o diálogo entre os envolvidos em conflitos, estimulando a comunicação e a intercompreensão entre estes, em detrimento do uso da violência. A necessidade de políticas públicas sustentáveis, que promovam um desenvolvimento social, econômico e urbanístico efetivos, de modo a transformar o cenário das cidades, sem, contudo, prejudicar populações socioeconomicamente excluídas, é tema que será apresentado a seguir. 2.da necessidade de políticas públicas par a a efetiva promoção dos direitos humanos-fundamentais Conforme exposto anteriormente, por diversas vezes a violação de direitos humanos-fundamentais em algumas localidades do Brasil está intimamente relacionada ao desenvolvimento não sustentável e heterogêneo das cidades, que apresentam regiões muito desenvolvidas em detrimento de outras nas quais o desenvolvimento não é suficiente para retirar-lhes a condição de exclusão, pobreza e indignidade. A pobreza no Brasil assola boa parte de sua população, que não consegue ver supridas suas necessidades básicas, que, para além da falta de acesso à alimentação saudável e suficiente, educação e saúde, dentre outros, envolve também a falta de moradia digna. Grande parcela de moradores de terrenos irregulares e informais no Brasil sofre com a ausência de efetivação de direitos, mesmo estando acima da dita “linha da pobreza” estabelecida para o país. Assim, a pobreza não pode ser medida apenas pela insuficiência de renda: é pobre mesmo quem, possuindo renda, não a consegue converter em uma vida decente, por diversas carências, como saúde, eduação ou moradia (VEIGA, 2010). Comunidades inteiras permanecem repisando uma situação de vulnerabilidade intensa: moradias em situação de risco, alto nível de violência – tanto entre os 74 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi indivíduos quanto aquela protagonizada pelo Estado e instituições –, desemprego e subemprego, acesso à saúde inexistente ou insuficiente, baixa escolaridade, limitado acesso à informação; compreensão da informação recebida de forma deficitária e não acesso aos direitos e à Justiça, dentre outros, são realidades recorrentes junto a grupos historicamente excluídos que contribuem fortemente para a degradação humana (SENA; SILVA, 2012). Trata-se de populações que representam elevados níveis de pobreza, pobreza esta que não mais inclui ou marginaliza, mas, sendo generalizada e permanente, exclui camadas da população do sistema vigente (SANTOS, 2011), com a consequente negativa de acesso à justiça e de efetivação de direitos humanosfundamentais. O acesso a estes direitos é assunto de interesse de todos e que tem a necessidade de ser tutelado pelo Estado. Ocorre que certos países, que deveriam ter como foco central a efetivação dos direitos humanos-fundamentais, não conseguem realizar tal objetivo de forma abrangente e definitiva, já que muitas vezes a situação de violação é tão intensa que se apresenta de forma quase irreversível; em outros casos, há uma naturalização da pobreza e da situação de exclusão de parcelas consideráveis da sociedade (SANTOS, 2011), o que também dificulta a reversão deste quadro. Assim, as localidades nas quais se verifica uma grande violação de direitos humanos-fundamentais são aquelas que permanecem em crescente distanciamento entre realidade vivenciada e o acesso concreto a uma ordem jurídica efetivamente justa e cidadã. Na América Latina, especialmente em certos locais como os aglomerados de favelas no Brasil, a escassez ou até mesmo a inexistência de recursos e canais que permitam um acesso aos direitos é patente. De acordo com Gustin (2005, p.181), as estátisticas sociodemográficas e econômicas e outros estudos vêm demonstrando que na América Latina ainda persistem espaços de extrema pobreza e degradação humana. O Brasil se inclui nestas regiões de degradação humana, em que pese constatarse a existência de movimentos e ações em prol de mudanças dessa perversa realidade. Políticas públicas para a promoção dos direitos humanos-fundamentais são realizadas, mas ainda de forma tímida, distanciadas da realização de uma justiça social e insuficientes a atingir de modo satisfatório todas as camadas sociais, especialmente aquelas nas quais o forte histórico de exclusão está arraigado. volume 06 75 i encontro de internacionalização do conpedi Existe uma crença generalizada de que o Poder Judiciário é a via de acesso para a efetivação dos direitos humanos-fundamentais. Sem dúvidas é uma das vias. Entretanto, o que se vê há algum tempo é que o Judiciário tem limitações em sua atuação, sendo seus instrumentos alvo constante de reformas legislativas e até mesmo de inovações práticas. Além disso, a sociedade e outros poderes devem assumir a sua parcela de participação na efetivação dos referidos direitos. É imprescindível, neste contexto, que o acesso à justiça seja compreendido como acesso a uma ordem jurídica justa, o que inclui, necessariamente, o acesso e concretização dos direitos humanos-fundamentais, e que isto se torne uma realidade para os cidadãos e não apenas para parcela da população brasileira. Se o acesso à justiça – em sentido amplo – não está garantido para a sociedade de modo geral (por uma série de fatores, sabe-se), isto se agrava em contextos socioeconômicos mais vulneráveis, especialmente junto a populações que vivem em vilas e aglomerados de favelas e que sofrem com violações constantes aos seus direitos, sem acesso ou com acesso incipiente a serviços públicos de qualidade e também ao próprio Poder Judiciário. Nessas localidades, o que se observa é a grande dificuldade de alteração do patamar de extrema vulnerabilidade social, uma vez que não há ainda uma política pública ou social eficiente que permita um acesso efetivo aos direitos, que são ali violados. Gustin (2005, p. 186) afirma que o suprimento das necessidades triviais do ser humano e a promoção do acesso igualitário a bens e serviços deve ser a primeira preocupação do Estado, por meio de políticas públicas que efetivamente cumpram os direitos fundamentais e humanos, e que aumente as possibilidades de se distribuir os bens disponíveis àqueles que mais necessitam. Gustin prossegue o seu raciocínio explicitando que um dos fatores que impossibilita a expansão dos direitos humanos nos países periféricos, como o Brasil, é a forte descrença que se tem de que algo de efetivo possa ser feito, de modo a realizar uma sociedade mais justa, em sentido lato. Há uma “desesperança em relação a mudanças efetivas que possam recompor o bem-estar social e atribuir maior dignidade à população como um todo” (GUSTIN, 2005, p. 187). Na mesma corrente, Santos aponta que “exclusão e dívida social aparecem como se fossem algo fixo, imutável, indeclinável, quando, como qualquer outra ordem, pode ser substituída por uma ordem mais humana” (SANTOS, 2011, p. 76). 76 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi O que se percebe, então, é uma soma de fatores que levam a uma desvalorização e não promoção dos direitos humanos-fundamentais, especialmente junto a comunidades vulnerabilizadas, que possuem histórico de exclusão e trajetória de risco: o Estado não realiza políticas públicas e sociais suficientes; o Poder Judiciário, sozinho, não consegue solucionar a questão de forma satisfatória; e a população, de modo geral, está descrente numa transformação social real (SENA; SILVA, 2012). Ponto central do presente estudo, as políticas públicas, além de serem por vezes insuficientes para garantir um efetivo acesso à justiça e a realização de di-reitos, quando de fato são realizadas, apresentam consequências diversas. Em alguns casos, as ações de desenvolvimento executadas pelos governos, especialmente aquelas voltadas para urbanização, regularização fundiária e melhoria de infraestrutura de vilas e favelas, possuem um caráter ambíguo e paradoxal: ao mesmo tempo em que promovem melhorias para alguns, acabam por gerar ainda mais precariedade para outros. Alguns exemplos que ilustram esta situação podem ser observados no Brasil, como é o caso da Zona Leste do município de São Paulo. Este local, alvo dos políticos paulistanos pela elevada expressão eleitoral, recebeu investimentos em massa do Poder Público na década de 1970. Apesar de terem gerado uma boa infraestrutura para a região, tais recursos, entretanto, não foram suficientes para alocar toda a população, cujo excedente acabou se alojando em invasões e favelas na região (ALMEIDA; D’ANDREA; LUCCA, 2008, p. 123). Ainda em relação à Zona Leste, a vinte e cinco quilômetros do centro de São Paulo foi construída uma grande área de conjuntos habitacionais como política pública para realocar a população pobre de outras regiões de São Paulo e diminuir o déficit da habitação (ALMEIDA; D’ANDREA; LUCCA, 2008, p. 115). Ocorre que as pessoas deslocadas para esta região, denominada “Cidade Tiradentes”, acabaram sendo extremamente distanciadas de seus respectivos trabalhos e empregos, o que representou um aumento nos custos com transporte e queda na qualidade de vida: Cidade Tiradentes tem um emprego a cada 398 indivíduos, o que tem por resultado o desgastante deslocamento diário de milhares de pessoas em direção às regiões centrais, o qual chega a demorar volume 06 77 i encontro de internacionalização do conpedi de quatro a cinco horas por dia no percurso casa-trabalho-casa, por meio de ônibus, trem, metrô e van (ou perua). [...] Uma ideia generalizada sobre Cidade Tiradentes é a de que o distrito é um “depósito de gente”. Removidos de outras favelas da cidade, beneficiados por programas habitacionais do governo, pessoas que não conseguem pagar o custo de vida de outros bairros. Ainda que haja exceções, o “ir morar na Cidade Tiradentes” quase sempre representou uma das últimas opções, quando a possibilidade de se manter em locais mais ou menos distantes do Centro, onde o custo de vida é mais alto, já não era mais factível (ALMEIDA et al., 2008, p. 116). Conforme o estudo levantado, o que se observa é que frequentemente políticas urbanizadoras não representam de fato uma possibilidade de efetivação dos direitos humanos-fundamentais em regiões periféricas, de grande desigualdade e exclusão socioeconômica. De acordo com as anotações de Almeida, D’Andrea e Lucca (2008, p. 124), a promoção de certas políticas sociais de habitação que distanciam os cidadãos dos espaços centrais e de outros espaços dotados de infraestrutura, como benefícios públicos e possibilidades de trabalho, ao mesmo tempo em que realiza política de inclusão, acaba por reforçar a segregação presente nas cidades. Como salientado, o presente estudo volta-se à análise da implantação do Programa Vila Viva, política pública de reurbanização de vilas e aglomerados de favelas de Belo Horizonte na qual também se observa um caráter dúplice: com a intenção de se levar desenvolvimento para vilas e favelas, o Programa Vila Viva, por vezes, gera aumento da situação de vulnerabilidade de certos moradores, que se tornam ainda mais excluídos em prol deste desenvolvimento. 3. o prgr ama vila viva e sua realização em belo horizonte O Programa Vila Viva é uma ação da prefeitura de Belo Horizonte que vem sendo implantado nas vilas e favelas da cidade desde 2005 (PREFEITURA, 2013), em parceria com o Estado de Minas Gerais e a União. Este programa tem por objetivo melhorar a qualidade de vida das populações residentes nestas localidades, normalmente consideradas como Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), realizando três espécies de intervenção: a urbanística, a jurídica e a socioeconômica. 78 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi Os valores necessários para a execução dos projetos do Vila Viva provêm em sua maior parcela do governo federal, por meio do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento)8. Outras verbas que compõem o montante para aplicação do Programa são financiamentos do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento) e da Caixa Econômica Federal, além dos recursos da própria prefeitura de Belo Horizonte, que oferece uma contrapartida, menos significativa do que o recurso federal (PREFEITURA, 2013). Previamente ao surgimento do Vila Viva, foi realizado um estudo detalhado nas vilas e aglomerados de Belo Horizonte pela prefeitura em parceira com as comunidades, de modo a levantar os problemas vivenciados e orientar as intervenções que seriam feitas nestas regiões. Tal estudo, denominado Plano Global Específico – PGE –, foi produzido pela Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte (URBEL), tendo sido realizado em três etapas: levantamento de dados, elaboração de um diagnóstico integrado dos principais problemas da área em estudo e, por último, definição das prioridades locais e das ações necessárias para atendê-las (PREFEITURA, 2013). De acordo com a prefeitura de Belo Horizonte, o Vila Viva tem como escopos a promoção social e o desenvolvimento comunitário por meio da realização de obras, do estímulo à educação sanitária e ambiental, e do acesso a alternativas de geração de trabalho e renda na própria comunidade (PREFEITURA, 2013). Além disso, pretende-se que a implantação do Vila Viva possa contribuir para a diminuição da violência e da concentração do tráfico de drogas nessas localidades. O Programa Vila Viva já foi implantado em diversas regiões de Belo Horizonte, sendo o Aglomerado da Serra, região centro-sul da cidade, o primeiro lugar que recebeu as intervenções do programa. Em termos gerais, o Vila Viva é conceituado como um programa de urbanização e inclusão social, cujas obras de infraestrutura previstas são o alargamento de becos e criação de vias; a construção de conjuntos habitacionais para moradores que vivem em áreas de risco ou que são removidos em função das obras; a implantação de parques e equipamentos para esporte, lazer e cultura; a melhoria nas condições de saneamento básico; 8 Mais informações sobre o PAC podem ser encontradas no site <http://www.planejamento. gov.br/secretaria.asp?cat=500&sub=677&sec=62>. volume 06 79 i encontro de internacionalização do conpedi e a regularização fundiária, através de emissão de escrituras dos terrenos aos proprietários que recebem apartamentos em conjuntos habitacionais. Sendo um dos objetivos do Vila Viva erradicar áreas de risco e proporcionar moradia digna aos moradores que vivem em situação precária, o Programa inclui em suas ações várias remoções e reassentamentos da população que será diretamente atingida pelas intervenções. O Vila Viva estabelece algumas opções para as famílias em tais situações, como o reassentamento em outras moradias, a cessão de um apartamento em unidade habitacional, ou o recebimento de uma indenização (PREFEITURA, 2013). Nesta última hipótese, o valor da indenização leva em consideração apenas as benfeitorias do imóvel, não agregando o valor da propriedade, já que os terrenos ocupados normalmente são da prefeitura e não são considerados propriedades dos cidadãos que ali vivem. Sendo assim, esta última opção é a mais precária, pois o valor das indenizações pagas muitas vezes é insuficiente para comprar uma nova moradia em local próximo ao anterior. Isto ocorre por causa do aumento no valor das propriedades da comunidade, em função das obras realizadas, acréscimo gerado pelo que se denomina “especulação imobiliária”. Enquanto aguardam a construção das unidades habitacionais, para as famílias que terão suas casas removidas, a URBEL disponibiliza temporariamente uma bolsa aluguel no valor de R$ 400,00 (quatrocentos reais), segundo dados colhidos em 2013. Este é o panorama geral do Programa Vila Viva. No próximo tópico, será relatada a sua implantação nos Aglomerados da Serra e Santa Lúcia, a partir de experiências distintas vivenciadas pela atuação do Programa Polos de Cidadania da Faculdade de Direito da UFMG. A partir de tais experiências, pode ser percebido que, por vezes, as ações estatais de fomento ao desenvolvimento de comunidades vulnerabilizadas podem levar a uma violação de direitos dos moradores, especialmente quando as ações não são realizadas de forma conjunta, dialogada e não impositiva. 4.estudo de caso: o progr ama polos de cidadania e sua atuação na implantação do vila viva nos aglomer ados serr a e santa lúcia O Programa Polos de Cidadania é um programa interdisciplinar e interinstitucional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), criado 80 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi em 1995 por professores da Faculdade de Direito e que, desde então, conjuga atividades de ensino, pesquisa e extensão, valorizando a subjetividade e promovendo a cidadania e emancipação de grupos socialmente vulnerabilizados. As equipes do Programa Polos se organizam em frentes de trabalho de acordo com as necessidades verificadas em diversas comunidades de Belo Horizonte e do Vale do Jequitinhonha (Minas Gerais). São realizadas pesquisas diagnósticas em cada local, e, por meio destas pesquisas, são estabelecidas as principais atividades do Programa, voltadas à geração de renda, minimização de violências, organização e mobilização popular, combate à exploração sexual de crianças e adolescentes, regularização fundiária sustentável e uso da metodologia da mediação para solução de conflitos e promoção de direitos e cidadania. A metodologia de pesquisa utilizada pelo Programa é a da pesquisa-ação9, na qual suas equipes atuam de forma interativa, envolvendo ativamente a comunidade em suas atividades, sejam de pesquisa, sejam de extensão. As equipes são formadas por profissionais e estudantes de diversas áreas de conhecimento, tais como direito, psicologia, ciências sociais, administração, arquitetura, geografia, ciências do estado e da governança social, comunicação social, dentre outros. O Polos conta ainda com um grupo de teatro, a Trupe a Torto e a Direito, formado por alunos do Teatro Universitário e pelos integrantes do Programa, que buscam, através da arte, provocar o público para transformações (POLOS, 2013). O Polos possui Núcleos de Mediação e Cidadania – os NMC’s – localizados nos dois maiores aglomerados de Belo Horizonte, o Aglomerado da Serra e o Aglomerado Santa Lúcia, locais onde realizam suas atividades desde 2002. Nos NMC’s é utilizada a metodologia da mediação, especialmente adequada para lidar com situações vivenciadas em contextos socioeconomicamente excluídos e que possuem um alto nível de risco e de violência. A mediação é uma forma complementar de solução de conflitos, em que os envolvidos, auxiliados por uma terceira pessoa – o mediador – buscam, por meio 9 A metodologia da pesquisa-ação empregada pelo Programa Polos é a definida por Thiollent como “... um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com uma resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo.” (THIOLLENT, 1985). volume 06 81 i encontro de internacionalização do conpedi do diálogo, da criatividade e da intercompreensão, a melhor maneira de solucionar a questão sem que uma das partes saia prejudicada ou insatisfeita com o resultado alcançado (SILVA, 2010, p. 177). Trata-se de um processo essencialmente participativo, voltado para questões individuais e coletivas, instigando responsabilidade e senso crítico naqueles que buscam solucionar seus próprios conflitos, e com vista ao desenvolvimento de uma cultura voltada à paz social. Importante esclarecer que a metodologia da mediação é utilizada pelo Programa Polos na intenção de solucionar conflitos nas comunidades em que atua, tanto individuais quanto coletivos, em um contexto de promoção de uma cultura voltada à paz social. Segundo Gustin, Essa proposta de resolução foi selecionada, dentre outras similares, por se entender que esta técnica é a mais adequada aos princípios que fundamentam a metodologia de capital social (...), por ser também emancipadora. Verificou-se, ainda, que a esfera formal do Direito já não mais dá conta da crescente complexidade social e do aumento permanente de litígios em decorrência dessa mesma complexidade e da grande heterogeneidade das sociedades periféricas (GUSTIN, 2005, p. 200). Uma vez que o Programa Polos de Cidadania também objetiva participar do processo de emancipação dos grupos com os quais trabalha e interage, a mediação oferecida nos NMC’s tem um caráter inclusivo e participativo, evitando assistencialismos, pois busca demonstrar aos atendidos que eles devem se responsabilizar e se organizar para reivindicar e realizar seus direitos e exercer sua cidadania. Nicácio (2011, p. 25) explicita a metodologia adotada afirmando ser a mediação utilizada no Programa Polos um meio que busca o equilíbrio entre os excessos de um estado paternalista e as ausências de um estado mínimo, estimulando um modelo de justiça que promova a autonomia e a emancipação social, além de reparar condições sociais precárias através de um direito mais efetivo. Nesta linha, faz-se mister o relato da implantação do Programa Vila Viva nos Aglomerados da Serra e Santa Lúcia, a partir da experiência vivenciada pelas equipes dos Núcleos de Mediação e Cidadania do Programa Polos. No Aglomerado da Serra, a atuação do Polos foi posterior à intervenção do Vila Viva, tendo sido por meio de uma pesquisa sobre os impactos socioeconômicos do programa 82 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi municipal para os moradores daquela região. No Aglomerado Santa Lúcia, a atuação da equipe do NMC teve início com as discussões sobre qual projeto seria o mais adequado para aplicação naquela localidade. Foi neste momento em que se começou a utilizar as técnicas da metodologia da mediação como um instrumento diferencial na criação de canais de diálogo entre a comunidade e o Poder Público, garantindo, assim, uma participação popular mais concreta e a realização de direitos humanos-fundamentais e do acesso à justiça. 4.1.o progr ama vila viva e sua implantação no aglomer ado serr a O Aglomerado da Serra é o maior aglomerado de favelas de Belo Horizonte, sendo considerado um dos maiores da América Latina. Segundo dados da prefeitura, o Aglomerado reúne cerca de trinta e quatro mil habitantes (PREFEITURA, 2007). Localizado na zona sul de Belo Horizonte, próximo a bairros considerados nobres, o Aglomerado da Serra tem uma grande visibilidade no cenário urbano da cidade. O Programa Vila Viva começou a ser planejado para o Aglomerado da Serra entre 1998 e 2000, com a realização do Plano Global Específico (PGE) para a região, tendo as obras se iniciado em 2005 (PREFEITURA, 2013). O próprio PGE previa em todas as suas etapas a participação popular, realizada por meio de Grupos de Referência, criados para que as lideranças comunitárias discutissem a implantação das obras de modo a representar os interesses de toda a comunidade. Os componentes dos Grupos de Referência – moradores que têm disponibilidade de acompanhar as reuniões com a equipe técnica da prefeitura – são escolhidos em assembleia inicial para divulgação da implantação do Vila Viva nas comunidades. São “multiplicadores e divulgadores das informações, acompanham o andamento dos trabalhos e alimentam os técnicos sobre dúvidas e questionamentos feitos pelos moradores” (SILVEIRA et al., 2003). Além de todas as obras previstas pelo Programa Vila Viva, para o Aglomerado da Serra foi idealizada a construção de uma avenida que ligaria o Bairro Santa Efigênia ao Bairro Serra, passando por dentro do Aglomerado. Esta avenida, denominada Avenida do Cardoso, concentrou boa parte dos recursos destinados à implantação do Vila Viva naquela localidade (UMA AVENIDA, 2011). volume 06 83 i encontro de internacionalização do conpedi A equipe do Núcleo de Mediação e Cidadania do Programa Polos, atuando no Aglomerado da Serra desde 2002, percebeu, em 2008, que as obras previstas e até então iniciadas gerariam grandes impactos na vida dos moradores do local. Vislumbrando a importância da realização de uma pesquisa científica acerca do assunto, o Programa Polos conseguiu, com o apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), iniciar um estudo cujo escopo era analisar os efeitos do Vila Viva na condição socioeconômica dos moradores afetados pelas intervenções, sob a perspectiva dos próprios moradores. Para o levantamento dos dados desejados, a equipe do Programa Polos utilizouse da pesquisa de cunho qualitativo, valendo-se de entrevistas em profundidade com roteiros semiestruturados10, uma vez que a apuração quantitativa dos moradores atingidos pelo Vila Viva tornou-se impossível, em virtude da confidencialidade dos dados retidos pela URBEL (VIANA, 2011, p.17). Dessa forma, por meio de indicações dos próprios moradores da comunidade, foram entrevistadas, ao longo do ano de 2011, 60 pessoas – consideradas os responsáveis pelas decisões principais da família em que viviam – sendo estas subdivididas igualmente em quatro grupos: reassentados, indenizados Serra, indenizados não Serra e demais moradores. Conforme exposto acima, para além dos moradores que não foram diretamente afetados pelas intervenções do Programa Vila Viva (demais moradores), a equipe do NMC Serra dividiu os moradores do local em três categorias: reassentados, indenizados e não removidos. Os reassentados, para a pesquisa, eram aqueles moradores que foram removidos de áreas de risco ou em função das obras; os indenizados foram aqueles que receberam uma quantia em dinheiro pelas benfeitorias de suas casas e não pelo terreno (já que é da prefeitura, conforme salientado anteriormente), em virtude das mesmas estarem situadas nas áreas de intervenção; e os não removidos são aqueles moradores que permaneceram vivendo no Aglomerado da Serra após a implantação do Vila Viva (VIANA et al, 2011, p.10). De acordo com dados levantados pela equipe do NMC, 2.269 famílias tiveram que sair de suas casas, seja em função das obras, seja em virtude de morarem em áreas com situação de risco. Deste número elevadíssimo de removidos, 856 10 Tais entrevistas possibilitam que o entrevistador consiga as informações que busca por meio do entrevistado, utilizando-se de um roteiro que o oriente em suas questões, mas que não se fecha em si mesmo, possibilitando ao pesquisador explorar ao máximo o tema escolhido. 84 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi famílias foram reassentadas em apartamentos e 1.413 famílias foram indenizadas, recebendo valores que variaram entre R$ 10,00 (dez reais) e R$ 180.000,00 (cento e oitenta mil reais) (VIANA et al, 2011, p.29). Por meio de entrevistas realizadas, a equipe do Programa Polos levantou alguns efeitos positivos e negativos advindos da implantação do Vila Viva. Os moradores vislumbraram como efeito positivo o fato de saírem da favela, de poderem morar em bairros e terem a segurança da posse, além da erradicação de áreas de risco, da abertura de becos e ruas e da construção de vias. Seguem alguns relatos de moradores, recolhidos pela equipe de pesquisa do Programa Polos: “A maior mudança foi sair da área de favela e vir para um bairro porque essa mudança faz diferença”. (...) “O melhor resultado foi ter saído do beco”. (...) “Foi bom porque tirou muita gente das áreas de risco, ajudou bastante porque tinha muita gente sendo soterrada por causa das chuvas, casas em barranco caindo”. (...) “A principal mudança foram os predinhos, pois as pessoas não tinham condições de reformar a casa. As casas estavam caindo e se não fossem os prédios tinha um monte de gente que iria ficar sem casa, embaixo de chuva. Minha casa não era área de risco, mas depois meu vizinho descobriu que ela estava caindo. Aonde a gente ia ficar? A mudança que Deus fez foi me trazer pra cá. Descobri que ela ia cair depois que já tinha vindo para cá”. (...) “(...) a Avenida Cardoso foi a obra mais importante, pois liga os bairros, dá um acesso muito grande; depois os predinhos!”. (...) “A única coisa que eles fizeram que ajudou bastante foi abrir essas ruas.[...] Até agora, só as ruas.” (VIANA et al, 2011, p. 112-114). Já os efeitos negativos levantados foram a falta de participação popular nas etapas do processo, pois considerou-se que os Grupos de Referência foram volume 06 85 i encontro de internacionalização do conpedi insuficientes; a escassez ou ausência de melhorias para determinados locais11; a falta de oportunidade para jovens; o abandono de praças antigas, locais públicos onde a população se encontrava e tinha como referência social; a falta de segurança e o aumento da violência; a falta de equipamentos de lazer em determinadas regiões; e a acumulação de lixo e entulho em virtude da realização das próprias obras (UMA AVENIDA, 2011), e que não foram recolhidos ao final delas (VIANA et al, 2011, p. 116). Na fala dos moradores, a questão mais recorrente diz respeito à ausência de participação da população nas etapas do processo: (...) conforme Úrsula, o que faltou no Programa Vila Viva foi “ouvir a população; se a população tivesse sido ouvida, não teria sido uma coisa ditada, e sim uma coisa construída”. A entrevistada Pilar argumenta que “parece que eles excluem muito as pessoas, eles tem aquele bolo deles, as pessoas certas para eles colocarem ali”. Ainda sobre isso, Lionel coloca que o “projeto já vem pronto, o povo não participa”. Da mesma forma, Tatiane expõe: O grande problema foi o Vila Viva ter agido com muito autoritarismo na remoção das casas. O Vila Viva não estava preparado para lidar com o lado humano das pessoas. Pessoas que viviam ali a vida inteira não estavam preparadas para aquele processo de remoção brusco. Os implantadores do Vila Via deveriam ser mais humanos e delicados. Eles não são só máquinas que estão ali para remover casas. Faltou o acompanhamento psicológico e acompanhamento social que foi prometido. Portanto, a reivindicação maior para os próximos projetos é para que os aplicadores tratem as pessoas de maneira mais humana. Devem ser mais flexíveis no modo de tratar todo mundo, já que as pessoas são diferentes e eles estavam tratando todo mundo de forma igual, como ditadores. (VIANA et al, 2011, p. 114-115). Para os moradores que foram indenizados, mas tiveram de ir morar em regiões distantes do Aglomerado, os efeitos negativos do Programa Vila Viva foram a baixa indenização recebida, a redução das mesmas no decorrer das obras e o próprio fato de terem saído do Aglomerado, em razão da pouca oferta de trabalho 11 Ressalta-se aqui que a maior parte dos recursos do Vila Viva foi utilizada na construção da Avenida do Cardoso, pouco utilizada pela população do Aglomerado (UMA AVENIDA, 2011). 86 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi na nova região de moradia e da distância da mesma em relação ao centro de Belo Horizonte. Já os moradores reassentados nas unidades habitacionais construídas pela prefeitura reclamaram principalmente da baixa qualidade dos apartamentos recebidos (VIANA et al, 2011, p. 117-118): De maneira recorrente, foi citado pelo grupo dos Indenizados Não Serra, como fatores que geraram insatisfação, os baixos valores das indenizações pagas pela URBEL, o que é retratado na fala de Júlio, ao afirmar que “o que mais queria era ter recebido um valor justo” na sua indenização, pois “o fato de serem pobres e não pagarem impostos não significa que não investiram em sua casa”. Assim, também, Deividson coloca: Acho que lá na Serra eles fizeram tudo bom lá, não tem do que reclamar. Mas tinham era que pagar um valor certo, pois eles pagam o que eles querem dar e não mostram nada não. Igual pra mim que deram 30 mil e não falaram nada. É complementar a fala de Tânia que coloca: “houve gente que até morreu por causa da mudança, por não aguentar a mudança; no final a URBEL passou a pagar menos” (VIANA et al, 2011, p. 117). Com a realização da pesquisa, concluiu-se que, como resultado direto da implantação do Programa Vila Viva no Aglomerado da Serra, houve uma redução na qualidade das condições físicas de habitação dos indenizados, ao passo que, para os reassentados, houve notória melhoria. Observou-se, ainda, que as demais diferenças socioeconômicas entre indenizados e reassentados foram pontuais, na perspectiva dos próprios moradores entrevistados (VIANA et al, 2011, p. 127). Ainda como considerações finais da pesquisa, verificou-se que o Programa Vila Viva privilegiou o lado urbanístico e negligenciou a questão socioeconômica, pois as intervenções urbanísticas, na visão dos moradores, foram mais satisfatórias que as de cunho social. Um efeito colateral da implantação do Programa foi a forte especulação imobiliária gerada no local, o que dificultou enormemente a permanência dos indenizados na comunidade, somada à dinâmica do próprio processo, que também não facilitou esta permanência (VIANA et al, 2011, p. 125). Outras conclusões podem ser tiradas do estudo feito pela equipe do NMC. Conforme observado no levantamento de dados, 26% das famílias receberam indenização e não conseguiram comprar uma nova moradia seja no Aglomerado volume 06 87 i encontro de internacionalização do conpedi ou em localidades próximas, o que caracteriza, em parte, o Programa Vila Viva como uma política pública de caráter expulsor, já que muitos moradores tiveram que se reinstalar em outras áreas informais de Belo Horizonte ou na região metropolitana da cidade, em virtude da baixa indenização recebida, não podendo permanecer no Aglomerado da Serra (VIANA et al, 2011, p. 124). Tal fato gera outras consequências que também merecem atenção, pois os novos lugares escolhidos para moradia, com infraestrutura inferior à observada no Aglomerado da Serra (UMA AVENIDA, 2011), sofreram com o recebimento de um contingente significativo de pessoas, o que certamente reforçou e agravou a situação de exclusão socioeconômica destas regiões e dos próprios moradores removidos. A distância entre a nova moradia e o local de trabalho remete à situação vivenciada na Cidade Tiradentes, relatada no início deste artigo como um exemplo de problemas gerados pelo desenvolvimento urbano e pela ausência de políticas sociourbanísticas adequadas à inclusão de populações com trajetória de exclusão. Os resultados obtidos após a implantação do Programa Vila Viva permitem afirmar que o desenvolvimento comunitário preconizado por tal política pública foi feito à custa da violação de direitos humanos-fundamentais de parcela da população, como o direito a uma moradia digna e a locais com infraestrutura sociourbana adequada. Além disso, percebeu-se uma grande alocação de recursos para a construção de uma avenida de pouca serventia à população (UMA AVENIDA, 2011), privilegiando de fato o lado urbanístico – em especial pela ligação viária com outros bairros – em detrimento das intervenções de melhorias socioeconômicas. Por fim, a crítica dos próprios moradores em relação à ausência de participação popular satisfatória comprova que o método adotado pela prefeitura – os Grupos de Referência – não conseguiram expressar os anseios da população de modo efetivo, pois, apesar de se concentrarem em pessoas consideradas lideranças comunitárias, não foram suficientes para que a opinião da grande massa da população local fosse levada em consideração (VIANA et al, 2011, p.98). Isto comprova que os canais de diálogo entre prefeitura e comunidade foram frágeis e pouco eficientes, o que levou a intervenções muitas vezes descompassadas com os interesses da população da região. 88 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi 4.2.a implantação do progr ama vila viva no aglomer ado santa lúcia O Aglomerado Santa Lúcia é um dos grandes aglomerados de Belo Horizonte, sendo também um dos conjuntos de favelas que mais se destaca na cidade. Segundo dados da prefeitura, o aglomerado reúne cerca de quinze mil moradores (PREFEITURA, 2007), apesar dos dados estatísticos serem discrepantes. Localizado na zona sul de Belo Horizonte, o Aglomerado Santa Lúcia é rodeado pelos bairros mais nobres da cidade, situando-se numa região de forte especulação imobiliária. Trata-se de uma ilha de exclusão social em meio aos bairros ricos de Belo Horizonte, uma paisagem que contrasta fortemente com seu entorno. O Núcleo de Mediação e Cidadania do Programa Polos desenvolve suas atividades no Aglomerado Santa Lúcia desde 2002, quando foi instalado o NMC num dos pontos centrais da comunidade. Utilizando a metodologia da mediação, como explicitado no início deste capítulo, o NMC e sua equipe sempre buscam a promoção dos direitos humanos-fundamentais nas localidades em que atuam, bem como a emancipação dos sujeitos envolvidos em seus processos de mediação, com a responsabilização dos mesmos pela boa solução de seus conflitos. O estímulo ao diálogo e a soluções compartilhadas e não impositivas fazem da mediação uma metodologia especialmente adequada para conflitos coletivos que envolvem comunidades e o Poder Público. Antes mesmo que a pesquisa sobre os efeitos do Vila Viva na condição socioeconômica dos moradores fosse concluída no Aglomerado da Serra, a equipe do NMC percebeu que a discussão sobre o Programa municipal e sua implantação na comunidade do Aglomerado Santa Lúcia deveria ser feita previamente a qualquer intervenção, buscando sempre envolver a população no planejamento das ações, de modo a evitar a expulsão dos moradores, já que a região, em que pese possuir uma série de problemas de infraestrutura e de ordem socioeconômica, permitia um acesso especialmente facilitado ao local de trabalho e alguns serviços públicos. Dessa forma, o diálogo com a prefeitura e a URBEL, principal órgão de planejamento e execução do Vila Viva, tornava-se fundamental para a comunidade, de modo a resguardar seus interesses e de fato promover melhorias nas condições de vida de seus moradores. volume 06 89 i encontro de internacionalização do conpedi O PGE do Aglomerado Santa Lúcia, marco inicial para aplicação do Programa Vila Viva, foi realizado de 1999 a 2003 (PREFEITURA, 2013). Entretanto, apenas em 2010 iniciaram-se as discussões sobre a implantação do Vila Viva na região, que já havia sido executado em outras localidades da cidade, para além do Aglomerado da Serra. O contato da equipe do NMC do Programa Polos com a implantação do Vila Viva no Aglomerado Santa Lúcia teve início com seu acionamento por parte de moradores de uma das vilas do Aglomerado – a Vila São Bento – para a formação de uma associação que pudesse defender seus interesses, em virtude de ser a vila mais precária de toda a região, situando-se numa área de extremo risco geográfico e geológico. Referida vila era alvo constante de visitas pela prefeitura, através da sua companhia urbanizadora – URBEL –, de modo a inibir e até mesmo proibir que outras famílias se instalassem no local. Após diversas tentativas de se retirar os moradores da Vila São Bento, inclusive uma ação judicial, o problema foi aparentemente resolvido quando se incluiu, no rol das obras do Programa Vila Viva, uma intervenção sobre o local, no qual ficou estabelecido que para esta região ocorreria a remoção total de seus moradores. Entretanto, por meio de um questionário12 aplicado pela equipe do NMC junto aos moradores da Vila São Bento, percebeu-se que grande parte da população não queria ser removida daquele local, pois possuíam fácil acesso aos seus empregos e trabalhos, a escolas, a postos de saúde e ao transporte público. Estes dados foram essenciais para que se buscasse o fortalecimento do diálogo com a URBEL, pois havia o interesse em se proteger os direitos daqueles moradores, levando-se em consideração situações negativas já vivenciadas por outras comunidades que também receberam a intervenção do Programa Vila Viva. Aproveitando-se do contexto de mobilização da comunidade na Vila São Bento, o Programa Polos, em parceria com diversas instituições do Aglomerado Santa Lúcia, destacando-se a Igreja Católica, promoveu, ao final de 2010, 12 O questionário em questão teve por objetivo traçar o perfil socioeconômico dos moradores da Vila São Bento, Aglomerado Santa Lúcia, Belo Horizonte, a fim de se apurar o valor agregado do local (por ser bem localizado), para além de suas casas, de modo a evitar baixas indenizações em futuras remoções realizadas pela prefeitura. Realizou-se um convite aos moradores do local para que respondessem ao questionário; das 115 casas cadastradas junto à Prefeitura de Belo Horizonte, 74 delas aderiram à pesquisa, realizada em outubro de 2010. 90 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi uma audiência pública a fim de que fosse esclarecido aos moradores de todo o Aglomerado o que era o Programa Vila Viva, já que a maior parte da população não sabia a que se propunha a referida ação pública. Nesta audiência foram divulgadas as intervenções que seriam feitas no Aglomerado a partir do PGE, quais sejam, a construção e localização dos futuros conjuntos habitacionais, a completa remoção da Vila São Bento para a construção de um parque ecológico no local e, principalmente, a construção de uma grande avenida lateral ao Aglomerado, apelidada “Via do Bicão”. Estas intervenções tornaram-se pontos primordiais de discussão entre a população e o Poder Público, a fim de se garantir os direitos da comunidade. Com as crescentes preocupações da população em torno da implantação do Programa Vila Viva e diante da falta de informações suficientes, a equipe do NMC passou a se valer do instrumento das audiências públicas, tanto pelo seu caráter informativo, pela sua capacidade de mobilização e integração dos envolvidos, como pela possibilidade de um diálogo efetivo e eficiente entre comunidade e Poder Público, sendo, também, um meio para solucionar conflitos de forma compartilhada e não impositiva, como fundamenta a metodologia da mediação utilizada pelo Programa Polos. O uso das audiências públicas foi fomentado pela aproximação do Ministério Público Federal (MPF) sobre a questão do Vila Viva no Aglomerado Santa Lúcia. Referido órgão, em 2011, expediu recomendação à prefeitura de Belo Horizonte e aos outros órgãos envolvidos na implantação do Vila Viva no Aglomerado Santa Lúcia para que fossem respeitados os direitos dos moradores do local, exigindo que as remoções forçadas fossem a última alternativa para estes órgãos (MOREIRA, 2011). Foi a partir desta recomendação que se intensificou o processo para que as famílias que seriam removidas de suas casas – 398 famílias em seu total (MOREIRA, 2011)13 – fossem totalmente reassentadas no próprio Aglomerado, evitando, assim, os efeitos perversos da expulsão verificados em outras localidades. Além disso, outros pontos também passaram a ser destacados na discussão, como a qualidade dos conjuntos habitacionais a serem construídos, os equipamentos de 13 Informação retirada da recomendação expedida pelo MPF, na qual se afirma que 640 famílias do Aglomerado Santa Lúcia seriam reassentadas nas unidades habitacionais da prefeitura, enquanto 398 delas seriam submetidas a deslocamentos forçados. volume 06 91 i encontro de internacionalização do conpedi lazer, saúde, educação e a questão da necessidade ou não da construção e abertura de vias. A aproximação do MPF e de outras entidades do próprio Aglomerado Santa Lúcia fortaleceram a atuação da equipe do NMC, através da formação de uma rede onde os direitos humanos-fundamentais, além do acesso à justiça dos moradores da região seriam defendidos. Entretanto, a URBEL mantinha seu modelo de participação popular por meio dos Grupos de Referência, que, pela experiência relatada por moradores do Aglomerado da Serra, era insatisfatória, pois tais grupos não conseguiam representar fidedignamente os interesses dos moradores e da comunidade, de modo geral. Neste contexto, foi preciso intensificar a atuação da rede mencionada, de modo a efetivamente criar um canal de diálogo para solucionar os conflitos advindos da implantação do Programa Vila Viva. A necessidade de solução destes conflitos visava não apenas a segurança dos direitos ameaçados da comunidade, mas também a participação na formação de uma coletividade crítica e consciente de seu papel transformador, mobilizada e interessada em participar diretamente do desenvolvimento sociourbano que o Poder Público estava propondo. Assim, diversas reuniões com a comunidade foram amplamente divulgadas e realizadas, de modo a consolidar o maior número de interesses coletivos, buscando alternativas às intervenções que seriam prejudiciais ou ao menos mitigando os danos sociais causadas pelas mesmas. Um dos pontos centrais da discussão, para além da questão habitacional, foi a construção da “Via do Bicão”, uma grande via que seria construída lateralmente ao Aglomerado Santa Lúcia, ligando duas avenidas de grande importância na região. Assim como ocorreu no Aglomerado da Serra, esta via concentraria a maior parte da verba destinada ao Vila Viva, e o questionamento à sua construção era que a mesma não serviria de fato à comunidade do Aglomerado, mas sim a um escoamento do trânsito na região dos bairros do entorno. Desta feita, diante da experiência observada no Aglomerado da Serra e por meio da pressão das entidades e dos moradores do Aglomerado Santa Lúcia, foi demandado à URBEL que se apresentassem ao conjunto dos moradores alternativas mais viáveis do que a construção da referida avenida. Uma nova audiência pública foi realizada no próprio Aglomerado Santa Lúcia em maio de 2011 (PREFEITURA, 2013), com a presença da URBEL e 92 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi de aproximadamente seiscentos moradores, e assim as questões levantadas pela comunidade puderam ser debatidas. Na ocasião, alguns pontos do Programa Vila Viva para o local foram apresentados e os presentes puderam discutir questões como a hierarquização e cronograma das obras, possíveis aberturas de outras vias em detrimento da Via do Bicão e a instalação de equipamentos públicos paralelamente às intervenções urbanísticas. Neste contexto, dois grupos de lideranças comunitárias que apresentavam opiniões divergentes sobre o projeto e que mantinham desavenças internas durante um longo tempo, procuraram a equipe do NMC para que fosse realizada uma mediação entre os dois grupos, de modo que estes pudessem chegar a um consenso do que era mais importante para a comunidade, somando forças para dialogar com o Poder Público. Após algumas sessões de mediação, o ponto consensual mais discutido foi a inadequação da Via e do Parque do Bicão para o Aglomerado (PROGRAMA, 2011). De modo a possibilitar uma manifestação maior da comunidade, os presidentes das associações de moradores das vilas elaboraram uma assembleia geral extraordinária com o objetivo de encaminhar propostas para a prefeitura que refletissem os reais anseios da população. Havia cerca de 230 pessoas nesta assembleia, e a votação foi expressiva contra a abertura da Via e do Parque do Bicão. No lugar destas obras, a comunidade votou pela abertura de outras ruas e becos dentro do Aglomerado, que atenderiam melhor à demanda da comunidade, e para a qual o dinheiro público havia sido direcionado (PROGRAMA, 2011). Após todas essas reuniões, audiências públicas e assembleias, finalmente houve uma resposta da prefeitura, principalmente em relação à questão habitacional. Por meio de um documento, o Poder Público se comprometeu a garantir o reassentamento de todas as famílias no próprio Aglomerado Santa Lúcia ou no seu entorno, evitando, assim, a expulsão de moradores para localidades distantes (PROGRAMA, 2011). Este fato representou um enorme ganho para a comunidade, fruto de todo o esforço de mobilização e participação popular na implantação do Programa Vila Viva, realizada de modo inédito em Belo Horizonte. Em continuidade ao processo de participação popular, o MPF realizou diversas reuniões com a comunidade, a URBEL e a empresa executora do projeto, dentre volume 06 93 i encontro de internacionalização do conpedi outras entidades de apoio, inclusive o Programa Polos. Nestas reuniões, o projeto pôde ser esclarecido para a comunidade, percebeu-se a necessidade de captação de mais verbas para a implantação do Vila Viva no Aglomerado Santa Lúcia e foi estabelecida a prioridade das obras habitacionais em detrimento das outras obras. Tudo isto representou um ganho importante para a comunidade, resguardando seus direitos constitucionalmente garantidos à moradia digna, ao acesso à justiça e, principalmente, à participação popular no futuro do Aglomerado. Paralela a estas reuniões, a equipe do NMC do Programa Polos realizou, a partir de janeiro de 2012, diversos mutirões no Aglomerado Santa Lúcia visando informar a todos os moradores que tivessem interesse se estes sofreriam direta ou indiretamente com as intervenções. Tais mutirões foram essenciais, pois muitos moradores que possivelmente seriam removidos ainda não sabiam deste fato, e, em vários casos, sequer sabiam o que era o Programa Vila Viva e que o mesmo seria implantado no Aglomerado muito em breve. Encerrando a primeira etapa do Programa Vila Viva no Aglomerado Santa Lúcia, a licitação para início das obras foi marcada para abril de 2012. O diretor de obras da URBEL afirmou, em uma das reuniões realizadas no MPF, que em nenhuma outra localidade discutiu-se tanto o Vila Viva como no Aglomerado Santa Lúcia, apresentando o projeto para a população de forma bastante detalhada. Nas fases seguintes de implantação do projeto, a comunidade se comprometeu a formar uma comissão fiscalizadora da obra, garantindo, através da mobilização, o cumprimento do projeto em sua integridade. O processo de implantação do Vila Viva no Aglomerado Santa Lúcia, como se viu, foi inédito, pois garantiu-se a participação efetiva da população, possibilitando que esta resguardasse, ao menos até o fim da primeira etapa do projeto, seus interesses e seus direitos. Realizado de modo totalmente diverso daquele do Aglomerado da Serra, o processo no Aglomerado Santa Lúcia poderá permitir que o desenvolvimento sociourbano proposto pelo Programa Vila Viva represente uma melhora efetiva nas condições do conjunto de moradores, sem que isto fosse feito à custa da violação de direitos de uma parcela da comunidade. Tudo isto somente foi possível pela abertura do diálogo entre população e Poder Público, fomentado de modo especial pelo uso da metodologia dialógica da mediação. 94 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi 5.conclusões: a efetivação de direitos humanosfundamentais e os problemas do desenvolvimento social Não restam dúvidas que o estudo da relação do homem com o território onde vive é de extrema importância para a compreensão dos fenômenos sociais atuais. A transformação do cenário urbano se amoldou aos ditames da globalização, e, com isto, acabou por atrelar exclusão e ocupação informal do território. Nesta linha, de modo a reverter situações de desrespeito aos direitos humanosfundamentais e de falta de acesso à justiça, as políticas públicas voltadas para ocupações irregulares, tais como vilas e aglomerados de favelas, devem buscar estruturarem-se de modo a garantir um desenvolvimento sustentável para tais comunidades, promovendo a regularização de lugares informais, o acesso a serviços como saneamento básico, educação, saúde e lazer, e garantindo a participação dos moradores na definição das intervenções que serão realizadas na comunidade, de forma a suavizar ou evitar prejuízos. Conforme exposto ao longo do artigo, as ações públicas com o intuito de promoção do desenvolvimento sociourbano não podem ocorrer à revelia da efetiva participação popular, sob o risco de se avalizar um desenvolvimento apenas para alguns, prejudicando a condição socioeconômica de outros e a realização de seus direitos. Prova disso foi a implantação do Programa Vila Viva no Aglomerado da Serra, que, com suas intervenções urbanísticas, acabou prejudicando alguns moradores, que tiveram seus direitos humanos-fundamentais violados em virtude da promoção do desenvolvimento regional. Lado outro, o processo diferenciado de implantação do Programa Vila Viva no Aglomerado Santa Lúcia, fomentado em parte pelo Programa Polos de Cidadania e pelo uso da metodologia da mediação, demonstrou que, com o envolvimento da comunidade e de órgãos responsáveis pela proteção aos direitos humanosfundamentais, é possível concretizar canais efetivos de diálogo entre Poder Público e população, de modo a evitar ou ao menos mitigar prejuízos aos moradores de regiões periféricas, respeitando a pluralidade e a participação, tão caras ao Estado Democrático de Direito. O estudo de caso em questão demonstrou que a oitiva de significativa parcela da população em intervenções nos territórios das cidades é uma importante volume 06 95 i encontro de internacionalização do conpedi via para o desenvolvimento sustentável, sem a qual se corre o risco de flagrante descompasso entre interesse social e atuação estatal. As comunidades que vivem em terrenos informais, em sua grande parte prejudicada pela exclusão que as assola, não podem ser também excluídas da discussão de políticas públicas que interfiram diretamente nos seus modos de vida. Tudo isto leva a conclusão da necessidade de discussão e aprofundamento científico em face das intervenções públicas de caráter sociourbano, de modo a se estimular um senso crítico sobre estas. Os exemplos trazidos no artigo em questão puderam comprovar como a Universidade, órgãos públicos e a própria sociedade civil exercem papéis fundamentais na implantação de políticas públicas de desenvolvimento urbano, possibilitando vias de proteção e realização de direitos humanos-fundamentais e garantindo um efetivo acesso à justiça. 6.referências ALMEIDA, Ronaldo de et al. Etnografia comparada de pobrezas urbanas. Novos estudos - CEBRAP nº 82. São Paulo, Nov. 2008, p. 109-130. BROCHADO, Mariá. Por que Paideia Jurídica? In: BROCHADO, Mariá et al (Org.). Educação para direitos humanos: diálogos possíveis entre a pedagogia e o direito. Belo Horizonte, PROEX-UFMG, 2010, p. 21-40. CAPPELLETTI, Mauro & GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Elen Gracie Northfleet. Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris, 1988, 111 p. CHIZZOTTI, Antonio. Pesquisa qualitativa em ciências humanas e sociais. 4. ed. – Petrópolis, RJ, Vozes, 2011. GUSTIN, Miracy Barbosa de Souza; PEREIRA, Aline Rose Barbosa. 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No prelo. volume 06 99 i encontro de internacionalização do conpedi perspectivas do acesso à justiça ante a chegada de um novo código de processo civil Lenio Streck1 Lúcio Delfino2 Resumo Este artigo pretende fazer uma análise crítica sobre o sentido de acesso à justiça no contexto do Estado Democrático de Direito, considerando especialmente o projeto existente de novo Código de Processo Civil brasileiro. Para tanto, no desenvolvimento deste texto, serão explicitados os diversos elementos que compõem o conceito de acesso à justiça, fazendo um paralelo com as propostas de alteração da legislação processual civil no Brasil. Objetiva-se com isso demonstrar que, a partir de uma perspectiva constitucional do exercício da jurisdição, o acesso à justiça somente se concretiza como direito garantido a partir da ideia de responsabilidade judicial. Em outras palavras, isso significa que o acesso à justiça depende não apenas do aumento das possibilidades de recorrer ao Judiciário, mas, fundamentalmente, de posturas judiciais que respeitem critérios de constitucionalidade, construídos a partir de uma teoria da decisão judicial. Palavras-chave Acesso à justiça; Judiciário; Teoria da decisão. Abstract This paper aims at a critical analysis of the meaning of access to justice in the context of a democratic state, especially considering the existing design of 1 Doutor em Direito do Estado (UFSC). Pós-doutor em Direito Constitucional e Hermenêutica (Universidade de Lisboa). Procurador de Justiça aposentado (TJ-RS). Professor titular da Unisinos, Rio Grande do Sul, Brasil. 2 Doutor em Direito Processual Civil (PUC-SP). Pós-doutorando em Direito (UNISINOS). Professor titular da Uniube. Advogado. Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro). volume 06 101 i encontro de internacionalização do conpedi the new Brazilian Code of Civil Procedure. To this end, in the development of this text it will be explained the various elements that make up the concept of access to justice by making a parallel with the proposed amendments to the civil procedure law in Brazil. The objective is to demonstrate that with this, from a constitutional perspective of the exercise of jurisdiction, access to justice is realized only as guarantee from the idea of judicial accountability law. In other words, this means that access to justice depends not only on increasing the possibilities of recourse to the courts, but fundamentally judicial positions based on criteria of constitutionality, constructed from a theory of judicial decision. Key words Access to justice; Judiciary; Decision making theory. 1.introdução A expressão acesso à justiça é daquelas cujo campo de abrangência atinge uma variedade de circunstâncias a depender do contexto em que é utilizada. Temos assim que, em um Estado Democrático de Direito, acesso à justiça deve significar o direito fundamental ao recebimento por parte do cidadão daquilo que se entende por promessas da modernidade insculp i das na Constituição. Nesse sentido, acesso à justiça deve ser entendido de forma que abranja o direito fundamental a uma resposta adequada à Constituição nos seus mais amplos espaços de prestação jurisdicional, incluída a garantia de que o Judiciário não substitua o legislador e o Poder Executivo nos seus juízos éticos, morais ou políticos, o que constitui o cerne da diferenciação entre judicialização da política e ativismo judicial. 3 No plano do direito processual, partindo-se de uma mirada historiográfica, pode-se apontar alguns elementos que possibilitam a compreensão dos problemas que envolvem a questão do acesso à justiça, tais como: i) o lento progresso do 3 Compreende-se judicialização da política à distinção de ativismo judicial. A judicialização é um fenômeno complexo que decorre de um contexto social caracterizado por um deslocamento das tensões ao Judiciário (pela necessidade de implementação de direitos e proteção das garantias constitucionais). Por outro lado, o ativismo judicial é uma postura assumida por juízes e tribunais ao tomarem uma decisão utilizando-se de critérios não jurídicos (políticos, morais e/ou econômicos). (STRECK, 2014a) (TASSINARI, 2013) 102 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi acesso à justiça entre à época do de s cobrimento até os séculos XVII e XVIII, quando fervilhava nos países desenvo l vidos a luta contra o absolutismo, com discussões filosóficas que culminara m nas revoluções inglesa, americana e francesa; ii) as poucas disposições constantes nas Ordenações Filipinas sobre esse direito fundamental, que vigoravam no país a partir de 11 de janeiro de 1603; iii) o panorama, ainda pouco alterado, na primeira quadra do século XIX, mesmo após a proclamação da Independência do Brasil (1822) e com a elaboração da Constituição de 1824; iv) o surgim e nto do Regulamento 737, em 1850, que do ponto de vista histórico pode ser considerado o primeiro Código de Processo Civil brasileiro, seguido do Regul a mento 738 dispondo sobre os Tribunais de Comércio e o processo das falências; v) a elaboração da Consolidação das Leis do Processo Civil, que tomou força de lei em 28 de dezembro de 1876; vi) a influência da literatura científica produzida na Europa no país a partir de 1870, fazendo do Rio de Janeiro palco de uma série de conferências e debate para discutir tais concepções, cenário que alicerçou a fundação do partido republicano, a abolição da escravatura e por fim a queda do Império com a proclamação da República, no ano de 1889; vii) o acesso à justiça como tônica dominante durante grande parte do século XX, com destaque a assistência aos mais pobres, com tendências sociais introjetadas na legislação ali produzida; viii) as novidades decorrentes da Constituição de 1934, mormente no que se refere aos direitos trabalhistas, à ação popular e à assistência judiciar i a para os necessitados; ix) o advento da Carta Política de 1937, inaugurando o Estado Novo e representativa de um dos mais marcantes retrocessos já vivenciados no país; x) a publicação da Consolidação das Leis do Trabalho, em 01 de maio de 1943, a primeira legislação a se preocupar com o sentimento de coletividade, op o ndo-se ao individualismo então dominante; xi) a promulgação da Constituiçã o de 1946, alargando o campo dos direitos sociais; xii) o surgimento da Constituição de 1967, novamente fortalecendo o Executivo e concentrando nas mãos do presidente muitos poderes; xiii) o período inaugurado a partir da Constituição de 1969 que, com exceção do governo Médici, caracterizou-se por um recuo progressivo da ditadura até a edição da Emenda Constitucional n. 11, de 13 de outubro de 1978, que revogou os chamados atos de exceção, seguindo-se a ela a L ei da Anistia, o movimento “Diretas Já”, até a convocação da Assembleia Nacio n al Constituinte, que elaborou a Carta de 1988, ora vigente; xiv) os debates científicos deflagrados em muitos seminários e volume 06 103 i encontro de internacionalização do conpedi congressos a partir da década de 1980, e as várias publicações multidisciplinares, tratando dos direitos fundamentais e sociais, em especial do acesso à justiça de forma igualitária e eficiente, e os resultados daí oriundos na produção legislativa (Leis 7.019/82, 7.244/84, 6.938/81, 7.347/85, 7.853/89, 8.069/90, 9.099/90 entre outras); xv) o advento da Emenda Constitucional 45/2004, com novidades destinadas justamente a promove r o acesso à justiça; xvi) e por fim o CPC projetado, com algumas interessantes novidades acerca do assunto. A partir disso, é imprescindíve l sublinhar, já aqui, que o acesso à justiça representa algo cujo âmago vai além de seus contornos rudimentares, como mero acesso à jurisdição, e assume atualmente, frente as mutações ideológicas das quais foi alvo, feição multifacetada e de largo alcance. Ao longo do tempo, uma visão expansiva do direito de acesso à justiça ganhou cada vez mais espaço, de modo que hoje é pouco entendê-lo pur a mente como direito de ignição à máquina judiciária para assim apartá-lo, adotando um cientificismo alheio à história, de outros matizes, também de calibre constitucional. A bem da verdade, falar em acesso à justiça na contemporaneidade implica operar com toda a gama de direi t os fundamentais processuais; mais que isso, denota uma tratativa fundante por significar, em última análise, o próprio direito fundamental ao devido processo legal, condição inexorável para a legitimação da atividade jurisprudencial e do próprio provimento judicial produzido no campo processual. De toda sorte, o que se pretende aqui especificamente, em apego aos matizes que a ciência processual, de antanho até a contemporaneidade, legou para as gerações futuras, é determinar, da maneira mais precisa possível, alguns dos significados que presentemente fornecem colorido ao acesso à justiça. É algo que se faz necessário em prol da seriedade científica, afastando a expressão examinada de uma possível poluição semântica que lhe crie embaraços, mas ao mesmo tempo atento ao respeito à tradição, principal responsável pela riqueza de significados que atualmente se lhe atribui. E tudo será feito em atenção ao Projeto do novo Código de Processo Civil (CPC Projetado),4 já em fase avançada no Congresso Nacional, 4 Os autores deste artigo trabalharam com a última versão do Projeto do novo Código de Processo Civil brasileiro – o denominado “Relatório Paulo Teixeira” –, que recentemente foi aprovado pela Câmara dos Deputados e agora retorna ao Senado. 104 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi com a indicação sobretudo de exemplos extraídos do seu corpo legislativo a fim de ilustrar, de modo didático e atual, as conclusões às quais adiante se atingiu. 2.acesso à justiça como mero direito de ignição da atividade jurisdicional Numa perspectiva rudimentar, ainda estritamente formal, o acesso à justiça representa um direito subjetivo à obtenção da tutela jurisdicional. Ou simplesmente direito de acesso à jurisdição. Simples assim. Ao tomar para si o dever de solucionar os conflitos de interesses, o Estado, sempre que acionado para tanto, concebeu aos cidadãos o direito a obtenção de uma resposta aos seus clamores de lesões ou ameaças a direito. Assumindo tal postura, concebeu para todos do povo o direito à obtenção de tutela jurisdicional. Em termos mais precisos: o acesso à justiça traduz-se, nesse primeiro momento, na real possibilidade de qualquer um acionar o Estado-Judiciário sempre que acreditar ameaçado ou lesado direito que entenda possuir, e dele receber uma resposta ao pedido deduzido. Como consequência primeira de tal entendimento, o órgão judicial jamais há de negar o exame a uma afirmação de lesão ou de ameaça a direito que lhe fora direcionado, mercê do que se extrai da própria literalidade do art. 5º, XXXV, da CRFB – “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” –, de resto reproduzida no caput do art. 3o do CPC Projetado. Acionado, o Judiciário prestará a tutela jurisdicional preventiva ou reparatória, seja o direito envolvido individual ou coletivo (lato sensu),5 cumprindo-lhe, sempre atento ao devido processo legal e à participação democrática das partes, encontrar a resposta correta para a solução do conflito em julgamento. É possível, ainda segundo essa mirada primitiva, correlacionar acesso à justiça e regra da congruência,6 e daí extrair outra importante implicação. O Estado- 5 Destaca Nelson Nery Junior (2009, p. 172-173) que “[o] direito de ação pode ser exercido independentemente da qualificação jurídica do direito material a ser por ele protegido. Com isso, tanto o titular do direito individual, quanto o do direito meta-individual (difuso, coletivo ou individual homogêneo) têm o direito constitucional de pleitear ao Poder Judiciário a tutela jurisdicional adequada”. 6 Para Ricardo Augusto Herzl (2013, p. 95), a regra da congruência (ou correlação) impõe ao juiz “analisar a demanda somente nos limites em que foi proposta (adstrição aos fatos – CPC, volume 06 105 i encontro de internacionalização do conpedi juiz está mesmo obrigado a pronunciar-se sobre lesão ou ameaça a direito. Não obstante, é exclusivamente das partes o poder de determinar a extensão desse julgamento: o juiz em seu mister está atrelado ao que foi por elas pedido e discutido ao longo dos autos. É nesse ponto que se encontra uma das mais interessantes previsões do CPC Projetado, estabelecendo textualmente que, em qualquer grau de jurisdição, o órgão judicial não poderá decidir com base em fundamento a respeito do qual não se tenha oportunizado a manifestação das partes, ainda que se trate de matéria apreciável de ofício (art. 10). Note-se que o dispositivo faz alusão à expressão fundamento de forma genérica, a incluir em seu âmbito aspectos fáticos e jurídicos, querendo isso significar que a compreensão que hoje se tem do brocardo iura novit curia merece(rá) revisão – aliás, se submetido à uma filtragem constitucional já não se mantêm, porque contrário à nova ordem constitucional, especialmente ao contraditório e à ampla defesa. E isso vale inclusive para as matérias às quais o juiz está autorizado a suscitar de ofício (questões de ordem pública). Talvez oriundo da comodidade que proporciona, prospera o entendimento equivocado e antidemocrático de que matérias arguíveis de ofício estariam isentas da influência do contraditório, de maneira que o juiz se encontraria liberto de ouvir, apreciar e considerar as manifestações das partes a respeito delas. Não há, todavia, racionalidade alguma nesse argumento. Matérias apreciáveis de ofício são aquelas às quais o juiz está autorizado, sem provocação das partes e por iniciativa própria, a encaminhar (indicar, apontar) aos autos do processo. No entanto, a autoridade do juiz restringese a essa condução da matéria ao processo, jamais lhe sendo lícito julgá-las sem antes abrir oportunidade para as partes se manifestarem; somente depois, já imbuído pela influência do contraditório em sua feição substancial, cumpre-lhe, aí sim, decidir.7 Dito de outro modo: o poder de agir de ofício suscitando matérias de art. 128) e dentro daquilo que lhe foi postulado (adstrição aos pedidos – CPC, art. 460). É omissa a sentença que aprecia menos (citra) do que foi postulado, e nula quando conceder além (extra) ou coisa diversa (ultra) daquilo que foi pedido”. 7 Provimentos jurisdicionais que seguem hoje rumo oposto não apenas lesam os arts. 128, 460 e 515 do Código de Processo Civil, mas igualmente atingem diretamente o contraditório, sobretudo por surpreenderem as partes (sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou inúmeras vezes, embora segundo análise particularizada ao princípio da 106 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi ordem pública presente no Projeto do novo CPC é distinto daquele previsto no CPC em vigor, e sobretudo distinto da prática hoje frequente no dia a dia do foro. 3.acesso à justiça como obrigação de não fazer endereçada ao legislador Ainda preso à sua perspectiva formal, avance-se um pouco mais para realçar que a garantia de acesso à justiça dirige-se por igual ao legislador, que não está autorizado a tergiversar a ponto de restringir, mediante imposições legais, a esfera de atividade do Judiciário e assim excluir de sua apreciação particulares lesões ou ameaças a direito. Resulta desse significado a rejeição da chamada “instância administrativa forçada” (ou “jurisdição condicionada”), de modo que ninguém está obrigado a esgotar primeiro as vias administrativas para, só depois, buscar socorro no Judiciário, restrição que já foi franqueada no Brasil por força da Emenda Constitucional 7/77 à Constituição de 1967. É tal, de resto, a plenitude da incidência do aludido direito fundamental, que apenas uma ressalva a ele hoje se admite quanto ao condicionamento congruência: REsp nº 1.169.755, REsp nº 623.704, RMS nº 18.655, REsp 746.622, REsp nº 380.143). Se o juiz, quando de seu pronunciamento judicial, perceber a necessidade de elaborá-lo segundo ponto de vista alheio à dialética processual, cumpre-lhe, antes, intimar as partes e conferir-lhes oportunidade de manifestação e de influência na construção da decisão – basicamente este o sentido que se extrai da Ordenança Processual Civil (ZPO) alemã e do Nouveau Code de Procédure Civile da França, como bem mostra Dierle José Coelho Nunes (2008, p. 153-160): “Na França, o art. 16 do Nouveau Code de Procédure Civile impede o juiz de fundamentar a sua decisão sobre aspectos jurídicos que ele suscitou de ofício sem ter antecipadamente convidado as partes a manifestar as suas observações. Assim, a garantia opera não somente no confronto entre as partes, transformando-se também num deverônus para o juiz que passa a ter que provocar de ofício o prévio debate das partes sobre quaisquer questões de fato ou de direito determinantes para a resolução da demanda. Na Alemanha, o conteúdo da cláusula estabelecida no texto do art. 103, §1º, da Lei fundamental da República Federal da Alemanha como ‘direito de ser ouvido pelo juiz’ (Rechliches Gehör) possui um alcance similar ao francês face à interpretação do Tribunal Constitucional Federal (Bundesverfassungsgericht), não só operando seus efeitos no confronto entre as partes, mas sim convertendo-se também num dever para o magistrado, de modo que se atribui às partes a possibilidade de posicionar-se sobre qualquer questão de fato ou de direito, de procedimento ou de mérito, de tal modo a poder influir sobre o resultado dos provimentos. Ao magistrado é imposto o dever de provocar o debate preventivo, com as partes, sobre todas as questões a serem levadas em consideração nos provimentos”. volume 06 107 i encontro de internacionalização do conpedi a jurisdição no Brasil. O único caso consentido pelo direito pátrio refere-se à “Justiça Desportiva”, e isso porque a própria Constituição impõe o antecedente esgotamento das instâncias administrativas que lhe são próprias, no caso de ações relativas à disciplina e às competições desportivas (CRFB, art. 217, §1º). Não obstante, para evitar procrastinação no trâmite dos feitos e, por conseguinte, impedimento (indireto) de acesso ao Judiciário, o constituinte, sabiamente, inseriu um prazo máximo de sessenta dias para a manifestação final dessas instâncias administrativas (CRFB, art. 217, §2º). 4. acesso à justiça como igualdade de todos per ante o judiciário O acesso à justiça denota também acesso igualitário a todos perante o Judiciário, ou seja, a hipossuficiência econômica não há de ser empecilho ao direito a uma tutela jurisdicional adequada. A novidade aqui é que o Estado saiu de sua zona de conforto, deixou de lado aquela posição de passividade característica de uma filosofia estatal liberal burguesa e adotou postura mais ativa, intervencionista, de maneira que não apenas proclamou a igualdade, mas foi além e assumiu o dever de assegurá-la no palco jurisdicional mediante a própria atuação do Judiciário. Por isso, aliás, assegura-se constitucionalmente – outro direito fundamental – a assistência jurídica integral e gratuita àqueles que efetivamente comprovarem insuficiência de recursos (CRFB, art. 5º, LXXIV), um conceito mais abrangente se comparado à assistência judiciaria prevista na Constituição anterior, que abarca a consultoria e a atividade jurídica extrajudicial em geral (assistência aos necessitados no que tange a aspectos legais, prestação de informações sobre comportamentos a serem seguidos diante de problemas jurídicos, proposição de ações e apresentação de defesas). (NERY JUNIOR, 2009, p. 176) Há uma observação importante, entretanto. Ainda hoje cabe a vetusta Lei 1.060/1950 regular a concessão de assistência judiciária aos necessitados.8 Se8 É a Lei n.º 1.060/1950 que regula a gratuidade da justiça (muito embora tenha se preferido ali utilizar sobejamente a expressão “assistência judiciária”, muitas vezes incorretamente) no plano infraconstitucional. Logo em seu artigo inaugural reza que cumpre aos poderes públicos, federal e estadual – independentemente da colaboração que possam receber dos municípios e da Ordem dos Advogados do Brasil – a concessão de assistência judiciária aos necessitados. 108 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi gundo seu art. 4o, a parte gozará dos benefícios da assistência judiciária mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de arcar com as custas processuais. Não obstante, tal legislação é anterior à Constituição Federal e, ao menos nesse ponto, não foi por ela recepcionada.9 Basta perceber que a Carta Magna exige a comprovação da insuficiência de recursos para que o interessado possa obter o benefício da assistência jurídica gratuita: “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos” (CRFB/88, art. 5o, LXXIV). Se a Carta Magna exige a comprovação (= provar, demonstrar, revelar) da insuficiência de recursos, não pode a lei infraconstitucional, a toda evidência, dispensar tal prova. E por certo não se pode atribuir valor à chamada “declaração de pobreza”, documento elaborado de próprio punho, alheio ao devido processo legal e assinado pelo interessado, artifício utilizado para burlar a imposição constitucional e inverter o ônus probatório, favorecendo justamente aquele a quem cumpre produzir a prova a fim de obter o favorecimento estatal. Superar os limites semânticos do dispositivo aludido via “interpretação criativa” nada mais é que adotar um protagonismo judicial atentatório à separação de poderes, que frauda o próprio trabalho do constituinte originário.10 O CPC projetado traz toda uma sessão sobre a gratuidade da justiça e, ao que parece, tem a pretensão substituir a Lei 1.060/1950. Mas o faz segundo o ponto de vista predominante em doutrina e jurisprudência, vale dizer, dispensando a comprovação da insuficiência de recursos por parte daquele Sem embargo do que afirma o seu art. 2.º, e mediante uma interpretação conforme, tanto nacionais como estrangeiros, residentes ou não no País, gozam do direito de obter os benefícios desta legislação, sempre que necessitarem acionar a jurisdição. Tais benefícios correspondem concretamente a algumas isenções, como a de taxas judiciárias, de emolumentos e custas, de publicações (CPC, art. 232, III), indenizações de testemunhas, honorários e mesmo de despesas com a realização do exame de código genético (DNA), honorários de advogado e peritos, depósitos previstos em lei para a interposição de recursos, ajuizamento de ações e demais atos oficiais 9 É outra, contudo, a orientação do Supremo Tribunal Federal ao decidir que o art. 5o, LXXIV (assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos) não revogou a garantia de assistência judiciária gratuita da Lei 1.060/1950 e que, para sua obtenção, basta a declaração, feita pelo próprio interessado, de que sua situação econômica não permite vir a juízo sem prejuízo de sua subsistência (RE 205746/RS, Relator Ministro Carlos Velloso, julgamento em 26/11/1997, 2a Turma, disponível em: <www.stf.jus.br> ). 10 Sem ingenuidades com relação ao que seja “limites semânticos”. Não se pode confundir os autores com os exegetas do século XIX (STRECK, 2014b, passim). volume 06 109 i encontro de internacionalização do conpedi que pretende o benefício. Tanto assim que presumirá verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural – com relação a pessoa jurídica será exigida prova da hipossuficiência, fazendo o CPC Projetado coro com o entendimento prevalecente na atualidade no âmbito jurisprudencial –, em desrespeito absoluto ao dispositivo constitucional supra mencionado (CPC projetado, art. 99). O que há aí enfim é a manutenção da sistemática atual, com a inversão do ônus probatório, que transfere, via lei infraconstitucional, a demonstração da insuficiência de recursos do interessado para a contraparte.11 É afinal corolário do acesso à justiça o comando que obriga – não só o legislador, mas também o próprio juiz – a adotar medidas que contornem obstáculos econômicos e, deste modo, permitam ao hipossuficiente o acesso ao Judiciário e, sobremodo, a obtenção real e concreta de uma adequada tutela jurisdicional, desde que, cumprido o comando constitucional, demonstre sua condição de miserabilidade. 5.acesso à justiça como direito fundamental ao controle difuso de constitucionalidade Manteve a Constituição de 1988 a fórmula de controle misto de constitucionalidade (controle direto, “abstrato”, incidental, concreto), agregando 11O CPC Projetado traz, sem dúvidas, avanços, mas relacionados sobretudo à aspectos procedimentais. Importante inovação trazida pelo CPC Projetado refere-se à pormenorização e simplificação do procedimentos adotados, seja para pedir a gratuidade da justiça, seja para impugnar a decisão que o deferiu. Abaixo, as principais mudanças: i) o pedido deverá ser formalizado preferencialmente na primeira manifestação do requerente (petição inicial, contestação, petição de ingresso de terceiro), ou, em momento posterior, mediante simples petição, sempre nos autos principais e sem a sua suspensão (art. 99, caput); ii) havendo elementos contrários nos autos, poderá o juiz indeferir o pedido, mas não antes de oportunizar ao requerente a possibilidade de comprovar o preenchimento dos requisitos (art. 99, §1º); iii) para o fim de contrapor o deferimento do pedido não mais haverá necessidade de um incidente específico. A impugnação será oferecida na contestação, na réplica, nas contrarrazões de recurso ou, nos casos de pedido superveniente ou formulado por terceiro, por meio de petição simples, a ser apresentada no prazo de quinze dias, nos autos do próprio processo, sem suspensão do seu curso (art. 100); iv) contra a decisão que conceder ou revogar a gratuidade da justiça será cabível agravo de instrumento, ou mesmo apelação, caso a questão seja resolvida em sentença (art. 101). O recorrente fica dispensado de recolher as custas até decisão preliminar do relator do recurso (art. 101, §1º), o qual poderá dispensar ou determinar seu recolhimento em 5 dias, sob pena de não conhecimento (art. 101, § 2º). As alterações e inovações ora tratadas ensejarão a revogação expressa dos arts. 2º, 3º, 4º, caput e §§ 1º a 3º, 6º, 7º, 11, 12 e 17 da Lei nº 1.060, de 5 de fevereiro de 1950, conforme previsto no art. 1.086, do Projeto de Lei 8.046, de 2010. 110 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi a ação de inconstitucionalidade por omissão, inspirada no constitucionalismo português e iugoslavo (de antes da desintegração da federação), a arguição de descumprimento de preceito fundamental – ADPF e a ação declaratória de constitucionalidade – ADC, introduzida pela EC 3.12 A modalidade de controle difuso com remessa ao Senado permanece no texto, atravessando, pois, as Constituições de 1934, 1946, 1967 e 1969. Pelo controle difuso de constitucionalidade, permite-se que, no curso de qualquer ação, seja arguida/ suscitada a inconstitucionalidade da lei ou de ato normativo, em âmbito municipal, estadual ou federal. Qualquer das partes pode levantar a questão da inconstitucionalidade, assim como também o Ministério Público e, de ofício, o juiz da causa. Afinal, não há questão de ordem pública mais relevante que a inconstitucionalidade de um texto normativo. Desse modo, ao contrário do que ocorre na maioria dos países da Europa13 – que a partir do segundo pós-guerra estabeleceram Tribunais Constitucionais com a tarefa de controlar a constitucionalidade, onde a questão da inconstitucionalidade é julgada per saltum (exceção feita a Portugal, que manteve, ao lado do controle concentrado, preventivo e sucessivo, o controle difuso) –, no Brasil qualquer juiz de direito de primeira instância pode deixar de aplicar uma lei, se entendê-la inconstitucional.14 12 A ADPF, no texto originário, estava prevista no parágrafo único do art. 102. Com o advento da EC 03/1993, passou a figurar no § 1o. do referido artigo. 13 De ressaltar que esse modelo de Tribunais Constitucionais foi seguido, mais recentemente, por países que faziam parte da ex-URSS. 14 Note-se que o juiz singular não declara a inconstitucionalidade de uma lei, apenas deixa de aplicá-la, isso porque somente na forma do art. 97 da CF é que pode ocorrer a declaração de inconstitucionalidade. Essa questão pode suscitar discussões, em face da confusão que pode ser feita entre “declarar” e “deixar de aplicar”. Tecnicamente – e o direito é alográfico, porque as palavras têm significado próprio –, não se trata da mesma coisa. Nem poderia. A declaração da inconstitucionalidade é reservada aos plenários (full bench). Controle difuso é apenas o caminho para chegar a esse desiderato. Isso porque, se o juiz “declarasse” a inconstitucionalidade, esse ato deveria ter efeitos correlatos à declaração objetiva. Se ele “declarasse”, sua decisão teria de ter efeito ex tunc ou deveria ele “modular” esses efeitos. Evidentemente que o modelo adotado pelo Brasil (e por Portugal) não se coaduna com a tese de que “declarar” é o mesmo que “deixar de aplicar”. Trata-se de uma questão de legitimidade democrática. Se um juiz pudesse declarar a inconstitucionalidade, os demais juízes, de algum modo, deveriam ser afetados por esse ato “declaratório”. O que ocorre – e esse é o busílis da questão – é que o controle difuso tem, na sua ratio, sempre uma questão prejudicial. E essa questão prejudicial tem a ver com o conteúdo de uma ação. Tanto é que o próprio Supremo volume 06 111 i encontro de internacionalização do conpedi A relevância do controle difuso é aferida mormente tendo-se em vista que, por meio da defesa de interesses subjetivos, dá-se por igual a defesa da própria Constituição, e isso desde a judicatura de primeira instância. Em outros termos: inexistente judicial review, o acesso à justiça estaria seriamente prejudicado, na medida em que, frente a restrições aos direitos fundamentais oriundas de algum ato estatal, somente por meio do controle difuso é possível corrigir a inconstitucionalidade e preservar o direito fundamental – não é por outra razão que as partes estão sempre autorizadas a invocar a inconstitucionalidade de qualquer texto normativo, inclusive das súmulas vinculantes. (STRECK; ABBOUD, 2011, p. 107 e 119-120) É, portanto, perfeitamente correto advogar um direito fundamental ao judicial review cuja valorização e alcance institui: i) a garantia a todos de meios jurídicos para fazer valer seus direitos (expressa ou implicitamente) constitucionais, motivo pelo qual eventual inércia dos entes legitimados a propor as chamadas “ações constitucionais” não se mostra em tese prejudicial ao cidadão, porque ele próprio está autorizado a provocar o controle difuso – e, acrescente-se, se não o fizer, haverá o juiz de realizá-lo assim mesmo – para ver respeitado seu direito fundamental de não ser obrigado a cumprir ato normativo inconstitucional (CORRÊA DE ARAÚJO; PINHEIRO BARROS, 2006); ii) cada cidadão tem o direito fundamental a não ter seu direito afastado em face de ato normativo inconstitucional; iii) o impedimento de que o controle difuso de constitucionalidade seja obstado por restrições de cunho legislativo (lato sensu); iv) a impossibilidade de o Judiciário desdenhar o controle difuso de constitucionalidade15, sobretudo pelo recrudescimento das decisões de efeito vinculante do Superior Tribunal de Justiça; e v) no termos do MS 24.268/04, Tribunal Federal já decidiu que, quando do controle difuso se tratar, não de uma questão prejudicial, mas de apenas diretamente da inconstitucionalidade, esse ato não terá guarida no sistema de controle. (STRECK, 2013, p. 527) 15 O controle de constitucionalidade há de ser utilizado para todas a produção normativa interna do país, inclusive sobre súmulas vinculantes: “(...) A impossibilidade de controlar a constitucionalidade das súmulas vinculantes, perante o caso concreto, não só afrontaria o judicial control e o direito de ação, como ainda confrontaria a independência judicial, posto que ‘a independência do tribunal ou do juiz manifesta-se como garantia de que a sentença judicial pode valer como emanação do direito e não simplesmente como ato decisionista do Estado’” (STRECK; ABBOUD, 2011, p. 107 e 119-120). Também admitindo o controle de constitucionalidade das súmulas vinculantes: NERY JUNIOR; ANDRADE NERY, 2012, p. 667. 112 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi Rel. Min. Gilmar Mendes – embora historicamente venha impedindo a análise de recursos extraordinários que invoquem o aludido princípio – o Supremo Tribunal Federal dá sinais sazonais da incorporação da democratização do processo, fazendo-o com base na jurisprudência do Bundesverfassungsgericht, é dizer, a pretensão à tutela jurídica corresponde à garantia consagrada no art. 5°, LV, da CF, contendo os seguintes direitos: (a) direito de informação (Recht auf Information), que obriga o órgão julgador a informar a parte contrária dos atos praticados no processo e sobre os elementos dele constantes; (b) direito de manifestação (Recht auf Äusserung), que assegura ao defensor a possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e jurídicos constantes do processo; (c) direito de ver seus argumentos considerados (Recht auf Berücksichtigung), que exige do julgador capacidade, apreensão e isenção de ânimo (Aufnahmefähigkeit und Aufnahmebereitschaft) para contemplar as razões apresentadas. O mesmo acórdão da Suprema Corte brasileira incorpora a doutrina de Dürig/Assmann, sustentando que o dever de conferir atenção ao direito das partes não envolve apenas a obrigação de tomar conhecimento (Kenntnisnahmeplicht), mas também a de considerar, séria e detidamente, as razões apresentadas (Erwägungsplicht) (STRECK, 2014a). Por tudo isso, é preocupante a tendência (equivocada) de o Supremo Tribunal Federal buscar a equiparação entre controle concentrado e controle difuso, circunstância que pode ser observada a partir, especialmente da Reclamação 4335-4/C. Não pode o controle difuso existir desacompanhado de qualquer mecanismo de extensão dos efeitos das decisões. Ou seja, se o Supremo Tribunal Federal sufragar, em definitivo, a tese constante nos votos dos Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau na Reclamação 4335/AC, de fato o controle difuso deixará de ter especificidade própria, pois estará, na prática, equiparado ao controle concentrado. A questão é que o controle difuso diz respeito à vigência de lei e o controle concentrado à retirada da validade de um ato normativo. Isso porque, convivendo acoplado a um amplo sistema de controle concentrado, o controle difuso de constitucionalidade pode representar um importante instrumento de filtragem constitucional. Em outros termos: o controle difuso de constitucionalidade, mantido até hoje inclusive em países como Portugal, retira do órgão de cúpula do Poder Judiciário o monopólio do controle de constitucionalidade, servindo de imporvolume 06 113 i encontro de internacionalização do conpedi tante mecanismo de acesso à justiça e, consequentemente, à jurisdição constitucional. A importância do mecanismo do controle difuso mostra-se absolutamente relevante, uma vez que permite que juízes de primeiro grau e tribunais em suas composições plenárias, mediante incidente de inconstitucionalidade devidamente suscitado, realizem a filtragem constitucional, que vai desde a simples expunção de um texto inconstitucional até a correção de textos através dos institutos da interpretação conforme a Constituição e da inconstitucionalidade parcial sem redução de texto. (STRECK, 2013, p. 525 e ss.) 6.acesso à justiça como direito fundamental ao controle difuso de convencionalidade A eficácia interna das normas de um diploma internacional no País está condicionada à referenda por parte do Congresso Nacional por meio de um decreto legislativo, cuja publicação deve ocorrer no Diário Oficial da União.16 Uma vez internalizado na ordem interna, ocupará ele, de regra, posição hierárquica de lei ordinária, situação que se mantém desde a aurora do período republicano. Não obstante, com o advento da Emenda Constitucional n.º 45/2004, sempre que o enunciado legal, oriundo de tratado internacional do qual a República Federativa do Brasil seja parte, se referir a um direito fundamental e for aprovado em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, seu ingresso no ordenamento jurídico se dará com status (material e formalmente) constitucional – a Constituição lhe atribui equivalência à emenda constitucional – e não meramente à lei ordinária (CF/88, art. 5º, §3º). Questão mais dificultosa, todavia, é a de definir o status normativo de diplomas internacionais sobre direitos humanos não aprovados com as formalidades predicadas pela Constituição. Segundo orientação prevalecente no Supremo 16 A doutrina divide-se em duas correntes ao tratar dos conflitos entre normas provenientes dos tratados e normas do sistema jurídico interno dos Estados. O monismo alberga a tese de que o tratado internacional ingressa de imediato na ordem jurídica interna do Estado contratante. No dualismo, as ordens interna e internacional têm coexistências independentes, não se podendo, em princípio, falar da existência de conflitos entre elas. Esta última corrente advoga o entendimento de que as normas internacionais apenas possuem validade na ordem interna quando sofrerem um processo de recepção, destinado a transformá-las em norma jurídica do sistema jurídico do Estado. No Brasil, vigem as diretrizes da teoria dualista. 114 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi Tribunal Federal, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos não submetidos às formalidades constitucionais (aprovação por três quintos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em dois turnos de votação), anteriores ou posteriores à Emenda Constitucional n.º 45/2004, apresentam eficácia supralegal, e assim se situam hierarquicamente entre a Constituição e as leis infraconstitucionais (ordinárias e complementares, cuja distinção não é hierárquica, mas apenas de quorum de aprovação e de matéria). Esta hierarquização, diferençando na ordem jurídica brasileira o grau de autoridade entre leis ordinárias e tratados internacionais de direitos humanos, permite içar os últimos ao patamar de parâmetro de controle de legitimidade das primeiras. Dito de outro modo: os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos sempre se encontrarão posicionados hierarquicamente em degrau superior à legislação infraconstitucional, seja assumindo status constitucional (quando congregar aspecto material, versando sobre direitos humanos, e aspecto formal, aprovado de acordo com o procedimento legislativo constitucional), seja assumindo status supralegal (quando trouxer consigo apenas aspecto de ordem material e, assim, versar sobre direitos humanos), neste último caso pairando acima da legislação infraconstitucional, mas em nível inferior à Constituição. Aqui importa justamente esse caráter supralegal confiado a alguns desses tratados pelo Supremo Tribunal Federal, a exemplo do Pacto de São José da Costa Rica, incorporado à ordem jurídica brasileira em 1992.17 É que a emanação de efeitos da legislação infraconstitucional depende de sua consonância não apenas com a Constituição, mas por igual com o direito supralegal, que igualmente representa parâmetro de controle. Enfim, a Emenda Constitucional 45/2004, com a interpretação prevalecente no Supremo Tribunal Federal acima indicada, permite afirmar a existência de uma nova espécie de controle da produção normativa doméstica no país: o chamado controle de convencionalidade. 17 O Pacto de São José da Costa Rica (ou Convenção Americana de Direitos Humanos), em vigor desde 1978, foi incorporado à ordem jurídica brasileira em 1992, pelo Decreto 678, de 06 de novembro de 1992, e representa bom exemplo de fonte formal de normas processuais, notadamente porque traz consigo uma série de garantias processuais. Uma delas é o direito a um processo em tempo razoável, hoje, e em função da Emenda Constitucional n.º 45/2004, devidamente inserido no texto constitucional (CF/88, art. 5º, LXXVIII) nos seguintes termos: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. volume 06 115 i encontro de internacionalização do conpedi Daí se afirmar que há também um direito fundamental ao controle de convencionalidade, que igualmente dimana do acesso à justiça, em semelhança ao que já foi tratado no tópico anterior sobre o judicial review. Havendo lesão ou ameaça a direito oriunda de dispositivo contrário à ordem supralegal, cumpre ao Judiciário atuar, mediante o competente controle (difuso de) convencionalidade, até mesmo oficiosamente, respeitado naturalmente o contraditório, a fim de compatibilizar as normas internas com as convencionais. 7. acesso à justiça como direito fundamental ao justo processo e à justiça da decisão O acesso à justiça também relaciona-se à ideia de direito fundamental ao justo processo e à justiça da decisão. E aqui é preciso trabalhar quatro pontos: i) o respeito ao procedimento e às garantias processuais constitucionais; ii) a apuração adequada dos fatos relevantes da causa; iii) o respeito à legalidade; e iv) a adoção de teorias da interpretação jurídica e da decisão judicial adequadas à ordem constitucional inaugurada em 1988. 7.1.o respeito ao procedimento e aos direitos processuais constitucionais Não é possível pensar-se, num primeiro momento, em justo processo e/ ou em decisão justa sem que se atente ao procedimento e sobretudo aos direitos fundamentais processuais que lhe conferem sustentação. Aqui importa propriamente a legitimidade da decisão pela atenção ao devido processo legal, que deve conformar todo e qualquer procedimento e cujas bases encontram-se previstas no âmbito constitucional. Em outras palavras, o acesso à justiça também é compreendido como direito ao due process, algo que inexoravelmente destaca seu caráter dinâmico, além de sublinhar, até por implicação, a insuficiência da empreitada de simplesmente abrir ao cidadão as portas da jurisdição, permitindo que busque socorro sempre que lesado ou ameaçado em seu direito. A atividade jurisdicional, de tal sorte, é legitimada e controlada mediante o processo, submetida a uma espécie de filtragem constitucional vital e inevitável, cujo propósito é o ajuste de todo o conjunto de atos praticados pelos atores processuais 116 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi a um programa normativo-principiológico previamente descrito e positivado na Constituição – os chamados direitos fundamentais processuais. Estar-se-á a falar daquilo que fora denominado por Italo Andolina e Giuseppe Vignera de modelo constitucional do processo, um sistema de importantes garantias e direitos constitucionais hábeis para legitimar democraticamente e controlar a própria atividade jurisdicional e os resultados dela provenientes. Em termos diretos: todo e qualquer ato praticado no âmbito processual há de se pautar no amplo acesso à justiça, afinado a todas as características que atribuem contornos ao devido processo legal, isto é, no respeito ao contraditório e à ampla defesa, ao juiz natural, à isonomia, à motivação e publicidade das decisões judiciais, ao direito a um advogado e à prestação jurisdicional em tempo razoável.18 7.2. o direito à produção de provas A instrução probatória, de outro lado, deve ser a mais abrangente possível, respeitados naturalmente os limites de cada procedimento e os direitos fundamentais considerados de forma geral. Nenhuma decisão será justa caso não se efetive o direito de as partes provarem os fatos que dão consistência às suas teses. Basta dizer que esses mesmos fatos que se prestarão ao convencimento do juiz e, por conseguinte, à formação da decisão judicial. O tema referente ao direito fundamental à produção de provas toca na questão filosófica da verdade processual, ainda bastante tormentosa e que divide estu-diosos em todo o mundo. Ao fim e ao cabo, a depender da perspectiva adotada, se chegará a conclusões variadas. Há, por exemplo, aqueles filiados a 18 Leciona Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias: “o devido processo legal, principal alicerce do processo constitucional ou modelo constitucional do processo, considerado este o princípio metodológico constitucional de garantia dos direitos fundamentais, deve ser entendido como um bloco aglutinante e compacto de vários direitos e garantias fundamentais inafastáveis, ostentados pelas pessoas do povo (partes), quando deduzem pretensão à tutela jurídica nos processos, perante os órgãos jurisdicionais: a) – direito de amplo acesso à jurisdição, prestada dentro de um tempo útil ou lapso temporal razoável; b) – garantia do juízo natural; c) – garantia do contraditório; d) garantia da ampla defesa, com todos os meios e recursos a ela (defesa) inerentes, aí incluído o direito à presença de advogado ou de defensor público; e) – garantia da fundamentação racional das decisões jurisdicionais, com base no ordenamento jurídico vigente (reserva legal); f) – garantia de um processo sem dilações indevidas” (CARVALHO DIAS, 2012, p. 129). volume 06 117 i encontro de internacionalização do conpedi corrente denominada garantismo processual, que entendem não ser a verdade – inalcançável que é – um problema do processo, cuja missão básica é simplesmente a de alcançar e manter a paz dos homens que convivem em um tempo e lugar determinado (VELLOSO, 2006. p. 220 e ss.). De outro lado, a corrente majoritária, encabeçada pelos simpatizantes do ativismo processual, advoga ser o processo um método epistemológico voltado justamente à busca da verdade (por correspondência), situando o juiz em posição privilegiada, com amplos poderes instrutórios, na medida em que ele seria o único sujeito do processo apto a desempenhar uma função propriamente epistêmica. (TARUFFO, 2012) Como sublinhado, em doutrina (e em jurisprudência) é prevalente o entendimento de que se deve incentivar um protagonismo judicial em matéria probatória a fim de tornar mais efetivo e justo o processo, além de assegurar a igualdade entre as partes. O próprio ordenamento processual brasileiro, aliás, segue esse rumo (CPC, art. 130). Entretanto, há nesse raciocínio uma armadilha muitas vezes não percebida: é que, ao introduzir provas no processo, o juiz, muito sutilmente, deixa de lado (ou ao menos pode deixar de lado) a sua condição de terceiro (impartialidad) e passa a operar, ainda que inconscientemente, como verdadeira parte, ou como auxiliar de uma delas. E assim procedendo, atuando como deveria laborar a parte beneficiada pela prova, vulnera o contraditório, desequilibra o debate, tudo em prejuízo da contraparte, que agora terá que se voltar também contra o próprio magistrado. (DELFINO; ROSSI, 2013) A questão da verdade no processo é um tema sensível aos juristas. Sob os aportes da Crítica Hermenêutica do Direito STRECK, 20140, a noção de verdade não deve ser compreendida nem a partir da ontologia clássica (e suas variações, como por exemplo, a noção de verdade como correspondência, com algumas pitadas de modernidade) e nem fruto do subjetivismo do julgador (onde se encaixa o solipsismo que vem desde Bülow). Um CPC adequado ao Estado democrático deve levar em conta o paradigma da intersubjetividade. É por isso que, por exemplo, o novo CPC corretamente abandonou o livre convencimento e exige a coerência e a integridade na forma(ta)ção da jurisprudência. 7.3. o respeito à legalidade Não há, entretanto, como pensar-se em processo justo apenas venerando o procedimento e as garantias processuais constitucionais. Ainda que o 118 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi procedimento e as garantias que o conformam sejam milimetricamente respeitados, ainda que se respeite amplamente o direito de produção de provas, é possível que a decisão judicial se apresente injusta. Daí um terceiro critério: a legalidade constitucionalizada. Para ser direto: não é justa decisão proferida com desdém ao ordenamento jurídico, em desatenção à legalidade constitucionalizada (e supralegal). Não está o juiz autorizado a julgar com base em elementos exógenos, alheios ao ordenamento jurídico, calcados naquilo que para ele, em seu particular subjetivismo, se apresente justo para a solução do caso concreto. Não lhe é lícito, por exemplo, julgar por equidade – não obstante o ordenamento processual brasileiro em vigor, e também o CPC Projetado, rezem de maneira diversa –, ou pautado em critérios morais, religiosos, políticos ou econômicos.19 Possui o direito autonomia e esta deve ser preservada pelo Judiciário; a ordem jurídica deve ser protegida de predadores externos que só fazem ferir a Constituição e especialmente a nossa democracia. 7.4. a interpretação jurídica e a teoria da decisão O último critério está relacionado com a interpretação jurídica e formação mesma da decisão judicial. Pode-se afirmar que há um direito fundamental à uma Teoria da Decisão. E, no que diz respeito a isso, a situação que se enfrenta atualmente no Brasil é grave. É preciso que se trabalhe com mais afinco a elaboração de teorias da interpretação jurídica e da decisão judicial ajustadas à nova ordem constitucional. Afinal, o que se constata na prática, infelizmente, são decisões que amiúde demonstram que cada julgador possui seu próprio critério de decidir. Falta uniformidade. 19 Também são um mal em si mesmos os “predadores endógenos”, que por igual fragilizam o Direito (v.g., protagonismos judiciais; discricionarismo positivista; inquisitivismo; carência do dever de fundamentação; transformação dos julgamentos colegiados em decisões monocráticas, a maioria baseada em “jurisprudência dominante”, cujo DNA não vem demonstrado; a estandardização das decisões; o pamprincipiologismo, transformado em uma espécie de terceiro turno do processo constituinte e paraíso do decisionismo/pragmatismo/ axiologismo); o crescimento da relativização da coisa julgada, entre outros). (STRECK, 2013, p. 73-74). volume 06 119 i encontro de internacionalização do conpedi As decisões dos tribunais superiores, por exemplo, são frequentemente desrespeitadas pelos demais órgãos judiciais, e isso sem qualquer fundamentação que justifique a alternância de entendimento. E que talvez seja pior, eles próprios, os tribunais superiores, desrespeitam suas próprias decisões. Apenas para ilustrar, vale a lembrança de recente decisão monocrática – afeita ao direito penal e ao direito processual penal, mas que serve para demonstrar o ponto de vista ora suscitado –, da lavra do Ministro Joaquim Barbosa (STF), negando a concessão de trabalho externo ao ex-ministro da Casa Civil, José Dirceu – um dos condenados no famoso “processo do mensalão” –, sob a justificativa de que o tal benefício é prerrogativa destinada apenas aos apenados que cumpriram, pelo menos, um sexto da pena. Acontece que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça há mais de uma década admite a concessão de trabalho externo independentemente do cumprimento de um sexto da pena ou de qualquer outro lapso temporal. E daí as indagações que surgem à mente: quer dizer que o STF não estaria obrigado a cumprir a jurisprudência do STJ em questões relativas à legislação federal? O STF teria, portanto, poder de virar as costas para jurisprudência pacífica construída pelo STJ a respeito do tema, justamente o tribunal que a própria Constituição Federal incumbiu de dar a última palavra a respeito da interpretação de lei federal. E poderia fazê-lo sem sequer suscitar alguma inconstitucionalidade no entendimento já pacificado?20 Não é difícil imaginar o que essa decisão significará em termos práticos na Justiça Brasileira: uma esquizofrenia total, juízes decidindo de um jeito ou de outro, debates intermináveis. Outra questão merece ainda ser lembrada. Para os que operam o direito não é difícil perceber o que subjaz a prática jurídica: um relativismo quase absoluto. Tudo é ou não é; tanto faz. Cada qual julgador atribui sentidos da forma que melhor lhe for conveniente. Quando se deseja, o argumento é o respeito estrito à lei; e quando também se deseja o que importa é só a vontade do intérprete, vale mesmo a vontade de poder,21 a consciência individual do julgador. Ao utente cabe 20 Sobre um aprofundamento no estudo desse problema, conferir a coluna de Rafael Tomaz de Oliveira (2014) na ConJur: Integridade do direito implica igualdade de tratamento e respeito às mudanças. 21 Sobre o ativismo judicial, especialmente tratando da questão da vontade, esclarece Clarissa Tassinari, com aporte nas lições de Lenio Streck, que “o apelo a algum tipo de vontade sempre 120 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi se conformar com a situação inusitada, sem saber quando o Judiciário julgará respeitando os limites semânticos da legislação, e quando julgará a partir de argumentos outros, meta-jurídicos, ou com base em valores seja lá qual forem. Uma total isenção de responsabilidade política, portanto.22 Veja-se que, quando se está tratando de responsabilidade política do julgador, também se está fazendo referência à necessidade de coerência e integridade na influenciou sobremaneira as formas de compreender a aplicação do direito, o que se dá, em um primeiro momento, a partir de uma busca pela vontade da legislação e, posteriormente, através da procura pela vontade do legislador. [...] Fazendo uma abordagem direcionada ao problema do ativismo judicial, pode-se afirmar que, no âmbito jurídico, o uso da expressão ‘intepretação como ato de vontade’ remete a Hans Kelsen. De fato, embora este autor não tenha amplamente problematizado a questão, a vontade aparece em seu texto como elementos característico do ato de aplicação do direito, constituindo uma diferença fundamental em sua obra [...] E conclui: “Desta divisão criada por Kelsen, convém mencionar que a preocupação que surge com o problema do ativismo judicial é justamente o que o autor não toma por prioridade em sua teoria pura. Isto é, em sendo o ativismo judicial uma questão de hermenêutica jurídica, isto é, que envolve a discussão sobre como aplicar o direito, pode-se dizer que tal debate não estava incluído como o centro da teoria kelseniana, cujo enfoque é direcionado à construção da ciência do direito. É por este motivo que, na única parte em que trata da decisão judicial (no capítulo oitavo), seu posicionamento é considerado como ‘fatalista’, sendo possível afirmar, inclusive, que ele acabaria por aceitar ‘a total irracionalidade da interpretação feita pelos órgãos do direito.’” (TASSINARI, 2013, p. 57-58). 22 Acreditar que a decisão judicial é produto de um ato de vontade (de poder) nos conduz inexoravelmente a um fatalismo. Ou seja, tudo depende(ria) da vontade pessoal (se o juiz quer fazer, faz; se não quer, não faz). Logo, a própria democracia não depende(ria) de nada para além do que alguém quer. A hermenêutica surgiu exatamente para superar o assujeitamento que o sujeito faz do objeto A problemática relacionada à jurisdição e o papel destinado ao juiz vem de longe, especificamente desde o século XIX: desde “Oskar von Bülow (...), a relação publicística está lastreada na figura do juiz, ‘porta-voz avançado do sentimento jurídico do povo’, com poderes para além da lei, tese que viabilizou, na sequência, a Escola do Direito Livre. Essa aposta solipsista está lastreada no paradigma racionalista-subjetivista que atravessa dois séculos, podendo facilmente ser percebida, na sequência, em Chiovenda, para quem a vontade concreta da lei é aquilo que o juiz afirma ser a vontade concreta da lei; em Carnellutti, de cuja obra se depreende que a jurisdição é ‘prover’, ‘fazer o que seja necessário’; também em Couture, para o qual, a partir de sua visão intuitiva e subjetivista, chega a dizer que ‘o problema da escolha do juiz é, em definitivo, o problema da justiça’; em Liebman, para quem o juiz, no exercício da jurisdição, é livre de vínculos enquanto intérprete qualificado da lei. No Brasil, essa ‘delegação’ da atribuição dos sentidos em favor do juiz atravessou o século XX, sendo que tais questões estão presentes na concepção instrumentalista do processo, cujos defensores admitem a existência de escopos metajurídicos, estando permitido ao juiz realizar determinações jurídicas, mesmo que não contidas no direito legislado, com o que o aperfeiçoamento do sistema jurídico dependerá da ‘boa escolha dos juízes’ (...) e, consequentemente, de seu — como assinalam alguns doutrinadores — ‘sadio protagonismo’” (STRECK, 2010, p. 40-41). volume 06 121 i encontro de internacionalização do conpedi tomada de decisões. Nesse sentido, o projeto de novo CPC é alvissareiro, porque une a ideia de estabilidade da jurisprudência – um conceito autorreferente, isto é, estabelecido numa relação direta com os julgados anteriores – com as ideias de integridade e coerência, que guardam um substrato ético-político em sua concretização, vale dizer, são dotadas de consciência histórica e consideram a facticidade do caso. Ou em outras palavras: coerência sig­ni­fic­ a dizer que, em casos seme­lhan­tes, deve-se pro­por­cio­nar a garan­tia da iso­nô­mi­ca apli­ca­ção prin­ci­pio­ló­ gi­ca. Haverá coe­rên­cia se os mes­mos prin­cí­pios que foram apli­ca­dos nas deci­sões o forem para os casos idên­ti­cos; mas, mais que isto, esta­rá asse­gu­ra­da a inte­gri­da­ de do direi­to a par­tir da força nor­ma­ti­va da Constituição. A coe­rên­cia asse­gu­ra a igual­da­de, isto é, que os diver­sos casos terão a igual con­si­de­ra­ção por parte dos juí­zes. Isso somen­te pode ser alcan­ça­do atra­vés de um holismo inter­pre­ta­ti­vo, cons­ti­tuí­do a par­tir do cír­cu­lo her­me­nêu­ti­co. Já a inte­gri­da­de é dupla­men­te com­ pos­ta, con­for­me Dworkin (2008, p. 213): um prin­cí­pio legis­la­ti­vo, que pede aos legis­la­do­res que ten­tem tor­nar o con­jun­to de leis moral­men­te coe­ren­te, e um prin­cí­pio juris­di­cio­nal, que deman­da que a lei, tanto quan­to o pos­sí­vel, seja vista como coe­ren­te nesse sen­ti­do. A integridade exige que os juí­zes cons­truam seus argu­men­tos de forma inte­gra­da ao con­jun­to do direi­to. Trata-se de uma garan­ tia con­tra arbi­tra­rie­da­des inter­pre­ta­ti­vas. A inte­gri­da­de limi­ta a ação dos juí­zes; mais do que isso, colo­ca efe­ti­vos ­freios, atra­vés des­sas comu­ni­da­des de prin­cí­pios, às ati­tu­des solip­sis­tas-volun­ta­ris­tas. A inte­gri­da­de é uma forma de vir­tu­de polí­ ti­ca. A inte­gri­da­de sig­ni­fi­ca recha­çar a ten­ta­ção da arbi­tra­rie­da­de. (TOMAZ DE OLIVEIRA, 2014) 8.conclusões O objetivo deste texto foi promover desleituras (Bloom-Stein) a alguns dos significados confiados ao acesso à justiça23 e que acabam por remetê-lo a um conceito objetificado. É preciso romper com essa ideia e compreender que, fundamentalmente, acesso à justiça quer dizer, em uma cultura democrática, que não se pode depender do bom ou mau protagonismo judicial. 23 Não se pretendeu naturalmente esgotar o tema e apontar todos os significados que hoje se acoplam ao acesso à justiça. Por exemplo, deixou-se de abordar o acesso à justiça como direito fundamental à tutela jurisdicional adequada, cujos conteúdos abrangem as ideias de adequação formal, duração razoável e efetividade. 122 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi O texto, ao fim e ao cabo, pretende demonstrar que, a partir de uma leitura substantiva sobre o tema, o aumento ou crescimento do acesso à justiça não corresponde simetricamente à maximização das possibilidades de ajuizamento de ações perante o Judiciário. Evidente que, se há mais processos tramitando, significa isso maiores possibilidades de concretização de direitos. Mas o que deve ficar claro é que o acesso à justiça representa um conceito que não está condicionado a números, porque ele se concretiza na observação dos diversos elementos (e outros mais) que foram elencados nesse texto. Atualmente tramitam pelos tribunais brasileiros 93 milhões de processos. É quase a metade do número de habitantes do Brasil. Corresponde mais ou menos à população de países como a Etiópia, o Vietnã, o Egito ou a Alemanha. É o equivalente a duas “Espanhas” ou a quase três “Canadás”. É um número assustador, sem dúvida. Mas o que se tem feito para resolver esse problema? Considerando que, para cada ação judicial corresponde um recurso de embargos de declaração e/ou agravo(s), parece evidente que esse número é ficcional, sem considerar o número crescente de demandas repetitivas ajuizadas contra o Poder Público tratando de Previdência Social e ou questões relativas à taxação e impostos. Deve-se considerar, ademais, um considerável percentual de demandas no campo penal já prescrito e tantas mais tratando de crimes de bagatela. Coisas mínimas como a declaração da inconstitucionalidade (não declaração da recepção constitucional) da Lei de Contravenções Penais já poderia representar um considerável número de demandas que não mais chegaria ao Judiciário. Não há números confiáveis apontando para um efetivo número de demandas – sem esses elementos incidentais – tramitando nos Tribunais pátrios. Não se pode deixar de frisar, nesse contexto, que, por exemplo, se alguém ingressa com uma petição inicial e o juiz determina que essa peça seja emendada e não explicite o locus da emenda, aí já estará uma “nova emenda”, que, por sua vez, poderá resultar em mais uma, um agravo. E assim por diante. Leve-se em conta até mesmo que, para interpor recursos aos tribunais superiores, é necessário interpor embargos de “prequestionamento”. Um novo Código de Processo Civil que não enfrente essas patologias parece não contribuir para um novo patamar de acesso à justiça. Aqui, sem dúvida, parece relevante a discussão acerca do que se pode compreender por efetividade qualitativa (STRECK, 2013, p. 925 e ss). volume 06 123 i encontro de internacionalização do conpedi A aposta atualmente é a defesa da conciliação sob o argumento de que se trata de um meio simplificado, rápido e satisfatório de solucionar conflitos. Entretanto, não é possível evitar de perceber nessa aposta na conciliação a presença de um comportamento paradoxal do Estado: num primeiro momento, investiu muitos esforços para democratizar ao máximo o acesso à justiça, chegando por exemplo ao disparate de atribuir legislativamente capacidade postulatória ao cidadão, como ocorre por exemplo nos Juizados Especiais, que estabelece ser dispensável a figura do advogado em causas de valor até 20 (vinte) salários mínimos; agora, numa outra etapa, percebendo a incapacidade de o Judiciário dar conta do manancial de demandas que lhe é dirigido dia-a-dia, mudou radicalmente discurso e avança advogando a conciliação, que seria um expediente indispensável para reduzir a invencível carga de trabalho que assola a Justiça brasileira.24 Não se nega, por certo, a importância da conciliação e de outras terapias de solução alternativa de conflitos. O que se busca evidenciar é que soluções como essa não podem servir para escamotear os reais problemas que atravancam a prestação jurisdicional em terrae brasilis. Este é o ponto. E isso remete ao velho dilema que envolve efetividades quantitativas e qualitativas. Problemas sociais, sobre os quais o Judiciário vem sendo chamado a decidir, não se resolvem com decisões apressadas e irresponsáveis. É preciso que haja, sobretudo, responsabilidade sobre as decisões tomadas, o que implica o exercício qualificado do acesso à justiça. Infelizmente, o Projeto de CPC parece assombrado pelo fantasma das efetividades quantitativas. A impressão que se tem é que o Estado resolveu adotar a perspectiva ética dos estóicos, escola fundada em Atenas nos anos 300 a.c., na qual se vislumbrava um forte determinismo e até um fatalismo. A noção de destino era muito cara no estoicismo. Diziam seus defensores que o homem deve resignar-se a aceitar os acontecimentos como predeterminados. Ou seja, cumpre a todos agir de acordo com os preceitos éticos e fazer o que julgam devido, mas devem também aceitar as consequências de suas ações e especialmente o curso inevitável dos 24 O Judiciário é e continuará a ser cobrado, os processos permanecerão sendo instaurados, os recursos serão frequentemente interpostos... Esse demandismo, essa litigiosidade sem limites, é um sintoma da nossa sociedade doente que ainda não amadureceu, decorre da ineficiência do próprio Estado que não consegue implementar os direitos fundamentais do povo, em especial aqueles de cunho social. 124 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi acontecimentos. É como se todos nós devêssemos aceitar o triste destino de que o Judiciário é isto mesmo que está aí, fatalmente é isto mesmo, e nada mais pode ser feito para aperfeiçoá-lo, razão pela qual alternativa não há, senão exortar outras fórmulas para solucionar conflitos e tentar assim minimizar o problema. Melhor contudo é dizer não a esse fatalismo e fazer coro com aqueles que empreendem verdadeira cruzada, às vezes indigesta, de sempre apontar o dedo e mostrar onde realmente está o problema e, sobretudo, sublinhar quais os esforços mais efetivos a serem realizados para resolvê-lo. 9.referências CARVALHO DIAS, Ronaldo Brêtas de. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2012. CORRÊA DE ARAÚJO; Marcelo Labanca; PINHEIRO BARROS; Luciano José. O estreitamento da via difusa no controle de constitucionalidade e a comprovação da repercussão geral nos recursos extraordinários. Anais do CONPEDI, 2006. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/ arquivos/anais/recife/ teoria_hermen_marcelo_labanca_e_luciano_barros. pdf>. DELFINO, Lúcio. ROSSI, Fernando F. Juiz contraditor? Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro), n. 82. 2013. p. 229-254. DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Quartier Latim, 2008. 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Valencia: Tirant lo Blanch, 2006. p. 217-247. 126 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi políticas públicas de saúde par a idosos com alzheimer em persperctiva internacional e compar ada Célia Barbosa Abreu1 Eduardo Manuel Val2 Resumo Contemporaneamente, nota-se a ocorrência do envelhecimento populacional mundial, que é visto como um dos principais ganhos sociais do século XX, mas também como um fator de risco para o desenvolvimento global. Mundialmente, por conseguinte, percebe-se a imprescindibilidade de políticas públicas voltadas para os idosos. Mais do que isso, com o atual e constante crescimento da expectativa de vida da população, tem início a preocupação relativamente ao número de pessoas afetadas por doenças relacionadas à idade, como é o caso do mal de Alzheimer, o qual deverá aumentar drasticamente nos próximos anos. Torna-se, pois, assunto da ordem do dia a discussão sobre as políticas públicas de saúde para os idosos, com foco específico na questão da doença de Alzheimer, principal causa de demência da pessoa idosa. Palavras-chave Políticas Públicas; Direito à Saúde; Idoso; Demência; Mal de Alzheimer. Resumen Actualmente, se observa el envejecimiento poblacional en el mundo, que es considerado una de las principales conquistas sociales del siglo XX, pero al 1 Doutora e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro / UERJ. Professora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Constitucional – PPGDC / UFF. Professora Adjunta de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense / UFF. [email protected] . 2 Doutor e Mestre em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro / PUC RJ. Professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Constitucional – PPGDC / UFF. Professor Adjunto de Direito Constitucional Internacional da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense / UFF. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGD / Universidade Estácio de Sá / UNESA. [email protected] . volume 06 127 i encontro de internacionalização do conpedi mismo tiempo también como un factor de riesgo para el desarrollo global. En consecuencia pasamos a entender como son imprescindibles las politicas públicas dirigidas a los mayores de edad. Aún más, con el actual y constante crecimiento de la expectativa de vida de la población, también pasamos a preocuparnos con el número de personas afectadas por enfermedades relacionadas a la edad, como es el caso del mal de Alzheimer, el cual debe aumentar drasticamente en los próximos años. La discusión sobre las politicas públicas para la tercera edad con foco específico en la cuestión del Mal de Alzheimer, principal causa de demencia en las personas de mayor edad es colocada como asunto central en la agenda de policas públicas de salud. Palabras clave Politicas Públicas; Derecho a la Salud; Anciano; Demencia Senil; Mal de Alzheimer. 1.introdução Não são de hoje as tentativas de prolongar a juventude. Os esforços para viver mais, no entanto, trazem consigo riscos próprios, sendo possível afirmar, de acordo com a mitologia grega, que o risco pode vir a ser maior do que o ganho. Os mitos trazem lições sobre o envelhecimento. Assim, por exemplo, sobre os riscos de viver mais, interessante lembrar do mito de Eos e Tithonus, sem esquecer, por outro lado, do mito das famosas fontes Mnemósine (memória) e Lethe (esquecimento), onde os deuses e os mortais podiam se abeberar (Busse, 1992: 12).3 Assim, vive-se o envelhecimento populacional mundial, que, de um lado, é visto como um dos principais ganhos sociais do século XX, mas, por outro, é identificado como um fator de risco. Em cena, o perigo para o desenvolvimento global. Mundialmente, percebe-se a necessidade de políticas públicas voltadas para a saúde dos idosos, com foco na demência, doença bastante comum na terceira idade. Nisso, destaca-se a imprescindibilidade de conferir atenção especial ao mal de Alzheimer, principal causa de demência da pessoa idosa. 3 BUSSE, Ewald W.. O mito, história e ciência do envelhecimento. In: Psiquiatria geriátrica. Org.: BUSSE, Ewald W.; BLAZER, Dan G. Traduzido por Maria Cristina Monteiro Goulart. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992, passim. 128 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi O objeto deste trabalho é tratar das políticas públicas de saúde do idoso com Alzheimer. Tem-se por hipótese a visão de que a tutela deste idoso portador de Alzheimer é mais ampla no Direito Internacional e Comparado do que no Direito Interno. Como metodologia, é realizada a utilização do método dedutivo, com uso de doutrina nacional e estrangeira, bem como das legislações pertinentes. A respeito desta temática, desenvolve-se este trabalho, divido em quatro partes. A primeira cuida da questão do direito ao envelhecimento; a segunda analisa o Alzheimer; a terceira traz um relato das políticas públicas de saúde internacionais e nacionais destinadas aos idosos; a quarta trata das políticas públicas de saúde internacionais e nacionais para idosos com Alzheimer. Na conclusão, se tem o espaço para comentários e críticas dos autores relativamente ao quadro das políticas públicas brasileiras de saúde dos idosos e à imperiosa urgência da adoção de um plano nacional de combate ao Alzheimer. 2. do direito ao envelhecimento O aumento da expectativa de vida da população mundial, nas últimas décadas, tornou o envelhecimento um óbice universal. Este fato determinou a necessidade de que, paralelamente, às modificações demográficas em curso, ocorram transformações socioeconômicas profundas, a fim de se conquistar a melhor qualidade de vida para os idosos, bem como para aqueles que estão em envelhecendo. Nos países em desenvolvimento, esta meta está longe de ser concretizada, uma vez que, além de serem economicamente dependentes de outros países, detém uma estrutura socioeconômica arcaica, que privilegia uma minoria em detrimento da maioria (Schoueri Junior; Ramos; Papaléo Netto, 2000:26). Consequentemente, o Brasil necessitará fazer pesados investimentos na área de saúde, em especial, para atendimento da população idosa. Importante seguir a orientação da Organização Pan-Americana de Saúde, no sentido de se empreenderem esforços para promover a “saúde entre os idosos”, ou seja, um conjunto de ações que provoquem mudanças no estilo de vida, objetivando a diminuição do risco de adoecer e morrer, estabilizando ou melhorando a saúde dos indivíduos em sua totalidade, aliando à saúde física a sua complexidade social. volume 06 129 i encontro de internacionalização do conpedi Estratégias devem ser realizadas para atingir estas metas, nos campos psicossocial, político e econômico. A promoção da saúde do idoso deve estar a cargo de uma equipe multi, inter e transdisciplinar (Jacob Filho; Chiba, 2000: 400). Normalmente, o termo envelhecimento vinha associado ao declínio da eficiência/ desempenho, doenças e morte. Era comum o preconceito com o idoso. Esquecia-se que o envelhecimento também pode expressar modos desejáveis de amadurecimento. Algumas alterações etárias são benignas, contribuem para o desenvolvimento humano, a satisfação de suas necessidades pessoais e a manutenção de um lugar social (Busse, 1992:15). Com o envelhecimento populacional passando a ser uma realidade, surgem novas ideologias em torno do envelhecimento. Fala-se no envelhecimento “ativo”, quando seria melhor pensar num envelhecimento “digno”. Mais desafiador que acrescentar anos à vida começa a ser somar vida aos anos. 3. a demência e o mal de alzheimer A demência é uma síndrome caracterizada pelo declínio de várias habilidades intelectuais, transtorno do comportamento e restrições funcionais. Sua prevalência cresce exponencialmente de 2% entre pessoas com 65 anos de idade para 20 a 40% entre aquelas com 80 anos ou mais. Assim sendo, em razão do envelhecimento populacional mundial, estima-se que o número de idosos com demência crescerá consideravelmente durante os próximos anos (Almeida, 2012:280). De acordo com a American Psychiatric Association: Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders: DSM-IV-TR e com a Organização Mundial de Saúde (da CID-10), para o diagnóstico de demência (quadro 20.1), o indivíduo deve ser acometido pela deterioração da memória e de suas funções corticais superiores. É preciso que a pessoa tenha um comprometimento suficientemente grave de suas habilidades intelectuais, ao ponto de restar prejudicada a sua capacidade funcional. (Almeida, 2012:280). A demência engloba várias patologias, tendo causas que podem ser divididas em degenerativas, vasculares, metabólicas, tóxicas, inflamatórias/transmissíveis, neoplásicas e mecânicas (quadro 20.5). Suas quatro causas mais comuns são: o Alzheimer, a demência dos córpulos de Lewy, a demência frontotemporal 130 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi e a demência vascular. Os fatores causais do Alzheimer ainda não foram compreendidos. Afirma-se que seria uma decorrência da conjugação de fatores de risco genéticos e não genéticos (Geller; Reichel, 2001:181). A doença de Alzheimer é um transtorno neurodegenerativo de desenvolvimento lento. Os por ela acometidos perdem sua produtividade socioeconômica e o fardo familiar é profundo. O indivíduo apresenta dificuldades de aprendizado. Progressivamente, é atingida a sua habilidade matemática, a sua linguagem, a práxis, a percepção sensorial e as habilidades da visão espacial. São sintomas característicos da doença: a amnésia, a afasia, a agnosia e a apraxia . Ao avançar, a doença afeta as funções intelectuais (Almeida, 2012:284). Passados cem anos da caracterização clínica e patológica do Alzheimer, o seu diagnóstico precoce continua a representar um desafio na prática médica. Um impasse contemporâneo é diferenciar as alterações cognitivas próprias do envelhecimento normal das manifestações das fases iniciais dos transtornos demenciais, particularmente do Alzheimer. Os diagnósticos realizados são imprecisos. (Bourgeois; Seaman; Servis, 2012:346). O manejo das alterações comportamentais se dá através de estratégias farmacológicas, psicológicas e sociais, gerando gastos. Na maioria dos casos, as intervenções restringem-se ao uso de medicamentos. Pessoas com sintomas psiquiátricos totalmente distintos são tratadas como se fossem um grupo homogêneo de “pacientes com transtorno de comportamento”, O tratamento das pessoas com demência costuma se dar via antidepressivos, neurolépticos e anticonvulsivantes. Os portadores de Alzheimer utilizam-se ainda dos inibidores da acetilcolinestearase e da memantina, que retardam a progressão da doença. Tratamentos experimentais vêm sendo aplicados aos pacientes com demência. Os resultados iniciais são desapontadores. (Almeida, 2012:291). A última declaração emitida pela OMS (Organização Mundial de Saúde) em matéria de Alzheimer, em conjunto com a Associação Internacional da Doença de Alzheimer, data de 2012, considerou a demência como uma crise de saúde pública, prioridade mundial. O documento, intitulado: “Demência: uma prioridade de saúde pública,” apresentou dados provenientes dos principais estudos realizados na área, destacando as melhores práticas a serem desenvolvidas na luta contra a doença, além de estatísticas de diversos países, inclusive daqueles volume 06 131 i encontro de internacionalização do conpedi de baixa e média renda Estimou-se que, a cada ano, surjam 7,7 milhões de novos casos de demência. Sublinhou-se que o número total de pessoas atingidas deverá quase que dobrar a cada 20 anos, podendo passar de 65,7 milhões em 2030 a 115,4 milhões em 2050.4 4. políticas públicas de saúde par a idoso: abordagem internacional e compar ada A expectativa de vida aumentou em decorrência dos avanços científicos e tecnológicos, da melhora das condições socioeconômicas de vida, entre outros fatores. O envelhecimento populacional surgiu como fenômeno mundial, que ocorreu de forma lenta e gradual entre os países desenvolvidos e hoje atinge rápida e intensamente os países em desenvolvimento. Nesse contexto, o envelhecimento “digno” se tornou um desafio para as políticas públicas internacionais e nacionais (Barboza, 2008:57). A primeira assembleia internacional sobre o envelhecimento ocorreu em Viena, em 1982. Dela, adveio um plano global de ação composto de 66 recomendações, voltadas para sete áreas especialmente: saúde e nutrição; proteção ao consumidor idoso; moradia e meio ambiente; família; bem-estar social; previdência social; trabalho e educação. O grande número de recomendações adotadas para os estados membros signatários (dentre os quais estava o Brasil) não foi, contudo, acompanhado de uma previsão de recursos respectiva (Camarano; Pasinato, 2004:255). Notava-se a importância da medicalização do idoso, que deveria ser inserido no mercado de trabalho, alcançando meios físicos e financeiros para a sua independência e autonomia. Era preciso reconhecê-lo como ator social, dotado 4 O relatório Dementia: a public health priority está disponível para download no site da Alzheimer’s Disease International . Este relatório é documento fundamental, que, no plano do direito internacional contemporâneo se insere na categoria de instrumento de soft law, porque tem influenciado e ainda influenciará, decisivamente, o desenho das políticas de saúde pública dos Estados Membros da OMS em geral, e particularmente, daqueles que se inserem no mundo ocidental. Suas recomendações, parâmetros técnicos e standards conceituais fundamentam as novas propostas dos planos nacionais de luta contra o mal de Alzheimer. O site da OMS recomendado pelos autores para pesquisa é o da Organização Pan-Americana de Saúde / Organização Mundial de Saúde. 132 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi de necessidades e especificidades, que deveriam ser respeitadas por somarem valor à economia e conduzirem ao desenvolvimento de um novo nicho de mercado (Camarano; Pasinato, 2004:255). Surgia a ideologia do envelhecimento “ativo”, com o discurso da inclusão do idoso na vida socioeconômica. A imagem do idoso aposentado inserido no mercado de trabalho seria algo natural e desejável, além de relevante para a produtividade. Não se levava em conta que, muitas vezes, o indivíduo já tinha em seu histórico de vida uma inserção precoce no mundo do trabalho, tendo sido explorado e expropriado de seus direitos (Dantas e Silva; Souza, 2010:90). A maior preocupação era com os países desenvolvidos, eis que nestes o envelhecimento populacional já ocorria há tempos, como resultado do sucesso das políticas do Welfare State nos anos 50 a 70. Isto, no entanto, não significa dizer que também os países em desenvolvimento não estivessem atentos à questão, eis que paulatinamente incorporavam em suas agendas a atenção a este fenômeno social. Na América Latina, alguns países chegaram a alterar suas constituições, elaborando leis favoráveis à pessoa idosa. Servem de exemplo os casos do Uruguai (1967), Paraguai (1992), Argentina (1994), Venezuela (1999), Equador (2008) e Bolívia (2009).5 A Constituição da República do Uruguai não protege os direitos dos idosos de maneira integral. A única menção a eles é sobre a seguridade social (art. 67). Contudo, os direitos dos idosos são plenamente garantidos no Estado uruguaio através da Lei de Promoção Integral aos Idosos, de nº 17.996. O art. 2º desta lei declara como direito dos idosos: a integração ativa na família e na comunidade e o desfrute de um tratamento decente, sem qualquer tipo de discriminação, em todos os aspectos de sua vida; uma velhice digna na qual prevaleça o seu bem-estar físico, psicológico e socioeconômico; os cuidados médicos e de saúde abrangente e coordenada, incluindo dental; o acesso à educação, à moradia adequada, à alimentação e abrigo suficientes; o acesso ao lazer, transportes e comunicações em 5 Com a finalidade de facilitar o acesso aos textos constitucionais eleitos pelos autores na pesquisa de direito comparado, importante mencionar que a busca dos textos constitucionais se centralizou sua consulta feita ao banco de dados da Georgetown University. Propositalmente a referência e os comentários à Constituição Brasileira de 1988 foi deixada para análise mais adiante do presente ensaio. volume 06 133 i encontro de internacionalização do conpedi todo o país; a segurança de sua integridade médica e intelectual em um contexto de justiça e equidade.6 A Constituição da República do Paraguai apresenta apenas um dispositivo sobre a terceira idade (art. 57), no sentido de que os idosos têm direito à proteção integral. A família, a sociedade e as autoridades públicas devem promover o seu bem-estar por meio de serviços sociais que atendam às suas necessidades de alimentação, saúde, habitação, cultura e lazer. O Paraguai também possui uma lei que regulamenta a pensão para idosos em situação de pobreza, a Lei n° 3728/2009.7 A Constituição da República da Argentina traz a proteção dos idosos, mas sem forma específica. Há somente um dispositivo que faz menção direta ao idoso (art. 75, linha 23). Este artigo apenas menciona como uma função do parlamento constituído a de legislar e promover medidas de ação positiva em favor dos idosos e outras minorias. Entretanto, há um vasto número de dispositivos, sejam de direito interno ou tratado ratificado pela República da Argentina, que garantem os direitos dos idosos. Especificamente, há um dispositivo na Constituição da Cidade Autônoma de Buenos Aires (art. 41), que merece referência. O preceito determina que a cidade assegura aos idosos igualdade de oportunidades e de tratamento, bem como o pleno gozo dos seus direitos. A respeito da seguridade social, cumpre registrar o art. 14 da constituição, garantindo que o Estado deverá conceder os benefícios da seguridade social, em caráter integral e inalienável. Em particular, a lei estabelece um seguro social obrigatório, que será fornecido por entidades nacionais ou provinciais, com autonomia financeira e econômica, administrado pelas partes interessadas, com a participação do Estado, podendo ser sobrepostas contribuições, aposentadorias e pensões. O dispositivo estabelece a proteção integral da família, a defesa do bem de família, a garantia dos abonos de família e o acesso à moradia digna.8 A Constituição da República Bolivariana da Venezuela é mais exaustiva no que tange aos direitos da terceira idade. Cabe mencionar um artigo deste diploma (art. 6 RUGUAI. Constituição da República. disponível em: http://pdba.georgetown.edu/ Constitutions/Uruguay/uruguay04.html acessado em 05.05.2014. 7 PARAGUAI. Constituição da República. disponível em: http://pdba.georgetown.edu/ Constitutions/Paraguay/para1992.html acessado em 05.05.2014. 8 ARGENTINA. Constituição da Argentina. disponível em: http://pdba.georgetown.edu/ Constitutions/Argentina/argen94.html acessado em 05.05.2014. 134 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi 80). O dispositivo prevê que o Estado deve garantir aos idosos o pleno exercício de seus direitos e garantias. Estado, família e sociedade são obrigados a respeitar a dignidade humana, a autonomia e garantir-lhes cuidados integrais e benefícios de segurança social, a fim de melhorar e garantir a sua qualidade de vida. Na Venezuela, também há uma Lei Orgânica de Seguridade Social, lei promulgada por determinação do próprio art. 86 da constituição. Nessa lei, dispõe o capítulo II sobre o regime de prestação de serviços sociais aos idosos e a outras categorias de pessoas. O seu art. 59 dispõe que estes serviços compreenderão determinados benefícios, programas e serviços, por ele elencados. Chame-se a atenção para o funcionamento do chamado “combo para vejez” (combo para a velhice) venezuelano, composto por salário mínimo, alimentação e medicamentos.9 A Constituição da República do Equador é um dos diplomas mais abrangentes no que tange à salvaguarda dos direitos dos idosos. A constituição dedica a primeira seção do seu capítulo terceiro à terceira idade, composta por três artigos (art. 36, 37 e 38). O art. 36 estatui que os idosos devem receber atenção prioritária e especializada nos setores público e privado, especialmente nas áreas de inclusão social e econômica, além de proteção contra a violência. Serão considerados idosos aqueles que tenham atingido 65 anos de idade. O art. 37 traz um rol dos direitos dos idosos, entre os quais consta o do atendimento gratuito e especializado de saúde e o de acesso a medicamentos. O art. 38 estabelece que compete ao Estado estabelecer políticas e programas de cuidados para as pessoas idosas, que considerem as especificidades entre as zonas urbanas e rurais, as desigualdades de gênero, etnia, cultura e suas próprias diferenças. Deverá promover o maior grau possível de autonomia pessoal do idoso, garantida a sua participação na definição e implementação dessas políticas. Em particular, o Estado deve tomar 9 medidas, apontadas pelo dispositivo. Na 25ª disposição transitória da Constituição Equatoriana, está o instituto da revisão anual da aposentadoria dos idosos e o objetivo de alcançar o salário digno proposto pela Carta Magna.10 A Constituição da República Boliviana versa sobre alguns institutos salvaguardando os direitos dos idosos, semelhantemente ao diploma do Equador. 9 VENEZUELA. Constituição da República Bolivariana da Venezuela. disponível em: http:// pdba.georgetown.edu/Constitutions/Venezuela/vigente.html acessado em 05.05.2014. 10 EQUADOR. Constituição da República do Equador disponível em : http://pdba.georgetown. edu/Constitutions/Ecuador/ecuador08.html acessível em 05.05.2014. volume 06 135 i encontro de internacionalização do conpedi A seção VII do capítulo V do diploma é dedicada exclusivamente à garantia dos direitos da terceira idade, merecendo referência três dispositivos (art. 67, 68 e 69). O art. 67 preconiza que, além dos direitos reconhecidos na constituição, todas as pessoas idosas têm direito a uma velhice digna, qualidade e aconchego. Além disso, o Estado proverá uma renda vitalícia para os idosos, de acordo com o sistema de segurança social abrangente, com previsão em lei. O artigo 68 traz a previsão de políticas públicas a serem desenvolvidas pelo Estado para a proteção, o cuidado, a recreação, o lazer e o emprego social das pessoas idosas, de acordo com as suas capacidades e possibilidades. Ficam vedadas, sendo passíveis de sanção, todas as formas de abuso, negligência, violência e discriminação contra as pessoas idosas. O art. 69 estabelece que os servidores da pátria são merecedores da gratidão e do respeito de instituições públicas e privadas, bem como do público em geral, sendo considerados heróis e os defensores da Bolívia, de modo que farão jus a uma pensão estatal vitalícia, de acordo com a lei. Sobre a seguridade social, vale citar o art. 45, III, que garante a atenção aos idosos, aos acometidos por enfermidades e epidemias, incapazes e suas necessidades especiais, entre outros.11 Na década de 90, a imagem dos idosos como subgrupo vulnerável e dependente foi sendo substituída pela de um segmento populacional ativo. Em 1991, foi realizada uma assembleia geral adotando o princípio das Nações Unidas em favor das pessoas idosas, elencando 18 direitos relativos à independência, participação, cuidado, auto-realização e dignidade. Em 1992, houve uma conferência internacional sobre o envelhecimento, acolhendo a proclamação do envelhecimento e declarando 1999 o ano internacional do idoso. Em 1995, foi elaborado o Documento 50/114 da ONU focado em 4 parâmetros voltados a construção de uma sociedade para todas as idades, sendo eles: a situação dos idosos, o desenvolvimento individual continuado, as relações multigeracionais e a inter-relação entre envelhecimento e desenvolvimento social (Camarano; Pasinato, 2004:257). A segunda assembleia mundial sobre o envelhecimento ocorreu em Madri, em 2002. Destacou-se que, embora a Europa e a América do Norte lidassem com a questão do envelhecimento há décadas, era chegada a hora de se atentar para os 11 BOLÍVIA. Constituição da República Boliviana disponível em: http://pdba.georgetown. edu/Constitutions/Bolivia/bolivia09.html acessado em 05.05.2014. 136 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi países em desenvolvimento, eis que estes passariam a enfrentar um considerável aumento da população idosa, com possível prejuízo para o desenvolvimento da economia mundial. Foi previsto que, na Ásia e na América Latina, os idosos teriam um crescimento de 8% para 15%, entre 1998 e 2025. Em 2050, o percentual poderia chegar a 19%. O número de crianças cairia de 33% para 22%, de modo que não tardaria para que o número de idosos e jovens viesse a se igualar mundialmente (Dantas e Silva; Souza, 2010:88). Foi elaborado um plano de ação internacional para o envelhecimento no século XXI, com 35 objetivos e 239 recomendações, embasado em 3 princípios: participação social ativa do idoso, desenvolvimento e luta contra a pobreza; estímulo da saúde e bem-estar na terceira idade; criação de condições favoráveis ao envelhecimento. Estratégias sugeridas e documentos elaborados foram vagos, desconsiderando as diferenças regionais. Construiu-se um plano único/geral, com recomendações condizentes com a realidade dos países desenvolvidos, nos quais se tem um programa de bem-estar social avançado, que inexiste nos países em desenvolvimento. Foi elaborado um plano internacional sem a previsão dos recursos (Camarano; Pasinato, 2004:261). Percebido o alto grau de generalização do plano de Madri, bem como as diversidades regionais, tanto no processo de envelhecimento quanto nas condições socioeconômicas e culturais existentes, os órgãos regionais das Nações Unidas (Comissão Econômica para a Europa; Comissão Econômica e Social para a Ásia; Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe; Comissão Econômica para a Ásia Ocidental e Comissão Econômica para a África) estabeleceram estratégias para seu funcionamento nas respectivas regiões, consideradas suas especificidades e as de seus idosos. Redigiram-se 5 documentos. O documento da Europa norteouse na imprescindibilidade de assegurar a completa integração e participação social dos idosos. O documento da América Latina focou-se nas necessidades básicas para assegurar a dignidade da pessoa idosa: acesso à renda, cobertura integral dos serviços de saúde, educação e moradia. O documento relativo à região da Ásia e do Pacífico foi destinado ao acesso das novas tecnologias, como meio de manter a autonomia e independência dos idosos, além de fazer referência a um planejamento urbano amigável ao idoso e à importância de elaborar mecanismos de apoio para o cuidador (Camarano; Pasinato, 2004:262). volume 06 137 i encontro de internacionalização do conpedi O Departamento de Assuntos Sociais e Econômicos das Nações Unidas está à frente de novas avaliações e revisões do plano de Madri. Enquanto isso, outras iniciativas internacionais podem ser citadas. Assim, por exemplo, ainda em 2002, em Berlim, foi realizada a Conferência Ministerial da UNECE (Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa) sobre o envelhecimento. Em 2007, em Léon (Espanha), houve nova Conferência Ministerial da UNECE sobre o envelhecimento. Em 2008, a UNECE criou um grupo de trabalho sobre o envelhecimento. Em 2012, em Viena, ocorreu outra Conferência Ministerial da UNECE sobre o envelhecimento. O ano de 2012 foi o ano europeu do envelhecimento ativo e da solidariedade entre as gerações.12 Países da América Latina e Caribe, para o cumprimento das recomendações do plano internacional sobre o envelhecimento de Madri, se comprometeram a implantar políticas públicas e ações nessa matéria. Assim, em 2003, realizou-se, em Santiago do Chile, a primeira conferência regional internacional governamental sobre o envelhecimento na América Latina e no Caribe, sendo aprovada a estratégia regional de implementação na América Latina e no Caribe do plano internacional de Madri. Seguiram-se diversos eventos com o foco nas questões do envelhecer, considerando-se as especificidades culturais, sociais e econômicas de cada país. Em 2007, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), uma divisão da ONU, organizou, em parceria com o Brasil, em Brasília, a segunda conferência regional intergovernamental sobre o envelhecimento na América Latina e no Caribe, a fim de identificar as prioridades futuras de aplicação da estratégia regional de implementação para a América Latina e o Caribe do Plano Internacional de Madri. Foi elaborada a Declaração de Brasília, em que se assumiram compromissos de promover e prestar serviços sociais e de saúde básica, facilitando o acesso a eles, considerando as necessidades específicas dos idosos. Em 2012, foi realizada a terceira conferência intergovernamental sobre envelhecimento na América Latina e no Caribe, organizada pela CEPAL e pelo governo da Costa Rica. Nessa ocasião, foi redigida a Carta de São José 12 No plano internacional, as políticas públicas de saúde, objetivando atender as pessoas de terceira idade tem sido potencializadas em sua eficácia a partir do fortalecimento do espaço de integração regional, como plataforma de produção normativa e técnica, de alta qualidade. Os dados ora destacados foram coletados no site do GEP PORTUGAL (Gabinete de Estratégia e Planejamento de Portugal). 138 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi sobre os direitos dos idosos da América Latina e do Caribe. Em 2013, em São José da Costa Rica, se deu a primeira reunião para dar continuidade à Carta de São José, quando se privilegiou a discussão sobre os mecanismos de cumprimento do estabelecido na terceira conferência regional intergovernamental sobre o envelhecimento na América Latina e no Caribe.13 Cabe mencionar o Plano de ação sobre a saúde das pessoas idosas, incluindo o envelhecimento ativo e saudável (Organização Pan-Americana da Saúde, Washington, 2009). Nele, abordam-se as necessidades de saúde cada vez maiores da população, que está envelhecendo rapidamente na América Latina e no Caribe. Incentiva-se que os países membros da OPAS e os organismos de cooperação internacional priorizem as políticas públicas atinentes à saúde dos idosos. Estas deverão se voltar para equipar os sistemas de saúde e capacitar os recursos humanos para satisfazer suas necessidades especiais, melhorando as condições destes países de gerar a informação necessária para apoiar e avaliar as medidas empreendidas. O Plano de Ação é uma resposta aos acordos internacionais e regionais, nele definidas as prioridades de 2009-2018.14 É chegada a hora de analisar a questão do envelhecimento nas políticas públicas brasileiras. Começa-se por destacar que, enquanto signatário do primeiro plano internacional sobre o envelhecer, é possível afirmar que a questão da inserção 13 Cabe esclarecer que não se trata de um caso de transplante jurídico nos termos em que a doutrina clássica de direito comparado entende este conceito, mas sim um exemplo dos efeitos benéficos da circulação internacional de pensamento jurídico e de diálogo institucional. O direito da integração regional tem promovido, eficazmente, o princípio de complementariedade entre o direito internacional e as ordens jurídicas nacionais, refletindo este princípio a cooperação necessária para o aprimoramento das políticas públicas de saúde. A Declaração de Brasília está exposta no site do Observatório Nacional do Idoso Fiocruz. A Carta de São José sobre os direitos dos idosos da América Latina e do Caribe está disponível no sítio da Secretaria de Direitos Humanos. 14 Esta resposta não implica em uma subordinação hierárquica, mas sim em um verdadeiro caso de harmonização normativa e de políticas públicas. Não se pretende a busca de um modelo uniforme, porém uma coerência pragmática num cenário normativo multi nível, seguindo a denominação da doutrina alemã, que facilita o monitoramento e a avaliação permanente dos modelos de gestão em saúde pública. O Plano de Ação da Organização Pan-Americana de Saúde 2009-2018 está disponível para acesso no site: SISAP IDOSO (Sistema de Indicadores de Saúde e Acompanhamento de Políticas do Idoso). O SISAP IDOSO é um sistema desenvolvido por iniciativa da área técnica da saúde da pessoa idosa do Ministério da Saúde e do laboratório de informação em saúde (LIS) do Instituto de comunicação e informação científica e tecnológica (ICICT) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). As atualizações e adequações são periódicas. volume 06 139 i encontro de internacionalização do conpedi do envelhecimento populacional na agenda das políticas públicas brasileiras não é nova. Ao revés, ela pode ser percebida antes mesmo da Constituição de 1988, a qual representa verdadeiro marco quanto à introdução da proteção social mais abrangente, incorporando o tema do envelhecimento (Camarano; Pasinato, 2004:263). Esta constituição trouxe considerável avanço para a proteção dos idosos brasileiros. Foi inserido um conceito de seguridade social segundo o qual a proteção social não está mais vinculada ao contexto estritamente socialtrabalhista, passando a ser uma expressão da cidadania. Garantiu-se o acesso à saúde e à educação para toda a população e, ainda, a assistência social para os necessitados. No título relativo à Ordem Social, tratou da família, da criança, do adolescente e do idoso. Assegurou aos idosos a participação social, garantindo a respectiva dignidade, bem-estar e direito à vida, que devem ser protegidos pela família, sociedade e Estado. Estabeleceu que os programas de cuidado do idoso serão prioritariamente desenvolvidos em suas residências. Assegurou a gratuidade dos transportes coletivos urbanos para os maiores de 65 anos, em todo o território nacional (art. 230). Vedou a possibilidade de estabelecimento de diferenças salariais, exercício de funções e critérios de admissão pautados em razão de idade. Incidiu, no entanto, em erro quando manteve a aposentadoria compulsória nos regimes de previdência dos servidores públicos e privados, trazendo aí uma discriminação no mercado de trabalho. Critica-se a Constituição, sob a alegação de que ela é explícita quanto à prioridade absoluta dos direitos das crianças e dos adolescentes, nada dizendo quanto à prioridade dos idosos. Por outro lado, existem doutrinadores que reagiram à inércia do constituinte, fazendo uma bem-vinda interpretação sistemática do texto constitucional. Afirma-se que, de acordo com a Constituição de 1988, a pessoa humana surgiu como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, tendo nela sido acolhida a cláusula geral de tutela da pessoa humana, da qual se extrairia a consagração do princípio do melhor interesse do idoso, ao qual é garantida a proteção integral (Barboza, 2008:57). A partir da década de 90, diversos dispositivos constitucionais relativos às políticas setoriais de proteção dos idosos foram regulamentados. Políticas e programas nacionais de saúde foram adotadas. Algumas destinadas especificamente 140 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi aos idosos, outras direcionadas à toda a população, mas que igualmente a eles interessaram. Tais políticas dialogam entre si, abrangendo questões como: renda (aí inseridas: a previdência e a assistência social); a saúde; os cuidados de longa permanência e integração social. Foi produzida extensa legislação.15 O problema é complexo e a verdade é que a eficácia social efetiva das legislação não aconteceu. Sob o rótulo de idosos, estão indivíduos relativamente jovens, em torno de 60 anos ou pouco mais, bem como outros extremamente mais velhos, com 90, 100 ou mais. Surge a necessidade se lidar com o “envelhecimento do envelhecimento”. Trata-se de um grupo bastante heterogêneo e que exige a adoção de políticas públicas de saúde atendendo as suas necessidades especiais. As diretrizes desconsideram essa heterogeneidade entre os idosos. Condições econômicas, culturais e regionais, acesso à rede de serviços básicos, tais como: saúde, educação, saneamento básico e lazer, constituem elementos capazes de influenciar na boa qualidade de vida ou não de um indivíduo, seja ele idoso ou não. Não se pode pretender identificar os idosos como um segmento homogêneo, com idênticas necessidades, tendo, pois, peculiaridades próprias a serem consideradas na elaboração das políticas públicas respectivas (Dantas e Silva; Souza, 2010:85). Uma mostra disso advém da análise do padrão da chamada morbimortalidade (o impacto das doenças e das mortes nos idosos), que neles é distinto do restante da população. Certo o argumento de que o idoso demanda uma política especial de saúde própria e com atenção voltada para as enfermidades crônicas (como o Alzheimer), que, comumente, os acometem. Estas últimas exigem um número considerável de consultas médicas, internações, exames e medicamentos, entre outras medidas. Atender aos interesses dos idosos com doenças crônicodegenerativas ainda é um grande desafio em matéria de Políticas Públicas. É preciso fomentar a organização da saúde do idoso, em especial daquele com demência (sobretudo o acometido pelo Alzheimer), o que resultará na redução dos custos. As políticas públicas de atenção aos idosos devem se pautar no dever 15 Os interessados no exame da vasta legislação produzida devem conferir a relação das leis, políticas e portarias trazida pelo site: SISAP IDOSO (Sistema de Indicadores de Saúde e Acompanhamento de Políticas do Idoso). volume 06 141 i encontro de internacionalização do conpedi de solidariedade, que tem previsão constitucional (art. 3º, I). Embora se fale em políticas públicas de saúde para o idoso, sua abordagem deverá ser intersetorial e as melhorias desde a infância (Moraes, 2001:168). 5.políticas públicas de saúde par a idosos com alzheimer: um exercício de complexidade e especificidade Em face da Declaração da OMS (2012), no sentido da necessidade de se declarar a demência uma prioridade mundial de saúde pública, e dos dados estatísticos apresentados acerca da numerosa quantidade de pessoas, ao redor do mundo, afetadas por demências, passa a ser de interesse inequívoco a realização de estudos sobre políticas públicas adotadas em saúde para os idosos, que são a camada mais comumente por elas atingidas, especialmente pelo Alzheimer. Dentre as pesquisas, torna-se oportuno examinar quais as respostas dadas mundialmente ao verdadeiro chamado ao planeta feito pela OMS. Começa-se abordando a iniciativa europeia em matéria de Alzheimer e outras formas de demência. Nisso, merece menção: o relatório A7-0366/2010 da Comissão do Ambiente, da Saúde Pública e da Segurança Alimentar, apresentado pelo Parlamento Europeu, em 09.12.2010, que, após debates e votação, resultou na aprovação do texto P7-TA (2011)0016, que compreende a resolução do Parlamento Europeu, de 19.01.2011, sobre a iniciativa europeia relativamente a estas doenças. O relatório trouxe uma proposta de resolução do Parlamento Europeu que se pautava: na necessidade de adoção de medidas de luta contra as doenças neurodegenerativas associadas à idade, em especial o Alzheimer, reconhecidas em recomendação do Conselho Europeu; nas conclusões do projeto EuroCoDe da organização Alzheimer Europe (colaboração europeia sobre demência) (2006-2008); no relatório mundial de 2010 sobre o Alzheimer; no objetivo estratégico da União Europeia de promover a saúde numa Europa que envelhecia e se encontrava em face da necessidade de intensificar a investigação no interesse dos cuidados paliativos e de uma melhor compreensão de tais patologias. Segundo o relatório (2010), as estimativas eram de que, em todo o mundo, 35,6 milhões de pessoas sofriam de alguma forma de demência, sendo possível prever que este número deveria praticamente duplicar a cada 20 anos, podendo chegar a 65,7 milhões em 2030, de acordo com Relatório de 2010 da organização 142 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi Alzheimer’s Disease International, estando o número de doentes de Alzheimer subavaliado, em razão de dificuldades na realização de um diagnóstico precoce. Naquela ocasião, o número de europeus com demência ficava em torno de 9,9 milhões, sendo o Alzheimer responsável pela vasta maioria dos casos.16 Cem anos depois que Alois Alzheimer descreveu pela primeira vez os sintomas da doença que viria a receber o seu nome, a Alzheimer Europe e suas organizações membros apelaram à União Europeia, à Organização Mundial de Saúde, ao Conselho da Europa e aos governos nacionais para declararem o Alzheimer um problema maior de saúde pública e desenvolverem programas internacionais, nacionais e europeus específicos para esta forma de demência, como prioridades políticas. Foi aprovada a Declaração de Paris (2006).17 A Alzheimer Europe realizará a 24 Alzheimer Europe Conference, em Glasgow, Reino Unido, entre os dias 20-22 de outubro de 2014. Está prevista a abordagem dos direitos da pessoa com demência e a troca de informações sobre estratégias e políticas nacionais de demência. Pessoas com demência estarão envolvidas em atividades e projetos, em caráter de fundamental prioridade.18 Dados fornecidos pela Alzheimer Europe, em 24.02.2014, estimam a existência hoje de, aproximadamente, 8,7 milhões de pessoas com demência nos 16 O direito comunitário europeu tem se consolidado como um feliz exemplo do sucesso da colaboração entre as instituições e a sociedade civil organizada. Esse êxito se projeta não só na autoridade técnica da ordem normativa especializada, como também na aderência da comunidade como resultado de sua participação no processo de produção legislativa. O relatório A7-0366/2010 apresentado pelo Parlamento Europeu, bem como o texto P7TA (2011)0016 estão disponíveis para visualização no Sítio Web do Parlamento Europeu. Verifique-se em: http://www.europarl.europa.eu/ acessado em 06.05.2014. 17 Ao falar da iniciativa europeia em matéria de Alzheimer, não pode ficar sem referência o trabalho desenvolvido pela Alzheimer Europe, que é uma organização não governamental e sem fins lucrativos, destinada a realizar a sensibilização em torno de todas as formas de demência, mediante a criação de uma plataforma europeia comum, através da coordenação e cooperação entre as organizações de Alzheimer em toda a Europa. A Alzheimer Europe é também uma importante fonte de informações sobre todos os aspectos da demência. Além disso, representa os interesses não só das pessoas com demência, mas também o de seus cuidadores. O site da Alzheimer Europe traz estudos comparativos dos estágios de evolução dos Programas de Luta contra o Alzheimer nos 28 Estados-Membros que compõem hoje a União Europeia. Traz também a Declaração de Paris, disponível em: http://www.alzheimereurope.org/ acessado em 06.05.2014. 18 Veja-se, a respeito, o Site Alzheimer Europe disponível em: http://www.alzheimer-europe. org/ acessado em 05.05.2014. volume 06 143 i encontro de internacionalização do conpedi 28 Estados membros da União Europeia e 0,5 milhões de pessoas com demência na Suíça, Noruega, Islândia, Jersey e Turquia. Não se pode ter dúvida de que, com o atual aumento constante na expectativa de vida da população da Europa, o número de pessoas afetadas por doenças relacionadas à idade, como o Alzheimer e doenças associadas irá crescer dramaticamente nos próximos anos.19 A partir de informações da Alzheimer Europe, vê-se que nem todos os países membros da União Europeia tem um Plano Nacional de luta contra o Alzheimer, porém muitos, de forma diferenciada, já adotaram medidas relativas à questão. Seria interessante fazer um levantamento dos países que tomaram essa iniciativa, não só na Europa como no mundo. Sem a pretensão de uma listagem completa, serão vistas algumas nações que acolheram ou estão acolhendo esta estratégia.20 Na França, o Alzheimer também aparece como a forma mais comum de demência, representando cerca de 60 a 70% dos casos de sua incidência. Ainda não há a possibilidade de cura ou de modificar sua evolução. Surgem novos tratamentos, em diferentes estágios de pesquisa. Diante disso, são empreendidos esforços para o desenvolvimento de medidas para dar cabo de demências como o Alzheimer e problemas assemelhados. Existem planos nacionais quinquenais de luta contra o Alzheimer, tendo o penúltimo se desenvolvido no período de 2008 a 2012 e, estando em curso um plano iniciado em 2013 e que terminará em 2018. O Plano Alzheimer 2008-2012 compreendeu a adoção de 44 medidas, tendo sido destacados 11 objetivos a serem atingidos.21 Há vários anos a Alzheimer Portugal defende a necessidade urgente da criação de um Plano Nacional para as demências. Em 2013, quando o número de pessoas 19 Leia-se, sobre o assunto, o Site Alzheimer Europe disponível em: http://www.alzheimereurope.org/ acessado em 05.05.2014 20Para consultar e conferir simetrias e assimetrias nos Planos Nacionais de luta contra o Alzheimer, os autores sugerem o acesso ao banco de dados que consta no site: www. maldealzheimer.wordpress.com. Mais precisamente, examine-se: www.maldealzheimer. wordpress.com/2012/-centreforhealthybrainageing.com acessado em: 05.05.2014. 21 O planejamento das políticas públicas em saúde permite o seu periódico ajuste para atingir a correta adequação à dinâmica de transformações características da relação entre sociedade e saúde. Caso haja interesse na análise do Plano Nacional quinquenal de luta contra o Alzheimer adotado na França, no período de 2008 a 2012, o documento pode ser encontrado no site: sante.gouv.fr do Ministère des Affaires Sociales de la Santé. A este respeito, veja-se: disponível em: http://www.sante.gouv.fr/le-plan-alzheimer-2008-2012,972.html acessado em 07.05.2014. 144 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi acometidas por demência no país girava em mais de 153.000, dos quais mais de 90.000 com Alzheimer, o Presidente do Conselho Nacional de Saúde Mental, António Leuschner, teria afirmado que finalmente, em 2014, este Plano seria uma realidade. Trata-se de uma resposta aos sucessivos convites do Parlamento Europeu e da Comissão Europeia aos governos nacionais para que criem Planos ou Estratégias Nacionais para as demências, não se podendo negar também as iniciativas realizadas a nível nacional pela Alzheimer Portugal e pelo próprio Parlamento Nacional.22 Os EUA admitiram a necessidade de uma estratégia nacional de luta contra o Alzheimer, uma das enfermidades mais temidas e custosas nesse país, sendo a sexta causa principal de morte entre os americanos. Em 2010, o Congresso aprovou, por unanimidade, o Projeto de Lei Nacional Alzheimer (PL 111-375), que instituiu o Departamento de Saúde e Serviços Humanos para desenvolver um plano específico para a doença. Atualmente, existe um Plano Nacional de Alzheimer, que é atualizado anualmente. Em 2014, os custos de atenção foram estimados em 172 milhões de dólares, com a previsão de um gasto superior a 1 trilhão de dólares em 2050. Ainda neste ano, foi introduzido o Accountability Act de Alzheimer, visando garantir que o Congresso estará equipado com a melhor informação possível para definir as prioridades de financiamento e alcançar a meta do Plano Nacional de Morada Doença de Alzheimer, voltado para o propósito de que a prevenção e o tratamento da doença se deem de forma eficaz até 2025. O Accountability Act Alzheimer autoriza os Institutos Nacionais de Saúde a apresentarem julgamentos profissionais, justificando a necessidade de financiamento da pesquisa crítica do Alzheimer.23 No Canadá, em 2014, seriam 747.000 canadenses afetados pelo Alzheimer ou doenças aparentadas. As estimativas são de que, se nada for feito a este 22A parceria entre instituição pública e organizações privadas tem se mostrado fértil no desenvolvimento e disseminação dos modelos de políticas públicas, no setor de saúde. Países de menor desenvolvimento econômico e social relativo, como é o caso de Portugal, têm aproveitado esse contexto para se equipararem com Estados tradicionalmente pioneiros na implementação de políticas públicas, nesta área. A este respeito, é válido conferir as notícias do site da Alzheimer Portugal. Sugere-se a leitura do sítio: http://www.alz.org/news_and_ events_alzheimers_accountability_act.asp acessado em 05.05.2014. 23 Este instrumento facilita a alavancagem financeira da pesquisa científica, na área de saúde, prioritariamente da terceira idade. Estas notícias estão disponíveis no site da Alzheimer’s Association. volume 06 145 i encontro de internacionalização do conpedi respeito, tais patologias vitimarão 1,4 milhão de canadenses em 2031, chegando os custos econômicos a 293 milhões de dólares em 2040. Segundo declaração da Société Alzheimer Society, o plano nacional de combate ao Alzheimer e doenças aparentadas deve fazer parte das prioridades do orçamento federal. A chefe da direção da Société Alzheimer Canadá, Mimi Lowi-Young, demandará ao governo 3 milhões de dólares para a formação de uma parceria canadense contra o Alzheimer e doenças assemelhadas, reunindo líderes de opinião, governantes e os porta-vozes e setores da saúde, pesquisa, academia e indústria para conseguir implementar um Plano Nacional contra o Alzheimer.24 Na Argentina, estima-se que aproximadamente 500.000 pessoas tenham Alzheimer, acreditando-se que haverá um aumento exponencial deste número nos próximos anos, sendo o problema entendido como uma questão a ser observada pelos setores de saúde pública. No Chile, em 2012, a Corporação Profissional Alzheimer e outras demências e a Sociedade Neurologia, Neurocirurgia e Psiquiatria iniciaram uma campanha de recolhimento de assinaturas para sensibilizar as autoridades e pedir-lhes o desenvolvimento de um plano de políticas públicas de atenção aos doentes com Alzheimer. Esta é a quarta causa de morte neste país, afetando diretamente 180.000 pessoas e seus núcleos familiares. Em notícia da Alzheimer’s Internacional, datada de 2013, se teve conhecimento que uma lei peruana teria dado início a um Plano Nacional de Demência, sendo o Peru o primeiro país da América Latina a adotar uma estratégia deste tipo.25 24 Os dados acima foram obtidos no site da Société Alzheimer Society. Leia-se: Dados da Société Alzheimer Society disponíveis em: http://www.alzheimer.ca/~/media/Files/national/ Media-releases/asc_release_01152014_pre-budget_f.ashx acessado em 05.05.2014. 25 O levantamento de dados e as informações sobre os avanços recentes na luta contra o mal de Alzheimer na América Latina foi realizado a partir de consultas realizadas pelos autores, no período de março, abril e maio de 2014, nos sites da Corporación Profesional Alzheimer y otras demencias (COPRAD), da Revista Chilena de Salud Publica, da Revista Argentina Alzheimer y otros trastornos cognitivos e da Alzheimer’s Disease International. Mais precisamente nos sítios: Site Corporación Profesional Alzheimer y otras demencias (COPRAD) disponível em: http://neurologiacognitiva.cl/coprad/plan-nacional/ acessado em 05.05.2014; Site Revista Chilena de Salud Publica disponível em: http://pt.scribd.com/doc/144665136/RevistaChilena-de-Salud-Publica-Vol-17-No-1-2013 acessado em 06.05.2014; Site Revista Argentina Alzheimer y otros trastornos cognitivos disponível em: www.alzheimer.org.ar/revista15.pdf acessado em 05.05.2014, Notícias Alzheimer’s Disease International disponíveis em: http:// www.alz.co.uk/news/national-dementia-plan-confirmed-for-peru acessado em 07.05.2014. 146 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi Sobre a realidade dos idosos na América Latina, estudos apontam a presença da desigualdade social em saúde, tais diferenças seriam associadas à diversidade no estágio e na velocidade da mudança demográfica e nos indicadores socioeconômicos dos respectivos países. Os resultados refletem as diferenças no nível de desenvolvimento e no processo de transição demográfico verificadas entre países latino-americanos, bem como a desigualdade de renda observada a nível nacional. (Noronha; Andrade, 2004:12). Diante do contexto sociocultural da América Latina, afirma-se que o fenômeno do envelhecimento populacional assume características distintas daquelas que vem ocorrendo nos países mais desenvolvidos. Nos países latinoamericanos, a situação social, política e econômica resulta em perigo para a qualidade do atendimento dos idosos, sendo insuficiente o suporte fornecido (Bulla; Tsuruzono, 2010:104). O Mercosul possui motivações sobretudo econômicas, a despeito do que determina o art. 4º da Constituição Brasileira em matéria de integração regional na América Latina. No entanto, é possível afirmar existirem realizações em diferentes políticas públicas. Dentre elas, as da área de saúde, que é uma temática para a qual são destinados dois foros específicos: a Reunião de Ministros de Saúde (RMS) e o Subgrupo de Trabalho 11 Saúde (SGT 11 Saúde). Seus temas de trabalhos são os assuntos considerados prioritários e os interesses em comum. A ótica prevalentemente comercial faz com que temas relativos às políticas sociais se desenvolvam lentamente e subordinados à eliminação de barreiras e à circulação de produtos (Queiroz; Giovanella, 2011:188). Em 2012, países do Mercosul criaram sua primeira rede de investigação em biomedicina. O projeto terá duração de três anos e aborda de forma coordenada os aspectos biológicos, epidemiológicos e sociológicos de doenças degenerativas da região. Parte do financiamento advém do Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (Focem), órgão voltado para a redução das assimetrias regionais. Tomarão a frente da experiência: a Fiocruz (Brasil); o Instituto de Investigação em Biomedicina de Buenos Aires (Conicet-Max Plank, Argentina); o Instituto Pasteur de Montevidéu; o Laboratório Central de Saúde Pública do Ministério da Saúde do Paraguai (LCSP) e centros associados (Instituto de Investigações em Ciências de Saúde/Universidade Nacional de Assunção e o Centro para volume 06 147 i encontro de internacionalização do conpedi o Desenvolvimento da Investigação Científica). Dentre as doenças a serem estudadas, está o Alzheimer.26 O Brasil surge como país que está envelhecendo e necessitando se preparar com políticas públicas de atenção aos idosos. Aqui, não é diferente do que se viu em outros países, pelo menos no que tange à afirmação de que o crescimento populacional é acompanhado pela incidência significativa de casos de enfermidades crônico-degenerativas, como o Alzheimer. Os direitos do idoso aparecem garantidos por leis, porém não na prática. Ainda é precário o suporte dado aos idosos, com problemas de saúde e acometidos de demência. Em média, 25% dos idosos presentes, em entidades asilares brasileiras, é composto por pessoas acometidas de demência. Necessário adotar estratégias para proteger os interesses desses idosos. Nesse particular, há quem difira o idoso dependente do idoso frágil, sendo certo que a situação deste último surge como ainda mais preocupante. Diz-se que, enquanto o idoso dependente é o que possui algumas limitações para certas atividades básicas da vida diária, o idoso frágil seria o que, pelas condições de vida ou sobrevivência, simplesmente não tem forças para reagir relativamente a situações de perigo, como as de violência física ou psicológica (Bulla; Tsuruzono, 2010:108). As famílias, tradicionalmente as cuidadoras desses idosos, sofreram mudanças. A inclusão da mulher no mercado de trabalho, a redução de tamanho das residências e o ritmo do cotidiano das cidades contribuíram para que não se saiba quem cuidará do idoso. Pensa-se em institucionalizá-lo, numa instituição de longa permanência. Com isso, não se afastará a responsabilidade da família, cuja participação é de fundamental importância, ainda mais em se tratando de um idoso dependente (ou frágil). A situação é complexa, havendo grande stress familiar daqueles que cuidam do idoso, o que pode vir a ensejar a união da 26 O nosso bloco sub regional, o mercado comum do sul, tem avançado, recentemente, na integração das redes de investigação em ciência, confirmando uma tendência global, como já foi anteriormente explicado. Para mais informações sobre a Rede de Investigação em Biomedicina constituída pelos países do Mercosul, os autores sugerem se examine o site da Agência Fiocruz de Notícias. Recomenda-se a leitura no sítio: AGÊNCIA FIOCRUZ DE NOTÍCIAS disponível em: https://www.agencia.fiocruz.br/semin%C3%A1rio-fiocruzaviesan-novos-caminhos-para-tratamento-de-alzheimer-parkinson-e-depress%C3%A3o acessado em 05.05.2014. 148 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi família para dar cabo do problema ou, ao revés, a desagregação familiar. Muitas vezes, opta-se pelo cuidador não familiar, solução cercada de alto custo. (Bulla; Tsuruzono, 2010:106). No que tange às instituições de longa permanência, normalmente, não têm estrutura física e operacional especializada para cuidar dos idosos com demência. São desprovidas da licença autorizadora do Ministério da Saúde para a prestação de serviços mais abalizados. Os cuidados prestados se dão de forma abnegada, com os recursos que possuem, sem auxílio metodológico e recursos humanos da gestão de saúde do Poder Público. Há o fato de que, conforme maior o estado de dependência/fragilidade do idoso, mais caros os gastos. As entidades asilares sequer possuem a quantidade mínima necessária de cuidadores. Nesse contexto, a Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei nº10.216/2011) é desrespeitada, em especial o seu artigo 3º, de acordo com o qual é da responsabilidade do Estado o desenvolvimento de uma política de saúde mental, assistência e promoção de ações de saúde aos portadores de transtorno mental, com a devida participação da sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde mental, isto é, instituições ou unidades que ofereçam assistência em saúde. A Lei de Política Nacional do Idoso e o Estatuto do Idoso também são desrespeitados, atentando-se contra a dignidade humana dos idosos. A discussão sobre a implantação de políticas públicas para idosos com demência e portadores de Alzheimer, em especial, ainda é residual. Sugere-se que o poder público brasileiro projete e construa centros geriátricos de saúde mental, com dois regimes: o de internato e o de centro-dia, a fim de se dar o tratamento adequado e especializado a essas pessoas, aí incluídas as que estão institucionalizados e as que ainda possuem vínculos familiares, plenos ou fragilizados. As entidades asilares poderiam melhorar o ambiente dos idosos residentes, que teriam maior tranquilidade, sendo menor a sobrecarga de trabalho para os funcionários. Argumenta-se que as políticas públicas de proteção social especial aos idosos devem levar em conta esta realidade, sendo preciso buscar a maior intersetorialidade entre a assistência social e a saúde. As universidades brasileiras deveriam investir nos estudos deste segmento de idosos com demência (Stucchi, 2013:2). Destaca-se a importância de serem destinados mais recursos humanos no trato da questão. Salienta-se a necessidade de empreender esforços na capacitação das volume 06 149 i encontro de internacionalização do conpedi equipes de saúde, que deverão passar a considerar questões relevantes como a história de vida do idoso em tratamento e o respeito à diferença. Mais espaços de reflexão sobre o problema são também pensados. Além disso, como os diagnósticos das doenças neurodegenerativas (inclusive do mal de Alzheimer) costumam ser imprecisos e, dada a vantagem que adviria se houvesse um diagnóstico mais precoce da doença, acredita-se que é preciso um plano de ação voltado para a questão do diagnóstico. Este deverá considerar fatores como as singularidades do idoso, interpretando suas falas e avaliando a conduta dos familiares, identificando problemas e necessidades específicas (Bulla; Tsuruzono, 2010:108). No Brasil, existem programas e serviços de atendimento ao idoso, porém é fato que, comumente, a demanda ultrapassa a possibilidade de oferta pelo poder público. O funcionamento das distintas modalidades de serviço requer a realização de gastos econômicos consideráveis, sendo necessário ainda que haja uma criteriosa avaliação prévia do caso antes da indicação do serviço, além da já citada imprescindibilidade de uma formação de recursos humanos profissionalmente mais preparados. A situação é de urgência, sobretudo para o idoso com demência (em especial, pelo Alzheimer), apesar serem imperiosos tempo e interesse para se conferir a atenção digna e respeitosa à terceira idade (Bulla; Tsuruzono, 2010:110). Embora as doenças crônico-degenerativas afetem cada vez mais os idosos brasileiros, ainda não se tem uma resposta social à altura do problema. O que se pode notar são iniciativas isoladas. Em meio a estas, está o Programa de Assistência aos Portadores da Doença de Alzheimer (Portaria MS/GM nº 703, de 16 de abril de 2002), instituído no âmbito do Sistema Único de Saúde, devendo ser desenvolvido de forma articulada pelo Ministério da Saúde e pelas Secretarias de Saúde dos Estados, Distrito Federal e Municípios em cooperação com as redes estaduais de assistência e centros de referência em assistência à saúde do idoso. Os centros de referência integrantes da rede mencionada são tidos como os responsáveis pelo diagnóstico, tratamento e acompanhamento dos pacientes, bem como pela orientação a familiares e cuidadores e o que mais for necessário à adequada atenção aos doentes com Alzheimer. Determinou-se que a Secretaria de Assistência à Saúde estabelecesse o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para o tratamento do Alzheimer, incluindo os medicamentos utilizados no rol 150 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi dos medicamentos excepcionais e adotando as demais medidas necessárias ao fiel cumprimento desta Portaria.27 A Portaria MS/SAS nº 249/2002 aprovou as normas para cadastramento dos Centros de Referência em Assistência à Saúde do Idoso, determinando que o tratamento do Alzheimer devesse ser realizado conforme o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas publicados pela Secretaria de Assistência à Saúde. Este protocolo só veio a ser regulamentado em 2010, pela Portaria MS/SAS nº 491. Nele, consta o conceito geral de Alzheimer, critérios de diagnóstico, de inclusão e de exclusão, tratamento e mecanismos de regulação, controle e avaliação. É de caráter nacional e deve ser utilizado pelas Secretarias de Saúde dos Estados e dos Municípios na regulação do acesso assistencial, autorização, registro e ressarcimento dos procedimentos correspondentes. O protocolo preconiza o uso de determinados medicamentos para tratamento de Alzheimer.28 Louvável, porém modesto, o projeto de lei 751/11, da deputada Flávia Morais (PDT-GO), que propõe o aumento em 50% da aposentadoria ou pensão do idoso dependente/frágil, que só receba até um salário mínimo e tenha necessidade de ajuda cotidiana de terceiros.29 27 Ainda que possa ser considerada uma experiência isolada, o Programa de Assistência aos Portadores da Doença de Alzheimer (Portaria MS/GM nº 703, de 16 de abril de 2002), disponível no site SISAP IDOSO (Sistema de Indicadores de Saúde e Acompanhamento de Políticas do Idoso), se fundamenta no conceito de rede para ganhar capilaridade e dar conta da pluralidade de atores envolvidos na luta contra o mal de Alzheimer. Veja-se: a citada Portaria disponível em: http://www.saudeidoso.icict.fiocruz.br/index.php?pag=polit acessado em 06.05.2014. 28A abrangência do conteúdo desta norma revela como, mais recentemente, tem se seguido a tendência de um olhar holístico na luta contra a doença do mal de Alzheimer, incluindo não só os tratamentos como aspectos farmacológicos. Trata-se de um exemplo de interdisciplinariedade. A Portaria MS/SAS nº 491/2010 está disponível no site SISAP IDOSO (Sistema de Indicadores de Saúde e Acompanhamento de Políticas do Idoso). Sugere-se a leitura da citada Portaria disponível em: Portaria MS/SAS nº 491/2010 disponível em: http://www.saudeidoso.icict.fiocruz.br/index.php?pag=polit acessado em 06.05.2014. 29 No mesmo sentido, ao se tratar de um fator transversal, também são considerados aspectos próprios do direito previdenciário e da seguridade social. O PL 751/2011 pode ser encontrado na íntegra no site da Câmara dos Deputados. O Projeto está disponível em: http://www2.camara. leg.br/camaranoticias/noticias/TRABALHO-E-PREVIDENCIA/200672-PROJETOAUMENTA-APOSENTADORIA-E-PENSAO-PARA-IDOSO-DEPENDENTE.html acessado em 06.05.2014. volume 06 151 i encontro de internacionalização do conpedi 6.conclusões Conclui-se que as políticas públicas, inclusive as de saúde, voltadas para o idoso, não se originaram da efetiva preocupação com o ser humano e de um sentimento de solidariedade social. Ao contrário, partiram de uma inquietação provocada da percepção de que, com o envelhecimento populacional mundial, adviriam relevantes impactos econômicos sobre setores como o sistema de saúde e a previdência social. Por esse motivo, a solução encontrada foi a de recolocar o idoso no mercado de trabalho, sob a bandeira do que se passou a chamar de envelhecimento “ativo”, em detrimento de uma proposta focada no seu bemestar e condições pessoais, objetivando um envelhecimento “saudável” e “digno”. Afirma-se que o retorno ao trabalho, após a aposentadoria, seria uma “terapia”, o que é uma falácia, por trás da qual consta a preocupação mercadológica. A produtividade econômica e social dessas pessoas, particularmente daquelas que são vítimas do “envelhecimento do envelhecimento” se vê seriamente comprometida pela deterioração da saúde. Nesse momento, elas se tornam desinteressantes e até onerosas para a administração pública. Ao mesmo tempo, é possível atribuir a demora na adoção de medidas, na área de saúde para a terceira idade, e em especial, naquelas focadas em demência (como o mal de Alzheimer) ao desinteresse político eleitoral, por parte da administração pública e da representação legislativa. Assim sendo, certos aqueles que afirmam que as atuais políticas internacionais e nacionais de proteção social ao idoso configuram políticas que se encaixam no pragmatismo individualista e ignoram o princípio da solidariedade. São políticas de exploração do segmento idoso. Com elas, o que se tem em vista, em primeiro lugar, é a defesa do capital e, apenas, num segundo plano, a tutela dos interesses humanos. Insiste-se no conceito de envelhecimento “ativo”, abandonando qualquer tentativa de trabalhar na chave do envelhecimento “digno”. Basta pensar no fato de que sempre existiram idosos entre a população, mas só agora, quando numericamente passam a representar um número expressivo de pessoas, a elas foi conferida atenção, dado o risco que passaram a significar para o desenvolvimento da economia mundial. Em outras palavras, com isso, tem-se uma situação de verdadeiro desassossego para as sociedades capitalistas. A prova de que não há uma efetiva preocupação com o ser humano do idoso está no fato 152 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi de que, a despeito de existirem inúmeras e ótimas legislações, estas ainda surgem como meras cartas de intenções, sem eficácia. Isto é mais uma demonstração de que a atenção voltada para a terceira idade é originária da consideração de que o envelhecimento populacional extremado virá a ser um óbice ao desenvolvimento, na medida em que desviam recursos financeiros e humanos para um setor que não oferece o retorno proporcionado em termos de produtividade econômica. Outra evidência disso está no fato de que, no primeiro plano internacional de ação sobre o envelhecimento, se concluiu no sentido da imprescindibilidade de reconhecimento do idoso como ator social, “não eram desprezadas as suas necessidades e especificidades”. Resta se perguntar até onde o discurso normativo internacional é recepcionado na praxe da Administração Pública dos Estados, condicionados por interesses pragmáticos e imediatistas, que otimizam a alocação de recursos, fundamentalmente, para a promoção de interesses econômicos privados. Nessa situação, são extremamente preocupantes os dados que apontam para o flagrante crescimento do número de casos de doenças crônicas como o Alzheimer, entre os idosos. Trata-se de verdadeira epidemia, que atinge a população mundial (aí incluída a brasileira), sem que as organizações internacionais e os governos nacionais estejam preparados para resolvê-la. É premente a necessidade da adoção de políticas públicas concretas focadas na eficiência operacional e na dignidade do idoso. Esta, sem dúvida, é uma situação especial e que, por essa razão, demanda uma política pública específica, com diretrizes próprias para solucionar o problema. Diante da incidência considerável do Alzheimer no Brasil, necessário adotar medidas, destinando recursos, para melhor organizar a assistência aos doentes, em todos os aspectos envolvidos. Assim sendo, a exemplo do que vem ocorrendo em outros países, considera-se que seria muito importante que o Brasil elaborasse um Plano Brasileiro de Combate ao Alzheimer, adequado às condições sociais, políticas, econômicas e culturais da sociedade brasileira. Para tanto, seria de fundamental relevância o apoio dos gestores federais, estaduais e municipais; da Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAZ) e seus associados; das instituições privadas e públicas; da sociedade brasileira. Este plano teria por objetivos juntar forças para: reunir condições para um diagnóstico mais precoce; otimizar a saúde volume 06 153 i encontro de internacionalização do conpedi física, cognitiva e o bem-estar do doente; a proteção e o tratamento de doenças psíquicas concomitantes; a detecção e o tratamento de sintomas psicológicos e comportamentais; a prestação de informações e apoio a longo prazo para aqueles que prestam os cuidados. As grandes orientações desse plano seriam: o reforço da dimensão ética no apoio aos acometidos pela doença; o desenvolvimento de pesquisas médicas a seu respeito; a simplificação e a melhora do curso da doença para aquele que é por ela afetado e para a sua família, em todas as dimensões possíveis; a melhora das condições para um diagnóstico mais precoce da patologia. Além disso, seria desejável que o Mercosul acelerasse sua cooperação na luta contra esta patologia e empreendesse uma reação regional de combate ao Alzheimer e demências associadas. Finalmente, considerando que o envelhecimento populacional é uma questão atual e global, tendo ficado evidenciado que, com o envelhecer aumenta e muito a incidência destas doenças, almeja-se que uma reação mundial efetiva para o problema ainda venha a ocorrer. 7.referências AGÊNCIA FIOCRUZ DE NOTÍCIAS disponível em: https://www.agencia. fiocruz.br/semin%C3%A1rio-fiocruz-aviesan-novos-caminhos-paratratamento-de-alzheimer-parkinson-e-depress%C3%A3o acessado em 05.05.2014. ALMEIDA, Osvaldo Pereira de. Demência. In: Prática psiquiátrica no hospital geral: interconsulta e emergência. Org.: BOTEGA, Neury José. 3ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2012. ALZHEIMER’S ASSOCIATION disponível em : http://www.alz.org/news_ and_events_alzheimers_accountability_act.asp acessado em 05.05.2014. ARGENTINA. Constituição da Argentina. disponível em: http://pdba. georgetown.edu/Constitutions/Argentina/argen94.html acessado em 05.05.2014. BARBOZA, Heloisa Helena. O princípio do melhor interesse do idoso. 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A partir da observação comparada entre os discursos empregados nos debates legislativos que desencadearam alterações no texto constitucional expandindo os efeitos das decisões do STF e dos dados levantados pela pesquisa “A quem interessa o controle concentrado de constitucionalidade?”, este artigo busca analisar como esse deslocamento pode ser compreendido menos como uma consequência metodológica de racionalização da atividade judicial e mais como uma construção histórica, cuja influência de fatores externos, especialmente políticos, levantam dúvidas sobre o prevalecente argumento do ganho de racionalidade e eficácia do 1 Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Credenciado nos programas de pós-graduação em Ciência Política e em Direito. Doutor em Direito (2008), Mestre em Direito e Estado (1999) e Bacharel em Direito (1996) pela UnB. Coordenador do Grupo de Pesquisa em Política e Direito. 2 Doutorando em Direito pela Universidade de Brasília/UnB, mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito do Recife/UFPE (2011) e bacharel pela Universidade Católica de Pernambuco (2003). Realizou estágio de doutoramento (doutorado sanduíche) no Departamento de Direito da Universitat Pompeu Fabra (2014-2015). Tem interesse de pesquisa na área do direito constitucional e da sociologia do direito, com enfoque na teoria da constituição, direitos fundamentais, jurisdição constitucional, controle concentrado de constitucionalidade e no funcionamento do sistema de justiça no Brasil. É integrante da carreira de procurador federal (Advocacia-Geral da União). volume 06 161 i encontro de internacionalização do conpedi controle concentrado, além da justificativa frequentemente a ele associado: o da defesa dos direitos fundamentais e do regime democrático. Palavras-chave Supremo Tribunal Federal; Controle Concentrado; Direitos Fundamentais. Abstract Common point between the analyzes devoted to the functioning of the constitutional adjudication in Brazil has been the observation of gradual movement towards concentration of power to interpret the Constitution in the Supreme Court, by assigning the binding and erga omnes effects. However, in general, this movement has been reported focused parameters under the assumption expansion of legal certainty and gain efficiency in the context of the increasing demand of the Judiciary. From the observation compared among discourses employees in legislative debates that triggered changes in the Constitution expanding the effects of the Supreme Court decisions and the data collected by the research “Who cares concentrated control of constitutionality?”, This paper analyzes how this shift can be understood less as a result of methodological reasoning of judicial activity and more like a historical construction, whose external influence, especially by political factors raise doubts about the prevailing argument of gain rationality and effectiveness of concentrated control, beyond the justification often associated with it: the defense of fundamental rights and the democratic regime. Key words Supremo Tribunal Federal; Concentrated Control; Fundamental Rights. 1.introdução Desde a implantação da representação por inconstitucionalidade, em 1965, a jurisdição constitucional brasileira tem sido marcada por um gradual processo de concentração decisória no Supremo Tribunal Federal. Ao longo desses quase cinquenta anos, variadas mudanças constitucionais, legislativas e jurisprudenciais alteraram as estruturas formais do controle de constitucionalidade, quase sempre movidas pelo discurso de que era preciso enfrentar a crise decorrente de que o 162 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi poder judiciário precisava julgar um número de ações e recursos superior a sua capacidade de processamento. Todas essas realizadas em nome de garantias de eficiência e racionalização, mas a estratégia adotada em cada um desses momentos foi sepre a mesma: concentrar poderes no STF, de modo a que menos decisões pudessem solucionar mais processos. Essa paulatina concentração enfrentou obstáculos em cada momento de mudança, visto que o modelo concentrado tipicamente exige decisões judiciais com efeito vinculante, o que sempre causou tensões com nossa tradição civilista, em que o poder judiciário lidava basicamente com questões privadas e seus provimentos tinham efeitos inter partes. Contrapondo-se a essa tradição, todo movimento de centralização decisória implicou uma maior vinculatividade das decisões do controle concentrado, mas o equilíbrio encontrado em cada momento histórico tendia a restringir essa capacidade vinculante, harmonizando-a com o sistema de civil law. Ao longo do tempo, contudo, essas resistências foram cedendo e as decisões em controle concentrado conquistaram efeitos cada vez mais amplos. Elas começaram com efeito meramente declaratório, em uma sistemática na qual os efeitos constitutivos adviriam apenas do ato do Senado que suspendia a execução da norma julgada inconstitucional. Em 1977, essas decisões ganharam efeitos erga omnes, pois se passou a entender que a norma declarada inconstitucional não precisaria ter sua execução suspensa pelo Senado. Em 1993 foi introduzida a ADC com efeito vinculante, em 1998 a legislação conferiu ao STF o direito de modular o efeito ex tunc das declarações de inconstitucionalidade, em 2004 as ADIs adquiriram efeito vinculante e foram criadas as súmulas vinculantes. Por fim, em 2013, o STF entendeu que as decisões de controle difuso teriam efeitos erga omnes e atualmente está em curso uma mudança tendente a reconhecer a possibilidade de modulação de efeitos também no controle difuso. Esse movimento de ampliação dos efeitos foi acompanhado também por uma transformação que ampliou os limites do controle concentrado, fortalecendo a autoridade do STF para na fixação da interpretação constitucional e na seleção dos casos que ele próprio deve julgar. A própria Constituição de 1988 reforçou a concentração da jurisdição constitucional com a introdução de inovações que ampliaram o acesso à ação direta de inconstitucionalidade e a ação direta por volume 06 163 i encontro de internacionalização do conpedi omissão e o mandado de injunção. Essa concentração foi bastante reforçada pela introdução jurisprudencial do requisito de “pertinência temática”, que vedou a atuação das entidades corporativas e dos governadores de estado e impediu que elas atuassem em causas voltadas à garantia do interesse coletivo. Tal processo se acentuou com a introdução, pela Emenda Constitucional 3/1993, da ação declaratória de constitucionalidade e da arguição por descumprimento de preceito fundamental e com a gradual consolidação, na década de 1990, da utilização do instituto de “interpretação conforme”, que conferiu ao STF a possibilidade de definir interpretações vinculantes. Outros marcos importantes desse processo foram a reforma do judiciário realizada pela Emenda à Constituição 45/2004, que instituiu as súmulas vinculantes e a repercussão geral, e também a mudança jurisprudencial que, no julgamento do MI 607/ES, em 2007, adotou um maior ativismo no julgamento dos mandados de Injunção. Esse conjunto de modificações inclusive foi um dos motivos apresentados na recente atribuição de validade erga omnes às decisões de controle difuso feita no julgamento da Reclamação 4.335, em cuja decisão o min. Teori Zavaski justificou a exclusão do Senado desse processo sob o argumento de que “está se universalizando por força de todo um conjunto normativo constitucional e infraconstitucional direcionado a conferir racionalidade e efetividade às decisões dos Tribunais Superiores e especialmente à Suprema Corte” (STF, RCL 4.335). Essa atribuição ao controle difuso de efeitos semelhantes aos do controle abstrato tem sido interpretada como uma forma de abstrativização do controle difuso, denominação que decorre do fato de que a jurisdição constitucional brasileira tradicionalmente envolveu uma combinação de controle judicial concentrado abstrato com efeitos erga omnes e controle judicial difuso concreto com efeitos inter partes. Tal combinação de concentração e abstração não é necessária e sequer é típica, visto que o próprio modelo austríaco, paradigma do controle exercido por Cortes Constitucionais, opera normalmente pela via concreta dos incidentes de inconstitucionalidade (Kucsko-Stadlmayer, 2012). Tampouco é típica a combinação de controle difuso e efeitos inter partes, visto que esse sistema foi desenvolvido no sistema de common law, onde a regra do stare decisis confere 164 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi efeito vinculante para a decisão com relação à mesma corte e aos órgãos judiciais de menor hierarquia. No Brasil, a combinação de controle concentrado e abstrato foi uma forma combinar o caráter inter partes das decisões de civil law com a necessidade de efeitos gerais, mas sem introduzir elementos de vinculação jurisprudencial que eram estranhos ao nosso ordenamento. Com isso, em vez de incluir uma regra de stare decisis que conferiria efeito vinculante à decisão, optou-se por apenas de entender que a decisão excluía a norma do ordenamento com efeitos ex tunc. De toda forma, devemos diferenciar os movimentos de concentração, que tendem a restringir a apreciação de constitucionalidade a um órgão, e os movimentos de abstração, que tendem impugnar diretamente a validade das normas sem que elas estejam inseridas no contexto de uma demanda concreto. Feita essa distinção, parece mais adequado entender alguns dos processos atuais de mudança na jurisdição constitucional a partir de quatro eixos de análise. Em primeiro lugar, temos o eixo vinculante, cuja função seria estabelecer de intensificar a vinculação às decisões do STF com relação aos os demais órgãos judiciais e a Administração Pública, e está ligado especialmente à atribuição de eveitos vinculantes às decisões em ADI e de efeitos erga omnes às decisões de controle difuso. Além disso, temos o eixo concentrador, voltado a reforçar o papel do STF, especialmente por meio da algutinação da demanda surgida dos casos concretos para que eles sejam resolvidos conjuntamente por decisões do Tribunal, evitando o trâmite de processos que tratem de assuntos sob julgamento do STF, tendo em vista que em o instituto da repercussão geral acarreta o sobrestamento das demandas. Há também o eixo abstrativante, que tem uma dimensão concentradora (visto que o controle abstrato é sempre concentrado no Brasil), mas que é marcado especialmente pelo reforço de estratégias de julgamentos abstratos em processos com legitimidade restrita, como ocorreu com a criação da Ação Declaratória de Constitucionalidade. O último eixo é o monocrático, que tende a deslocar o julgamento dos processos para decisões monocráticas. Embora as declarações de inconstitucionalidade dependam de quorum qualificado, o que impede decisões monocráticas de procedência, as decisões de improcedência muitas vezes são tomadas pelo relator, por causa (ou a pretexto) da possibilidade de extinção monocrática de processos, que se acentuou a partir da década de volume 06 165 i encontro de internacionalização do conpedi 1970, quando esta possibilidade foi ampliada pela edição de um novo Regimento Interno do STF. As manifestações desse movimento e suas consequências não constituem uma novidade no ordenamento jurídico brasileiro. Vários eventos políticos se fizeram refletir no modo de compreensão da função da jurisdição constitucional e do papel do Supremo Tribunal Federal no arranjo das instituições incumbidas de interpretar a Constituição. Ocorre que apesar de não se constituir propriamente numa inovação, em geral, esse adensamento de competências tem sido avaliado apenas sob os parâmetros da suposição de segurança jurídica e do ganho de eficácia que tais instrumentos proporcionariam ao desempenho da Corte, naturalizando-se, por outro lado, a hipótese de que o Poder Judiciário funciona tanto melhor quanto mais padronizada e generalizante for a jurisprudência constitucional produzida pelo STF. Nesse ponto, parece vigorar uma espécie de lógica intrínseca, cuja promessa de êxito se justifica na segura aparência da redução de riscos e conflitos. A partir da observação dos dados levantados pela pesquisa “A quem interessa o controle concentrado de constitucionalidade?”3, este artigo buscará examinar como as vertentes desse movimento de concentração do controle de constitucionalidade no STF podem ser avaliadas menos como uma consequência metodológica de racionalização da atividade judicial e mais como uma construção histórica, cuja influência de fatores políticos levantam dúvidas sobre o prevalecente argumento do ganho de racionalidade e eficácia do controle concentrado. Orientando-se por uma perspectiva de observação das relações entre poder e direito4, o propósito será o de destacar os discursos justificadores da criação progressiva de tantos mecanismos de controle abstrato de constitucionalidade no 3 COSTA, Alexandre & BENVINDO, Juliano (2014). A Quem Interessa o Controle Concentrado de Constitucionalidade? O Descompasso entre Teoria e Prática na Defesa dos Direitos Fundamentais. Pesquisa financiada pelo CNPq. Brasília: Universidade de Brasília. Relatório e gráficos disponíveis: http://fd.unb.br/images/stories/FD/Eventos_e_Noticias/ Relatório_Divulgacao_-_Pesquisa_CNPq.pdf 4 Esse é um ponto frequente na literatura sobre a legitimidade do exercício da função judicial nas democracias constitucionais, acompanhado das observações sobre o crescente papel da gestão burocrática da cidadania através da técnica juridica (GARAPON, 1996, p. 53) ou de uma falsa autocompreensão metodológica do controle judicial das Cortes no pós-guerra, que as levaria a uma concorrência com o papel do legislador (HABERMAS, 2012, p. 314 ss; MAUS, 2000, p. 185 e 2010, p. 18). 166 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi Tribunal, considerando que esse deslocamento também implica a transferência da autoridade das instâncias legislativa e executiva para um foro não submetido à eleição periódica. Ou seja, que razões seriam estrategicamente articuladas para que as esferas do poder político sujeitas ao influxo do voto popular reduzissem sua própria discricionariedade, optando pela crescente judicialização de questões políticas diretamente no Supremo Tribunal Federal. Para tanto, o esforço será o de mapear os discursos empregados nos debates legislativos que desencadearam alterações no texto constitucional no sentido de expandir a jurisdição do Supremo, desde a adoção do primeiro instrumento processual de objeção contra lei ou ato normativo por via direta (a representação de inconstitucionalidade, introduzida pela EC 16/1965), até a Reforma do Judiciário promovida pela EC 45/2004. Do confronto entre os debates parlamentares e os dados colhidos na pesquisa, pretende-se avaliar a adequação dessa mudança do perfil de atuação da Corte com um discurso frequentemente a ela associado: o da defesa dos direitos fundamentais e do regime democrático. 2.a emenda constitucional 16/1965 e a representação de inconstitucionalidade O primeiro instrumento processual hábil à provocar a manifestação direta do Supremo Tribunal Federal para fins de fiscalização normativa independentemente da apreciação de um caso concreto foi a representação de inconstitucionalidade criada pela Emenda Constitucional 16, de 26 de novembro de 1965. Essa dupla introdução do controle abstrato e do concentrado foi realizada mediante uma modificação no art. 101, I, alínea k, da Constituição de 1946, acrescentando entre as competências originárias do Supremo Tribunal Federal o julgamento da “repre­sentação contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual, encaminhada pelo Procurador-Geral da República”. Além disso, foi estabelecida a possibilidade de o legislador estadual instituir processo de competência originária dos Tribunais de Justiça para a declaração de in­constitucionalidade de leis estaduais ou municipais em conflito com a Constituição do Estado-membro. volume 06 167 i encontro de internacionalização do conpedi A alteração se deu no contexto da reforma judiciária promovida pelo Ato Institucional 2 (AI-2), de 27 de outubro de 1965, um dos mais marcantes na institucionalização do Golpe Militar de 1964 que, manteve a Constituição Federal de 1946, as Constituições Estaduais e respectivas Emendas, “com as alterações introduzidas pelo Poder Constituinte originário da Revolução de 31.03.1964”. O regime militar fez uma peculiar utilização da ideia de poder constituinte, afirmando no AI-1, de 9 de abril de 1964, que “a revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte”, mas de um poder constituinte que não se limitava a estabelecer uma constiuição. Contrariando a tese de que a revolução é realizada pelo povo, o AI-2 indica que o povo limitou-se a inspirar a Revolução, que seria “um movimento que veio da inspiração do povo brasileiro para atender às suas aspirações mais legítimas: erradicar uma situação e um Governo que afundavam o País na corrupção e na subversão”. E de modo bastante peculiar, o AI-2 afirmou que o regime instaurado era de uma revolução dotada de poder constituinte permanente, uma revolução que “está viva e não retrocede” e que não perdeu o caráter revolucionário pela instituição do AI-1, pois nesse ato “não se diz que a revolução foi, mas que continuará. Assim, o seu Poder Constituinte não se exauriu”. Essa instituição de um poder constituinte permanente, que implica a afirmação de um governo revolucionário soberano é exatamente o oposto da afirmação constitucionalista de um povo soberano com um governo limitado. Portanto, não se pode falar propriamente de controle de constitucionalidade naquele período, pois a existência de uma revolução soberana afastava a possiblidade de considerar suprema uma constituição que poderia ser alterada a qualquer tempo pelo governo dito revolucionário. Destituído o governo anterior pela revolução, “só a esta cabe ditar as normas e os processos de constituição do novo Governo e atribuir-lhe os poderes ou os instrumentos jurídicos que lhe assegurem o exercício do poder no exclusivo interesse do País”. Essa afirmação de soberania do governo revolucionário era voltada a justificar uma dura intervenção na organização dos poderes, que é o núcleo da noção de constituição vigente desde a revolução americana. No que toca ao judiciário, o AI 02 aumentou o número de ministros do STF de onze para dezesseis; estabeleceu que os juízes federais e os do antigo Tribunal Federal de Recursos seriam nomeados 168 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi pelo Presidente da República; excluiu de apreciação judicial os atos praticados pelo “Comando Supremo da Revolução e pelo Governo Federal”, assim como os atos de cassação de mandato ou impedimento de parlamentares, governadores e prefeitos; e por fim, ampliou a competência da Justiça Militar para estendê-la aos civis na repressão aos crimes “contra a segurança nacional ou as instituições militares”, prevalecendo sobre qualquer outra prevista em leis ordinárias. Nese contexto de medidas de centralização política e de subordinação da atividade judicial ao Executivo, não causa espanto que uma das medidas adotadas na reforma constitucional que se seguiu ao AI-2 tenha sido justamente a de criar um mecanismo de controle centralizado que somente poderia ser mobilizado pelo Procurador-Geral da República, ou seja, pela autoridade indicada pelo Presidente da República para atuar como chefe da advocacia pública federal. Nesse documento, houve uma mudança de tom com relação ao AI-2, que alterou a configuração do judiciário por meio de uma autoridade que era exercida por investidura, e não por representação, e que não entendia ser necessário se justificar a ninguém porque “se legitima a si mesma”. Na justificativa apresentada pelo ministro da Justiça na apresentação do projeto de emenda constitucional 06, que deu origem à EC 16/1965, a atuação governamental passa a agregar também um elemento de justificação técnica por indicar que a proposta estava baseada no trabalho de uma comissão de juristas, entre eles: José Frederico Marques, Colombo de Souza, Orozimbo Nonato, José Eduardo Prado Kelly e Dario de Almeida Magalhães, além de entidades representativas da magistratura e da advocacia. Além disso, não se tratava de redefinir a estrutura política do judiciário, mas de conferir eficiência a esta instituição, sendo um dos pontos de destaque a preocupação com o acúmulo de processos a exigir decisão do Supremo Tribunal Federal. O trabalho da comissão orientou-se pela “necessidade, realmente imperiosa, de apressar a solução dos litígios nas instâncias superiores”, conforme exposto no projeto, que chegou a demonstrar a sobrecarga com estatísticas: Na alta Côrte os recursos extraordinários já passam de 58.000; os agravos, de 35.000; os mandados de segurança, de 15.000; os habeas corpus, de 42.000; um acervo de 150.000 causas! Um esfôrço despendido no julgamento delas excede as possibilidades volume 06 169 i encontro de internacionalização do conpedi humanas, ao atingirem a cifra anual (como em 1964) de 7.849 feitos terá tocado a cada Ministro relatar cêrca de oitocentas causas; e, dividindo-se êsse número pelos dias - menos de trezentos - concluiremos que a média diária para o estudo individual foi de três processos, nas escassas horas disponíveis antes e depois das sessões. Os dados movem à surpresa, ao refletirmos que, no período de um ano, a produção total da Côrte Suprema dos Estados Unidos vai pouco além de mil decisões.5 O período dos cinco anos anteriores ao projeto é tomado aqui como referência de análise6: Ano Distribuídos Julgados Saldo anual 1960 6.504 6.886 -382 1961 6.751 7.436 -685 1962 7.705 6.881 824 1963 8.216 7.849 367 1964 8.960 6.241 2.719 Total 38.136 35.293 2.843 Essas informações indicam há mais de 50 anos já existe o diagnóstico do descompasso entre o número de processos ajuizados no STF e a capacidade de julgá-los, o que desde então tem motivado reformas constitucionais e legislativas dirigidas a enfrentar esse problema. Além disso, as estratégias propostas também parecem recorrentes, inclusive tendo sido implementadas na última década algumas das ideias propostas na década de 60, pois uma das sugestões da comissão, que foi não acolhida na redação final, era a instituição de uma comissão, na instância recorrida, responsável pela análise de prejudicialidade dos recursos extraordinários, com competência para certificar a “alta relevância da questão federal suscitada”. Uma espécie asseme5 BRASIL. Presidência da República. Mensagem nº 19, de 1965. Encaminha o Projeto de Emenda Constitucional nº 6 ao Congresso Nacional. 6 Os dados estatísticos sobre o quantitativo da demanda utilizados neste tópico, assim como nos tópicos 2 e 3, foram gentilmente fornecidos pela Central do Cidadão do STF. 170 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi lhada ao atual sistema da repercussão geral, com inspiração no writ of certiorari norte-americano, mas não acatada pela consideração das distintas compreensões sobre os métodos do common law e do formalismo processual de tradição romana, da qual o Brasil foi herdeiro. O receio da insegurança dos jurisdicionados à percepção de que o desfecho dos casos não estivesse diretamente relacionado à lei, mas dependesse de “critérios subjetivos, embora respeitáveis, mas sempre incertos e contingentes, na admissão do último apelo”, foram as razões apontadas para a rejeição. Outras alternativas foram cogitadas à época, como a subordinação do recurso extraordinário ao prévio julgamento de ação rescisória7 que envolvesse violação à lei federal ou tratado; a restrição do conhecimento dos mandados de segurança aos que versassem sobre “questão federal de alta relevância”, além da transferência da competência para julgamento dos crimes políticos ao antigo Tribunal Federal de Recursos, salvo os casos de foro por prerrogativa de função. No controle judicial de constitucionalidade, a principal inovação foi a instituição da representação de inconstitucionalidade contra lei federal em tese, de iniciativa exclusiva do Procurador-Geral da República, incorporando um instrumento já utilizado contra leis estaduais para fins de intervenção8. A aliança de dois argumentos estava presente na fundamentação daquela inovação: a ideia de suplementar a representação interventiva, com o destaque do papel essencial do Supremo Tribunal Federal como o “guardião da federação” e, em segundo lugar, assegurar maior eficácia ao sistema, sob a retórica da economia processual. Segundo relata a justificativa da PEC 06/1965, a iniciativa de criação da representação de inconstitucionalidade, assim como a ideia de uma avocatória, denominada “prejudicial de inconstitucionalidade”, suscitada pelo PGR ou pelo 7 A proposta foi feita pelo min. Orozimbo Nonato, mas rejeitada pelo Conselho sob o fundamento de que tornaria mais caro o processo e retardaria o seu encerramento. Em sentido semelhante, no ano de 2011, o Presidente do STF, Cezar Peluso, sugeriu a transformação dos recursos especiais e extraordinários respectivamente em “ação rescisória especial” e “ação rescisória extraordinária”, cabíveis no STJ e no STF contra decisões transitadas em julgado na segunda instância (tribunais) e desde que reconhecida a repercussão geral da matéria. A chamada “PEC dos Recursos” foi proposta pelo Sen. Ricardo Ferraço e está em trâmite na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, sob relatoria do Sen. Aloysio Nunes. 8 O art. 8º, parágrafo único, da Constituição de 1946, dispunha sobre a arguição de inconstitucionalidade como medida prévia à decretação de intervenção federal nos estados. volume 06 171 i encontro de internacionalização do conpedi Tribunal em qualquer processo em curso, seja nos juízos de primeira instância ou tribunais, foram propostas do próprio STF para o reforço de sua competência. No ponto, estava presente o discurso do pragmatismo proporcionado pela inovação, que teria “o mérito de facultar desde a definição da controvérsia constitucional sobre leis novas, com economia para as partes, formando precedente que orientará o julgamento dos processos congêneres”, com procedimento idêntico ao das representações interventivas (fundadas na violação dos princípios constitucionais sensíveis da federação, art. 7°, VII CF/1946), seguindo uma lógica centralizadora do processo constitucional. Cabe ressaltar que o art. 21 da PEC nº 6/1965 chegou a prever a alteração do art. 64, retirando do Senado Federal a competência para suspender a execução da lei ou ato declarado inconstitucional, dispondo que caberia à Casa legislativa apenas “fazer publicar no Diário Oficial e na Coleção de Leis, a conclusão do julgado que lhe fôr comunicado”, o que foi rejeitado no parecer da Comissão Mista no Congresso. A proposta foi resgatada recentemente por Gilmar Mendes (2004), assim como na manifestação da citada Rcl nº 4.335/AC. Curiosamente, o argumento utilizado para afastar a “avocatória”, o de que ela “importaria em subtrair aos juízes das mais diversas categorias a faculdade, que lhes pertence, no grau de sua jurisdição, de apreciar a conformidade da lei ou ato com as cláusulas constitucionais”9 não serviu para afastar também a representação de inconstitucionalidade, mesmo diante do reconhecimento explícito de que entre nós não vigorava “o privilégio de interpretação constitucional por uma Côrte especializada”10, deixando revelar um seletivo interesse na criação da representação, mas não da avocatória. A esse interesse, que ampliava a competência do STF, agregou-se uma justificativa capaz de aliar-se ao discurso já presente: a necessidade de reduzir a sobrecarga de processos na Corte. A alternativa encontrada foi a divisão da jurisdição do Tribunal entre “contencioso da Constituição”, a cargo exclusivo do plenário; e o “contencioso da lei federal”, assumido pelas turmas. Como o AI 2 tinha acabado de criar mais uma turma e, segundo Orozimbo Nonato: “o ponto 9 BRASIL. Presidência da República. Mensagem nº 19, de 1965. Encaminha o Projeto de Emenda Constitucional nº 6 ao Congresso Nacional, p. 10. 10 Idem, p. 11. 172 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi maior de estrangulamento do serviço não estava nas turmas, mas no Tribunal pleno”, apresentada estava a justificativa, que não vedava, entretanto, o recurso fundado em “questões constitucionais” para o plenário, a quem caberia sempre a última palavra. A discussão do projeto no parlamento ficou claramente prejudicada pelo exíguo tempo de seu trâmite. Como o art. 21 do AI-2 tinha alterado o processo legislativo para as emendas encaminhadas pelo Presidente da República, fixandolhe o prazo de 30 (trinta) dias, não houve tempo hábil para a apreciação e debate em torno das inovações, que implicaram uma mudança substancial no modelo de controle de constitucionalidade. A aprovação da proposta pela Comissão Mista se deu em 16 de novembro de 1965, ou seja, a apenas 12 (doze) dias após o envio da mensagem presidencial com o projeto. Ainda que se considere a negativa do Congresso em conferir efeitos erga omnes à de­claração de inconstitucionalidade pronunciada pelo Supremo Tribunal Federal na proposta aprovada, a EC 16/65 foi um passo fundamental no sentido de concentrar o controle, que a partir daquele momento tornavase híbrido, e assim como reforçou11 as discussões acerca do papel do Tribunal na apreciação em tese da compatibilidade das leis com a Constituição, sem qualquer reforma ou adaptação no tradicional modelo concreto e difuso. Na prática, contudo, a adoção da representação de inconstitucionalidade mostrouse severamente frágil porque esse processo somente poderia ser movido pelo Procurador-Geral da República, cargo de confiança e exonerável ad nutum pelo Presidente da República, restringiu a sua utilização seletivamente aos interesses da chefia do Poder Executivo, ocupada pelos militares. O caso paradigmático dessa fragilidade foi a decisão da Reclamação nº 849/ DF, rel. min. Adalício Nogueira, DJ 09.12.71, em que o STF reconheceu a validade da decisão do Procurador-Geral de não dar seguimento a pedido do MDB no sentido da inconstitucionalidade da lei que instituiu a censura. Nesse julgmento, o único voto divergente foi do min. Adaucto Cardoso, que recebeu 11 Cabe aqui o registro de que mesmo antes da promulgação da EC nº 16/1965, os ministros já debatiam a possibilidade de declaração em tese de inconstitucionalidade nas representações interventivas. Nesse sentido: Representação nº 94, Rel. min. Castro Nunes, julgada em 17 de julho de 1946, a de nº 95, rel. min. Orozimbo Nonato, julgada em 23 de julho de 1947 e a Represen­tação nº 96, Rel. min. Goulart de Oliveira, julgada em 3 de outubro de 1947. volume 06 173 i encontro de internacionalização do conpedi o argumento da maioria “com o maior apreço, mas com melancolia”, afirmou corajosamente que o STF “se esquiva de fazer o que a Constituição lhe atribui” e, conforme nos relatou Victor Nunes Leal, renunciou à magistratura devido à sua inconformação com o desfecho desse caso (1997, p. 196). A extensão dos efeitos das decisões em sede de representação também permaneceu sujeita à discrição do juízo político, por parte do Senado Federal, a exemplo do que ocorria com as declarações de inconstitucionalidade nos recursos extraordinários, o que elevou o número de resoluções expedidas para suspender a execução de normas inconstitucionais (ALENCAR, 1978, p. 270). A incongruência do modelo da representação de inconstitucionalidade com algumas características processuais da jurisdição do STF, passou a ficar evidente com o julgamento das primeiras representações. Nesse sentido foi o voto do ministro Aliomar Beleerio, no AgrReg na Rep 700: Essa coisa de, por um processo de representação encaminhado pelo Procurador-Geral da República, segundo a Constituição de 1946, poder o Supremo Tribunal Federal declarar a inconstitucionalidade, em tese, de uma lei estadual e hoje, depois da Emenda nº 18, uma lei federal, – para mim não é uma ação. [...] Para mim não é uma ação, no sentido clássico, genuíno do Direito Processual. Para mim é uma instituição de caráter político, à semelhança do impeachment, que por mais que queiramos pôr dentro do Processo Penal, não é processo penal. É uma medida política, pouco importando que ela adote alguns dos integrantes processualistas, como há exemplo do Direito Administrativo, que se socorre de recursos do Direito Comercial ou Civil, a mesma coisa fazendo o Financeiro em relação ao Direito Privado.12 Questões relativas à incompatibilidade do procedimento e dos efeitos das decisões das representações, cujo parâmetro de então era o das representações interventivas, também foram levantadas em outros julgamentos13, e foram sendo tratadas pontualmente nos julgados do Tribunal. 12 STF. AgReg na Rep nº 700/SP, Rel. Min. Amaral Santos, julgado em 08.11.67. 13 Foi o caso da medida cautelar na Representação 933/RJ, rel. min. Thompson Flores, DJ 26.12.1976; Rep. 971/RJ, rel. min. Djaci Falcão, DJ 07.11.78; Rep 1.016/SP, rel. min. Moreira Alves, DJ 20.09.79, todas analisadas em CARVALHO, 2012, p. 135-144. 174 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi A reforma do judiciário empreendida pelo governo Geisel com “pacote de abril” através da EC 7/1977 reforçou a concentração de atribuições no Supremo Tribunal Federal, a exemplo da inclusão da competência para o julgamento de representação, também ajuizada pelo Procurador-Geral da República, para fins de interpretação de lei ou ato normativo federal ou estadual; e a instituição da chamada avocatória, instituto que possibilitava a remessa direta de determinadas causas à Corte Suprema, conferindo-lhe o exame integral da lide e po­deres para suspender decisões de quaisquer juízos ou tribunais, ambas criadas por aquela emenda constitucional. Foi também em abril de 1977 que o Presidente do Supremo Tribunal Federal à época, Ministro Carlos Thompson Flores, acolhendo proposta da Comissão de Regimento, assinou despacho com a consideração de que “quando a declaração de inconstitucionalidade de­fluir de ação direta (Representação, Constituição, art. 119, I, l), a solução está no desfecho constante do processo”, restringindo o envio de comuni­cação ao Senado apenas nos casos em que a declaração inconstitucionali­ dade se verificasse em controle concreto-incidental. A decisão, tomada em processo administrativo14, encerrou uma longa polêmica sobre a necessidade de encaminhar ao Senado a decisão declaratória de inconstitucionalidade proferida nas representações para fins de suspensão de execução da lei em todo território nacional. 3. o debate sobre o stf e o controle judicial de constitucionalidade na constituinte A configuração institucional que deveria ter o órgão responsável pela interpretação da futura constituição ocupou grande parte da atenção da subcomissão para o judiciário e o ministério publico. Composta por parlamentares eleitos para a legislatura ordinária do Congresso e não exclusivamente para a elaboração da nova constituição, a Assembleia foi instalada na sessão de 1º de fevereiro de 1987, e não se serviu do anteprojeto15 oferecido pela Comissão 14 Processo administrativo 4.477/1972, que contou com parecer do ministro Moreira Alves nesse mesmo sentido. (MENDES, 2000, p. 44). 15 O texto (http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/constituinte/AfonsoArinos.pdf) continha 436 artigos mais 32 disposições transitórias, e deveria servir como referência para volume 06 175 i encontro de internacionalização do conpedi Afonso Arinos, que tinha recebido sugestões dos ministros do STF no sentido de manter a organização e as competências do Tribunal, conservando igualmente os mecanismos difuso e concentrado de controle de constitucionalidade, sem ampliar o número de legitimados para provocação direta da Corte (KOERNER & FREITAS, 2013, p. 147). Para o relator, Bernardo Cabral, os trabalhos da constituinte foram guiados por uma “metodologia extremamente fluida e com acentuado potencial dispersivo” (CABRAL, 2008, p. 82), pois se tratava de uma tarefa atribuída a 8 comissões temáticas, com 63 membros cada, divididas em 24 subcomissões responsáveis pelas deliberações das sugestões formuladas pelos constituintes e recebidas em função da ampla e diversificada participação da população, conforme dispunha o primeiro regimento16 da assembleia nacional constituinte, aprovado em 19 de março de 1987. Segundo Leonardo Barbosa, foi exatamente o fato de os trabalhos da constituinte não terem se guiado por um anteprojeto de natureza técnica, tal como defendido por juristas como Manoel Gonçalves Ferreira Filho e Miguel Reale, que a Assembleia de 1987/88 rompeu com o paradigma dos demais processos constituintes brasileiros (BARBOSA, 2012, p. 146), tradicionalmente circunscritos às instituições e dirigido pelos técnicos do governo. Embora os detalhes do funcionamento da constituinte escapem o objeto deste trabalho, a observação dos distintos momentos deliberativos da Assembleia Nacional Constituinte merece destaque, por revelar como as aspirações manifestadas pela maioria dos constituintes no ato de instalação não se converteram17 no texto constitucional promulgado. Tratando-se de um ambiente em que a capacidade para a tomada das decisões estava fragmentada entre diveros trabalhos da constituinte na elaboração do texto, porém, o anteprojeto acabou não sendo enviado ao Congresso Nacional por decisão do Presidente José Sarney para evitar uma crise com os constituintes, que o consideravam uma intromissão do Executivo em seus trabalhos. 16 BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Resolução 2, publicada em 25 de março de 1987. 17 Como aponta o texto de Sandra Gomes, baseado em pesquisas de opinião da época, 60% dos constituintes preferiam a adoção de um texto constitucional conciso, o que não se tornou realidade; 54,4% afirmaram ser partidários do parlamentarismo, entretanto, o presidencialismo foi mantido; o voto distrital tinha apoio de 63% dos constituintes, porém também nesse tema o status quo prevaleceu. Cf. GOMES, 2006, p. 194. 176 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi sas correntes18, e destacando que uma das dimensões da constituinte é a escolha de instituições e a definição de regras, inclusive sobre o seu funcionamento, não se pode deixar considerar que os agentes politicos envolvidos no processo tinham em conta a maximização de seus interesses na escolha daquele quadro institucional, de modo que o procedimento adotado implica signficativos custos políticos para a defesa das propostas em jogo. Nesse cenário, o Supremo Tribunal Federal ocupava uma confortável e destacada posição. Embora não explicitamente envolvido nas disputas internas do pacto constituinte, foi mobilizado como árbitro da organização dos trabalhos por parte da ala mais conservadora da constituinte19. O fato por si chama a atenção por desmistificar o usual discurso jurídico que atribui à constituinte o caráter de soberana ilimitada tal qual presente no conceito de poder constituinte da teoria constitucional20. Como mostram Andrei Koerner e Lígia Freitas, em 05 de fevereiro de 1987, opondo-se ao Regimento da Constituinte (Projeto de Resolução 1)21, o Partido Liberal, através do constituinte Álvaro Valle, encaminhou consulta ao STF para que este definisse se “os procedimentos vigentes de elaboração e reforma constitucional deveriam ser observados até a promulgação da nova Constituição”22. 18 A prevalência do PMDB, que tinha feito 303 parlamentares nas eleições de 1986 (54,02% dos constituintes) contra 35 do PFL (24,15%), fez com que aquele monopolizasse o processo decisório (CARVALHO NETO, 2007, p. 305), ocupando a relatoria de todas as comissões temáticas (um contrassenso ao princípio da proporcionalidade consagrado no Regimento da ANC). Porém, a heterogeneidade do ponto de vista ideológico e o desgaste entre constituintes pemedebistas durante o processo, além da insatisfação de parlamentares da direita com posições ditas progressitas aprovadas nas comissões dificilmente alteráveis no plenário, abriu espaço para a coalizão de veto conhecida como “Centrão”, que contou com 43 constituintes do PMDB e provocou a mudança no Regimento da constituinte (GOMES, 2006, p. 206) 19 Cf. KOERNER & FREITAS, 2013, p. 149. 20 Para uma discussão sobre os paradoxos implicados na ideia de poder constituinte ver: COSTA, 2011, p. 198-227. 21 A insatisfação em relação ao projeto do regimento estava nas previsões de que a ANC poderia adotar resoluções constitucionais para alterar as normas vigentes, inclusive a duração do mandato do presidente Sarney, os decretos-lei, as medidas de emergência e o decurso de prazo. 22 Embora não tenha sido respondida, a consulta foi encaminhada pelo ministro Moreira Alves ao PGR para parecer, com o pedido de urgência para que o tribunal pudesse apreciá-la como arguição de inconstitucionalidade. Cf. KOERNER & FREITAS, 2013, p. 149. volume 06 177 i encontro de internacionalização do conpedi Outro ponto importante é que a Subcomissão do Poder Judiciário e do Ministério Público não era uma das prioridades as disputas partidárias. Durante os trabalhos, recebeu cerca de duas mil sugestões enviadas pela população à constituinte, realizou onze audiências públicas com servidores da justiça, magistrados, dirigentes das associações de juízes e promotores, juristas, ministros do STF, reunindo cerca de sessenta horas de gravação desses depoimentos, para construir um amplo diagnóstico da situação do sistema de justiça do país, o que culminou com a elaboração do anteprojeto do constituinte Plínio de Arruda Sampaio. Especificamente sobre os problemas enfrentados pelo STF as discussões tiveram dois eixos: a sobrecarga de processos23, impeditiva da realização eficiente das atribuições, e o papel do Tribunal como órgão responsável pela uniformização de entendimentos jurídicos relacionados à lei federal e à interpretação da constituição. Ao debate desses problemas foi agregado o objetivo de tornar o judiciário mais democrático e aproximá-lo da população, chegando-se a discutir a possibilidade de instituição de eleições majoritárias para os cargos de juízes e ministros. Nos cinco anos que antecederam a constituinte, o volume de processos distribuídos e julgados no STF foi o seguinte: Ano Distribuídos Julgados Saldo 1982 13.648 15.117 -1.469 1983 14.668 15.260 -592 1984 16.386 17.780 -1.394 1985 18.206 17.798 408 1986 22.514 22.158 356 Total 85.422 88.113 2.691 Pode-se notar que apesar do alto volume da movimentação, o Tribunal não conservava uma acumulação de estoque para os anos seguintes, salvo em 1985 e 1986 e por uma pequena margem proporcional. Embora o número de processos 23 Foi mencionado que 91% do trabalho da Corte se encarregava do julgamento dos recursos extraordinários. 178 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi tenha dobrado com relação ao quinquenio 1960-1964, o saldo de processo não julgados permaneceu bastante similar, sendo inclusive um pouco menor. Como o número de causas e de julgamentos era bastante superior ao existente antes da inclusão da representação de inconstitucionalidade em 1965, pareceria razoável uma discussão acerca da eficácia daquela inovação no sentido de limitar o número de processos e também, debate esse que seria importante para subsidiar a decisão acerca da transformação do STF em Corte Constitucional ou a criação de uma, que foi relevante na épica apesar de ter sido descartada essa proposta. A descrição dos trabalhos da Subcomissão do Judiciário e Ministério Público mostram que esse debate foi bastante limitado. O relatório e o anteprojeto que saíram da Subcomissão basearam-se em três consensos sobre o poder judiciário: o de que ele era moroso, inacessível aos mais pobres e ineficaz para uma série de delitos. Regisrou-se ainda a ausência de estudos sistemáticos, em termos sociológicos, sobre o sistema de justiça e seu impacto social. Sobre a proposta de criação de uma Corte Constitucional, duas foram as diretrizes debatidas e registradas24: 1) a proposta do relator, Plínio de Arruda Sampaio, instituía a Corte Constitucional, com perfil político e competência exclusiva para o contencioso de constitucionalidade, transformando o então Supremo Tribunal Federal e sua composição em Superior Tribunal de Justiça, e 2) nos termos da emenda apresentada pelo constituinte Michel Temer, criar uma “Sala Constitucional” como parte do STF, mantendo o Tribunal e sua competência para os recursos extraordinários, mas abrindo espaço para que uma de suas seções fosse composta por membros escolhidos pelo parlamento, As reuniões da Subcomissão contaram com exposições de juristas, que se dividiram sobre a questão da criação de uma Corte Constitucional. Manifestouse a favor Lamartine Corrêa de Oliveira (fazendo referência ao modelo adotado na Alemanha, Itália, Espanha e Portugal); contrariamente: Roberto Araújo de Oliveira Santos (ressaltando a tradição do STF e de que o Tribunal já desempenhava a função de Corte Constitucional), Raul Machado Horta (considerando que o STF 24 Informações extraídas das atas da Subcomissão para o Poder Judiciário e Ministério Público, integralmente disponíveis nos Anais da Assembleia Nacional Constituinte. volume 06 179 i encontro de internacionalização do conpedi era um tribunal da federação e que lhe excluir a função de apreciar a lei federal seria inadequado); e outros que não rejeitavam a ideia, mas faziam considerações outras sobre a tradição do STF no modelo constitucional brasileiro e de que a “importação” de instituições mereceria ser vista com cautela, como Luiz Pinto Ferreira e Paulo Brossard, então Ministro da Justiça. Entre os parlamentares, os pronunciamentos e as votações mostraram também mostraram a divisão. Além de Plínio Sampaio, autor da proposta, defenderam a criação de uma nova Corte os constituintes Vivaldo Barbosa, Leite Chaves, Michel Temer (que também apresentara destaque) e Jairo Carneiro. Rejeitavam a inovação: Maurício Corrêa (um dos que mais defendeu a manutenção sem alterações do STF), Paes Landim, Messias Góis e Adolfo Oliveira. Outros dois constituintes: Ronaro Corrêa e Sílvio Abreu propuseram ajustes diferentes, como a manutenção do STF, com a ampliação da representação de inconstitucionalidade25. Quanto à ampliação da legitimidade para propor as ADIs, cerca de vinte e oito anos mais tarde, em 28 de junho de 2005, em entrevista concedida a Ernani Carvalho (CARVALHO NETO, 2007, p. 310), o ex-parlamentar relator da proposta, Plínio Sampaio revelou o seguinte: Na comissão o grande lobby, a grande dificuldade que eu tive aqui foi o pessoal que estava ligado ao Supremo. O Supremo não queria isso (um Tribunal Constitucional), ele queria essa coisa mista que saiu, que eu acho que foi uma pena, eu fui derrotado nisso. A figura mais forte era esse que depois foi Ministro do Supremo, o Maurício Correia. Eles estavam preocupados com os artigos 101 e 102, o 103 eles deixaram passar [...] Eu fui ao Supremo conversei muito com eles, mas eles não abriram mão. Através do Maurício Correa fizeram as emendas e mudaram. Com o artigo 103 eles não criaram o menor problema eles estavam interessados era nisso (arts 101 e 102). Uma vez que eles ganharam o que eles queriam eles não fizeram nenhuma força, então isso passou sem muita dificuldade [...] Eu, na verdade, não verifiquei nenhuma pressão para restringir e nenhuma pressão para pôr. Isso na verdade foi fruto dos acadêmicos que me assessoraram com as novas teorias da constitucionalidade, não houve uma pressão popular por isso, nem uma contra-pressão política por isso. 25 Proposta que se saíram vencedoras no plenário, que converteu as representações em ações diretas de inconstitucionalidade, com uma legitimação ativa mais ampla. 180 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi […] No Brasil ninguém acredita na justiça, também ninguém deu bola, a turma estava mais preocupada com as coisas sociais. A própria esquerda também não se preocupou muito e depois tinha um deputado deles lá e eles tinham confiança. Foi um capítulo tranqüilo, não houve rolo. O que eles queriam tirar tiraram. Ou seja, eu tinha estatizado os cartórios, eles tiraram, eu tinha criado uma Justiça Agrária, eles tiraram, eu tinha suprimido a Justiça Militar, eles mantiveram, eu queria acabar com os vogais da Justiça do Trabalho e também perdi. Depois que eles conseguiram essas vitórias eles esvaziaram a sala, ficaram três gatos pingados às duas da manhã para discutir a Justiça Agrária. Eu até fiz um discurso dizendo está bem a imagem do povo brasileiro, os lobbies poderosos vêm, conseguem as suas coisas e vão embora. O lobby do povo, que são milhões, eram os três cidadãos lá. Todo mundo ouviu o que eu disse, acharam muito grave, me derrotaram e foram felizes para casa [...] Fora esses pontos, os outros os Deputados topavam tudo. Não foi uma comissão dividida com debates acalourados, não foi. Também o constitucionalista José Afonso da Silva, que participou ativamente assessorando membros da Subcomissão, concedeu entrevista (CARVALHO NETO, 2007, p. 314., oportunidade em que falou sobre aspectos do processo constituinte que impactaram na configuração institucional do STF no texto promulgado: Já existia o anteprojeto Afonso Arinos que tratava dessa problemática. Na comissão Afonso Arinos lutou-se muito para se estabelecer um Judiciário diferente. Mas o próprio Poder Judiciário fez um lobby muito forte lá (na comissão) e na própria constituinte e até o Supremo Tribunal Federal. Na comissão Afonso Arinos eu propus a criação de uma Corte Constitucional, por exemplo. Depois isso foi aceito (na comissão), os conservadores bombardearam, depois foi proposto também na constituinte e caiu no primeiro turno. A partir dessas declarações é possível observer que, embora a Subcomissão não tenha sido alvo das fortes disputas partidárias no que tange ao desenho constitucional do Poder Judiciário e do Ministério Público, assim como sobre a configuração do modelo de jurisdição contitucional a ser adotado, a preservação do status corporativo dos grupos de interesse (CARVALHO NETO, 2007, p. 314) a que aquelas funções estavam relacionadas ocupou um papel decisivo nas volume 06 181 i encontro de internacionalização do conpedi escolhas da comissão de Subcomissão do Poder Judiciário e do Ministério Público e, por sua vez, da Assembleia Nacional Constituinte. 4.as alter ações no controle de constitucionalidade posteriores à constituição A ideia de coerência lógica do ordenamento jurídico brasileiro e de necessidade de conferir segurança jurídica ao sistema de controle de constitucionalidade em função das decisões judiciais conflitantes entre os mecanismos difuso e concentrado aparece como principal elemento da construção teórica tanto da ação declaratória de constitucionalidade quanto do efeito vinculante no Brasil, conforme consignado no projeto de Emenda à Constituição 130/199226, apresentado por Roberto Campos em suas justificativas: Um dos problemas que mais tem preocupado o país, pelo prisma da nova ordem constitucional, é a valorização dos juizados de 1ª instância – louvável conquista da cidadania – sem a contrapartida de um instrumento processual de uniformização célere, omissão incompreensível do constituinte na conformação do controle difuso e concentrado de constitucionalidade. A força outorgada aos juízes de 1ª instância, sem um instrumental adequado de ação para os Tribunais Superiores, subverte a hierarquia necessária – e mais do que isso – a tranquilidade para a preservação da ordem jurídica, pois qualquer questão constitucional da maior relevância pode ser decidida de forma satisfativa, desde que o Tribunal imediatamente não suspenda a eficácia de decisões que garantam benefícios ou direitos.27 A redação aprovada não contemplou a possibilidade de acesso direito ao STF pelo cidadão em função da violação de algum direito fundamental ou ainda que incidentalmente pela remessa ao Tribunal de um conflito normativo a partir de uma discussão concreta28 sobre o alcance ou aplicação de direitos fundamentais, 26 Cabe aqui o registro de que a justificativa apresentada com o Projeto incorporou estudo sobre o instituto na doutrina constitucional alemã, produzido à época pelo Subchefe para Assuntos Jurídicos da Presidência da República, Gilmar Ferreira Mendes. (MENDES, 1999). 27 BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição n° 130, Diário do Congresso Nacional de 23 de setembro de 1992, p. 21693. 28 Esse é o modelo adotado em alguns dos países europeus que realizam exclusivamente o controle de constitucionalidade. Os Tribunais Constitucionais da Alemanha, Áustria e Espanha 182 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi cujo acesso ao Supremo permanecera apenas pela via recursal ou em eventual reclamação constitucional, sujeitando o texto da EC 3/93 a críticas por ofensa aos princípios do juiz natural e acesso à Justiça. Também o chamado déficit de eficácia das decisões do STF em causas de grande repercussão jurídica e econômica, assim como para os litígios de massa em que a efetividade dos julgados dependia da atuação dos demais poderes, foram absorvidas como sinais da crise de segurança jurídica, que aliada à morosidade, contribuíram para o descrédito do Judiciário como instituição. A evolução da atividades do STF ao longo da década de 1990 mostra que houve nesse momento uma mudança muito grande no padrão dos julgamentos. De 1990 a 1994, existe uma certa continuidade do padrão de ajuizamento anterior: um grande número de processos distribuídos, mas com uma quantidade compatível de julgamentos, em sua maioria extintos por decisões monocráticas, tendo em vista o baixo índice de publicação de acórdãos. Esse pequeno número de decisões colegiadas chama atenção especialmente nos anos de 1990 e 1991, em que o número de acórdãos publicados volta aos patamares da década de 1940 e passa a equivaler a cerca de apenas 10% da quantidade de julgamentos produzidos pelo Tribunal. A partir de 1995, existe um salto no número de acórdãos publicados, que termina por se estabilizar em torno de 10.000 decisões por ano, uma mudança substancial em relação aos períodos anteriores. Além disso, existe nos anos de 1997 a 2002 um grande incremento no número de ações ajuizadas, que saltam de cerca de 30.000 por ano para alcançarem pela primeira vez em 2000 um patamar superior a 100.000 processos por ano. Apesar desse grande salto, o Tribunal conseguiu aumentar também o número de julgamentos, não havendo em nenhum momento um desacoplamento entre os processos julgados e os processos distribuídos. Além disso, fixou-se o padrão de que o número de acórdãos publicados passou a corresponder a 10% do número de processos julgados, mostrando a predominância de decisões monocráticas. admitem a provocação direta em caso de ofensa a direito fundamental por autoridades públicas. Em outro grupo que inclui aqueles três países mais Bélgica, França, Itália e Luxemburgo os Tribunais Constitucionais recebem as chamadas questões constitucionais, a partir das discussões judiciais em casos concretos, suspendendo o litígio enquanto não é resolvida a constitucionalidade da lei Cf. COMELLA, 2009, p. 8. volume 06 183 i encontro de internacionalização do conpedi Essa evolução indica que as mudanças introduzidas pela EC/93 não tiveram uma repercussão ampla nas decisões da Corte. O argumento da segurança jurídica constituiu o principal fundamento da ideia de vinculação das decisões do STF incluída na emenda, que trazia como referência os exemplos dos Tribunais Constitucionais europeus como modelo para assegurar a aplicabilidade dos direitos fundamentais a partir de um parâmetro de controle de constitucionalidade pautado pela racionalidade, e que se revelava incompatível com a excessiva carga de trabalho submetida à Suprema Corte brasileira. Outro passo, com a mesma justificativa, foi aprovação da Lei nº 9.868/1999, que disciplinou o processo e julgamento das ações diretas na Corte, ampliando o alcance das deliberações da Corte com a extensão do efeito vinculante à chamada “interpretação conforme”29, tanto em relação aos demais órgãos do Judiciário quanto à Administração Pública. Entre os fundamentos para a utilização da interpretação conforme a Constituição, ainda sem previsão constitucional ou legal, estava a exigência prática de suprir um eventual vazio no ordenamento jurídico, resultante da declaração de inconstitucionalidade. Logo, a necessidade de conferir ao Supremo a faculdade de proferir sentenças interpretativas articulavase com a conservação de atos jurídicos produzidos com base na lei questionada em homenagem à segurança jurídica (SEGADO, 2002, p. 44), à semelhança das sentenças interpretativas da Corte Constitucional da Itália. A interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, como técnicas de decisão trazidas do modelo de controle de constitucionalidade alemão (BARACHO JÚNIOR, 2006, p. 219), permitiram ao Tribunal Constitucional reconhecer a inconstitucionalidade da lei, sem pronunciar a sua nulidade, caso vislumbre, na possibilidade de 29 A expressão “interpretação conforme a Constituição” aparece em julgados do STF ainda antes da EC nº 3/93, em trecho do voto do Ministro Moreira Alves na ADI/MC nº 221: “Em matéria de inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo, admite-se, para resguardar, dos sentidos que eles podem ter por via de interpretação, o que for constitucionalmente legítimo – é a denominada interpretação conforme a Constituição” julgamento em 29.03.90, DJ 22.10.93 e ADI/MC nº 1.344, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 14.04.96. E antes mesmo até a vigência da Constituição de 1988, é o caso da Representação n° 1.417/DF, rel. min. Moreira Alves, DJ 15.04.88. Também a “declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto” já era de uso corrente no Supremo Tribunal Federal, v. ADI/MC nº 491, rel. min. Moreira Alves, DJ 25.10.91 e ADI nº 1.089, rel. min. Francisco Rezek, DJ 27.06.97. 184 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi exclusão do texto legal, risco maior ao interesse público que o da manutenção da lei inconstitucional no ordenamento. Mesmo após a sua incorporação pela Lei 9.868/99, as nuances que cercam a interpretação conforme a Constituição não passaram despercebidas, dada a possibilidade de o Tribunal pretender “melhorar” o texto da norma impugnada, desvinculando-se da literalidade da redação aprovada pelo Poder Legislativo para sobrepor a interpretação dos magistrados à dos legisladores. Mesmo diante da fluidez dos “limites” da interpretação conforme a Constituição, construídos doutrinariamente e pela jurisprudência, a constitucionalidade da sua previsão na Lei nº 9.868/99 foi reconhecida pelo plenário da Corte30, o que consolidou o uso da reclamação constitucional como forma de “amparo” aos eventuais prejudicados pela inobservância ao efeito vinculante, ao tempo em que aprofundava a tendência concentradora da jurisdição constitucional na Suprema Corte, acompanhada da fragilização do controle difuso. Assim como em outras ocasiões relatadas, observa-se que a decisão da Corte avançou no estabelecimento dos limites de suas próprias competências constitucionais numa discussão lida pela comunidade jurídica como técnica, mas que possui uma dimensão política da maior relevância, já que, caso observada atentamente, põe em xeque duas premissas do constitucionalismo fundamentais à própria sustentação do controle de constitucionalidade: 1) a separação 30“É constitucional lei ordinária que define como de eficácia vinculante os julgamentos definitivos de mérito proferidos pelo Supremo Tribunal Federal em ação direta de inconstitucionalidade (Lei nº 9.868/99, art. 28, parágrafo único). Para efeito de controle abstrato de constitucionalidade de lei ou ato normativo, há similitude substancial de objetos nas ações declaratória de constitucionalidade e direta de inconstitucionalidade. Enquanto a primeira destina-se à aferição positiva de constitucionalidade a segunda traz pretensão negativa. Espécies de fiscalização objetiva que, em ambas, traduzem manifestação definitiva do Tribunal quanto à conformação da norma com a Constituição Federal. A eficácia vinculante da ação declaratória de constitucionalidade, fixada pelo § 2º do art. 102 da Carta da República, não se distingue, em essência, dos efeitos das decisões de mérito proferidas nas ações diretas de inconstitucionalidade. Reclamação. Reconhecimento de legitimidade ativa ad causam de todos que comprovem prejuízo oriundo de decisões dos órgãos do Poder Judiciário, bem como da Administração Pública de todos os níveis, contrárias ao julgado do Tribunal. Ampliação do conceito de parte interessada (Lei nº 8.038/90, art. 13). Reflexos processuais da eficácia vinculante do acórdão a ser preservado.” STF. Rcl nº 1.880 – AgRQO, rel. min. Maurício Corrêa, julgamento em 07.11.02, DJ 19.03.04. Texto extraído do Informativo STF nº 340. volume 06 185 i encontro de internacionalização do conpedi de poderes, quando em risco a distinção da função da Corte em relação à do legislador, colocando-os sob parâmetros de concorrência (HABERMAS, 2012, p. 324) na definição da escolha do próprio texto legal; 2) a imparcialidade judicial (VERMEULE, 2012, p. 396), conduzida ao paradoxo de que, mesmo vinculada ao dogma de não legislar em causa própria, a Corte passa a deliberar sobre as condições institucionais do exercício da própria função. Apesar da profundidade das mudanças introduzidas pela Lei 9.868/99 e do seu grande impacto no padrão de julgamento das ADIs (especialmente na redução drástica do número de liminares concedidas e dos julgamentos moncráticos), essa lei não trouxe maiores repercussões nos padrões gerais de julgamento do tribunal, que continuaram sua tendência de crescimento no ajuizamento equilibrada por um incremento nas decisões monocráticas. A última das alterações constitucionais com forte impacto para o controle de constitucionalidade no país foi a EC 45/2004. Assim como em outras ocasiões, a preocupação quanto ao exponencial crescimento de demandas submetidas ao STF somou-se ao discurso sobre as funções da Corte como instituição encarregada da guarda dos direitos fundamentais, que precisava se adequar às mudanças do próprio Estado brasileiro, em busca de celeridade e eficiência quanto à realização de despesas para sua manutenção, preocupações, em grande parte, motivadoras da proposta de reforma do Judiciário. De fato havia ocorrido um salto muito significativo no número de processos distribuídos e julgados, que mais do que quadruplicaram durante o processamento do projeto de reforma do judiciário (PEC 96/92) apresentando por Hélio Bicudo. Essa PEC recebeu inúmeras emendas tanto na Câmara quanto no Senado, onde passou a ser relatada por Bernardo Cabral, sucedido por José Jorge. A demora na tramitação e o grande número de alterações do projeto não significam, contudo, que o tema tenha causado impasses ou polarizações mais fortes no Congresso (CARVALHO NETO, 2007, p. 322). Só após treze anos, foi aprovada a EC 45, publicada em 31 de dezembro de 2004, redesenhando algumas funções da cúpula do judiciário, dentre elas: a transferência para o STJ da competência para a homologação da sentença estrangeira e a concessão de exequatur às cartas rogatórias, além do deslocamento da competência para o julgamento de recurso extraordinário de decisão que julgar válida lei local contestada em face de lei federal 186 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi do STJ para o STF, uma medida que se contrapôs ao discurso da sobrecarga do Supremo, que era um dos móveis da reforma. Também foi instituída a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso para o conhecimento do recurso extraordinário e a súmula vinculante, inovações que consolidaram o processo de concentração do controle de constitucionalidade no Brasil na Suprema Corte (CARVALHO, 2012, p. 198); condicionou a decretação da intervenção federal a provimento do STF e criou o Conselho Nacional de Justiça. Inicialmente, essa modificação não trouxe uma mudança substancial para o julgamento dos processos no STF, mas a partir de 2007 nota-se uma mudança muito grande na atuação. Houve, especialmente desde 2008, um aumento do percentual de processos ajuizados que não são distribuídos e também um número de julgamentos bastante superior às distribuições (e mesmo em relação ao protocolo), o que indica uma forte diminuição nos estoques de processos acumulados aguardando julgamento. A partir desse momento, houve uma estabilização nos números de processos ajuizados e distribuídos, bem como no número de julgamentos. E o número de acórdãos publicados, que alcançou um pico de mais de 20.000 em 2007, reduziu-se nos anos posteriores até alcançar o patamar de cerca de 10.000 a 15.000 acórdãos, que tinha sido mantido desde meados da década de 1990. A combinação desses dados indica que a evolução da carga de trabalho do STF não parece ter sido tão grave quanto indicam alguns discursos. Em especial, se compararmos a evolução dos números globais de ajuizamento/julgamento do STF com a evolução populacional do Brasil, os dados se mostram menos dramáticos. O resultado é de que na década de 50 houve um avanço relativamente equilibrado de todos os indicadores, em uma intensidade maior do que o aumento populacional. Já na década de 1960, houve uma manutenção do equilíbrio entre esses números, que se alterou na década de 1970 em face de um incremento das decisões monocráticas, que reduziram os números de publicação de acórdãos para 50% do número dos julgamentos totais. Esse quadro se acirrou na década de 1980, com queda proporcional no número de acórdãos, mas a evolução da população foi maior do que a dos processos do STF. Já nas década de 1990 a 2000, existe um avanço do número de processos ajuizados e julgados em um ritmo muito maior volume 06 187 i encontro de internacionalização do conpedi do que o populacional, mas fica mantida a imensa preponderância dos processos julgados monocraticamente. Assim, por mais astronômicos que sejam os números dos julgamentos de processos pelo STF, percebe-se a exisência da relação entre acórdãos publicados e o crescimento populacional, indicando que durante várias décadas a população cresceu mais do que as decisões colegiadas. Além de que o nível alcançado na década passada indica uma relação decisão/habitante semelhante à que existia em 1950. Dessa maneira, fica claro que a grande sobrecarga de trabalho se concentra hoje na apreciação e julgamento monocrático de milhares de processos que são apreciados em termos de sua extinção por critérios formais ou por aplicação da jurisprudênica dominante. Nesse contexto, as medidas que mostraram maior impacto no funcionamento do tribunal não foram as Emendas Constitucionais que alteraram os elementos do controle concentrado (que é minoritário), mas as modificações legais e regimentais e aumentaram o poder dos relatores para extinguir os processos. Também tiveram impacto significativo as emendas que impediram o envio ao tribunal de processos sobrestados pela pendência de julgamento de ação com efeito geral, mas esse impacto deve ser analisado com cuidado, tendo em vista que a diminuição de ajuizamentos no STF não significa que esses processos tenham sido extintos, mas apenas que eles foram represados em outros órgãos judiciais. De todo modo, esses resultados indicam que as estratégias que mais influenciaram o perfil dos julgamentos foram as de seletividade ligadas ao controle difuso, por meio das quais a concentração de poder dos relatores e as decisões que negam repercussão geral. Já as estratégias de vinculação, concentração e de abstrativização, ligadas a um fortalecimento do controle concentrado, não parecem ter impactado esses números com igual vigor. 5.conclusões A partir de 1965 tem se assistido quase que passivamente ao aprofundamento da concentração de competências em torno do STF. A Constituição de 1988 ampliou o rol de agentes legitimados a postular a inconstitucionalidade de lei 188 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi ou ato normativo federal ou estadual perante a Corte – atribuição que, até então, era confiada exclusivamente ao Procurador-Geral da República. Além disso, foram instituídos instrumentos outros, sejam eles voltados ao exercício do controle de constitucionalidade por via direta, como a ação declaratória de constitucionalidade e arguição de descumprimento de preceito fundamental; para a efetivação de direitos fundamentais contra omissões dos poderes instituídos na regulamentação do seu exercício, como o mandado de injunção e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão; para a preservação da competência e autoridade das decisões da Corte, por via incidental, como a reclamação constitucional. Tanto as modificações realizadas ainda no regime militar, como a representação de inconstitucionalidade quanto as alterações posteriores à Constituição de 1988, a exemplo da EC nº 3/93, que inseriu a ADC e o efeito vinculante; da Lei nº 9.868/99 e a interpretação conforme, e, por último, a EC nº 45/2004, que trouxe a repercussão geral e as súmulas vinculantes, estiveram apoiadas no mesmo discurso: o ganho de eficiência ao sistema de controle, prestando-se em ultima instância à centralização da interpretação constitucional no âmbito do STF, o que não deixou de produzir consigo uma significativa perda para a democratização do acesso à justiça, no seu sentido qualitativo e não quantitativo. Porém, o significado desse percurso em direção ao modelo concentrado somente agora passou a contar com um olhar crítico a essa tendência e aos argumentos que lhe proveram fundamentação. A partir da análise dos dados e dos discursos que motivaram a construção do complexo sistema de controle jurisdicional hoje existente, torna-se razoável considerar que foi edificado um “castelo de areia” da segurança jurídica e economia processual. Nesse cenário, as discussões sobre as iniciativas31 de reforma do perfil da Corte, assim como da própria função da jurisdição constitucional no país, não podem deixar em segundo 31 Nesse ponto cabe anotar a proposta de emenda constitucional 342/2009, de Flávio Dino (PC do B), que extingue a vitaliciedade e estabelece mandatos de 11 anos para os Ministros, que passariam a ser escolhidos pelo próprio STF e pela Casas do Congresso após a formação de listas tríplices elaboradas pelos Tribunais Superiores, Conselho Nacional de Justiça, Conselho Nacional do Ministério Público, Conselho Federal da Ordem dos Advogados e pelas Faculdades de Direito. Além da mais recente PEC 275/2013, de Luiza Erundina (PSB) que cria uma Corte Constitucional no lugar do STF, aumentando a composição para 15 membros com idade entre 40 e 60 anos, nomeados pelo Presidente do Congresso após aprovação pela maioria absoluta das duas Casas. A nova Corte teria competência exclusiva para questões constitucionais e deslocando todas as demais para o STJ. volume 06 189 i encontro de internacionalização do conpedi plano uma avaliação institucional do comportamento STF nas últimas décadas, que tem sido evidenciada pela pretensão de uma ampla vinculação normativa de fatos valorados sob o seu estrito racionalismo auto-referente, cujo resultado tem representado muito pouco para a garantia dos direitos fundamentais. Após tantas reformas constitucionais e legislativas, o que se tem visto o esgotamento do discurso de que a aperfeiçoar mecanismos processuais à disposição do STF e ampliar ao máximo os efeitos de suas decisões são os meios mais adequados para a efetivação dos direitos fundamentais. Esse discurso, utilizado especialmente na justificação dos processos de concentração, vinculação e abstrativização, aponta que é preciso ter uma corte mais eficiente para que ela possa realizar o seu papel verdadeiramente constitucional, que é ligado muitas vezes ao controle concentrado e abstrato de normas (FGV, Supremo em Números). Porém, considerando o baixo número de decisões nas ADIs que asseguram esses direitos após trinta anos de vigência da Constituição atestam que esse discurso, apesar de bem intencionado, não encontra ressonância na prática judicial do Tribunal (Costa e Benvindo, 2013). Além disso, percebe-se que as modificações que alteraram mais profundamento o funcionamento do tribunal não foram as que reforçaram o controle abstrato, mas aquelas que interviram no processo de julgamento por meio da ampliação dos poderes dos relatores de decidir monocraticamente. Mesmo as decisões que modificaram sensivelmente a atuação do Tribunal mediante processos de concentração, reforçando a seletividade do tribunal na escolha dos casos a serem julgados, relacionam-se com a estrutura própria do controle concreto e não do abstrato, pois o critério de julgamento está na repercussão geral de uma decisão concreta. Essa é uma consideração relevante para uma análise mais cuidadosa das propostas que alinham de forma necessária os procedimentos de concentração e de abstração, cuja união não pode ser naturalizada, apesar do reconhecimento de que ela é típica de nossa história constitucional. Além disso, uma avaliação consistente do modelo de jurisdição constitucional brasileira deve levar em conta o custo democrático de ter uma instituição de caráter contramajoritário, incumbida da proteção dos direitos das minorias como condição do própria manutenção das regras do jogo32, cuja concentração demasiada de poderes (especialmente por 32 Descrição tradicionalmente presente nas defesas teóricas do judicial review como função caras à democracia. Cf. COMELLA, 2007, p. 172 e 182. 190 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi meio de decisões em abstrato e de decisões monocráticas) afeta não só o seu próprio desempenho, mas também tem o potencial de restringir iniciativas democráticas da construção do sentido desses direitos ou dificultar a sua realização por outras vias, que não a judicial. Para finalizar, um registro importante: a oportunidade que se abre a partir da análise dos dados empíricos levantados na pesquisa “A quem interessa o controle concentrado de constitucionalidade?” e do comportamento da Corte, pode ser o início da construção de um modelo que, afora seja capaz de reduzir a complexidade e fornecer respostas, não crie mais mecanismos de cristalização jurisprudencial em descompasso com a realidade. Afinal, tudo que a jurisdição brasileira não precisa mais é da sobreposição de uma razão pautada pela convergência entre o pragmatismo na redução da carga de trabalho e o interesse restrito às questões formais ou corporativas, o que tornaria ainda mais escassas as possibilidades de realização dos direitos fundamentais em situações concretas. 6.referências ALENCAR, Ana Valderez Ayres Neves (1978). A competência do Senado Federal para suspender a execução dos atos declarados inconstitucionais. Revista de informação legislativa. Brasília, ano 15, n. 57, jan./mar. 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Esta exigência supõe visão epistemológica questionadora da emergência da realidade constitucional em relação a seu contexto político e social de formação. Assim, a natureza conservadora ou inovadora do contexto histórico de produção das constituições permite configurar o constitucionalismo segundo continuidades ou rupturas ou mesmo segundo mudanças na linha da conservação. Daí a preocupação com a caracterização do estágio atual do constitucionalismo no Brasil com base no contexto histórico e social da positivação dos direitos fundamentais na Constituição brasileira de 1988. Daí a preocupação com o contexto político, social e cultural das mudanças constitucionais como forma de explicar o constitucionalismo brasileiro, que não se reduz a construções doutrinárias deduzidas de forma mecânica de normas constitucionais positivadas. 1 É doutoranda em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde também concluiu seu curso de mestrado em Direito em 2011. Pratica pesquisa acadêmica nos seguintes temas: direito constitucional, direito administrativo, efetivação de direitos fundamentais, sociologia jurídica e do conhecimento e filosofia do direito. É professora de direito público e coordenadora de pesquisa e extensão em Direito na USU. É professora visitante em MBA na FGV e na Estácio. É advogada civilista e consultora jurídica; Foi professora de Direito Civil, Consumidor e de Laboratório de Jurisprudência na UERJ; É Intérprete e Tradutora de língua francesa de textos acadêmicos e da Justiça Federal do Rio de Janeiro. 2 Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1984), mestrado em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (2002), mestrado em Direito pela Universidade Gama Filho (1994), doutorado em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (2004) e pós-doutorado em direitos humanos pela Université Paris 2. Atualmente, como adjunto da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, leciona sociologia jurídica na graduação e epistemologia das ciências sociais na pós-graduação (mestrado e doutorado), em Teoria e Filosofia do Direito. Tem experiência na área de Sociologia e Filosofia, com ênfase em DIREITOS HUMANOS, atuando principalmente nos seguintes temas: criança e adolescente, cidadania e poder judiciário, direitos humanos e multiculturalismo, movimentos sociais urbanos e quilombolas. volume 06 195 i encontro de internacionalização do conpedi Palavra-chave Constitucionalismo; Substancialismo; Procedimentalismo; Direitos Fundamentais; Historicismo. Résumé Le constitutionnalisme est construit comme une doctrine du droit constitutionnel sous la demande théorique de l’interprétation des constitutions. Cette exigence implique une approche épistémologique interrogeant sur l’émergence de la réalité constitutionnelle par rapport à son contexte politique et sociale de formation. Ainsi, la nature conservatrice ou innovante du contexte historique de la production des constitutions permet de configurer le constitutionnalisme selon ses continuités ou ruptures ou encore selon ses changements dans des processus conservateurs. D’où la préoccupation de la caractérisation de l’état actuel du constitutionnalisme au Brésil sur la base du contexte historique et social qui explique la formalisation des droits fondamentaux dans la Constitution brésilienne de 1988. D’où aussi la préoccupation sur le contexte politique, social et culturel des changements constitutionnels comme un moyen d’expliquer le constitutionnalisme brésilien, qui n’est pas réduit à des constructions doctrinales déduites mécaniquement des normes constitutionnelles reconnues par la Constitution. Mot-clé Constitutionnalisme; Substantialisme; Procéduralisme; Droits Fondamentaux; Historicisme. 1.introdução Este trabalho parte da hipótese genérica segundo a qual a história teórica do constitucionalismo é construída com base no contexto histórico empírico das constituições e que ela define assim o historicismo como perspectiva para o estudo das constituições e dos constitucionalismos. Assim, as características históricas de constituições particulares em contextos específicos definiriam igualmente de forma particular o constitucionalismo em sua trajetória histórica particular. O caráter conservador ou inovador de determinada constituição configuraria 196 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi historicamente o constitucionalismo segundo suas continuidades ou rupturas, ou ainda segundo suas mudanças na linha da conservação, e traduziria a natureza do contexto histórico-social da referida constituição. No entanto, a articulação entre constitucionalismo e constituição segundo perspectiva e contexto históricos não tem sido doutrinariamente estabelecida pelos juristas no âmbito do direito constitucional. E isto ocorre não porque a unidade de análise básica das constituições tem sido definida por categorias normativas que estas constituições consagram e expressam, e sim porque tais categorias não têm sido compreendidas de acordo a inscrição histórica das mesmas em contextos e processos políticos e/ou sociais determinados. Quando muito, estes contextos e processos figuram como construções retóricas no campo doutrinário do direito constitucional. A ausência da história real conduz o constitucionalismo brasileiro a produzir uma visão dele mesmo como conjunto de construções doutrinárias deduzidas de forma mecânica de normas constitucionais positivadas. É precisamente a ruptura entre o “constitucionalismo real”, quanto a contextos históricos e sociais em relação no século e que definem a crise da modernidade ocidental, e o “constitucionalismo doutrinário”, quanto aos estudos específicos da Constituição brasileira de 1988 segundo reflexão epistemológica de natureza teórico-metodológica, que tem produzido a redução do constitucionalismo brasileiro à análise formal das normas constitucionais e impedido a compreensão do que tem sido definido como “novidade” para caracteriza tanto a referida constituição como o constitucionalismo que lhe serve de estudo. Fora da história não “é possível a novidade, o salto dialético que permite realizar o passo de um nível de realizações a outro, a emergência de formas inéditas de existência”. (BONDY, 1982: 130). Este é o conjunto de ideias que define a hipótese específica deste trabalho. O constitucionalismo brasileiro parece não considerar que o constitucionalismo se constrói como doutrina do direito constitucional ou da constituição segundo exigência teórica e metodológica que supõe a definição tanto de constituição como de modelo teórico capaz garantir a interpretação do contexto ou processo político e/ou social em que ocorre o fenômeno “constituição” (WOLKMER, 1989:13-15). E este contexto, no século XXI, sinaliza o avanço não apenas do processo de globalização social e econômica, mas também da globalização do direito. volume 06 197 i encontro de internacionalização do conpedi As diversas dimensões dos processos de globalização têm produzido formas distintas de aproximação também entre as produções das constituições, os estudos dos direitos constitucionais e os diferentes constitucionalismos. Sem esta visão, o estudo da Constituição brasileira de 1988 e do constitucionalismo a partir deste período será sempre conduzido de forma independente das constituições latino-americanas e do próprio constitucionalismo da América Latina. A ausência de reflexão epistemológica institucionaliza o Constitucionalismo Brasileiro como o estudo naturalizado das constituições que não garante compreender a natureza das mudanças nem das constituições nem do próprio constitucionalismo quanto aos sentidos de sua trajetória histórica, quer quanto ao Brasil, quer quanto à América Latina. O objetivo prático deste trabalho é caracterizar e apontar esse quadro reificado e reificador no campo da argumentação de constitucionalistas. A metodologia descritiva desse tipo de investigação desloca do campo dos juristas para o campo dos historiadores a condição de possibilidade de pensar a trajetória do constitucionalismo no Brasil, reforçando a separação moderna e artificial quanto aos campos de estudos fundamentada na especialização de tarefas. No campo dos juristas, em particular dos constitucionalistas, a história das constituições e dos constitucionalismos só poderia ser pensada como expressão de fatos únicos e inquestionáveis, de acordo com um tempo linear e homogêneo, como verdadeiros mitos fundacionais. Outra visão da história só seria possível no campo historiadores, e fora do direito. Por um lado, a metodologia positivista tem legitimado o uso de construções teórico-doutrinárias estrangeiras para explicar mudanças no direito constitucional brasileiro que permanecem sem explicação. Por outro lado, ela se orienta ainda no século XXI por rupturas clássicas instauradas pela modernidade ocidental em crise desde o século XX e não garante problematizar nem a originalidade nem a singularidade do constitucionalismo brasileiro. É este conjunto de ideias que permite demarcar de forma específica o campo de argumentação neste trabalho e definir um de seus principais objetivos teóricos: a caracterização do estágio atual do constitucionalismo no Brasil quanto à positivação dos direitos fundamentais na Constituição brasileira de 1988 e de normas voltadas para os direitos das minorias. E é também o conjunto de ideias e hipóteses acima que legitima a problemática que este trabalho procura enfrentar 198 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi quanto às seguintes perguntas: No estudo das normas constitucionais brasileiras, o constitucionalismo nacional revelou mudança de paradigma quanto à importação de ideias e teorias europeias ou norte-americanas de modo a reconhecer a influência específica do contexto político e social, histórico e cultural brasileiro e/ou latinoamericano na produção e na compreensão da Constituição brasileira de 1988 e na compreensão da própria trajetória do constitucionalismo? Em caso negativo, que fatores ou processos podem explicar, na obra de constitucionalistas, a ausência dessa influência na explicação da emergência da Carta de 1988 e principalmente na do constitucionalismo brasileiro? A condição de formulação das perguntas e hipóteses neste trabalho revela a condição ausente nos trabalhos dos constitucionalistas brasileiros em geral, qual seja: a problematização da crise modernidade tendo como referência o Brasil e a América Latina. “É preciso antes de mais nada arrancarmos aquela lógica pela qual nossas sociedades são irremediavelmente exteriores ao processo da modernidade e a sua modernidade só pode ser deformação e degradação da verdadeira” (MARTÍN-BARBERO, 2006: 23). Do ponto de vista teórico-metodológico, este trabalho se orienta pela apresentação, caracterização e definição de ideias e categorias de pensamento de dois constitucionalistas e professores brasileiros de Direito Constitucional: Daniel SARMENTO (2006, 2009) e Luís Roberto BARROSO (2004). Sem lhes atribuir à qualidade de representantes nacionais de correntes teórico-doutrinárias do constitucionalismo vigentes no Brasil, os referidos constitucionalistas foram escolhidos como professores e representantes de doutrinas constitucionais que estão na base da formação dos alunos de direito da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, faculdade essa que é referência no Rio de Janeiro e no Brasil e onde os referidos constitucionalistas se formaram. É com base descrição de fragmentos de obras desses autores que tratam da Constituição brasileira de 1988 que será investigada a relação que articula “constituição” (fato concreto, particular) e “constitucionalismo” (doutrina, universal ou universalizável) no Brasil. Justifica-se esta escolha em razão da constatação de existência de contradições entre prática profissional e discurso no campo doutrinário constitucional brasileiro pós CR/88. Sarmento integra o Ministério Público Federal, num órgão volume 06 199 i encontro de internacionalização do conpedi de defesa de direitos coletivos; Barroso, o órgão de cúpula do Poder Judiciário, o STF. A contradição mais significativa neste trabalho reside no fato de que ambos os doutrinadores trabalham com o objetivo de solucionar casos concretos que possuem peculiaridades estritamente brasileiras e que o fazem à luz de modelos e concepções teórico-doutrinárias referidas uma realidade histórico-social que estes mesmos autores constroem como universalistas, conforme parâmetro euroocidental adotado em suas obras. Isto significa que eles procedem produzindo as mesmas abstrações e dicotomias legitimadoras da instauração e do desenvolvimento da modernidade ocidental e de suas ideias e pensamentos universalistas. Quanto ao pensamento de Sarmento, ênfase será dada principalmente à análise por ele feita de normas constitucionais sobre os direitos das minorias, bem como à sua concepção de constitucionalismo e da Constituição brasileira de 1988. Quanto às ideias de Barroso, a preocupação com os direitos fundamentais será precedida da apresentação que ele faz dos antecedentes históricos e filosóficos do constitucionalismo brasileiro contemporâneo. A comparação e o confronto entre os dois constitucionalistas têm por objetivo não apenas estabelecer as semelhanças e diferenças na explicação da relação entre constitucionalismo e constituição e apontar as inovações em matéria constitucional, mas principalmente saber se e em que medida é possível falar de mudança paradigmática como forma legítima de reconhecimento da realidade histórico-social e do constitucionalismo latinoamericanos através do constitucionalismo brasileiro. Assim é definida a primeira etapa deste trabalho. A justificativa que fundamenta essa abordagem teórico-metodológica é orientada pela distinção que faz Hokheimer entre teoria tradicional, descritiva da realidade e referida à separação entre o indivíduo e a sociedade, e teoria crítica, fundamentada no comportamento crítico, na apreensão da realidade fissurada como contradição do próprio sistema social. Se aquela não produz emancipação, esta gera transformação. Afinal, a teoria crítica “dispensa o caráter pragmático que advém do pensamento tradicional como trabalho profissional socialmente útil” (HOKHEIMER, 1980: 131). A produção de espaço de pensamento segundo lógica que garanta a confrontação com as categorias tradicionais do pensamento ocidental constitui condição epistemológica necessária para o reconhecimento da “novidade” no constitucionalismo brasileiro com base nas inovações consagradas pela 200 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi Constituição brasileira no contexto de mudança política e social no Brasil e também na América Latina. Isto diz respeito à “máquina para a descolonização intelectual e, portanto, para a descolonização política e econômica” (MIGNOLO, 2003: 76). Esse pensamento de fronteira permite enfrentar “a retórica emancipatória da modernidade a partir das cosmologias e epistemologias do subalterno, localizadas no lado oprimido e explorado da diferença colonial” (GROSFOGUEL, 2008: 138). Esta questão da fronteira quanto ao pensamento permite também pensar em termos teóricos as questões deste trabalho quanto à relação histórica entre o passado e o presente, entre o ontem e o hoje, frequentemente desprezada pelos constitucionalistas brasileiros. Reconhecer que o presente é o “tempo-agora” (BENJAMIN, 1989: 191) significa que o passado está sempre aberto e que assim ele não está fechado nos fatos já produzidos. O passado não realizou tudo e resta o que ser feito no presente. É este passado que é – ou deve ser – desestabilizador da modernidade presente no Brasil e na América Latina e operar como condição da produção de pensamento autêntico no campo do direito constitucional. Eis outro objetivo teórico deste trabalho. Assim é definida a segunda etapa deste trabalho. É com base nestes recortes e referenciais teóricos que se procura não apenas enfrentar a problemática construída neste trabalho mas também apontar na direção em que é possível para os constitucionalistas abordarem as peculiaridades da constituição brasileira de 1988 e afirmar também as mudanças do constitucionalismo brasileiro quanto à forma de pensar e de explicar a própria Constituição do Estado e da Sociedade. Assim é definida a terceira etapa deste trabalho, como diálogo entre os autores e como análise crítica dos mesmos à luz dos recortes teóricos anteriormente definidos e como preparação para a conclusão. 2.o atual constitucionalismo br asileiro e os direitos das minorias Daniel Sarmento compreende a constituição de 1988 como o coroamento do processo de transição do regime autoritário em direção à democracia. Ressalvando mesmo a presença na Assembleia Constituinte de forças que deram sustentação ao “regime autoritário”, ele reconhece que este fato não impediu a elaboração de uma constituição com “profundo compromisso com os direitos fundamentais e com a democracia” (DE SOUZA NETO, SARMENTO, 2012: 170). Ele aponta ainda as influências que a constituição brasileira sofreu da constituição portuguesa volume 06 201 i encontro de internacionalização do conpedi de 1976, que superou o regime autoritário pela via revolucionária, e da espanhola de 1978, que alcançou o mesmo resultado por uma transição pactuada. Quando da sua promulgação, a Constituição de 1988 possuía 245 artigos no corpo permanente e 70 no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Ela surgiu, assim, como uma carta longa e analítica. O autor de Livres e Iguais define ainda a constituição como compromissória, pois seu texto não representava a “cristalização” de uma ideologia política pura e ortodoxa. O constitucionalista brasileiro afirma que ela foi o resultado do compromisso possível entre diversos interesses e forças políticas na Constituinte. Ele qualifica ainda a carta magna brasileira como dirigente ou programática. Se ela “não se contenta em organizar o Estado e elencar os direitos negativos” (DE SOUZA NETO, SARMENTO, 2012: 171), ela prossegue “prevendo direitos positivos e estabelecendo metas, objetivos, programas e tarefas a serem perseguidas pelo Estado e pela sociedade”, constata Sarmento. A organização da Constituição de 1988 desperta atenção quando comparada com constituições anteriores. O movimento constitucionalista anterior à segunda guerra mundial se preocupou com a estrutura do Estado. No pós-segunda guerra, ele passou a consagrar direitos e garantias fundamentais. Eles eram elencados nos primeiros capítulos e só depois havia preocupação em “disciplinar a organização estatal”. A Constituição brasileira, de 1988, não fugiu a essa inovação. Ela tem seu ponto alto nos direitos fundamentais. Elencando direitos civis e políticos, a Carta brasileira garantiu direitos sociais e agregou, nas palavras de Sarmento, direitos de terceira dimensão. Para tanto, ela se preocupou com a efetivação destes mesmos direitos, o que pode ser confirmado com a disposição do art. 5º, § 1º3. Ainda segundo Sarmento, a Constituição normatiza voltando seus olhos para os sujeitos mais vulneráveis da sociedade brasileira. Ela procede “à defesa das mulheres, consumidores, crianças e adolescentes, idosos, indígenas, afrodescendentes, quilombolas, pessoas com deficiência e presidiários” (DE SOUZA NETO, SARMENTO, 2012: 173). Ao mencionar os artigos 215, 216, 231 e art. 68 do ADCT, o constitucionalista aduz que a constituição 3 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: § 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.” 202 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi contemplou “alguma abertura para o multiculturalismo, ao incumbir-se da proteção das diferentes identidades culturais e étnicas que compõem a Nação brasileira” 4. Não obstante isto, ele reconhece que os constituintes conservadores consideravam os direitos fundamentais da Constituição mais como “adereços para o embelezamento” do que como direitos dotados de significação prática. Quanto à organização dos três poderes, a Constituição ampliou os poderes do Legislativo e do Judiciário - esperados para um regime que visa a superar o período autoritário. O executivo foi fortalecido com a prerrogativa de edição de medidas provisórias e com a manutenção do controle da “agenda parlamentar”. No entanto, pela engenharia política, o Executivo depende sempre de maioria no legislativo e assim de alianças para construir maioria parlamentar, o que alguns constitucionalistas chamam de “Presidencialismo de Coalização”. O Legislativo, em comparação com a limitação do Regime Militar, foi reforçado quanto à produção de normas e à função de fiscalizador dos outros poderes. No entanto, a mudança que mais tem gerado debate é a que diz respeito ao poder judiciário. Pelo arranjo adotado, que combina uma Constituição extensa e invasiva, com inúmeros instrumentos de controle de constitucionalidade, tornou-se difícil que alguma decisão política mais relevante deixe de ser submetida ao Judiciário, que muitas vezes decide contra a vontade dos demais poderes do Estado. Tal fenômeno, que tem se tornando mais agudo nos últimos anos, vem suscitando questões complexas sobre os limites da legitimidade democrática da atuação do Judiciário, uma vez que os seus membros não são eleitos, nem podem ser destituídos pelo voto popular, e muitas vezes decidem questões altamente controvertidas com base na exegese de cláusulas constitucionais vagas e abertas, que se sujeitam a diferentes interpretações (grifo nosso) (DE SOUZA NETO, SARMENTO, 2012: 175). Dessa forma, o debate que se abre é quanto à possibilidade das ponderações entre princípios e valores constitucionais5. 4 Isto fica mais evidente quando se constata que até hoje o reconhecimento do direito ao território das comunidades quilombolas no Brasil se tornou norma de pouca efetivação. 5 E a grande questão em torno do assunto é se o Poder Judiciário, que não tem seus membros eleitos nem destituídos pela população, possui legitimidade para tomar decisões importantes. volume 06 203 i encontro de internacionalização do conpedi Fenômeno que se depreende de uma Constituição tão extensa quanto analítica como a Constituição de 1988 é o que o Sarmento chama de “constitucionalização do ordenamento jurídico”. É praticamente impossível encontrar hoje um processo judicial em qualquer área – civil, penal, trabalhista, etc. – em que a Constituição não seja em algum momento invocada pelas partes do litígio e depois empregada pelo juiz ou tribunal na fundamentação da decisão. Mas não é só nos tribunais que este fenômeno se desenrola: nos debates parlamentares, nas reivindicações da sociedade civil e até mesmo na rotina tecnocratas, o discurso constitucional está, em alguma medida, penetrado (SARMENTO, 2009:167). Em suma, o que se tem constatado é que a Constituição de 1988, diferente das constituições de outras épocas, está presente de variadas maneiras no diaa-dia das pessoas, nos principais eventos dos brasileiros e, principalmente, nas reivindicações dos movimentos sociais6. O que se extrai da obra do autor é sua filiação tanto à corrente substancialista quanto à procedimentalista. Aquela impõe limites às deliberações políticas; esta recusa limites ao sistema democrático da deliberação. 7 Jürgen Habermas, teórico da escola de Frankfurt, e um dos principais expoentes da teoria procedimental, critica o papel do Tribunal Constitucional Alemão quanto à sua visão de constituição como “ordem de valores”, apontando assim o “caráter antidemocrático e paternalista” (DE SOUZA NETO, SARMENTO, 2012: 225) dessa concepção: Ao deixar-se conduzir pela ideia da realização de valores materiais, dados preliminarmente no direito constitucional, o tribunal constitucional transforma-se em instância autoritária. No caso de uma colisão, todas as razões podem assumir o caráter de argumentos de colocação de objetivos, o que faz ruir a vigia mestra introduzida no discurso jurídico pela compreensão deontológica de normas e princípios do direito (...). Na medida em que um 6 E a questão que tem gerado mais debate é acerca de como serão aplicados os preceitos constitucionais. 7 Sarmento tenta conciliar tais correntes em suas atividades profissionais. 204 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi tribunal constitucional adota a teoria da ordem de valores e a toma como base de sua prática a decisão, cresce o perigo de juízos irracionais, porque, neste caso, os argumentos funcionalistas prevalecem sobre os normativos (HABERMAS, 2003:321-322). Em sentido inverso, o substancialismo sustenta a legitimidade de decisões substantivas no que concerne aos direitos fundamentais. Nesse sentido, a obra Uma Teoria da Justiça, de John Rawls, com a primeira publicação em 1971, pode ser citada como paradigma na influência dessa doutrina: Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema total de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdade para todos; as desigualdades econômicas e sociais devem ser ordenadas de tal modo que, ao mesmo tempo: (a) tragam o maior benefício possível para os menos favorecidos, obedecendo às restrições do princípio da poupança justa, e (b) sejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades (RAWLS, 1976: 3-4). Conjugando as duas teorias, em apertada síntese, duas conclusões podem ser deduzidas do pensamento do constitucionalista brasileiro. Primeiro: é legítimo estabelecer limites para as maiorias de cada momento, principalmente quando ligados à proteção de direitos fundamentais e do próprio acesso ao processo democrático. Dessa forma, ele entende que a constituição atribui ao Poder Judiciário o poder de fiscalizar esses limites (SARMENTO, 2009: 186). Segundo: a Constituição não pode ser considerada como fonte capaz de oferecer respostas a todos os problemas nacionais. “Uma teoria constitucional minimamente comprometida com a democracia deve reconhecer que a Constituição deixa vários espaços de liberdade para o legislador e para os indivíduos, nos quais a autonomia política do povo e a autonomia privada da pessoa humana podem ser exercitadas” (SARMENTO, 2009: 186). Dessa forma, o autor de Direito Constitucional defende modelo constitucional em que possa haver suficiente abertura para deliberações políticas “de cada geração” e que evite os excessos do substancialismo na teoria constitucional para não limitar o componente democrático. No entanto, ele reconhece a possibilidade substancialista quando a proteção diz respeito aos direitos fundamentais de volume 06 205 i encontro de internacionalização do conpedi minorias contra as maiorias no processo democrático. Nesta hipótese, desempenha papel importante o Poder Judiciário. Nesse contexto, a interpretação dada pelo constitucionalista brasileiro ao dispositivo constitucional que faz menção expressa ao direito à posse do território quilombola se torna mais clara. Ele reconhece a possibilidade substancialista quanto à proteção de minorias. Na concepção de Sarmento, o art. 68 do ADCT8 encerra um direito fundamental. Numa leitura teleológica que conjuga o art. 5º, § 1º e § 2º, da CF, o direito à terra dos quilombolas pode assim ser ligado ao direito fundamental à cultura, de acordo com art. 215 da CF9, direito esse que se liga à própria identidade cultural dos membros da comunidade. Dessa forma, o art. 68 do ADCT tornaria os territórios das comunidades quilombolas afetados aos poder público com finalidade pública específica, e ele não diria respeito a um simples direito patrimonial, mas a uma garantia da própria existência do grupo. Assim, os quilombolas poderiam valer-se de todos os instrumentos processuais hábeis para defesa desse direito, em detrimento de terceiros ou do próprio proprietário.10 Assim, o artigo 68 do ADCT se ligaria 8 Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. 9 Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. § 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. § 2º - A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais. § 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à: I defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; II produção, promoção e difusão de bens culturais; III formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; IV democratização do acesso aos bens de cultura; V valorização da diversidade étnica e regional. 10 Esta posição de Daniel Sarmento se encontra em seu parecer de 09 de outubro de 2006, a pedido da 6º Câmara do Ministério público Federal, quanto à questão da garantia do direito à posse dos remanescentes de Quilombos antes da desapropriação. 206 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi diretamente ao princípio da dignidade da pessoa humana - norma axiológica que fundamenta toda a constituição -, princípio esse que pretende, assim, preservar a identidade e a cultura quilombolas. Por outro lado, Sarmento utiliza a filosofia do reconhecimento para fundamentar o direito de minorias na Constituição brasileira, especialmente a do filósofo canadense Charles Taylor. A partir dessa perspectiva antropológica mais adequada, foi possível construir, por exemplo, a ideia do “direito ao reconhecimento”, que reclama o respeito às identidades coletivas dos grupos não hegemônicos, diante da constatação de que a desvalorização social dos grupos tende a atingir profundamente a dignidade de cada um dos seus integrantes. Quando, por exemplo, a sociedade deixa de valorizar a cultura negra e a importância do seu legado para o país; quando ela valoriza apenas as contribuições europeias para a formação da Nação, priorizando os seus valores e a sua estética, atinge-se diretamente a autoestima das pessoas negras, o que pode até comprometer a sua capacidade de formular e seguir autonomamente os seus planos de vida, tão encarecida pelos liberais. A compreensão dessa forma de exclusão, que não está necessariamente relacionada à opressão econômica, e a busca de remédios para combatê-la, estão por trás das chamadas “políticas do reconhecimento”, que têm inequívoca dimensão emancipatória. A Constituição de 88 tem claras aberturas a este viés emancipatório do comunitarismo, expresso em “políticas do reconhecimento”. É o que ocorre, por exemplo, no art. 216, § 1º, da Constituição, que impõe ao Estado o dever de proteger “as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional” (DE SOUZA NETO, SARMENTO, 2012 : 213). Por fim, afirma o constitucionalista que dessa forma a constituição brasileira demostra uma abertura para o comunitarismo. No entanto, ressalva que não se deve confundi-la com uma Constituição “comunitária”. A Carta de 88 é uma constituição social que “se ocupa da proteção e promoção da cultura nacional (arts. 215 e 216 da CF) e consagra direitos transindividuais, de titularidade coletiva” (DE SOUZA NETO, SARMENTO, 2012 : 214). volume 06 207 i encontro de internacionalização do conpedi 3.antecedentes históricos e filosóficos do atual constitucionalismo br asileiro e os direitos fundamentais Barroso compreende o jusnaturalismo como corrente filosófica que define o Direito fundamentado na existência de um direito natural. Reconhece assim que há na sociedade “um conjunto de valores e de pretensões humanas legítimas que não decorrem de uma norma jurídica emanada do Estado, isto é, independem do direito positivo (BARROSO, 2004: 318). E sua origem remontaria, segundo Barroso, a Hugo Grocio, filósofo que, na primeira metade do século XVII, na Europa, desenvolveu a concepção de que o direito natural é o conjunto de direitos que devem ser reconhecidos como válidos por todos os povos, independentemente e desvinculadamente da vontade divina e dotado de existência própria. Observa, em Grocio, o início da aplicação do raciocínio tomista às ciências humanas. A influência de São Tomás de Aquino é reconhecida por Barroso como “o mais influente” no que tange ao sistema filosófico por ele desenvolvido durante a baixa idade média europeia, delimitando fronteiras de atuação e raciocínio entre a fé e a razão: “Pregando ser a lei um ato de razão e não de vontade, distinguiu quatro espécies de leis: uma lei eterna, uma lei natural, uma lei positiva humana e uma lei positiva divina” (BARROSO, 2004: 318). As influências do racionalismo se fazem sentir, na prática, no reconhecimento de documentos escritos, de compiladores de normas e como fonte de direito aplicável, exigível e executável. Trata-se de se resguardar o Direito das interpretações metafísicas religiosas até então vigentes e exteriorizadas pelas vontades dos governantes soberanos absolutistas. O jusnaturalismo, para o constitucionalista brasileiro, apresenta, portanto, como relevantes influências para o direito tanto moderno como contemporâneo as rupturas promovidas em relação ao pensamento escolástico medieval. Como influências para o direito moderno constitucional, afirma-se o reconhecimento do ser humano como ente cuja existência e destino não se submetem mais aos princípios, valores e normas metafísicos da religião. Associando-se ao iluminismo, já no século XVIII, o jusnaturalismo traça a necessidade de o Estado ser reconhecido enquanto ente abstrato com princípios e objetivos desvinculados do governante. 208 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi A Constituição é o documento que, por excelência, regula estes princípios e objetivos do Estado, bem como delimita – descrevendo e limitando – as relações entre Estado, governo e sociedade. Enquanto texto escrito, ela tem o poder de esclarecer e vincular as atitudes do Estado, do Governo e de seus cidadãos, prescrevendo-lhes consequências jurídicas precisas. Trata-se da Escola da Exegese, que prioriza a fidelidade ao texto legal como forma de manutenção e desenvolvimento da ordem socioeconômica vigente, deixando-a livre de eventuais caprichos e arbitrariedades por parte, sobretudo, do governo. Para o direito constitucional contemporâneo, o jusnaturalismo se apresenta como o sistematizador da constituição enquanto instituto de obediência e de vinculação entre Estado, Governo e Sociedade, o que viabilizou o desenvolvimento do Estado Liberal, fundado numa economia e num contexto social em que a autonomia da vontade não poderia sofrer interferências que não as previstas na Constituição, o que, favoravelmente, limitava a atuação do Estado e do Governo a cumprir preceitos constitucionais elaborados por uma Assembleia Nacional Constituinte composta de representantes do povo, representantes esses de maioria burguesa-industrial. A tripartição de poderes, em sua forma clássica, segundo Montesquieu – completa independência para se obter perfeita harmonia entre Legislativo, Executivo e Judiciário –, teve como escopo a atribuição ao Judiciário do poder de julgar não apenas conforme a lei, mas, principal e estritamente, conforme a letra da lei, sem qualquer possibilidade de interpretação que não a gramatical, histórica ou teleológica. Esta aliança teórico-metodológica entre jusnaturalismo e escola da Exegese, para Barroso, representa, também, a própria superação histórica do jusnaturalismo, porque a literalidade na interpretação e na aplicação das normas jurídicas não permitiu qualquer possibilidade de valores externos penetrarem o direito: o direito natural passou a ser considerado metafísico e anticientífico, sendo marginalizado em prol do movimento positivista vigente no século XIX, e o positivismo se tornou, “nas primeiras décadas do século XX, a filosofia dos juristas”. O positivismo jurídico, instrumentalizado pela escola da Exegese, se apresentou como eficiente arma para manutenção da ordem socioeconômica volume 06 209 i encontro de internacionalização do conpedi estabelecida com a Revolução Francesa. Teve como base teórica o positivismo clássico, de Auguste Comte, como fundamento filosófico o Tomismo, e como base metodológica o iluminismo: “o homem chegara a sua maioridade racional e tudo passara a ser ciência: o único conhecimento válido, a única moral, até mesmo a única religião. O universo, conforme divulgado por Galileu, teria uma linguagem matemática, integrando-se a um sistema de leis a serem descobertas, e os métodos válidos nas ciências da natureza deviam ser estendidos às ciências sociais” (BARROSO, 2004: 322). 11 O autor de Interpretação e Aplicação da Constituição compreende que o auge do positivismo jurídico se deu com Hans Kelsen, tendo como principais características: a) A aproximação plena entre Direito e norma; b) A afirmação da estatalidade do Direito: a ordem jurídica é uma e emana do Estado; c) A completude do ordenamento jurídico, que contém conceitos e instrumentos suficientes e adequados para solução de qualquer caso, inexistindo lacunas; d) O formalismo: a validade da norma decorre do procedimento seguido para sua criação, independendo do conteúdo. Também aqui se insere o dogma da subsunção, herdado do formalismo alemão. O constitucionalista brasileiro afirma que, para os juristas do século XX, a redução extrema à qual o direito foi levado, enquanto conjunto de normas independentes num sistema fechado, não foi capaz de garantir a neutralidade dos intérpretes na aplicação da lei. Muito pelo contrário: ele observou que o direito 11 Em sentido amplo o termo “positivismo” designa a crença ambiciosa na ciência e nos seus métodos. Em sentido estrito, identifica o pensamento de Auguste Comte, que em seu Curso de filosofia positiva desenvolveu a denominada lei dos três estados, segundo a qual, o conhecimento humano havia atravessado três estágios históricos: o teológico, o metafísico e ingressara no estágio positivo ou científico. Barroso compreende que as três premissas fundamentais do positivismo filosófico são, in verbis: “(i) a ciência é o único conhecimento verdadeiro, depurado de indagações teológicas ou metafísicas, que especulam acerca de causas e princípios abstratos, insuscetíveis de demonstração; (ii) o conhecimento científico é objetivo. Funda-se na distinção entre sujeito e objeto e no método descritivo, para que seja preservado de opiniões, preferências ou preconceitos; (iii) o método científico empregado nas ciências naturais, baseado na observação e na experimentação, deve ser estendido a todos os campos de conhecimento, inclusive às ciências sociais. 210 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi nunca deixou de ser uma criação destinada à manutenção de uma determinada ordem. A crítica mais feroz ao positivismo jurídico apresenta assim uma base teórica marxista, que trabalha o direito como instrumento de dominação criado por uma classe social a fim de manter certa ordem socioeconômica desejável pela classe dominante. E, para tanto, o mecanismo metodológico do positivismo jurídico se apresenta bastante eficaz, na medida em que não permite influência de nenhum outro valor, conhecimento ou parâmetro de moral na aplicação das normas pré-estabelecidas. Barroso aponta dois grandes movimentos políticos e militares como marcos históricos para a decadência do positivismo jurídico: o fascismo italiano e o nazismo alemão. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a ideia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como uma estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha aceitação no pensamento esclarecido. A superação histórica do jus naturalismo e o fracasso político do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito, sua função e social e interpretação. O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica e a teoria dos direitos fundamentais (BARROSO, 2004: 325). Ele apresenta o neopositivismo como uma “volta aos valores, uma reaproximação entre ética e direito” (BARROSO, 2004: 326), o que não significa reincorporação da metafísica abstrata e subjetiva no direito. Trata-se de resgate de valores jusnaturalistas que devem ser incluídos no sistema fechado de interpretação e aplicação do direito positivo, desta vez com parâmetros éticos objetivos fundados na dignidade da pessoa humana. A virada kantiana é sustentada pelo autor como movimento sócio-filosófico de valorização do homem e de sua natureza como centro de irradiação de validade, tanto do conteúdo de normas jurídicas como da validade da interpretação e da aplicação de normas jurídicas no caso concreto. A liberdade, a igualdade material e a vida do homem passam a ser os vetores de validade, aplicação e interpretação de normas jurídicas, elevados à categoria de direitos fundamentais, através da ressignificação da função jurídicovolume 06 211 i encontro de internacionalização do conpedi social dos “princípios jurídicos”. Tais vetores passam a ser, então, caracterizados como princípios jurídicos, com eficácia de norma jurídica caso as regras jurídicas existentes que disciplinam tais temas em certo ordenamento jurídico não sejam suficientes para efetivar a dignidade da pessoa humana no caso concreto. A novidade das últimas décadas não está, propriamente, na existência de princípios e no seu eventual reconhecimento pela ordem jurídica. Os princípios, vindos dos textos religiosos, filosóficos ou jusnaturalistas, de longa data permeiam a realidade e o imaginário do Direito, de forma direta ou indireta. (...) Os princípios constitucionais, portanto, explícitos ou não, passam a ser a síntese dos valores abrigados no ordenamento jurídico. Eles espelham a ideologia da sociedade, seus postulados básicos, seus fins. Os princípios dão unidade e harmonia ao sistema, integrando suas diferentes partes e atenuando tensões normativas. (...) Na trajetória que conduziu ao centro do sistema, os princípios tiveram de conquistar o status de norma jurídica, superando a crença de que teriam uma dimensão puramente axiológica, ética, sem eficácia jurídica ou aplicabilidade direta e imediata. A dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas em geral, e as normas constitucionais em particular, enquadram-se em duas grandes categorias diversas: os princípios e as regras. Normalmente, as regras contêm relato mais objetivo, com incidência restrita às situações específicas às quais se dirigem. Já os princípios tem maior teor de abstração e uma finalidade mais destacada no sistema. Inexiste hierarquia entre ambas as categorias, à vista do princípio da unidade da Constituição. Isso não impede que princípios e regras desempenhem funções distintas dentro do ordenamento (BARROSO, 2004: 328). E ainda: A distinção qualitativa entre regra e princípio é um dos pilares da moderna dogmática constitucional, indispensável para a superação do positivismo legalista, em que as normas se cingiam a regras jurídicas. A Constituição passa a ser encarada como um sistema aberto de princípios e regras, permeável a valores jurídicos suprapositivos, no qual as ideias de justiça e de realização dos direitos fundamentais desempenham um papel central. A mudança de paradigma nessa matéria deve especial tributo à sistematização de Ronald Dworkin. Sua elaboração acerca dos 212 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi diferentes papéis desempenhados por regras e princípios ganhou curso universal e passou a constituir o conhecimento convencional na matéria (BARROSO, 2004: 328).12 Barroso se permite influenciar tanto pela distinção conceitual entre princípio e regra feita por estes autores quanto pela distinção funcional, e entre eles, para fins de efetivação dos direitos fundamentais, sobretudo no campo da colisão de direitos fundamentais. Ele apresenta esta distinção a fim de considerar que direitos fundamentais, uma vez normativamente classificados como princípios, precisam ser eficazes, independentemente do caso concreto. Este raciocínio tem por escopo impedir que, num caso concreto, um direito fundamental possa ser afastado pela aplicação total e completa de outro, se fosse classificado como regra apenas, nos termos estritos do positivismo clássico. O objetivo de caracterizar o direito fundamental como princípio e como norma jurídica (pós-positivismo), e não como regra, é reduzir o menosprezo pelo direito fundamental que seria afastado. As regras são disposições legais de conteúdo certo e determinado, com destinatário específico sobre cujo caso concreto a regra deverá incidir mediante subsunção do fato à norma ou não. Já os princípios, em função de sua alta carga valorativa, possuem alta densidade jurídica e, portanto, são voltados a destinatários cujos casos concretos só serão individualizados quando ocorrerem no mundo real. Os princípios são genéricos, de conteúdo indeterminado e de alta densidade jurídica porque podem incidir em diversos casos concretos, inclusive podendo haver aparente colisão entre dois ou mais princípios incidentes no caso concreto. Portanto, os princípios somente serão aplicados ao caso concreto depois de terem seu conteúdo lapidado segundo as exigências sócio-jurídicas do caso concreto cuja solução lhe for submetida. Regras são proposições normativas aplicáveis sob a forma de tudo ou nada (all or nothing). Se os fatos nela previstos ocorrerem, a regra deve incidir, de modo direto e automático, produzindo seus efeitos. (...) Princípios contêm, normalmente, uma maior carga valorativa, um fundamento ético, uma decisão política relevante, e indicam determinada direção a seguir. Ocorre que, em ordem 12 Taking rights seriously é a obra de Dworkin mais citada por Barroso. volume 06 213 i encontro de internacionalização do conpedi pluralista, existem outros princípios que abrigam decisões, valores ou fundamentos diversos, por vezes contrapostos. A colisão de princípios, portanto, não só é possível como faz parte da lógica do sistema, que é dialético. Por isso a sua incidência não pode ser posta em termos de tudo ou nada, de validade ou invalidade. Deve-se reconhecer aos princípios uma dimensão de peso ou importância. À vista dos elementos do caso concreto, o intérprete deverá fazer escolhas fundamentadas, quando se defronte com antagonismos inevitáveis, como os que existem entre a liberdade de expressão e o direito de privacidade, a livre iniciativa e a intervenção estatal, o direito de propriedade e sua função social. A aplicação dos princípios se dá, predominantemente, mediante ponderação (BARROSO, 2004: 329).13 Dworkin e Alexy, assim como Habermas, filiam-se à Escola. Habermas compreende que princípios e valores são vetores que uniformizam demandas para acesso ao procedimento democrático, de forma que os reivindicantes devem usar os instrumentos procedimentais democráticos previstos na Constituição para demandar reformas legislativas capazes de satisfazer suas demandas. Dworkin (1977) e Alexy (2011) compreendem que os princípios são normas capazes de solucionar casos concretos cujas regras jurídicas incidentes não ofereçam a solução jurídica fundada na potencialização da dignidade da pessoa humana desejada pelas partes e que tais demandas devem ser atendidas independentemente de prévia modificação legislativa específica. No direito brasileiro, a disposição de regras e princípios jurídicos presentes na Constituição de 1988 se apresenta como um conjunto de “regras de baixo teor 13 “As regras veiculam mandados de definição, ao passo que os princípios são mandados de otimização. Por essas expressões se quer significar que as regras têm natureza biunívoca, isto é, só admitem duas espécies de situação, dado seu substrato fático típico: os são válidas e se aplicam ou não se aplicam por inválidas. Uma regra vale ou não vale juridicamente. Não são admitidas gradações. A exceção da regra ou é outra regra, que invalida a primeira, ou é a sua violação. Os princípios se comportam de maneira diversa. Como mandados de otimização, pretendem eles ser realizados da forma mais ampla possível, admitindo, entretanto, aplicação mais ou menos intensa de acordo com as possibilidades jurídicas existentes, sem que isso comprometa sua validade. Esses limites jurídicos, capazes de restringir a otimização do princípio, são (i) regras que o excepcionam em algum ponto e (ii) outros princípios de mesma estatura e opostos que procuram igualmente maximizar-se, impondo a necessidade eventual de ponderação.” 214 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi valorativo, que cuidam do varejo da vida”. O autor de Interpretação e Aplicação da Constituição tece essa crítica a fim de valorizar a importância dos princípios enquanto normas jurídicas na Constituição de 1988 e obter, mediante interpretação das normas jurídicas já escritas e positivadas, a aplicação – ou não aplicação – de regras de forma “justa”, valorizando e efetivando direitos fundamentais. Trata-se, segundo palavras de Barroso, de “nova interpretação constitucional” cujo objetivo é a conservação de conceitos tradicionais aliados a ideias que anunciem novos tempos e acudam novas demandas (BARROSO, 2004: 346). Estas novas demandas seriam aquelas frutos da pós-modernidade, que, segundo o autor, é retratada como a individualização do indivíduo enquanto sujeito de direito – e não mais objeto de direito – que precisa efetivar suas potencialidades intelectuais, sociais e culturais. As regras positivadas, destinadas a casos concretos específicos de uma era sociocultural positivista, e antes da globalização, não solucionam essas “novas demandas”, porque contém fundamento teóricometodológico distinto. Portanto, diante da incapacidade de o Executivo e o Legislativo proverem as necessidades representadas por estas “novas demandas”, mediante regras e aplicação de regras, esses indivíduos – novos demandantes – se veem obrigados a recorrer ao Judiciário para conseguir efetivar seus direitos. O Judiciário, sobretudo mediante exercício do controle de constitucionalidade, é o poder estatal legitimado a satisfazer tais demandas e o instrumento que lhe estaria disponível seria justamente o uso de princípios de direitos fundamentais como vetores de ponderação de normas principiológicas ou como vetores normativos para justificar a não aplicação de regras prejudiciais à dignidade da pessoa humana no caso concreto. Trata-se de uso político do ordenamento jurídico a fim de efetivar direitos até então não positivados. O ator principal não seria apenas o Poder Judiciário, porque este recebe as demandas e tem o dever constitucional de prestar tutela jurisdicional (princípio constitucional de irrestrito acesso à justiça) fundado no caso concreto que lhe for submetido. E, como não conseguiria solucioná-lo aplicando apenas regras, no método positivista clássico, se vê obrigado a aplicar princípios, que servem de fundamento para as “novas demandas” O ator principal é, então, o intérprete, porque esta categoria abrange todos os que descrevem juridicamente casos concretos pendentes de resolução, incluindo não apenas os volume 06 215 i encontro de internacionalização do conpedi membros do Poder Judiciário, mas demais profissionais do direito e, sobretudo, indivíduos, grupos sociais e movimentos sociais que identificam e individualizam “novas demandas” perante o Estado. Barroso enaltece a importância dos intérpretes na ordem constitucional de 1988, sobretudo o intérprete que atua junto ao Judiciário a fim de alcançar resultados positivos em demandas que não encontram amparo legal em regras positivadas. Isto porque, a função do intérprete, no caso concreto, é extrair do princípio um núcleo essencial tão certo e determinado para o caso concreto com a mesma força de delimitação de incidência normativa que a regra, a fim de garantir sua efetividade e a eficácia enquanto norma solucionadora do caso concreto. É claro que os fatos e o intérprete sempre estiveram presentes na interpretação constitucional. Mas nunca como agora. Faça-se uma anotação sumária sobre cada um: Os fatos subjacentes e as consequências práticas da interpretação. Em diversas situações, inclusive e notadamente das hipóteses de colisão de normas e de direitos constitucionais, não será possível colher no sistema, em tese, a solução adequada: ela somente poderá ser formulada à vista dos elementos do caso concreto, que permitam afirmar qual desfecho corresponde à vontade constitucional. Ademais o resultado do processo interpretativo, seu impacto sobre a realidade não pode ser desconsiderado: é preciso saber se o produto da incidência da norma sobre o fato realiza finalisticamente o mandamento constitucional. O intérprete e os limites de sua discricionariedade. A moderna interpretação constitucional envolve escolhas pelo intérprete, bem como a integração subjetiva de princípios, normas abertas e conceitos indeterminados. Boa parte da produção científica da atualidade tem sido dedicada, precisamente, à contenção da discricionariedade judicial, pela demarcação de parâmetros para a ponderação de valores e interesses e pelo dever de demonstração fundamentada da racionalidade e do acerto de suas opções (BARROSO, 2004: 360-361).14 14 O autor apresenta os seguintes casos concretos como exemplos de aplicação de princípios em detrimento de regras: i) o debate sobre relativização da coisa julgada que contrapõem princípios da segurança jurídica e outros valores como justiça, direitos da personalidade; ii) debate sobre a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, envolvendo a aplicação das normas constitucionais de efetivação de direitos fundamentais às relações privadas; iii) debate sobre o papel da imprensa, liberdade de expressão e direito à informação em contrate com o direito à honra, à imagem e à vida privada. 216 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi O destaque político da função do intérprete é fundamentado por Barroso a partir da Teoria da Argumentação, que, segundo recorte do autor, atribui ao intérprete a função de investigar e defender qual dentre as diversas possibilidades interpretativas é a mais correta, leia-se, qual é capaz de apresentar uma fundamentação racional consistente para o caso concreto estudado (BARROSO, 2004: 363). O constitucionalista apresenta os seguintes princípios constitucionais que seriam instrumentais para a interpretação: superioridade jurídica das normas constitucionais (BARROSO, 2004: 369) 15, natureza aberta e indeterminada da linguagem constitucional16, conteúdo específico das normas constitucionais17 e o caráter político (BARROSO, 2004: 369).18 4. o constitucionalismo dos constitucionalistas em questão A abordagem predominantemente doutrinária e retórica da relação entre constituição e constitucionalismo nas obras jurídicas de Sarmento e Barroso traduz principalmente preocupação de natureza prática com a interpretação e a aplicação da constituição brasileira quanto à solução de conflitos submetidos à apreciação do Judiciário. Neste sentido, os dois se afastam do constitucionalismo enquanto doutrina ou pensamento que possuem preocupações quanto a problemas de outra natureza. Por exemplo, eles não (se) questionam acerca da singularidade do constitucionalismo brasileiro ou latino-americano quanto ao fato de que o desenvolvimento dos mesmos opera segundo padrão e princípios originários da razão cultural ocidental, o que implica negar nossa história. “Negar 15 Constituição tem superlegalidade em relação às demais normas do ordenamento jurídico, tornando-se parâmetro de validade, isto é, paradigma pelo qual se afere a compatibilidade de uma norma com o sistema como um todo. 16 Já retratado anteriormente neste texto. 17 Normas de organização, que contém decisões políticas fundamentais, instituições de poder e competências; normas constitucionais definidoras de direitos, que identificam direitos individuais, políticos, sociais e coletivos; normas programáticas, que estabelecem valores e fins públicos a serem realizados. 18 “A Constituição é o documento que faz a travessia entre o poder constituinte originário – fato político – e a ordem estatuída, que é um fenômeno jurídico. Cabe ao direito constitucional o enquadramento jurídico dos fatos políticos”. volume 06 217 i encontro de internacionalização do conpedi nossas origens é próprio de uma maldição que atravessa nossa América Latina [e também o Brasil]. Maldição que se assenta no critério (...) de modernizações sem modernidade” (ROSENMANN, 2008, 09. Tradução livre). Ambos os constitucionalistas reconhecem a importância e ampliação do papel deste poder na efetivação de direitos quanto às mudanças consagradas pela Constituição brasileira de 1988. Barroso aborda a questão das novas demandas, individuais ou sociais, no contexto que ele denomina de pós-modernidade. Sarmento revela preocupação quanto à fiscalização dos limites a serem definidos na relação entre maiorias e minorias. Este procura explicar a produção da Constituição segundo o eixo normativo e o plano político. O texto constitucional brasileiro resultou tanto da influência das constituições portuguesa e espanhola como de forças e interesses políticos nacionais divergentes que conformaram a Constituinte. Aquele trata de forma quase neutra a Constituição como “documento” que faz a “travessia” entre fato jurídico - a ordem constituída - e fato político - a Constituinte. Sarmento caracteriza esse “documento” como “compromisso possível” entre forças e interesses antagônicos na Constituinte. A natureza política da Constituição pode ser reconhecida quanto ao fato de que ela traduz o “coroamento” da transição do regime autoritário para o regime democrático. Para Barroso, a dimensão política referente à Constituição está associada à função do seu intérprete, quanto à investigação e defesa da possibilidade interpretativa a mais correta. No entanto, nenhum dos dois constitucionalistas considera o conhecimento da realidade jurídico-constitucional situado entre o empírico e o crítico à luz da crise da modernidade ou da pós-modernidade. Cada um deles como que produz a interpretação ou modelo interpretativo ao qual ficam submetidos mecanicamente os fatos a serem analisados. “Definir sua localização [dos fatos no tempo], sua capacidade de mudança, as determinações que tornam possível explicar sua especificidade [dos fatos no tempo] não entra no campo das condições sobre as quais deve iniciar-se a discussão para explicar seu funcionamento [dos fatos no tempo].” (ROSENMANN, 2008, 18. Tradução livre). A relação entre a Constituição e as pessoas de modo geral não é abordada da mesma forma pelos dois constitucionalistas. Para o autor de Interpretação e 218 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi Aplicação do Direito, o segundo termo dessa relação é representado pelas “novas demandas sociais” e supõe o exercício do controle de constitucionalidade por parte do poder judiciário, através do uso dos “princípios de direitos fundamentais”. Para o autor de Livres e Iguais, ele transcende os limites dos processos na justiça para alcançar reivindicações sociais, debates políticos, decisões técnicas, ainda que do ponto de vista do discurso. É o que Sarmento chama de “constitucionalização do ordenamento jurídico”. Mesmo que o tema da “universalidade” não desapareça nos dois constitucionalistas, ele mais parece fundamentar preocupação com certo tipo de atitude filosófica “mais preocupada com a ação eficaz do que com a teoria. Uma filosofia que mostra as possibilidades desta ação e de suas possibilidades de eficácia” (ZEA, 2005: 484). Do ponto de vista do plano teórico, a fundamentação do constitucionalismo na chave dos modelos de interpretação da Constituição brasileira constitui terreno doutrinário onde é possível reconhecer as divergências entre Sarmento e Barroso. Quanto a situações concretas e diferentes, Sarmento revela influência e adesão tanto à concepção procedimentalista habermasiana como à formulação substancialista rawlsiana no que diz respeito ao problema relativo à aceitação ou não de limites às deliberações políticas de natureza democrática. Dworkin e Alexy constituem as principais influências sofridas por Barroso. No entanto, conforme se verá abaixo, nenhum nem outro procura discutir as áreas cinzentas e silenciosas que separam o constitucionalismo brasileiro dos constitucionalismos ocidentais, europeu e norte-americano, e aquelas que aproximam o constitucionalismo brasileiro do constitucionalismo latino-americano. Nem tampouco eles ousaram pensar que foi da América Latina que “partiu o processo histórico que definiu a dependência histórico-estrutural da América Latina e deu lugar, no mesmo movimento, à constituição da Europa ocidental como centro mundial de controle desse poder.” (QUIJANO, 2006: 49). Ao abrigar formulação substancialista na defesa dos direitos das minorias, Sarmento assume a concepção conflitualista da sociedade e reconhece o papel de fiscal do judiciário no contexto que opõe minorias e maiorias. Porém, a preocupação com a superação do utilitarismo e do perfeccionismo e a tese liberal rawlsiana acerca da boa vida para os cidadãos e a defesa desta por estes mesmos cidadãos sequer foram consideras por Sarmento. Por outro lado, o procedimentalismo volume 06 219 i encontro de internacionalização do conpedi habermasiano supõe a concepção de consenso social e a rejeição de limites definidos por valores, principalmente materiais. Aqui, tal como Habermas, Sarmento pensa os valores na chave do funcionalismo e os opõem a argumentos normativos e não leva em conta o substancialismo de Dworkin quanto ao acesso à democracia com base na continuidade histórica. Isto lhe permitiria dois resultados. De um lado, admitir os princípios constitucionais como conteúdo substancial da ordem constitucional, aptos a sanear “problemas empíricos” de desigualdades sociais, com base na função pragmática do direito. De outro lado, distinguindo as formas de substancialismo entre Rawls e Dworkin, fundamentar o procedimentalismo habermasiano, que supõe a ruptura histórica capaz de explicar, de forma lógica, a adoção de princípios constitucionais como resultando de “acordo ético” válido para sociedades e Estados saídos de formas autoritárias e totalitárias de governo. No entanto, nem Sarmento nem problematizam o funcionalismo nos moldes das ciências sociais. A ideia de que a sociedade funciona bem, por exemplo, não é questionada. Por outro lado, eles excluem as categorias e argumentos normativos do campo e da análise funcionalistas. A ideia de que as normas operam acima e fora da ordem dos valores, por exemplo, é aceita como princípio fundamental. Quanto à questão referente ao procedimentalismo habermasiano, Barroso retrata o movimento jus-filosófico pós-positivismo como decorrência teóricofilosófica da Teoria Crítica do Direito. Entretanto, ele amplia – ou ressignifica – a aplicação da Teoria Crítica do Direito para considerar as influências teóricas de Dworkin e Alexy. Ou, então, não se trata nem de ampliação nem de ressignificação, e sim de mera importação de formulações teóricas de forma mecânica e passiva. Não é claro o objetivo ou anseio de Barroso em aprofundar as rupturas teóricometodológicas entre Dworkin e Alexy e a Escola de Frankfurt. Seu principal objetivo é descrever, justificar e argumentar favoravelmente sobre a caracterização de princípios como normas jurídicas, como sendo tão ou mais eficazes que as regras. Além disto, o autor de Direito Constitucional não problematiza nem a natureza liberal e a concepção de sociedade individualista de Dworkin nem a teoria dos direitos fundamentais de Alexy em sua referência à constituição alemã. Barroso não se preocupa em explicar a recusa do procedimentalismo habermasiano enquanto método de eficácia do direito. Tampouco demonstra interesse em explicar as razões para a rejeição da contribuição jus-filosófica de 220 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi Habermas para o neopositivismo e para o movimento neo-constitucionalista do século XX. Essa posição negativa em seu pensamento se explica por duas razões. Primeira: a preocupação do constitucionalista em promover uma introdução históricofuncional do Direito, desde a concepção de Estado Moderno Constitucional, com as Revoluções Americana e Francesa até o pós-2ª Guerra Mundial como elemento que desencadeou a necessidade de transformações das funcionalidades jurídico-normativas dos princípios para o sistema jurídico-social vigente no Brasil do século XXI. Daí porque ele caracteriza a Teoria Crítica como um dos fundamentos teóricos do movimento neo-constitucionalista. Segunda: Barroso apresenta, através de concepção específica de pós-modernidade, a humanização e a individualização das necessidades sociais como fundamentos sócio-filosóficos da ampliação e aprofundamento da eficácia normativa de princípios constitucionais. No entanto, quando se trata de reconhecer o “outro” e suas diferenças, quanto à questão dos direitos das minorias, Sarmento como que abandona o substancialismo de Rawls para afirmar o comunitarismo de Taylor. É este deslocamento teórico que permite a Sarmento afirmar o caráter emancipatório e a abertura para o comunitarismo da Constituição brasileira e reconhecer o papel jurídico e social das políticas de reconhecimento dos governos democráticos. Por outro lado, essa “virada comunitarista” não esconde a distinção que faz o constitucionalista entre constituição comunitária e constituição social. Como constituição social, a Constituição brasileira de 1988 visa à proteção e promoção da cultura nacional, além de consagrar direitos transindividuais e de titularidade coletiva. A questão do universal e do particular é aborda diferentemente por Barroso. Sua introdução histórico-funcional do Direito se fundamenta em dois aspectos: as funcionalidades sócio-econômico-políticas do direito e das estruturas de poder jurídico-estatais e as concepções teórico-filosóficas que as embasaram. Quanto às funcionalidades do Direito e dos Poderes de Estado, elas são apresentadas, de forma bastante profunda e ampla, como definidores do modelo do Estado Liberal. Já as modificações funcionais por que passaram o Direito e os Poderes de Estado durante o Estado de Bem-Estar Social são definidas de modo bastante tímido. Em seguida, mais uma vez de forma bastante profunda, ele apresenta as volume 06 221 i encontro de internacionalização do conpedi consequências socioeconômicas da superposição destes modelos, associadas aos efeitos da globalização econômica e social, para justificar sua concepção específica de pós-modernidade enquanto momento histórico de valorização do indivíduo em suas potencialidades, atribuindo à pessoa humana um caráter universalizante quanto à necessidade de sua proteção pelo Estado, e um caráter individualizante quanto a suas peculiaridades que devem ser objeto de proteção. Barroso e Sarmento compreendem que os princípios jurídicos devem ter seu conteúdo e sua função sócio-jurídicos ressignificados do positivismo clássico para o pós-positivismo. Esta constitui a condição ou pressuposto de efetivação da dignidade da pessoa humana como vetor do sistema jurídico. No entanto, eles divergem quanto à instrumentalização e a efetivação desse raciocínio. Enquanto para Barroso, os princípios constitucionais “espelham a ideologia da sociedade”, para Sarmento a Constituinte – e, por conseguinte, a Constituição, suas regras e princípios – caracteriza-se pela ausência de “ideologia política pura e ortodoxa”. Enquanto o argumento de Sarmento permite afirmar o caráter “compromissório” da Constituição brasileira de 1988, o de Barroso garante sustentar a eficácia dos princípios constitucionais, enquanto classificados normativamente como direitos fundamentais, de forma independente de situações concretas. Neste sentido, o argumento de Sarmento é consentâneo com a visão segundo a qual a Constituição brasileira revela o mesmo caráter emancipatório que caracteriza a perspectiva comunitária, enquanto o argumento de Barroso traduz preocupação com a neutralidade dos intérpretes constitucionais no contexto do direito enquanto “conjunto de normas independentes num sistema fechado”. A afirmação da “volta aos valores”, que permite a Barroso definir o neopositivismo que aproxima ética e direito e afirmar uma “nova interpretação constitucional”, e a negação da “ordem dos valores”, que permite a Sarmento, nas pegadas de Habermas, afirmar o procidementalismo quanto à interpretação da Carta brasileira, conduzem os dois constitucionalistas a um mesmo resultado: a naturalização das categorias constitucionais “direitos fundamentais” e “dignidade da pessoa humana”. Nem o recurso ao comunitarismo de Taylor por parte de Sarmento nem a preocupação com os antecedentes históricos do constitucionalismo brasileiro por parte de Barroso produzem reflexão de natureza sociológica e histórica. Talvez 222 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi a influência do caráter mais sistematizador e moderado da reflexão da Bobbio e a descontextualização do pensamento de Taylor respondam pela dificuldade de um e de outro quanto à necessidade de distinção de valor e de significado das categorias “direitos fundamentais”, “direitos das minorias” e “dignidade da pessoa humana” quanto aos planos jurídico e sócio histórico. Seja como for, as investigações dos constitucionalistas brasileiros expressam limites que traduzem a situação em relação à qual é preciso “ser vigilante e desconfiado ao extremo, a fim de evitar – pela crítica e a consulta à realidade – a recaída nos modelos alienantes de reflexão” (BONDY, 1982: 132. Tradução livre) produzida pelo recurso a valores e conceitos importados. 5.conclusões A preocupação de Barroso com os antecedentes históricos e filosóficos do atual constitucionalismo brasileiro e o uso das categorias do pensamento de Dworkin e Alexy não fazem o constitucionalista brasileiro produzir nem trabalho histórico nem reflexão filosófica. A preocupação com o caráter comunitário da Constituição brasileira e o recurso ao pensamento filosófico e político de Taylor por parte de Sarmento não inscrevem os direitos das minorias no Brasil em configuração histórico e social determinada. Donde o caráter mais tópico e retórico de formulações dogmáticas dos constitucionalistas brasileiros que traduzem preocupação de natureza prática, de caráter profissional, quanto à resolução de conflitos no âmbito e através do direito constitucional. A preocupação de Sarmento com a fundamentação da defesa e efetivação dos direitos de minorias concretas conduz o constitucionalista a proceder de forma tradicional. Teórica e metodologicamente, ele adota a perspectiva das dicotomias clássicas e inscreve o procedimentalismo e o substancialismo no campo das exclusões mútuas e recíprocas. Suas rupturas ontológicas talvez sejam amenizadas como resultado de sua preocupação com a realidade concreta dos direitos das minorais. Neste caso, ele como que estabelece princípios para a interpretação e aplicação da Constituição na sociedade brasileira segundo a associação que ele termina por fazer entre procedimentalismo e generalidade, de um lado, e substancialismo e particularidade, de outro lado. Porém, talvez volume 06 223 i encontro de internacionalização do conpedi o constitucionalismo contemporâneo reclame abordagem quanto à questão acerca da relação de integração quanto a essas duas perspectivas, e não quanto à justificação desse tipo clivagem. Já a preocupação de Barroso com a interpretação e aplicação da Constituição brasileira na sociedade leva o constitucionalista a se debruçar menos sobre os direitos das minorias do que sobre a questão da dignidade da pessoa humana. Procedendo de forma retórica e dogmática, ele faz uso da teoria da argumentação e da distinção entre regras e princípios para definir os direitos humanos como princípios fundamentais da Constituição brasileira com função normativa e assim como critério de interpretação e aplicação do direito constitucional. Assim, o estágio atual do constitucionalismo brasileiro na pena e nas ideias dos constitucionalistas mobilizados é antes de tudo a resultante do processo político e social que traduziu correlação de forças e interesses tão distintos quanto contraditórios na sociedade brasileira, com participação de movimentos sociais e diversos setores da sociedade civil, e que resultou na reunião da Assembleia nacional constituinte. Não obstante isto, tanto a Constituinte como “produto” como as forças e interesses políticos e sociais como “processo” figuram principalmente como retórica no universo ideológico dos dois constitucionalistas. Paradoxalmente, as mudanças no então chamado “direito constitucional” definem tanto as rupturas políticas em relação ao autoritarismo militar com o avanço do processo de democratização da sociedade brasileira como as continuidades teóricas, dogmáticas e metodológicas que definem os limites dos constitucionalistas brasileiros quanto à dificuldade de incorporar em suas reflexões a realidade constitucional e o pensamento constitucional latino americano. Evidentemente que o resultado daí decorrente não impede a análise de conjuntura quanto a situações específicas da realidade brasileira referentes ao “sujeito de direito” e ao “direito do sujeito” no campo dos direitos das minorias e dos direitos fundamentais. Porém, ele define os limites do constitucionalismo brasileiro em termos de reflexão no contexto de qualquer preocupação com a teoria crítica do direito voltada para o problema da emancipação e da transformação. Mesmo que tais limites possam ser creditados à análise não da obra de pensamento de seus autores como um todo, e sim a fragmentos das mesmas, o fato é que a visão e o modo ocidentais e tradicionais de pensar e pesquisar o direito, sem 224 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi problematizar a relação que articula “objeto teórico” e “objeto real”, conduziram os constitucionalistas brasileiros investigados a considerar a emergência da Constituinte e da Constituição brasileiras de forma descontextualizada dos reais processos políticos, sociais, econômicos e culturais de sua formação. Assim, a Constituição brasileira foi abordada por Sarmento e Barroso como produto retórico de raciocínio orientado por preocupação de natureza prática quanto à solução de conflitos encaminhados à apreciação do judiciário. E o atual estágio do constitucionalismo brasileiro termina sendo definido pelas mudanças constitucionais naturalizadas no discurso dos constitucionalistas. 6.referências ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Malheiros: São Paulo, 2011. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. Ed. Saraiva, 2004. BENJAMIN, W. “Tesis de filosofia de historia”. IN El debate de la postmodernidad. Buenos Aires: Punto Sur, 1989. BONDY, Augusto Salazar. ¿Existe una filosofía de nuestra América? España, Argentina, Colombia: Siglo XXI editores, 1982. DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1977. _______. Law’s Empire. Oxford, Hart Publishing. 1998. GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais; transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 80, p 115-147, mar. 2008. HABERMAS, Jürgen. 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Trata-se de um convênio firmado entre a Prefeitura do Município do Rio de Janeiro, uma empresa privada dona dos terrenos no entorno da favela e o Núcleo de Pesquisa do qual os autores são integrantes. Palavras-chave Direitos Sociais; Regularização Fundiária; Favelas. Abstract The study aims to analyze some historical points that encouraged and facilitated the appearance of favelas in Rio de Janeiro, as well as, from this context, explain its propagation in Rio’s urban space until you reach the Favela of Rio das Pedras. The work undertaken in that agglomerate of houses, the third largest in the country, located in the municipality of Rio de Janeiro (RJ) tries to explain and problematize the implementation of a project for land regularization and 1 Doutor em Direito UGF/RJ e Mestre em Direito UCAM/RJ. 2 Doutora e Mestre em Direito pela UGF/RJ. volume 06 227 i encontro de internacionalização do conpedi urbanization in a favela with quantitative population as significant, taking into account that Rio das Pedras has approximately 80 000 inhabitants, distributed in approximately 30 million homes. This is an agreement between the Municipality of Rio de Janeiro, a private company that owns the land surrounding the favela and the Research Center of which the authors are members Key words Social Rights; Land Regularization; Favelas. 1.introdução A questão urbanística carioca revela nuanças sociais e jurídicas bem interligadas. De maneira especial, no Rio de Janeiro, percebemos contrastes reveladores de uma lógica de distorção no que tange o acesso ao direito de moradia. São décadas de desmandos e descuidos no sentido de promover acesso a uma moradia digna àqueles que não possuem meios próprios de acessá-la. Como será analisada, essa prática reiterada, permitiu um impacto devastador no recorte urbanístico em uma das maiores cidades do Brasil e, de maneira especial, a viabilização ao direito de propriedade também foi preterida a diversos atores sociais, impedindo-os de experimentar maior segurança jurídica em suas moradias. A lógica é perversa. Além da ausência de habitações seguras do ponto de vista arquitetônico, pois estão em desajuste com os padrões de normas edilícias, há também inexistência de um padrão jurídico que componha a regularização das moradias, o que reputa também uma inoficialidade, assim, seus endereços não são reconhecidos formalmente. São abstrações jurídicas ainda que fortemente materializados socialmente. Os dados da informalidade habitacional brasileira, traduzidos na formatação das favelas assustam. São quase onze milhões de pessoas que moram em favelas, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (CENSO-IBGE, 2010), órgão estatal de pesquisa do país. Portando, ainda que contextualmente, percebemos que a questão da regularização fundiária é urgente e traz em si consistente problematização, seja no campo jurídico, seja no campo social. Estamos falando de milhares de brasileiros 228 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi que não possuem habitações seguras e estão alijados de qualquer reconhecimento oficial de suas moradas. Neste aspecto, é necessário perceber que, em decorrência da ausência histórica de políticas públicas voltadas ao atendimento desse acesso, a favela se construiu como um grande dilema, pois se de um lado se compõe como uma solução viável de sobrevivência para certos segmentos da sociedade, também é vista como causadora de inúmeros problemas para a cidade. Essas contradições não são novas e, ao analisar a trajetória da ocupação irregular, em especial na cidade do Rio de Janeiro, nota-se que os descuidos dos agentes públicos, no que tange a uma cidadania igualitária, acabaram por fomentar tais dilemas, que datam de mais de um século. Desta forma, a lacunosa atuação estatal contribui sobremaneira para as reações sociais que visam, sobretudo, à autoinclusão no espaço da cidade. Dessa maneira, pode-se afirmar que as favelas são, antes de tudo, um esforço de resistência, posto que raros foram os momentos em que o ente público articulou efetivamente uma distribuição dos recursos e bens urbanos que visasse a população pobre, em especial. Também é fato que o Direito, historicamente, contribuiu para que esse processo de alijamento fosse mantido, razão pela qual é possível constatar, nos dias atuais, a presença de um robusto mercado imobiliário dentro das favelas. Sem opção de inserir-se na estrutura da moradia legal, pois a aquisição do direito de propriedade lhes é inacessível, os moradores de favelas constroem arranjos sociais que lhes possibilitem participar de uma estrutura de circulação de riquezas inoficial, mas que articula suas vidas cotidianas, ainda que diante da ausência do Estado (CORRÊA, 2012). Como forma de compreender melhor a importância de tais questões, optamos por demonstrar um caso concreto, a partir de pesquisa de campo em uma favela carioca, conhecida como Rio das Pedras, uma das maiores do Brasil, a fim de trazer ao debate as implicações resultantes na tentativa de agentes públicos e privados em urbanizar uma favela, o que perpasse necessariamente na regularização fundiária, posto ser impossível pensar em urbanização efetiva sem que haja o preenchimento de um pressuposto básico volume 06 229 i encontro de internacionalização do conpedi que é a regularização das moradias, visto que a respectiva regularização se mostra parte de um processo maior que é a urbanização em si. Isto significa dizer que pensar em regularização fundiária é também pensar em um plano maior de investimento público e, sob certo aspecto, também privado. Nessa condição, implantar a legalização das moradias, requer antes de tudo, regularizar os logradouros (ruas), para que haja um endereço legalizado, algo inexistente nas comunidades faveladas atuais, o que gera infindáveis transtornos para seus moradores. Assim, o presente trabalho possui a pretensão de analisar algumas questões históricas que impulsionaram e favoreceram o aparecimento das favelas no Rio de Janeiro, bem como, em nível contextual, explicitar sua propagação no espaço urbano carioca até chegar à Favela de Rio das Pedras, a terceira maior do país, nosso locus privilegiado de pesquisa, de modo que se possa explicitar e problematizar a implantação de um projeto de urbanização em uma favela com contingente populacional tão significativo, levando em conta que Rio das Pedras possui aproximadamente 80 mil moradores, distribuídos em cerca de 30 mil residências, com um crescimento vertical, apontado pelos órgãos públicos, como um dos maiores da cidade. Obviamente, que a implantação de um projeto de tal porte, adotado em larga escala, engendrará situações inusitadas e complexas. Nessa ordem, o presente artigo pretende demonstrar os resultados da pesquisa de campo que se encontra em desenvolvimento e contrastá-los com bases teóricas jurídicas voltadas para o assunto em destaque. A importância do tema se revela consistentemente, pois é notório que a questão habitacional está associada à recepção dos direitos de cidadania no Brasil. É de fácil percepção que há um desajuste entre o que está na lei e o que está na vida. Desse modo, ainda que a Constituição Federal Brasileira declare que a moradia se enquadre como um direito social e, portanto, merecedor de uma tutela mais efetiva por parte do Estado, ainda se constata que milhares de brasileiros estão à margem da cidadania, neste aspecto, posto a insistente sina de marginalizados que pesa sobre tais pessoas. Observa ainda que a pesquisa em desenvolvimento é resultado de uma das atuações de um núcleo de pesquisa existente há 07 anos na favela em comento, onde diversos pesquisadores do direito tem desenvolvido, através de pesquisa de campo, análise das diversas questões que se apresentam 230 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi na seara habitacional em áreas favelizadas do Rio de Janeiro. O projeto mantém parceria com a FAPERJ3 e a Columbia University4. 2.um breve contexto sobre a história das favelas cariocas Neste capítulo pontuaremos algumas nuanças históricas relevantes na compreensão do fenômeno social e jurídico denominado de favela, como ponto de partida na análise da importância do tema proposto, pois, há uma inteira conexão entre o presente e o passado. O breve contexto que se desenvolverá tem por objetivo constatar que os transtornos atuais são consequências de décadas de inexpressividade na seara habitacional no que tange a politicas públicas nesse setor, desfalcando a cidadania de inúmeros brasileiros no acesso ao direito de morar. É fato que a inexistência de politicas públicas que visassem um cuidado maior com o negro liberto no Brasil já assinalava que muitos problemas partiriam daí. Com a decadência da escravidão, a aristocracia se viu obrigada a trocar a casagrande pelos sobrados urbanos, enquanto seus ex-escravos saiam das senzalas e, por necessidade instalavam-se em moradias precárias e coletivas, também nos centros urbanos, à procura de empregos formais ou informais (FREYRE, 2009), sem contar com aqueles que já habitavam a cidade, pois no Rio de Janeiro havia forte presença de negros, categorizados em escravos, escravos libertos e os que “viviam sobre si”5. Para se ter uma ideia da quantidade negra na cidade, o censo de 3 Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ. Projeto Cidadanias Vulneráveis no Estado do Rio de Janeiro: Saúde, Moradia, Educação e Lazer. Subprojeto: Endereço Legal: a moradia e a cidadania no Rio de Janeiro. Um estudo na Favela de Rio das Pedras. Edital 19/2012 - Pensa Rio - FAPERJ - PROCESSO NÚMERO E-26/110.637/2012. 4 A parceria com a Universidade de Columbia ocorre na esfera interdisciplinar através da interação com o Departamento de epidemiologia da Mailman School of Public Health e Escola de Direito da Universidade Veiga de Almeida – UVA com o Projeto “A Rio das Pedras Community Diagnosis”. 5 Espécie de escravos da Corte que viviam longe da casa do senhor, mas prestavam serviços, mantendo-se, contudo, como objeto de domínio do senhor, fazendo parte de seu patrimônio pessoal, mas possuíam autorização de “viver por si”, o que significava viver com certa autonomia, o que possibilitava jornadas de trabalho extras, contribuindo com a vantagem de constituir numerário suficiente para comprar sua alforria. Para o senhor a vantagem estava principalmente na diminuição de gastos na manutenção do escravo, sem perder seu poder dominial. volume 06 231 i encontro de internacionalização do conpedi população da corte e da província do Rio de Janeiro de 1821 contabilizou que a população negra chegava a 60% da população total. Esse contigente desamparado demandava por habitação, sem que houvesse, por parte do Estado, qualquer política pública no atendimento de tal necessidade básica, o que permaneceria por muito tempo, ensejando e contribuindo para a tortuosa trajetória de acesso por moradias dignas para segmentos mais empobrecidos da população, o que seria sentido, de modo especial, na cidade do Rio de Janeiro (CORRÊA, 2012). No final do século XIX, com a ocorrência do fenômeno da multiplicação de fábricas, o fluxo de migrantes aumentou consideravelmente no Rio de Janeiro. Entre 1870 e 1890, o cenário carioca contou com aumento populacional de 4,06% ao ano (SILVA, 2005, p. 37). O perfil mais industrializado que surgiu fez com que algumas casas e sobrados, situados no centro fossem substituídos por lojas, fábricas e prédios de escritórios. Consequentemente, a necessidade de abastecer o centro da Capital com serviços públicos que viabilizassem a nova realidade econômica e social da cidade aparecem fortemente, o que consolidou forte presença de vida comercial, tornando o Rio de Janeiro o principal centro de circulação de riquezas do país. Entretanto, essas mudanças deram início a uma séria contradição: se por um lado a modernidade urbanística se expressava na introdução de serviços públicos a partir da década de 1850, o que aqueceria a vida comercial, por outro lado, a concentração do mercado econômico e, portanto, o principal núcleo de trabalho existente na cidade, tornaria o centro alvo principal na preferência das classes trabalhadoras para estabelecer suas moradias (CORRÊA, 2012). Tais feições sociais foram motrizes importantes para desencadear sérias consequências sociais na cidade, principalmente para aqueles que por razões econômicas, não puderam ajustar-se aos novos padrões de moradias que surgiam na cidade. Assim, os negros subempregados ou desempregados que tiveram sua mão de obra subutilizada ou não utilizada e os migrantes advindos do êxodo rural pelo declínio da cafeicultura, principalmente no vale do Paraíba, em busca de trabalho no Rio de Janeiro, ocuparam o centro da capital na busca de trabalho formal ou informal6, que era apenas encontrado na área central. 6 Os termos formal e informal, serão utilizados comparativamente a jurídico e não jurídico, no sentido de informal estar concebido por um não tutelamento de normas jurídicas postas, 232 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi Esse contingente ao engrossar o elenco daqueles que necessitavam de um lugar barato para estabelecer suas moradias, preferencialmente próximo ao centro, passaram a ser clientes em potencial dos proprietários privilegiados de prédios ou terrenos, que viam a possibilidade de considerável lucratividade ao construir ou implantar em seus prédios ou terrenos as chamadas casas de cômodos (ou casasde-alugar-cômodos ou simplesmente cortiços), definidas como casas subdivididas em cômodos com lavanderia, banheiro e cozinha de uso comum. Vaz (1984, p. 30) faz referência a essa modalidade habitacional que surge a partir de 1850: “Lotes e casas eram encortiçados e transformados em estalagens e casas-decômodos. Apesar de serem objetos arquitetônicos de formas diferentes, são iguais em sua essência, não apenas por serem indistintamente chamados de cortiços”. Nesse sentido, afirma Corrêa: Na ausência de investidas públicas que organizassem o espaço urbano levando em conta as novas feições da cidade e seus principais atores sociais, os cortiços se tornaram uma alternativa acessível. A ausência de qualquer política governamental que executasse acesso à habitação para as classes trabalhadoras, a escassez de moradias que contribuía para os altos preços dos alugueis, a reduzida ampliação do transporte público, que permitiria a expansão da malha urbana em outros sentidos da cidade; tudo isso tornou as moradias coletivas, que se situavam no centro, a única forma de moradia alcançável a considerável parcela da população à época, tornando-se habitação coletiva típica do Rio oitocentista (2012, p. 61). A disponibilidade limitada de moradias que abarcasse a população mais empobrecida permitiu o apressamento do processo de estratificação social, já presente na cidade no século XIX, consolidando a estrutura formal/informal encontrada ainda nos dias atuais. Portanto, os cortiços que se validaram como forma de proximidade de bens urbanos pela população pobre, ao se incluírem na área privilegiada do centro, sem que isso refletisse um delineamento de fronteiras, a partir do momento em o poder público a repele, seus moradores veem na subida aos morros, no entorno do centro da cidade, uma maneira de poder desfrutar, ainda eu indiretamente, de tais “privilégios”. bem como relações sociais que , a despeito de estarem na vida cotidiana, não são reconhecidas pelo Estado como direitos. Nessa mesma ordem: oficial e inoficial. volume 06 233 i encontro de internacionalização do conpedi Assim, a concepção das moradias populares precárias que eram admitidas na formatação dos cortiços, mas guardavam certo nível de regularidade formal, porque ocupavam espaços legais, com a desenfreada política de derrubada que marcou vários períodos do final do século XIX e início do século XX, passa a representar oficialmente uma feição de ilegalidade, O que contribuiu, significantemente, para a transição de um modelo de habitação para uma concepção de área, um local especificamente reconhecido como tal, sem amparo de legalidade que incidiria na percepção do fenômeno favela, conduzindo a crer que a lógica empreendida no processo de extinção dos cortiços foi a mesma que promoveu o processo de expansão das favelas, razão pela qual se atribui ao cortiço o fato de ser a “semente da favela” (VAZ, 2002). Vários autores atribuem à origem do nome “favela” a ocupação do morro da Providência no Rio de Janeiro. Já em 1897 o dito morro era conhecido como morro da “Favela”7. O morro da Providência se revela de considerável importância na historiografia da favela, e em como esta se portou relevante na estruturação do nome favela como substantivo de conglomerados de moradias pobres, designando toda e qualquer construção precária situada nos morros. Manifesta-se, igualmente relevante a comprovação de que ao optar pela manutenção de suas moradias no centro ainda que precariamente, a população pobre resistiu ao processo de expulsão das áreas centrais, o que levou à mantença das contradições na organização sócio espacial, apresentando-se, entretanto, de forma diferente a partir do momento em que os cortiços subiram os morros. Dessa forma, as favelas consolidaram-se como uma solução imediata de preservação da proximidade ao principal núcleo de trabalho. Assim, a questão habitacional popular passou a ser associada, não a uma forma de construção, que seria o cortiço, mas a identificar-se como uma área – a favela (VAZ, 2002). 3. a favela de rio das pedr as – rio de janeiro Sua história está atrelada ao fim do ciclo econômico local, de produção açucareira, quando a Baixada de Jacarepaguá se encontrava entrecortada por vá7 Uma pequena árvore da família das leguminosas encontrada no morro da Providência. 234 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi rias fazendas. Até meados da década de 1960, o entorno da Pedra da Panela, de difícil acesso, apresentava uma modesta ocupação, o que incluía alguns barracos ao longo do Rio das Pedras, mais próximos à Estrada de Jacarepaguá. Foi justamente nessa área que se estabeleceu o núcleo inicial da favela, na margem direita do rio, onde se instalou a primeira rua, denominada Rua Velha8. Conforme já observado, a favela de Rio das Pedras é apontada como a terceira maior do Brasil e a segunda do estado do Rio de Janeiro. São quase 100 mil pessoas morando em uma área de aproximadamente 610.587m², segundo dados da prefeitura do Rio de Janeiro9. O aglomerado de moradias localiza-se entre os bairros de Jacarepaguá e Barra da Tijuca, bairros de classe média e alta, o que viabiliza oportunidade no mercado de trabalho para seus moradores, que nutrem esses bairros com sua mão de obra, principalmente em shoppings, bares, restaurantes e residências. Destaca-se ainda que Rio das Pedras possui uma rede comercial própria, são mais de 4 mil comerciantes que oferecem bens e serviços que são usufruídos não só pela população local, mas, também pelos moradores do entorno da favela10. O comércio de Rio das Pedras funciona 24 horas por dia! De acordo com os dados de 2002 do Instituto Pereira Passos11, o crescimento é quase dividido ao meio: para cada 100 novos moradores da parte urbanizada surgiram 86 moradores de favela. Boa parte desse crescimento se deu, e se dá, pela forma vertical. O crescimento constatado sugere que Rio das Pedras avança de forma multidirecional; todos os seus “bairros” possuem nível significativo de aumento de suas proporções, principalmente pela via vertical. É dentro do território de Rio das Pedras que encontramos o maior crescimento vertical em favelas no país. A favela cresce para o alto assustadoramente. São inúmeros prédio de até 10 andares que compõe seu cenário tão peculiar. Essa 8 Nesse sentido também ver BURGOS (2004) e CORRÊA (2012). 9 FONTE: Rede Habitat – Estudo de Caso - coordenada pelo Observatório Ippur/UFRJ-Fase. 10 Em recente censo feito na favela, foram entrevistados cerca de 4 mil comerciantes, o que demonstra uma dimensão comercial expressiva em termos de circulação econômica. 11 O Instituto Pereira Passos (IPP) é uma autarquia vinculada à Secretaria Municipal de Desenvolvimento do município do Rio de Janeiro. Dentre suas atribuições destacam-se: elaboração, planejamento e coordenação das diretrizes estratégicas para o desenvolvimento econômico; - implantação de projetos estratégicos da prefeitura da cidade do Rio de Janeiro; produção de informações estatísticas, geográficas e cartográficas da cidade do Rio de Janeiro. volume 06 235 i encontro de internacionalização do conpedi realidade em suas construções permite constatar um intenso mercado imobiliário, principalmente através do denominado localmente de “direito de laje”12. Nesse sentido, salienta Corrêa: A verticalização de moradias se apresenta como fonte de rendimentos de aluguel para quem empreende a obra, seja o comprador da casa primitiva ou seu próprio dono. Desse modo, as várias modalidades em que o “direito de laje” se manifesta contribuem para a vitalidade do mercado imobiliário local, cujas transações “contratuais” de compra e venda ou de locação ficam legitimadas na favela, pois atendem à demanda por moradia e, de certo modo, permitem a realização do direito de acesso à moradia, embora tais soluções permaneçam à margem do enquadramento legal ora disponível (CORRÊA, 2012, p. 145). Tais nuanças, ainda que contextualmente, levam a perceber que Rio das Pedras é uma cidade dentro de outra e, a despeito de sua feição urbana maltratada, surge não apenas como um lugar de moradia, mas, sobretudo, como forma criativa de articulação de vidas humanas que buscam acessar meios de sobrevivência digna. A favela possui também como peculiaridade ser conhecida como berço das milícias que atuam no Rio de Janeiro, que consiste basicamente em grupos que buscam empoderamento sobre atividades e relações estabelecidas pelos moradores da favela13. Essas praticas ocorrem de maneira articulada e organizada: existe uma pessoa responsável por cada área de sua atuação; cada segmento comercial explorado possui um “coordenador”, seja na cooperativa de transporte, na distribuição de pontos de TV a cabo, na distribuição de gás de cozinha, no empréstimo de 12 Conforme salienta Corrêa (2012), o “direito de laje” concede nova versão na arquitetura da favela, configurando moradias verticais como pequenos edifícios, pois o morador que construiu sua casa sobre uma laje pode vender a laje de cobertura de sua casa a outro comprador, o que caracteriza mais uma modalidade de transação envolvendo o “direito de laje” do comprador, que assim tem acesso a sua moradia. Outra modalidade em que se faz presente o “direito de laje” ocorre quando o comprador de uma casa construída na superfície compromete-se a construir um prédio com alguns andares, geralmente de 3 ou 4, cujos espaços são dispostos em quitinetes destinadas à locação de unidades superpostas para moradia de terceiros, exceto uma delas, que é destinada à moradia do vendedor da casa primitiva. 13 Cabe destacar que o termo empoderamento aqui usado traduz o processo pelo qual as pessoas assumem o controle de serviços locais, criando e gerindo meios articuladores de domínio local, inclusive usando o monopólio da força física, posto que o controle estatal encontra-se ausente de várias atividades e serviços locais. 236 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi dinheiro a juros (denominado de “parte financeira”, segundo um informante), na permissão de construção, no loteamento do solo, no recolhimento dos “tributos” cobrados aos comerciantes locais para empreender qualquer atividade ou mesmo na eliminação de uma pessoa considerada persona non grata (CORRÊA, 2012, p. 138). Esse poder político consegue administrar o território com mão de ferro através de um rigoroso controle sobre toda a área, não só impedindo a invasão de grupos de outras favelas, bem como mantendo pacífica e segura a circulação dos moradores no espaço público da favela. (BURGOS, 2004). O paradoxo habita exatamente no fato de que esta variável significa uma valorização e procura de pessoas interessadas em morar em um ambiente livre do comércio de drogas e traficantes, mesmo que outras vertentes da cidadania fiquem em segundo plano. O estudo de caso em Rio das Pedras deixa claro, que mesmo com a ausência dos traficantes, no local habitado residem influentes mecanismos de controle da sociedade, abarcando ainda a dicotomia entre garantir a segurança dos moradores e ao mesmo tempo isolá-los da polis, em certos aspectos. Após nosso contato com a favela percebemos que morar neste local significa para a população uma ponte que interliga o estado de miséria com os serviços públicos básicos como água, luz, telefone, transporte etc., ainda que oferecidos com péssima qualidade. Ocorre que nos espaços não ocupados pelo Estado surgem intermediários, novos atores que estabelecem a conexão com o Poder Público como as entidades componentes do 3º setor (ONG´S, OSCIPS, O.S., Serviços Sociais Autônomos e Associações), ou mesmo o poder paralelo (tráfico de drogas e as milícias). Não raro, a Associação de Moradores já se colocou na condição de subordinação da milícia, permanecendo no papel de interlocutor com o poder público, mas com forte interferência em sua gestão de tal grupo de empoderamento. Essa realidade é facilmente percebida, em Rio das Pedras, no funcionamento da Associação de Moradores como base política eleitoral de candidatos indicados pela milícia ao abrirem espaços para que os candidatos indicados realizem ações assistencialistas de cunho eleitoreiro, em virtude da facilidade do acesso no atendimento de demandas pessoais. O resultado não poderia ser outro, nos períodos eleitorais a prática da venda dos votos permanece vigente. volume 06 237 i encontro de internacionalização do conpedi Quanto à regularização fundiária pouco se tem efetivado em Rio das Pedras, atualmente a prefeitura do Rio de Janeiro estabeleceu um projeto denominado de POUSO (Posto de Orientação Urbanística e Social) que são postos descentralizados da Prefeitura do Rio de Janeiro, implantados nas comunidades beneficiadas por programas de urbanização, que no caso de Rio das Pedras, se estabeleceu em convênio com o núcleo de pesquisa que estão vinculados os pesquisadores autores do presente artigo. De modo a explicitar a amplitude do projeto em comento, iremos descrevêlo em capítulo próprio, permitindo uma melhor compreensão da complexidade que se é viabilizar um processo de regularização fundiária, com toda sua carga de burocracia e (não) vontade política. 4. rio das pedr as e seu processo de urbanização Uma das importâncias do projeto POUSO estabelecido em Rio das Pedras, além do resultado social esperado, se manifesta na oportunidade que se tem dado a um grupo de pesquisadores do Direito em um processo tão complexo e vultoso como este. O Convênio entre o Núcleo de Cidadania de Rio das Pedras com a Prefeitura do Município do Rio de Janeiro, firmado no ano de 2013 aumentou o desafio do Projeto inicial. Antes, o objetivo era apenas a legalização dos endereços e talvez das moradias de Rio das Pedras, agora busca também na formalização de grande parte da favela com a transformação da mesma em um bairro, composto de todos os aparelhamentos urbanos que lhe são peculiares. Na realidade o convênio se dá a três: a Prefeitura, o núcleo de pesquisa e uma grande empresa privada que é proprietária de áreas de terras situadas no entorno da favela. A instalação deste posto objetiva uma aproximação da equipe da Prefeitura à realidade local e a facilitação do trabalho com os pesquisadores do Núcleo de Pesquisa. Para o trabalho no Posto inicialmente a Prefeitura cedeu um arquiteto e um engenheiro da Secretaria Municipal de Urbanismo – SMU, dando início a um processo gradual de formalização da favela14. 14 Atualmente trabalham no POUSO de Rio das Pedras 4 arquitetos. 238 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi A partir da transferência dos dados coletados pelos pesquisadores do Núcleo os agentes da Prefeitura deram início ao processo de regularização dos endereços objetivando a futura concessão de habite-se aos prédios da favela o que, posteriormente viabilizaria a transformação de Rio das Pedras em um bairro formal. Inicialmente os pesquisadores e agentes da Prefeitura percorreram “in loco” todas as ruas de Rio das Pedras com o intuito de fazer um levantamento de todas as edificações dentro dos padrões urbanísticos passíveis de concessão de habitese previstos na Lei Municipal nº 2.818 de 1999 (que declara Rio das Pedras como área de especial interesse social para fins de urbanização e regularização e estabelece o padrão para a urbanização da respectiva área). Trata-se de um projeto que objetiva o endereçamento oficial das ruas da favela de Rio das Pedras. Tal projeto iniciou com o levantamento de todas as ruas e becos da comunidade, uma espécie de radiografia territorial, onde os pesquisadores, em boa parte mestres, doutores e graduandos em direito, levantaram todos os 330 becos e ruas, perfazendo um mapa efetivo da favela. Esse mapa tem sido utilizado em outros projetos, visto que a Prefeitura não detinha um conhecimento local, servindo-se do mapa para transitar na favela. O ponto de partida, portanto, de todo projeto se deu através do mapeamento da favela. Cabe pontuar que o referido mapeamento levou quase 06 meses, onde os pesquisadores levantaram os nomes das ruas e becos dados pelos moradores e identificando-os posteriormente nos mapas. Nesse contexto, os mapas confeccionados pelo Núcleo estão sendo utilizados pelos profissionais da Prefeitura para fazer uma mancha do crescimento vertical da comunidade, estratificando setores que podem ser beneficiados inicialmente pela Prefeitura com a concessão de habite-se, ou seja, aqueles com as unidades habitacionais de até dois pavimentos e terraço. Todavia, a favela em questão apresenta construções mais elevadas com até dez pavimentos, o que excluiria a maioria das suas construções. Fato que não foi esquecido pelos pesquisadores e pela Prefeitura cujo convênio inclui o esforço conjunto para a posterior modificação da lei municipal, que será adaptada as peculiaridades de Rio das Pedras incluindo as edificações mais altas. volume 06 239 i encontro de internacionalização do conpedi O trabalho, ainda em desenvolvimento, dividiu Rio das Pedras em setores, a partir dos mapas obtidos com o projeto de pesquisa e selecionou a primeira área de interesse social a ser agraciada com a concessão de habite-se, a área central de Rio das Pedras. A utilização dos mapas juntamente com a legislação municipal nº 2.818 de 23 de junho de 1999, anteriormente regulamentada pelo artigo 141 da Lei Complementar n.º 16, de 4 de junho de 1992, da Câmara Municipal do Rio de Janeiro15, que dispõe sobre a política urbana do município, institui o plano diretor decenal da cidade do Rio de Janeiro, e dá outras providências foi revogada pela Assembleia Carioca e passou a ser regulamentada pela Lei Complementar nº 111 de 01 de fevereiro de 2011 na Seção IV – Das Áreas de Especial Interesse Social – AIES nos artigos 205 ao 209. Segundo a legislação, consideram-se Áreas de Especial Interesse Social – AIES aquelas especificamente destinadas a programas de urbanização e regularização fundiária. Tais áreas são regiões favelizadas da municipalidade onde se pode “adotar padrões diferenciados de exigências urbanísticas e de infraestrutura”. Nesses espaços, o Poder Executivo Municipal objetiva desenvolver projetos de regularização urbanística e fundiária respeitando as peculiaridades da região e seguindo padrões urbanísticos de parcelamento da terra, uso e ocupação do solo. Segundo Rafael Soares Gonçalves (2009, p. 240) (...) A autoridade responsável pelo projeto de regularização, normalmente a prefeitura, deve, primeiramente, delimitar o lugar a ser regularizado, por meio de estudos topográficos e de fotos 15 Dispõe o artigo 141 localizado na Subseção Única – Das Áreas de Especial Interesse Social Lei Complementar n.º 16, de 4 de junho de 1992 da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Art. 141 Lei de iniciativa do Poder Executivo delimitará como Área de Especial Interesse Social os imóveis públicos ou privados necessários à implantação de programas habitacionais e os ocupados por favelas, por loteamentos irregulares e por conjuntos habitacionais de baixa renda, conforme previsto no art. 107. § 1º A declaração de especial interesse social é condição para a inclusão de determinada área nos programas previstos no art. 146. § 2º A lei estabelecerá padrões especiais de urbanização, parcelamento da terra e uso e ocupação do solo nas áreas declaradas de especial interesse social. 240 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi aéreas, assim como fazer um recenseamento das construções e dos habitantes da favela. É necessário, igualmente, identificar os proprietários das glebas onde se encontra a favela que será regularizada, realizando um detalhado estudo fundiário. Tomando como parâmetro o Decreto nº 25.777 de 16 de setembro de 2005 que estabeleceu as normas de uso e ocupação da Comunidade do Dique, urbanizada pelo Programa Favela Bairro16 em 1997, percebe-se que para se efetivar um projeto de regularização fundiária primeiramente se faz necessária uma planta detalhada do local, além da coleta minuciosa de informações com o preenchimento de um formulário para a concessão de habite-se contendo o local da obra, a identificação do responsável pelo imóvel, as características da obra e um quadro de áreas feito por um técnico. Além do preenchimento do formulário, o responsável pelo imóvel deve assinar um termo de responsabilidade civil por eventuais danos e indenizações de qualquer natureza em decorrência de atos relacionados com a execução de obras no imóvel, onde se verifica se o imóvel possui ou não luz e força, esgoto, água potável, gás canalizado e telefone. Para a consecução das referidas informações, exemplificadas acima com o caso da Comunidade do Dique, os funcionários da Prefeitura (um arquiteto e um engenheiro), como foi acordado inicialmente, começaram a utilizar os mapas cedidos pelo Núcleo de Pesquisa para preencher os requisitos legais e iniciar o projeto de regularização fundiária de Rio das Pedras. Esse processo, embasado no respeito às peculiaridades locais inicialmente consistiu na familiarização dos funcionários da Prefeitura com a favela através de incursões regulares, primeiramente com os pesquisadores do Núcleo (que conhecem bem a favela em questão) e, posteriormente sozinhos. 16 O Programa Favela Bairro foi iniciado em 1994 pela Prefeitura do Rio de Janeiro representando uma mudança de paradigma na política da municipalidade no tratamento das favelas, pois, ao invés de removê-las começou a urbanizá-las. O programa tinha como objetivo integrar a favela à cidade e foi financiado em parte pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, que ovacionou os resultados do trabalho ao afirmar que o mesmo foi “o mais importante programa de inclusão de comunidades carentes do mundo”. Além de obras voltadas para urbanização e estruturação das favelas, o programa objetivava também a regularização na prestação de serviços, como o postal, a construção de equipamentos públicos, como maternidades, e a promoção de políticas sociais. volume 06 241 i encontro de internacionalização do conpedi Após a familiarização, o engenheiro e o arquiteto da Prefeitura fizeram um mapa de densidade vertical dos prédios do centro da favela. Separando assim, os prédios que irão ser beneficiados com a concessão do habite-se dos que não receberão ou receberão posteriormente após a modificação da lei. Quanto à legalização dos endereços de Rio das Pedras, esta é uma parte do projeto que corre em paralelo, pois verificou–se que a maioria dos logradouros de Rio das Pedras possui nomes iguais aos já existentes em outras ruas do Município e a legislação carioca não permite nomes iguais para ruas diferentes. As ações não podem ser impostas pela administração pública. Devem ser pactuadas com os moradores, envolvendo a população nas principais decisões, em uma relação de confiança, e não de convencimento, tendo em vista os benefícios das intervenções urbanísticas e das melhorias que a Regularização Fundiária trará em prol dessa comunidade. (BARROS, 2007, p. 15) Dessa forma, será necessária a modificação de quase a totalidade dos nomes das ruas do aglomerado o que segundo a visão dos pesquisadores deve ser feito da maneira menos invasiva possível com a necessária participação popular. Um processo não invasivo e legitimado pela população que ainda está em andamento. Neste aspecto, a participação do núcleo de pesquisa tem atuando em censo dos moradores, de modo a colher dados que possam instruir melhor o processo de regularização. Já foram entrevistados mais de 8 mil moradores (residências). A meta é entrevistar 25 mil moradores (residências). Muito mais que uma pesquisa quantitativa, o norte da pesquisa é também qualificar os dados, pois essa contribuição se mostra significante na elaboração de estratégias para desenvolver as parcerias que visam a urbanização geral da favela. Por fim, o presente artigo quis, ainda que contextualmente, explicitar quanto a possibilidade de efetivar-se melhorias em áreas populacionais carentes, através de parcerias públicos privadas em sentido amplo. 5. objetivo da regularização fundiária A Regularização Fundiária tem como objetivo primordial dar segurança à posse daqueles que habitam os assentamentos informais, se consubstanciando 242 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi como um instrumento de acesso à cidadania urbana. Através da formalização das áreas informais dá-se o primeiro passo em direção à integração do cidadão, em estado de precariedade jurídica, ao ambiente urbano formal e aos direitos políticos, civis e sociais advindos da sua inclusão na sociedade. Estes cidadãos, devido à informalidade da região onde moram, não conseguem exercer a cidadania na sua plenitude e não conseguem exercer os seus direitos políticos, civis e sociais integralmente, divergindo do conceito de cidadão pleno. (CARVALHO, 1999). Para que a regularização fundiária seja possível é necessário obter um conhecimento mais aprofundado do local, da sua população, necessidades, infraestrutura etc., sendo imprescindível a construção de um Projeto de Regularização Fundiária. Este plano deve ser construído tendo como base o conhecimento das peculiaridades do local, obtido através de pesquisas elaboradas em conjunto com a população. Nesse contexto, os interesses dos moradores do local são levados em conta através da sua integração ao processo, com o intuito de legitimar as ações necessárias, pois o projeto visa criar uma consciência entre os moradores para a necessidade de pertencimento local, com o intuito de criação de vínculos que propiciem o desenvolvimento sustentável (BARROS, 2007). A elaboração de um plano eficiente é condição essencial para que o projeto seja coerente com a realidade local e identificado como uma conquista de todos os moradores, afastando o sentimento normalmente associado com as intervenções estatais em regiões informais, de imposição e coação do Estado em face dos moradores. Para consecução deste objetivo torna-se interessante a eleição de representantes comunitários que ajudem na deliberação de questões fundamentais envolvendo a intervenção, como por exemplo, a mudança do nome de ruas, remoção de casas em área de risco e o local de reassentamento das famílias atingidas, dentre outras. Desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 existe a preocupação com o Direito à Moradia digna das pessoas, conforme previsto em seu artigo 25: Artigo 25, parágrafo 1º - Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, volume 06 243 i encontro de internacionalização do conpedi inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle. (grifo nosso) Com o passar do tempo, a ONU verificou a necessidade de dar mais atenção aos assentamentos humanos e promoveu em Vancouver (1976) uma Conferência das Nações Unidas especificamente voltada a esse tema, denominada Habitat I. Essa Conferência criou um órgão encarregado de harmonizar atividades dentro do sistema das nações unidas. Tal ação visava à facilitação do intercâmbio nas discussões sobre moradia pelo mundo, além propiciar debates sobre o tema. A Convenção ONU HABITAT e o Relatório Global sobre Assentamentos Humanos de 2011 indicam que as maiores taxas de população urbana se encontram em países com baixo índice de urbanização (GIRALDO; GARCIA; FERRARI; BATEMAN, 2009, p.348). Essa controvérsia agrava a situação dos pobres que habitam esses locais e o estudo da ONU aponta a gravidade da situação e possíveis soluções (políticas públicas) que os Estados-Membros podem adotar para melhorar as condições dos cidadãos urbanos. Dessa forma, a urbanização fornece as pessoas que moram em locais dotados de baixo índice de urbanização, infraestrutura básica e necessária à vida urbana. Esses cidadãos em sua maioria são pessoas pobres, pois os locais mais bem estruturados são muito caros e inacessíveis a maioria da população. A pesquisa realizada em Rio das Pedras verificou que as intervenções estatais na favela nem sempre melhoram os serviços oferecidos à população. Recentemente a Prefeitura do Rio de Janeiro proibiu a circulação de vans no local, antes considerado uma referência em transporte alternativo, com linhas diretas para diversos bairros na Zona Sul, Norte e Oeste da Cidade. A alteração depreciou o serviço de transporte para os seus moradores que agora contam apenas com os ônibus, demorados, em número insuficiente e abarrotados de gente. Considerando que a maioria das pessoas que habitam no aglomerado trabalha, estuda e faz uso de serviços essenciais em outros lugares, a medida aumentou o tempo de deslocamento na cidade. A atitude da Prefeitura ao invés de aumentar 244 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi as opções de transporte reduziu e dilapidou uma alternativa organizada que atendia as demandas locais. Mais uma vez vemos o poder público na “contramão” das políticas sociais propostas pela ONU, ações que deveriam ser voltadas para implantação de projetos de mobilidade urbana sustentável. Além dos problemas decorrentes da intervenção Estatal, a sua omissão também gera problemas. Durante a pesquisa em Rio das Pedras, verificamos que alterações em nomes de ruas, atribuição que deveria ser do Estado, são promovidas por líderes locais. Fato que chamou a atenção dos pesquisadores durante uma das incursões na favela foi a divergência entre os moradores ao informarem o nome das ruas onde moram. Tal incongruência, segundo um dos entrevistados, era resultado de uma ação deliberada de um pastor evangélico que unilateralmente substituiu as denominações originais por nomes de personagens bíblicos. Segundo um morador, a Rua XXII havia sido alterada para Rua Abraão, fato que provocava vários problemas aos moradores e no próprio desenvolvimento da pesquisa, pois para consecução de um levantamento territorial é necessário o nome correto dos logradouros. Exemplos como esse, refletem a real necessidade de intervenção do poder público que deverá, por meio de um plano de regularização fundiária, identificar os logradouros públicos e seus respectivos lançamentos oficiais. É preciso mudar a mentalidade estatal de cumprir estritamente o que está na lei ao intentar formalizar os aglomerados habitacionais impondo soluções pré-moldadas, criando estruturas voláteis que permitam a participação popular sem a vinculação de ações típicas do coronelismo das ditas autoridades locais, como no caso do Pastor mencionado acima. Na elaboração do plano, normalmente dividido em três fases, que devem ter ampla participação popular (diagnóstico, adequação urbanística e legalização jurídica), busca-se integrar a região da ocupação informal já consolidada à cidade formal e assegurar aos seus moradores a função social e a segurança das suas posses. Permitir o acesso para bens e serviços constitui um elemento de democratização das relações sociais. Estamos diante de uma previsão constitucional que estimula a garantia do Direito de moradia, função social da propriedade, da posse, e garante melhorias na qualidade de vida do cidadão. volume 06 245 i encontro de internacionalização do conpedi 6.conclusões Como constatado as políticas públicas desenvolvidas ao longo dos anos nestas regiões é praticamente inexpressiva. As poucas ações promovidas são sempre motivadas por fins eleitoreiros. Por outro lado a maioria dos moradores dessas localidades são de diversas regiões do país, indivíduos que buscam nos centros urbanos melhorias na sua condição de vida. Sem o auxílio de organismos estatais, nosso trabalho partiu de uma iniciativa científica, dotada de interesses empíricos, que pudesse demonstrar as constantes violações aos direitos sociais que ocorrem no Rio de Janeiro nos dias atuais. Nossa pesquisa busca traçar uma radiografia real do terreno, objetivando explicitar que o crescimento desordenado na região não possui nenhuma intervenção real do Estado. Somente agora o material desenvolvido pelos alunos e professores do núcleo de pesquisa estão sendo utilizados pelo Município, que pretende promover inicialmente a concessão de habite-se para as áreas já pavimentadas. Como pode ser percebido o trabalho para se regularizar e urbanizar áreas favelizadas demanda muito tempo e esforço. Seu início ocorre no campo com a identificação da área irregular e o levantamento de seu território. Concomitantemente é necessário coletar dados que ajudem a caracterizar o perfil socioeconômico dos moradores e da estrutura da favela (pavimentação, saneamento básico, postos de saúde, escolas, áreas de lazer, coleta de lixo, serviços básicos). Juntos, esses dados possibilitam uma avaliação da estrutura genérica da favela e permitem aos pesquisadores direcionar as ações de regularização fundiária sempre iniciando pelas áreas mais facilmente regularizáveis, como é o caso do Centro de Rio das Pedras. Percebemos desta forma, que as poucas mudanças sociais ocorridas concederam aos moradores destas áreas o acesso aos serviços públicos básicos como saúde, educação e transporte. No entanto, não são suficientes para garantir diminuição das suas diferenças em relação aos demais habitantes das áreas já legalizadas. A experiência demonstra que prosseguimos buscando alcançar o atendimento da principal finalidade da Administração Pública, denominada Interesse Público. No entanto, a omissão estatal fora dos períodos eleitorais obstaculiza a efetivação de medidas saneadoras na questão fundiária dos aglomerados subnormais. 246 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi 7.referências ALFONSIN, Betânia de Moraes. A Política Urbana em disputa: desafios para a efetividade de novos instrumentos em uma perspectiva analítica de Direito Urbanístico Comparado (Brasil, Colômbia e Espanha). Tese de Doutorado. IPPUR/UFRJ. Rio de Janeiro, 2008. _______. Direito à moradia: instrumentos e experiências de regularização fundiária nas cidades brasileiras. Rio de Janeiro: IPPUR/ FASE, 1997. BURGOS, Marcelo Baumann (org.) A utopia da comunidade: Rio das Pedras, uma favela carioca. 2ª edição. Rio de Janeiro: PUC-Rio: Loyola. 2002. 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Este artigo é fruto de pesquisa do tipo bibliográfica e documental, de abordagem qualitativa com fins descritivos e exploratórios, consubstanciados pelo estudo do caso do intercâmbio de alunos dos cursos de Direito da Universidade de Palermo, na Itália, e da Universidade de Fortaleza, no Brasil. Neste sentido, conclui-se que o fenômeno da globalização econômica não pode ter um fim em 1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza – Unifor (2013). Possui mestrado em Direito Constitucional (2003) e graduação em Direito (1999), ambos pela Unifor. É professora assistente do Curso de Direito do Centro de Ciências Jurídicas e da Pós-Graduação lato sensu da Unifor. Exerceu atividade de gestão acadêmica, pelo mandato de dois anos cada uma, como Supervisora do Escritório de Prática Jurídica, Assessora Pedagógica do Centro de Ciências Jurídicas e Coordenadora do Curso de Direito, todos na Unifor, do ano de 2006 a 2012, respectivamente. Pesquisadora do grupo de pesquisa “Relações Econômicas, Políticas e Jurídicas na América Latina”, da linha de pesquisa “Educação Jurídica na América Latina”, cadastrados na plataforma do grupo do CNPq, sob a coordenação e orientação da professora doutora Gina Vidal Marcílio Pompeu. 2 Doutor em Gestão pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (Utad), mestre em Informática Aplicada pela Universidade de Fortaleza (Unifor), especialista pela Specialization Course for Officers and Managers of Foreign Hydraulic Companies, na qualidade de bolsista pelo Governo da Itália, e graduado em Engenharia Civil. Vice-reitor de Extensão e Comunidade Universitária e professor do Programa de Pós-Graduação em Administração de Empresas da Unifor. volume 06 249 i encontro de internacionalização do conpedi si mesmo, isto é, deve pautar-se na sustentabilidade social e econômica. Entendese como solidarismo a possibilidade de concretização dos interesses individuais sem olvidar os interesses do outro, tanto no âmbito nacional como entre nações. Identificou-se, por meio da análise do questionário aplicado aos referidos alunos, que, mesmo com a diferença entre os ordenamentos jurídicos brasileiro e italiano, esta experiência de intercâmbio ampliou os horizontes pessoais e profissionais do discente ao fazê-los refletir sobre as ideias de justiça, solidariedade e cidadania, o que, por sua vez, fez chegar ao resultado positivo do intercâmbio acadêmico, que demonstrou ser um importante instrumento de sustentabilidade social e econômica no contexto da globalização. Palavras-chave Solidarismo Internacional; Globalização; Sustentabilidade; Educação Jurídica; Intercâmbio Acadêmico. Resumen Esta investigación objetiva analizar la viabilidad del intercambio en la educación jurídica, con énfasis en la sustentabilidad entre crecimiento económico y desarrollo humano, centrado en el solidarismo internacional de cooperación entre las naciones. Para tanto, se abordan temas como transnacionalidad del derecho, sustentabilidad y solidarismo necesario entre las naciones bajo el contexto de la globalización. Este trabajo resulta de investigación bibliográfica y documental, de abordaje cualitativo con fines descriptivos y exploratorios, consubstanciados por el estudio de caso del intercambio de alumnos de los cursos de Derecho de la Universidad de Palermo, en Italia, y de la Universidad de Fortaleza, en Brasil. Se concluye que el fenómeno de la globalización económica no puede tener fin en sí misma, o sea, se debe guiar por la sustentabilidad social y económica. Se entiende como solidarismo la posibilidad de concretización de los intereses individuales sin olvidar los intereses del otro, tanto en el ámbito nacional como entre naciones. Se ha identificado, a través de la análisis del cuestionario aplicado a los referidos alumnos, que, aunque haya diferencia entre los ordenamientos jurídicos brasileiro e italiano, esta experiencia de intercambio amplió los horizontes personales y profesionales del discente al hacerlo reflexionar sobre las ideas de justicia, solidaridad y ciudadanía, lo que, por su vez, hizo llegar al resultado positivo del 250 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi intercambio académico, que ha demostrado ser un importante instrumento de sustentabilidad social y económica bajo el contexto de la globalización. Palabras clave Solidarismo; Globalización; Sustentabilidad; Educación Jurídica; Intercambio Académico. 1.introdução A globalização representa um fenômeno marcado pela otimização do lucro da produção, por meio da exploração de mão de obra, matéria-prima, incentivos fiscais e creditícios de cada local. Esta política econômica resultou no incremento cada vez maior da tecnologia, o que, por sua vez, contrasta com a escassez da mão de obra capacitada no Brasil. Tal fato é resultado da velocidade da oferta de emprego das multinacionais. Ritmo que não foi acompanhado pela oferta de educação formal, em especial da educação superior. O Brasil, em sétimo lugar no ranking das dez maiores economias do mundo (PNUD, 2013), necessita, é claro, de capital humano para atender a esse crescimento econômico do mercado produtivo. Entretanto, encontra-se atualmente em penúltimo lugar no ranking educacional (TERRA, 2013): “O Brasil ficou na penúltima colocação entre 21 nações em um índice sobre a valorização dos professores divulgado nesta quinta-feira pela fundação internacional Varkey Gems, sediada em Londres. O País está à frente apenas de Israel no status dado aos seus educadores”. É neste contexto de contradições internas do Brasil e sua relação não menos díspare com outros países que será estudada a viabilidade do intercâmbio acadêmico nos cursos de Direito. Para o desenvolvimento deste estudo, desenvolveu-se pesquisa do tipo bibliográfico com análise de autores clássicos e contemporâneos, e dos normativos inerentes ao assunto. Trata-se de pesquisa de abordagem qualitativa com fins descritivos e exploratórios, visando investigar, explicar e analisar os dados empíricos diagnosticados no questionário aplicado aos alunos do curso de Direito de intercâmbio acadêmico Itália/Brasil, sob o prisma da sustentabilidade e do solidarismo internacional. volume 06 251 i encontro de internacionalização do conpedi A pesquisa fundamentou-se na análise da Educação Jurídica, que é regida pela Resolução CNE/CES nº 9, de 29 de setembro de 2004, que instituiu as diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em Direito. O Conselho Nacional de Educação (CNE) é o órgão colegiado integrante do Ministério da Educação, instituído pela Lei nº 9.131, de 25 de novembro de 1995, com a função de exercer atribuições normativas, deliberativas e de assessoramento ao Ministro da Educação. Após o estudo da educação jurídica no contexto da globalização, abordou-se a necessária sustentabilidade entre o crescimento econômico e o desenvolvimento humano por meio do solidarismo internacional, que tem como um dos mecanismos o intercâmbio acadêmico, viável inclusive entre alunos dos cursos de Direito, mesmo diante da diferença dos ordenamentos jurídicos. 2.a globalização e seus efeitos nas relações econômicas e sociais O fenômeno da globalização caracteriza-se pela mundialização das empresas por meio da produção internacional, que otimizou o lucro da produção com a exploração de mão de obra, matéria prima, incentivos fiscais e creditícios de cada local. Para Costa (2008), a globalização pode ser dividida em globalização produtiva e globalização financeira, sendo a primeira referente ao processo de produção, que por sua vez resulta na segunda, fomentada pela hegemonia do sistema econômico, consolidada, por quatro fenômenos políticos e econômicos, ocorridos a partir da década de 1970: a) o fim dos Acordos de Bretton Woods (1930) nos EUA, que deixou de indexar o câmbio do dólar ao ouro e passou à taxa de câmbio flutuante; b) a crise do Welfare State e a contestação dos postulados keynesianos; c) a política de aumento da taxa de juros para a estabilidade monetária, que passou a ser um instrumento regulador da economia mundial (final da década de 1970), representada pela política dos governos de Reagan e Thatcher; d)a política da desregulamentação da economia e da liberalização dos mercados, representada pela política monetarista-neoliberal. 252 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi O autor identifica quatro correntes sobre a interpretação do fenômeno da globalização, filiando-se à última, que caracteriza a globalização como um fenômeno contemporâneo e imperialista, mundializado e dominado pelos países centrais (COSTA, 2008, p. 41): 1) os apologistas da globalização, para os quais este fenômeno significa a redenção da humanidade e a retomada dos postulados naturais da economia, interrompidos após a Segunda Guerra Mundial (FMI; Banco Mundial; OMC); 2) aqueles que negam a globalização, afirmando tratar-se não só de um mito, mas principalmente de uma forma que as transnacionais encontraram para ampliar o domínio dos mercados (Hirst; Thompson, 1998); 3) aqueles que afirmam ser a globalização um fenômeno antigo, que vem desde os tempos das grandes navegações, dos descobrimentos, sendo que alguns articulistas dessa corrente creditam também a globalização ao início do sistema capitalista (Petras, 1997; Amin, 2000); 4) e há ainda os que afirmam que a globalização é um fenômeno do capitalismo contemporâneo e representa uma nova fase do imperialismo, com a qual nos somamos. [grifos nosso] Por mais que a globalização tenha suas raízes nos fatores econômicos de produção, ou seja, na própria economia produtiva e financeira, seus efeitos não ficam somente no âmbito da economia, atingem também as mais íntimas relações sociais, já que o indivíduo faz parte do fator de produção e consumo da sistemática de mercado. A globalização influenciou o aumentou da concorrência e da produtividade e o contexto das novas tecnologias nos mais diversos ramos das ciências, com destaque à biologia e à ciência da comunicação, o que resultou em um mercado cada vez mais especializado. Obviamente, com o incremento do mercado, sugiram inúmeras oportunidades e vantagens de oferta de emprego. A despeito de a lógica da globalização ser, a priori, a de mais oportunidades de emprego, mais geração de emprego e renda e menos desigualdade social, a realidade é outra. Tal qual ocorre no Brasil, persistem as desigualdades sociais, os subempregos e os problemas decorrentes da seca no Nordeste. No contexto de um volume 06 253 i encontro de internacionalização do conpedi Estado que apresenta características liberais e práticas políticas sociais afirmativas, o que se observa e se questiona é a incompatibilidade entre crescimento econômico e desenvolvimento social. Assevera Bercovici (2006), ao abordar a crise da política econômica, que não se pode pensar em economia política sem analisar as relações sociais ou os conflitos sociais e sem estudar a historicidade dos fatos. Destaca a necessidade de uma política econômica estrutural (social/de base), além da política econômica conjuntural (produtiva e financeira). Diante da característica de Estado em desenvolvimento, a Constituição Federal dirigente é necessária para que o Estado encampe o projeto de desenvolvimento socioeconômico para satisfazer as necessidades sociais e superar o subdesenvolvimento (BERCOVICI, 2006, p. 582): A constituição dirigente brasileira de 1988, portanto, faz sentido enquanto projeto emancipatório, que inclui expressamente, no texto constitucional, as tarefas que o povo brasileiro entende como absolutamente necessárias para a superação do subdesenvolvimento e para a conclusão da Nação, e que não foram concluídas. Enquanto projeto nacional e como denúncia desta não-realização dos anseios da soberania popular no Brasil, ainda faz muito sentido falar em constituição dirigente. Para a superação da crise conjuntural que acompanha o Brasil desde sempre, deve ser pensada uma política econômica adequada à realidade brasileira, compatibilizando-se os projetos de desenvolvimento econômico com o desenvolvimento social, ou seja, a implementação de uma política econômica conjuntural e estrutural, o que caracteriza a Constituição de 1988 como uma constituição dirigente: estatal e social (BERCOVICI, 2006), ou ainda um Estado regulador (POMPEU, 2012). De acordo com os dados do Atlas Brasil 2013, no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), criado em 1990 e desde 1993 utilizado no relatório anual do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Brasil encontra-se em 85º lugar no ranking do IDH global de 2012, com a pontuação de 0,730, de 0 a 1 (PNUD, 2013), com a seguinte classificação no Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM): 254 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi quadro 1: atlas br asil 2013 – r anking idhm 2010 POSIÇÃO ESTADO IDHM IDHM Renda IDHM Longevidade IDHM Educação 1º Distrito Federal 0,824 0,863 0,873 0,742 17º Ceará 0,682 0,651 0,793 0,615 27º (último) Alagoas 0,631 0,641 0,755 0,520 Fonte: Elaborado pelos autores do artigo. Adaptado de: PNUD, 2013. Mesmo o Brasil estando em 85º lugar, entre os 188 Estados no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano, ocupa a 7ª posição entre as dez maiores economias do mundo, com base no Produto Interno Bruto (PIB) do último trimestre de 2012. Diante desses indicadores, reforça-se a máxima de que o Brasil é um país de contradições. Entre os indicadores do IDHM (renda, longevidade e educação), o que tem maior déficit é o da educação. Ressalte-se que o IDH foi desenvolvido em 1990 pelos economistas Mahbub ul Haq e Amartya Sen (PNUD, 2013). Diante dos dados aqui descritos, observa-se que a educação deve ser sim posta em pauta como política pública emergencial. É neste sentido que o governo federal vem desenvolvendo políticas com metas de aumento das taxas educacionais tanto na educação infantil e fundamental como no ensino médio, educação profissional e tecnológica e superior. Essas políticas constam do Plano Nacional de Educação de 2011, Projeto de Lei que tramita no Congresso Nacional (PNE, 2011), que traz em seus dados que o investimento público em educação total em relação ao PIB aumentou do ano de 2000, com 4,7 para 6,1 no ano de 2011, o que decerto não vem sendo suficiente para elevar o Brasil no ranking do IDH e formar cidadãos ativos e conscientes de seus direitos e de suas obrigações. O programa nacional intitulado Mais Médicos, instituído pela Medida Provisória do Poder Executivo nº 621 de 8 de julho de 2013 (BRASIL, 2013), demonstra formalmente a necessidade do investimento na educação superior. Trata-se de uma medida para convocar médicos brasileiros e estrangeiros para trabalhar na atenção básica de municípios com elevado grau de vulnerabilidade social. Faz-se uma ressalva a este programa quanto a sua transitoriedade. Essa é volume 06 255 i encontro de internacionalização do conpedi uma política emergencial e paliativa, pois o que realmente resolveria o problema do déficit de mão de obra qualificada nessa área é o aumento da oferta de cursos de graduação em medicina. E mais uma vez esbarramos na necessidade do incremento da educação superior. É neste cenário em que o Brasil se estabelece como a sétima potência econômica do mundo, mas com uma elevada dívida social, que se analisa o solidarismo e a responsabilidade social dos indivíduos, de maneira transfronteiriça, como requisitos de sustentabilidade deste modelo de globalização econômica capitalista. 3.solidarismo como pressuposto par a o desenvolvimento sustentável Diante do contexto da globalização mundial, pautada na hegemonia da razão econômica capitalista, que, sem dúvida, incrementa o crescimento econômico, mas ignora o desenvolvimento humano, é que se verifica a necessidade de um projeto de relações internacionais no âmbito educacional, respaldado em políticas de solidarismo e responsabilidade social. De acordo com a teoria do solidarismo defendida por Senise Lisboa (2012), que estuda o solidarismo nos âmbitos internacional, constitucional e privado, não se pode interpretar/aplicar o direito de liberdade ou os direitos sociais de forma isolada e absoluta. O direito tem unidade e deve pautar-se em seus princípios fundamentais da liberdade e da igualdade de forma solidária. O solidarismo pressupõe uma liberdade solidária e uma igualdade solidária. A solidariedade fundamenta-se no bem comum, no respeito ao outro. A teoria do solidarismo vem, portanto, propor uma interpretação de ambos os fundamentos dos direito – liberdade e igualdade – com base no solidarismo entre os indivíduos e os Estados nação (LISBOA, 2012). O solidarismo entre Estados está albergado na teoria do solidarismo internacional, ora objeto de estudado. Esta teoria adequa-se perfeitamente às incoerências resultantes da globalização econômica. Segundo o autor citado, Lisboa (2012), o solidarismo internacional é uma doutrina pautada na pacificação social, com fundamento em uma sociedade globalizada, com seus valores conduzidos para o desenvolvimento da dignidade das pessoas, visando ao bem comum. 256 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi Não há como olvidar o problema da desigualdade social e da pobreza no mundo. Para minimizar estes problemas no âmbito internacional, o solidarismo internacional preceitua a necessidade de cooperação entre as nações, com via ao combate à pobreza, por meio do incremento do pleno emprego, da educação, da saúde, etc. Tais preceitos têm previsão no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, assinado em 1966, quando da XXI Assembleia Geral das Nações Unidas, que consagra os direitos já então estabelecidos na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, ao definir a responsabilização internacional, ou seja, garantia a estes direitos até então sem força normativa (BALERA; SILVEIRA, 2013). Além dos documentos citados, o solidarismo é fundamento do Direito Humano ao Desenvolvimento, que historicamente teve seu marco no período de descolonização da década de 1960, e depois consubstanciado na Declaração do Direito ao Desenvolvimento das Nações Unidas em 1986 e, depois prevista na Conferência de Viena sobre Direitos Humanos de 1993. No ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição alberga o direito ao desenvolvimento como direito fundamental inalienável, fundamento da República Federativa do Brasil, princípio da ordem econômica, política e social (GRAU, 1990). O direito ao desenvolvimento passou, portanto, por várias interpretações ao longo da história, tanto no âmbito nacional como internacional. Vindo a ter a sustentabilidade como pressuposto, notadamente pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhecida como Comissão Brundtland, em 1987, que depois se consolidou de maneira mais clara e definida na Conferência na Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada em 1992, no Rio de Janeiro. A definição de desenvolvimento sustentável no Relatório Brundtland (RIO+20, 2014) reproduz o real significado do termo, ao definir que desenvolvimento destina-se à satisfação das necessidades das presentes e futuras gerações, incluindo-se a satisfação do desenvolvimento social e econômico. Vê-se claramente que o desenvolvimento sustentável estabelecido no âmbito do debate ambientalista vai além das questões restritamente ambientais, albergando a sustentabilidade social, econômica, humana e cultural. Quanto à sustentabilidade cultural, a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural equipara a “diversidade cultural” à “biodiversidade”, o que por sua vez é tema volume 06 257 i encontro de internacionalização do conpedi central dos efeitos da globalização discutida no presente trabalho, intitulado de aculturação. Aculturação é um processo de intercâmbio de valores, de forma construtiva, sem acarretar a dominação e destruição de culturas, ou seja, garantindo o multiculturalismo, mesmo diante da suposta hegemonia econômica capitalista globalizada. O filósofo marxista Mészáros, húngaro formado pela Universidade de Budapeste, seguidor de Lukács, professor da Universidade de Sussex, em sua obra “A educação para além do capital” (2008), define o papel da educação como libertadora. Libertadora da situação de opressão do trabalhador, imposta pela globalização capitalista. Defende a revolução por meio da educação. Somente pessoas educadas, com mentes abertas a reagir contra a lógica da dominação de classes, poderia oferecer concretamente a libertação para todos. A educação para Mészáros deve fomentar a consciência do papel do indivíduo na dimensão do individual com o social, que denomina de “reciprocidade mutuamente benéfica” (MÉSZÁROS, 2008, p. 97). E vê-se o solidarismo internacional em sua teoria, quando afirma que: [...] podemos perceber muito claramente a importância seminal da educação – explicitada na forma de reciprocidade mutuamente benéfica entre os indivíduos particulares e sua sociedade – na relação com a mudança fundamental necessária para transformar as práticas econômicas ora dominantes em um tipo qualitativamente diferente (MÉSZÁROS, 2008, p. 97). Acreditar que a ignorância, que a falta de educação cidadã, com desenvolvimento de mentes acríticas, vai sustentar por muito tempo a lógica perversa do crescimento econômico a qualquer custo é um erro. No contexto da globalização também da informação, que tanto facilita a comunicação, a dialética necessária ao desenvolvimento dos conhecimentos, a solução para superação destas contradições próprias do capitalismo globalizado é a formação cada vez mais qualificada dos indivíduos para o debate político. A despeito de uma lógica social ou liberal para a sustentabilidade entre o crescimento econômico e o desenvolvimento humano, salutar o incremento da educação, com destaque à educação superior, pautada em uma formação humanística, que será estudado neste trabalho em tópico posterior. 258 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi 4.educação como fundamento da sustentabilidade do desenvolvimento e do crescimento econômico em amartya sen Após falar da necessária sustentabilidade do modelo de globalização econômica praticado atualmente, por meio do solidarismo, defende-se o incremento da educação, sobretudo da educação superior, como fundamento da sustentabilidade do desenvolvimento. Para tanto, aborda-se a teoria do desenvolvimento como liberdade, do economista Sen (2010), que guarda coerência com as teorias até então trazidas no tópico anterior, do solidarismo e da educação, além do capital como fundamento do desenvolvimento sustentável social, econômico, cultural, humano e ambiental. O autor inicia a obra explicando seu objetivo: “o desenvolvimento pode ser visto como um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam” (SEN, 2010, p. 16). E afirma que desenvolvimento não representa para ele os dados econômicos objetivos, a exemplo do Produto Nacional Bruto, mas sim o desenvolvimento baseado nas liberdades desfrutadas pelos indivíduos, “como as disposições sociais e econômicas (por exemplo, os serviços de educação e saúde) e os direitos civis (por exemplo, a liberdade de participar de discussões e averiguações públicas)” (SEN, 2010, p. 16). Quando se aduz que o autor aborda a temática liberdade de forma mais ampla, é que a liberdade não fica restrita àquele clássico conceito de liberdade do indivíduo, em face da postura negativa do Estado. Engloba-se também neste conceito o que denomina de “principais fontes de privação de liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos” (SEN, 2010, p. 16-17). E prossegue: “Às vezes a ausência de liberdades substantivas relaciona-se diretamente com a pobreza econômica, que rouba das pessoas a liberdade de saciar a forme, de obter uma nutrição satisfatória ou remédios para doenças tratáveis, a oportunidade de vestir-se ou morar de modo apropriado” (SEN, 2010, p. 17). Ao contestar a teoria de Hayek (1994), a quem reputa ter ignorado os efeitos ou usos da liberdade, Sen (2010, p. 371) destaca que a liberdade tem dois volume 06 259 i encontro de internacionalização do conpedi aspectos que devem ser considerados, a liberdade como processo e a liberdade como oportunidade: 1) a importância derivativa da liberdade (dependente apensa de seu uso efetivo) e 2) a importância intrínseca da liberdade (por nos fazer livres para escolher algo que podemos ou não efetivamente escolher). [...] O aspecto do processo da liberdade tem de ser considerado conjuntamente com o aspecto da oportunidade, e este precisa ser visto em relação à importância intrínseca e também derivativa. Ademais, a liberdade par participar da discussão pública e da interação social pode ainda ter um papel construtivo na formação de valores e éticas. O enfoque sobre a liberdade realmente faz a diferença. Destaca-se o raciocínio do autor quanto à avaliação da relação entre as rendas e as capacidades. Sen (2010) não nega que as pessoas com privação de capacidades individuais estão fadadas, geralmente, a um baixo nível de renda, porém ressalta que essa lógica possui mão dupla inversamente proporcional, sendo bem verdade que o incremento da educação e da saúde repercuta na elevação da renda. Este pensamento representa o cerne da tese do autor que defende que a privação de capacidade responde negativamente no desenvolvimento de uma nação – leia-se desenvolvimento humano e econômico. Para fundamentar sua tese, Sen (2010) aborda os argumentos contra as liberdades políticas e os direitos civis como exemplos sobre o crescimento econômico em Estados com governos autoritários e da dificuldade de efetivar um regime democrático no Terceiro Mundo, onde os indivíduos estão preocupados em sobreviver. Por óbvio que o autor, para dar mais consistência à sua tese, refuta-a cientificamente e demonstra com fundamentação que o desenvolvimento de que trata vai além do desenvolvimento econômico. Essa tese demonstra que o desenvolvimento econômico deve estar acompanhado do desenvolvimento humano, ao qual denomina de liberdade, sob pena de falência da própria ordem capitalista e da globalização econômica vigente. Ao analisar e defender o desenvolvimento como um processo de expansão das liberdades substantivas dos indivíduos, Sen (2010) relacionou o capital humano e a capacidade humana. Destacou que o desenvolvimento do capital humano destina-se ao aumento da capacidade de produção do indivíduo no contexto do crescimento econômico, enquanto a capacidade humana é focada no fomento 260 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi do exercício da liberdade dos indivíduos. Ambas não deixam de ter relação, pois o indivíduo capacitado também incrementa seu poder produtivo, porém o objetivo do crescimento econômico não tem um fim em si mesmo, pois, segundo o autor, os seres humanos não são meramente meios de produção, mas também a finalidade de todo o processo. Nas palavras do autor (SEN, 2010, p. 372-373): Por exemplo, por meio da educação, aprendizado e especialização, as pessoas podem tornar-se muito mais produtivas ao longo do tempo, e isso contribui enormemente para o processo de expansão econômica. [...] A perspectiva da capacidade humana, por sua vez, concentra-se no potencial – a liberdade substantiva – das pessoas para levar a vida que elas têm razão para valorizar e para melhorar as escolhas reais que elas possuem. [...] Se a educação torna uma pessoa mais eficiente na produção de mercadorias, temos então claramente um aumento do capital humano. Isso pode acrescer o valor da produção na economia e também a renda da pessoa que recebeu educação. Mas até com o mesmo nível de renda uma pessoa pode beneficiar-se com a educação – ao ler, comunicarse, argumentar, ter condições de escolher estando mais bem informada, ser tratada com mais consideração pelos outros etc. Os benefícios da educação, portanto, excedem seu papel como capital humano na produção de mercadorias. A perspectiva mais ampla da capacidade humana levaria em consideração – e valorizaria – esses papéis adicionais também. Assim, as duas perspectivas são estreitamente relacionadas, porém distintas. Eis a teoria do economista Sen (2010), que enxerga no desenvolvimento das capacidades dos indivíduos a forma de efetivar suas liberdades e, consequentemente, o desenvolvimento. Infere-se, portanto, dessa teoria que a educação para a formação inclusiva do indivíduo representa condição sine qua non para a sustentabilidade da globalização econômica, ao se buscar a compatibilização do desenvolvimento humano e do crescimento econômico. 5.a experiência do intercâmbio acadêmico itália/ br asil na universidade de fortaleza: uma ação de solidarismo internacional Diante do que se abordou na presente pesquisa até o momento, destaca-se a premente necessidade de solidarismo, nos âmbitos nacional e internacional para volume 06 261 i encontro de internacionalização do conpedi fomentar a sustentabilidade entre o crescimento econômico e o desenvolvimento humano no contexto do mundo globalizado. E, como instrumento de efetivação de tais políticas, defende-se a cooperação universitária e a internacionalização da Universidade, tendo como ponto de partida os intercâmbios acadêmicos. Retratase este entendimento pelas palavras da administradora do PNUD, Helen Clark, quando do prefácio do Relatório do Desenvolvimento Humano 2013, intitulado “A Ascensão do Sul: progresso humano num mundo diversificado” (PNUD, 2013), que ressalta que: O PNUD está em posição de poder desempenhar um papel útil como mediador de conhecimentos e catalisador de parceiros – governos, sociedade civil e empresas multinacionais – para o intercâmbio de experiências. Desempenhamos um papel fundamental também na promoção da aprendizagem e da capacitação. Este relatório proporciona uma visão extremamente útil, com vista à nossa futura participação na cooperação Sul-Sul. A Rede Latino-americana de Cooperação Universitária – RLCU (2014), constituída em 1997, na Universidad de Belgrano, em Buenos Aires, Argentina, onde mantém sua sede social, tem sido responsável pela implementação da política de cooperação internacional entre as universidades do Sul, tanto de técnicas como de recursos humanos. Tem como parceiros os seguintes países: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai e Porto Rico como Estado Livre associado aos Estados Unidos da América. A ambiência internacional de cooperação universitária é patente e propicia o desenvolvimento das atividades de intercâmbio ora estudado. No âmbito nacional, o Ministério da Educação, do Governo Federal, criado há mais de 80 anos, tem como objetivo promover um ensino de qualidade, no âmbito da educação básica, profissional e superior. O Conselho Nacional de Educação (CNE) é o órgão colegiado integrante do Ministério da Educação, instituído pela Lei nº 9.131, de 25 de novembro de 1995, com a função de exercer atribuições normativas, deliberativas e de assessoramento ao Ministro da Educação. E, no âmbito da educação jurídica, instituiu as diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em Direito, por meio da Resolução CNE/CES nº 9, de 29 de setembro de 2004. 262 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi A Resolução CNE/CES nº 9/2004 estabelece as diretrizes de organização curricular, com destaque ao perfil do egresso que deverá ser assegurado uma “sólida formação geral, humanística e axiológica” e “valorização dos fenômenos jurídicos e sociais” (art. 3º, caput). Para a formação integral do discente, ressalta a capacidade de raciocinar criticamente e tomar decisões por meio de atitudes coerentes com a dogmática jurídica com responsabilidade social. Sobre a temática da responsabilidade social da universidade, Pompeu (2013, p. 253), em seu artigo intitulado “As ações de responsabilidade social da Unifor para o desenvolvimento social, formação do capital humano e capital social”, defende que: A expansão da globalização e a concorrência crescente no mundo econômico têm acelerado a utilização de novas tecnologias e como consequência o aparecimento de novos postos de trabalho. Delineia-se um novo perfil de profissional, flexível e dotado de conhecimento amplo das necessidades da comunidade em que atua e que seja capaz de assumir novas situações e envolver-se em soluções de problemas da sociedade. Para esta formação de um profissional crítico e apto a não somente se inserir no mercado de trabalho, como também contribuir responsivamente de forma solidária para o desenvolvimento, a Resolução CNE/CES nº 9/2004 prevê que o currículo seja composto por três eixos de formação que contemplem conteúdos e atividades de formação fundamental, profissional e prática. E, quando se fala de conteúdo e atividades, vai além das atividades de ensino, exigindo-se atividades pesquisa e extensão, in verbis: Art. 5º O curso de graduação em Direito deverá contemplar, em seu Projeto Pedagógico e em sua Organização Curricular, conteúdos e atividades que atendam aos seguintes eixos interligados de formação: I – Eixo de Formação Fundamental, tem por objetivo integrar o estudante no campo, estabelecendo as relações do Direito com outras áreas do saber, abrangendo dentre outros, estudos que envolvam conteúdos essenciais sobre Antropologia, Ciência Política, Economia, Ética, Filosofia, História, Psicologia e Sociologia. II – Eixo de Formação Profissional, abrangendo, além do enfoque dogmático, o conhecimento e a aplicação, observadas volume 06 263 i encontro de internacionalização do conpedi as peculiaridades dos diversos ramos do Direito, de qualquer natureza, estudados sistematicamente e contextualizados segundo a evolução da Ciência do Direito e sua aplicação às mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais do Brasil e suas relações internacionais, incluindo-se necessariamente, dentre outros condizentes com o projeto pedagógico, conteúdos essenciais sobre Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Tributário, Direito Penal, Direito Civil, Direito Empresarial, Direito do Trabalho, Direito Internacional e Direito Processual; e III – Eixo de Formação Prática, objetiva a integração entre a prática e os conteúdos teóricos desenvolvidos nos demais Eixos, especialmente nas atividades relacionadas com o Estágio Curricular Supervisionado, Trabalho de Curso e Atividades Complementares. As normas jurídicas que orientam e determinam as diretrizes curriculares dos cursos de graduação em Direito pautam-se, portanto, na formação integral do discente, para que esteja apto a cumprir sua função socioeconômica, aliando teoria e prática, conforme se depreende dos três eixos de formação descritos na Resolução do Ministério da Educação, que vincula todos os cursos de Direito no Brasil. Na Universidade de Fortaleza – Unifor, visualiza-se de forma bem definida o tripé da educação superior: ensino, pesquisa e extensão. Pautada na missão de “contribuir para a realização de ideais e sonhos, formando profissionais de excelência, mantendo o compromisso com o desenvolvimento socioambiental, científico e cultural”, tem seus fundamentos nos seguintes valores (UNIFOR, 2014): - Respeito ao homem e à sua diversidade, aos princípios democráticos e aos direitos humanos; - Responsabilidade social e ambiental; - Compreensão do ser humano como centro do processo educativo; - Contribuição com as transformações científicas, econômicas, políticas, sociais, culturais e tecnológicas; - Compromisso com a ética, a arte e a estética. A Unifor estrutura-se em três Vice-Reitorias: Vice-Reitoria de Ensino de Graduação – VREGRAD; Vice Reitoria de Pesquisa e Pós Graduação – VRPPG; 264 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi e Vice Reitoria de Extensão e Comunidade Universitária – VIREX. Esta última atua no âmbito acadêmico, cultural e social e desenvolve suas atividades na busca de proporcionar “o acesso ao conhecimento em suas mais diversas formas, seja pela promoção de cursos, palestras, seminários, bem como pela realização de exposições de arte, intercâmbios culturais, espetáculos teatrais e outras manifestações artísticas” (UNIFOR, 2014). Por sua vez, a VIREX contempla os seguintes departamentos: Divisão de Arte, Cultura e Eventos, Divisão de Responsabilidade Social, Divisão de Atividades Desportivas, Assessoria de Assuntos Internacionais, Escritório Education USA e TV Unifor. A Assessoria de Assuntos Internacionais “busca expandir seus horizontes em relação ao conhecimento, à pesquisa e à cultura”, por meio das “políticas de intercâmbio acadêmico internacional” e da “cooperação acadêmica, técnica, científica e cultural” (UNIFOR, 2014) entre universidades conveniadas de todo o mundo. O intercâmbio é facultado a alunos da graduação da Unifor que tiverem concluído no mínimo 50% da carga horário de seu currículo, domínio do idioma oficial do país de destino, média global (PMG) igual ou superior a 7,0 e não estar cursando o último semestre3. O aluno é responsável pelo custeio com despesas relativas a hospedagem, alimentação e demais gastos pessoais; despesas relativas a passagens aéreas e/ou terrestres, para deslocamento até a universidade de destino; despesas com visto e seguro viagem/saúde. As disciplinas cursadas pelos alunos da Unifor na universidade estrangeira será objeto de avaliação para fins de aproveitamento de estudo. Para os alunos estrangeiros que a Unifor acolhe para fins de intercâmbio acadêmico, há regras estabelecidas por meio de convênios firmados entre as universidades, com regras estabelecidas entre ambas. É o caso do convênio firmado entre a Universidade de Fortaleza (Brasil) e a Universidade de Palermo (Itália), que recebeu seis alunos do curso de graduação em Direito. O perfil pessoal dos discentes da Universidade de Palermo era de solteiros, de cor branca (intitulação 3 Estas normas podem ser flexibilizadas a depender do perfil acadêmico do discente, que será analisado individualmente, caso a caso, pela Vice-Reitoria de Extensão e Comunidade Universitária, com o fim último de propiciar a experiência ao aluno que realmente responda positivamente às exigências para o intercâmbio acadêmico internacional. volume 06 265 i encontro de internacionalização do conpedi do próprio aluno), com renda familiar entre 1.000 e 4.000 euros. Cursaram disciplinas de prática jurídica real e simulada, e desenvolveram atividades de extensão no Núcleo de Mediação e Conciliação, com carga horária total de 24 h/a semanais. A Universidade de Palermo (Itália) está implementando a clínica jurídica no seu currículo. O intercâmbio acadêmico objetiva vivenciar a experiência das disciplinas de prática jurídica, em especial a clínica jurídica, que realiza atendimento ao público em geral, que resulta na elaboração de peças processuais e o devido encaminhamento ao Judiciário. A relação com o Poder Judiciário se dá por meio do Convênio da Unifor com a Defensoria Pública Estadual, que tem a função constitucional de prestação da assistência judiciária gratuita. A experiência exitosa da clínica jurídica na Unifor chamou a atenção dos Italianos, que, respeitando as peculiaridades de sua realidade social, econômica e jurídica, objetiva implementar esta metodologia de ensino aliada à prática no currículo do seu curso de graduação em direito. Dos relatórios de entrevistas pode-se inferir, portanto, que os resultados acadêmicos e pessoais do grupo de alunos italianos foram positivos. Quanto aos aspectos acadêmicos do intercâmbio, classifica-se em excelente, boa, regular e insuficiente. A partir das respostas dos alunos, obteveu-se os seguintes resultados: quadro 2: resumo dos resultados dos relatórios de entrevista aplicados pelos autores Conteúdo abordado nas disciplinas BOM Metodologia de ensino REGULAR Aproveitamento (desenvolvimento de conhecimentos jurídicos) BOM Estrutura física da Universidade EXCELENTE Fonte: Elaborado pelos autores Diante dos resultados acadêmicos, verifica-se que o aproveitamento acadêmico de forma geral foi positivo, mas tiveram dificuldade com a metodologia de ensino empregada. Pela narrativa dos alunos estrangeiros, conclui-se que esta 266 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi dificuldade é resultado da diferença entre os ordenamentos jurídicos italiano e brasileiro. Ora, as disciplinas práticas são antecedidas de disciplinas dos eixos de formação fundamental e profissional, que perfazem pouco mais de 90% da carga horária total do curso de Direito da Unifor. Quanto aos aspectos culturais de “hábitos pessoais”, “alimentação”, “vestuário”, “lazer”, “clima”, “custo de vida”, “a cidade” e “as pessoas”, foram coletadas avaliações de natureza positiva e negativa de cada um destes itens. Em regra geral, adaptaram-se bem aos novos costumes, ressaltaram a cordialidade das pessoas e os hábitos saudáveis, e negativaram o trânsito, a ausência de monumentos e prédios históricos, a desigualdade social e a indiferença da elite com este problema. Ao avaliarem os resultados do intercâmbio em uma narrativa ao final do questionário, onde se indagou sobre os impactos dos conhecimentos desenvolvidos com o intercâmbio para sua vida acadêmico profissional, pode-se concluir pelo êxito do intercâmbio internacional, com destaque à continuidade do projeto na Itália, onde irão desenvolver uma disciplina de prática jurídica tendo como base a experiência vivenciada durante o intercâmbio, que resultará em um manual de orientação para a Universidade de Palermo. E, para ilustrar, citam-se trechos destes relatos extraídos dos Relatórios de três dos quatro alunos entrevistados, in verbis: Aluno(a) A: Em Fortaleza eu aprendi a importância da prática jurídica quando ainda se estuda na Universidade, somente que aquilo que aprendi aqui (por exemplo como escrever uma petição inicial) não será útil para minha carreira profissional, sendo os ordenamentos muito diferentes. Aluno(a) A: Graças a esta experiência eu conheci um novo modo de ensinar aos alunos, porque aqui as relações entre professores e alunos são bem próximas. Aluno(a) A: Em geral posso dizer que voltarei para a Itália mais rica pessoalmente, porque conheci hábitos e pessoas diferentes que me ajudarão nas próximas relações profissionais, mas, sobretudo, pessoais. Aluno(a) B: Viver no Brasil e ter mais conhecimento da sua sociedade contraditória demais, fez crescer minhas ideias de justiça, de solidariedade, de cidadania. Com certeza isso irá ajudar-me na minha formação como operador do direito, com volume 06 267 i encontro de internacionalização do conpedi mais envolvimento nas questões sociais e com uma cultura mais orientada para o desenvolvimento humano. Aluno(a) C: [...] se uma pessoa fica sempre na sua cidade, no seu estado, comas pessoas que pensam do mesmo jeito e que falam o mesmo idioma, não pode achar que o próprio mundo é o mundo todo. Mas não é assim: o mundo é cheio de diferenças e para compreendê-las é necessário esquecer-se por um momento da sua própria opinião e tentar pensar diferentemente. Isto só é possível indo para o exterior. Também se obteve resultado positivo em pesquisa junto a alunos da Unifor, colegas de turma dos alunos de intercâmbio. Gostaram da experiência de conviver com pessoas de culturas diferentes e demonstraram interesse em saber as peculiaridades do ordenamento jurídico italiano, bem como demonstraram interesse em conhecer o país e ter a mesma experiência de intercâmbio na universidade visitante. Ou seja, efetivamente verifica-se uma troca de vivências positivas para ambas as nações, que mesmo de forma pontual pode trazer efeitos positivos em cadeia. Não resta dúvida de que os alunos tiveram seus horizontes ampliados com o convívio com outra cultura e com outras metodologias de ensino e aprendizagem, e, sobretudo, com um ordenamento jurídico alienígena. A percepção de mundo ampliou-se. E a globalização se mostrou de forma positiva, ao construir laços de solidariedade entre indivíduos de nações e continentes diferentes e díspares em seus aspectos culturais, profissionais e econômicos. 6.conclusões Diante do contexto da economia produtiva e financeira globalizada, as relações sociais vêm a cada dia transformando-se. Por relações sociais, entendamse todas as formas de relação entre os indivíduos: valores morais, relacionamentos interpessoais, relações de trabalho, padrões de consumo, etc. Nesta conjuntura, globalizam-se formas de produção, mercados financeiros, políticas neoliberais do Fundo Monetário Internacional (FMI), sem se preocupar com as reformas de base dos países em desenvolvimento. Não se contesta a globalização e seus efeitos, mas sim se critica a adoção da mesma política que se adota nos Estados Unidos, por exemplo, no Brasil, país com 268 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi características díspares daquele. A realidade brasileira não comporta atualmente o liberalismo extremo. O Brasil ainda está a pagar uma dívida social de anos de má gestão da coisa pública. Depois de séculos de exploração é que se está a ver o início do desmonte de grandes esquemas de corrupção, que fomentavam o continuísmo político, de poucos, é claro. É um progresso, sem dúvida, ver esquemas como o do mensalão desmontados ou a descoberta de um pretenso esquema dos auditores da Prefeitura de São Paulo, que pode ter desviado mais de 500 milhões de reais dos cofres públicos (GLOBO.COM, 2013). A democracia é trabalhosa. E o Estado de Direito “incomoda muita gente”. É cômodo e necessário para a manutenção do status quo uma sociedade com cidadãos apáticos e ignorantes. Por que será que os governantes, sejam de qual partido for, não resolvem o problema do déficit educacional? Será uma economia em crise? Como? Se o Brasil ocupa o sétimo lugar entre as dez maiores economias do mundo? Como dito anteriormente, esta lógica da apatia dos indivíduos não tem mais suporte no contexto de globalização também da informação e da comunicação. Defende-se, portanto, uma educação transformadora que empodere os indivíduos a se tornar parte beneficiada e ao mesmo tempo autora de seu desenvolvimento e do desenvolvimento social, conforme defendido na teoria do solidarismo e do desenvolvimento sustentável. A tese do economista Amartya Sen adequou-se, portanto, ao que se defende neste artigo. Ele aponta como liberdade não somente aquela negativa em relação ao Estado, mas também a liberdade de viver com dignidade, de ter condições de fazer escolhas. Escolhas de ser e de ter. Ao reputar à privação de capacidade como problema central que representa obstáculo o desenvolvimento, pôde-se inferir como essência de sua teoria a capacitação formal e cidadã dos indivíduos para o desenvolvimento e o exercício de suas habilidades, competências e atitudes. Ou seja, para a plena concretização das liberdades, os indivíduos devem ter oportunidades de escolha. Essa oportunidade de escolha (de fazer ou não fazer, de ser ou não ser, de ter ou não ter), só é possível com a educação formal e inclusiva. Ao situar essa superação das desigualdades sociais, ou, ainda, da falta de liberdades no contexto da globalização econômica, identificou-se a necessidade de investimento no setor volume 06 269 i encontro de internacionalização do conpedi da educação superior, sem olvidar a necessidade de incrementar os investimentos nos outros âmbitos do ensino (infantil, fundamental e médio). Para a sustentabilidade entre o crescimento econômico e o desenvolvimento humano, é salutar, portanto, o incremento da educação, com destaque à educação superior, pautada em uma formação humanística e solidária. Neste sentido, identificou-se uma ambiência internacional para cooperação universitária, por meio do intercâmbio acadêmico, sob o aparato de dados estatísticos, relatórios internacionais e redes de cooperação para seu fomento. Em análise à experiência do intercâmbio acadêmico fruto do convênio firmado entre a Universidade de Fortaleza (Brasil) e a Universidade de Palermo (Itália), que recebeu seis alunos em seu curso de graduação em Direito, conclui-se que os resultados obtidos foram exitosos. Os alunos demonstraram que efetivamente obtiveram ganhos tanto no âmbito estritamente acadêmico/profissional como no âmbito social e cultural. E, como apresentado ao longo do trabalho, o desenvolvimento das habilidades e competências que se almeja ao egresso vai além do conhecimento meramente tecnicista, albergando também o desenvolvimento de consciência crítica, capaz de formar cidadãos ativos e conscientes de sua responsabilidade social nos âmbitos nacional e internacional. 7.referências BALERA, Wagner; SILVEIRA, Vladimir Oliveira da (coord.). Comentários ao Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Curitiba: Clássica, 2013. BERCOVICI. Gilberto. Política econômica e direito econômico. In: Pensar. Revista do Curso de Direito da Universidade de Fortaleza. v. 16. Fortaleza: Universidade de Fortaleza, 2006. p. 95-99. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília/DF: Senado, 1988. BRASIL. Medida Provisória do Poder Executivo nº 621 de 8 de julho de 2013. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20112014/2013/mpv/mpv621.htm>. 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Em face disso, analisa-se como pode o STF operar validamente essas técnicas em face das estruturas formais do Estado de Direito (separação de poderes, democracia, legalidade e segurança jurídica) e do seu fundamento material, que é a proteção do indivíduo, de sua dignidade e de seus direitos fundamentais. Por fim, analisam-se dois casos paradigmáticos em que o emprego de técnicas alternativas de decisão foi feito para proteger direitos fundamentais de minorias sociais em face da inércia legislativa. Palavras-chave Jurisdição Constitucional; Interpretação conforme a Constituição; Declaração de nulidade sem redução de texto; Ativismo Judicial. Abstract This article focuses on the techniques that the Brazilian Supreme Court employs on judicial review. Conclusive and alternative rulings are distinguished, demonstrating that the use of these techniques may, in some cases, express the judicial activism. Therefore, the article analyzes how can the Brazilian Supreme Court rule through these techniques facing the formal principles which sustain 1 Professora Titular de Direito Constitucional dos cursos de Graduação e Mestrado do Uniritter – Laureate International Universities. Mestre (2001) e Doutora em Direito Público (2007) pela UFRGS. volume 06 275 i encontro de internacionalização do conpedi the Rule of Law (such as the separation of powers doctrine, democracy, and legal certainty) and also its material foundation, that is, the protection of the individuals, their dignity and their fundamental rights. Finally, the article analyzes two cases ruled by the Supreme Court, in which the use of alternative techniques was provided in order to protect fundamental rights of social minorities against the “Parliament’s inertia”. Key words Judicial Review; Alternative Techniques; Brazilian Supreme Court; Judicial Activism. 1. introdução A Jurisdição Constitucional compreende a atividade desempenhada pelos Tribunais Constitucionais na tarefa de defesa e interpretação da Constituição. Quando contextualizada dentro dos parâmetros que identificam a adoção de um Estado de Direito, surge, de um lado, a necessidade de se reconhecer as competências e os limites a que estão adstritos os Tribunais Constitucionais nessa tarefa e, de outro, a importante tarefa de colaborar, dentro de suas competências, na realização dos direitos fundamentais dos cidadãos e dos objetivos previstos na Constituição. Dentre os parâmetros que permitem identificar o Estado de Direito, costumase apontar tradicionalmente a legalidade, a democracia, a separação dos poderes, e a própria segurança jurídica, como princípios que dão as estruturas que conformam a atividade do Estado. Os direitos fundamentais assegurados pela Constituição complementam essa estrutura no aspecto da funcionalidade, ou seja, dispõem os objetivos em razão dos quais devem funcionar aquelas estruturas. Em vista disso, neste artigo procuro descrever o trabalho desempenhado pelo Supremo Tribunal Federal no controle abstrato de normas e as técnicas empregadas na jurisdição constitucional para, logo em seguida, examinar como essas técnicas foram empregadas para assegurar direitos fundamentais de grupos minoritários. Farei isso à luz de dois casos concretos: o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo e do direito ao abortamento de fetos anencefálicos. 276 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi O controle de constitucionalidade é a essência da Jurisdição Constitucional e, sob certos aspectos, integra uma atividade comum do Poder Judiciário, que é aplicar e interpretar as normas vigentes no ordenamento jurídico. Entretanto, as decisões no controle abstrato de constitucionalidade podem apresentar certas particularidades que são estranhas a uma atuação tipicamente judicial, qual seja, fazer valer a lei nos casos concretos. O Supremo Tribunal Federal, órgão responsável pelo controle abstrato de constitucionalidade, pode, com eficácia erga omnes, através de diferentes técnicas de decisão, (a) implicar a negação de validade a normas preestabelecidas pelo Legislativo, (b) garantir a validade e aplicação incondicionada das normas cuja validade é posta em dúvida nos juízos inferiores, (c) preservar as normas com uma interpretação diversa daquela imediatamente atribuível ao texto, e, (d) não raras vezes, acabam inclusive alterando o significado literal daquilo que está escrito no texto legislativo, permitindo que a norma se mantenha vigente desde que com este novo significado. Além disso, em casos extremos o tribunal, lançando mão dessas técnicas, termina por implementar verdadeiras inovações na ordem jurídica, prática que, se por um lado, restringe normas que suportam o Estado de Direito, por outro, garante e efetiva outras normas constitucionais, notadamente as que preveem direitos fundamentais, muitas vezes para assegurar que grupos minoritários tenham seus direitos à igual e efetiva proteção por parte do Estado. A tarefa judicial de negar validade às leis inconstitucionais insere-se no âmbito dos freios e contrapesos que foram instituídos no sistema clássico de divisão dos Poderes, como uma forma de evitar o abuso na produção legislativa pelo Poder Legislativo, através da edição de normas em detrimento da Constituição. Daí que se compare o Poder Judiciário a um legislador negativo, i.e., aquele que retira do ordenamento as normas jurídicas inválidas, ao contrário do legislador positivo [Poder Legislativo] que as cria e adiciona ao ordenamento jurídico. Contudo hoje se observa na Jurisdição Constitucional o uso de técnicas de decisão que podem colocar o Tribunal Constitucional numa posição de verdadeira “intrusão” sobre as competências do Poder Legislativo, que continua sendo, em nosso sistema, o representante diretamente eleito pelo povo. Por isso, ao tratar de técnicas processuais, é preciso analisá-las do ponto de vista de sua conformação e coerência com o Estado Democrático de Direito, sem desprezar a tarefa maior volume 06 277 i encontro de internacionalização do conpedi dos poderes estatais, que é assegurar a existência digna do indivíduo, através da proteção de seus direitos fundamentais. Para tanto, proponho que essas técnicas sejam examinadas em duas partes. Na primeira parte, distingo essas técnicas segundo o tipo de julgamento emitido em relação às normas submetidas ao controle de constitucionalidade: o grupo das decisões conclusivas, em que se tem um juízo de constitucionalidade ou inconstitucionalidade, e o grupo das decisões intermediárias, ou alternativas, utilizadas nas zonas cinzentas, em que a norma pode ser considerada constitucional ou inconstitucional, dependendo da interpretação que lhe seja atribuída, ou dos casos em que a norma incida. Na segunda parte, analisarei dois casos concretos julgados pelo STF, demonstrando como o emprego dessas técnicas restringe o alcance dos princípios constitucionais formais do Estado de Direito (separação de poderes, democracia e legalidade) para dar a maior efetividade possível aos direitos fundamentais, que compõem o próprio sentido material do Estado de Direito. Cumpre, na conclusão desta análise, esboçar uma justificativa jurídica que evidencie se existe uma coerência entre essas decisões e o conjunto normativo da Constituição Federal. 2.tipos de decisões do stf no controle abstr ato de constitucionalidade Até pouco tempo, era possível afirmar que, diante da comparação entre uma norma ordinária e uma norma constitucional, uma entre duas opções se impunha: ou a norma vale, ou não vale. Ou bem é constitucional, ou é inconstitucional. O quadro hoje é bem diverso. Percebe-se e existência de muitas situações que ensejam a dúvida, e aponto alguns fatores que colaboram para esse quadro de indeterminação: a) Primeiro, hoje se sabe que a norma não equivale ao texto da lei (dispositivo). A norma é o resultado da interpretação do texto2. E a inter2 E o texto equivale a apenas um elemento parcial da interpretação, o “programa normativo”, i.e., o enunciado linguístico que enuncia a norma. A interpretação compreende um segundo momento, que é a análise do “âmbito normativo”, i.e., a análise dos elementos empíricos, 278 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi pretação, a seu turno, levará a um resultado condicionado por diversas variantes: o sujeito que interpreta, o âmbito [fático] de incidência da norma, o método escolhido e a categoria dos argumentos empregados. Mudando um desses elementos, pode alterar-se o resultado. Então o fato é que, hoje, é possível que se reconheça a validade de apenas uma das interpretações que possam ser atribuídas ao dispositivo, com exclusão das demais (é o caso da chamada interpretação conforme à Constituição), sendo também possível que se reconheça a invalidade da incidência da norma apenas a um grupo de casos, permanecendo a norma válida para os demais casos (declaração parcial de nulidade sem redução de texto). A diversidade de técnicas de decisão na jurisdição constitucional responde, em grande parte, a essa primeira constatação. Mas deve-se reconhecer que existem limites à interpretação jurídica. Sobretudo no campo da interpretação constitucional, em que se opera sobre normas com densidades normativas3 variáveis, a doutrina predominante reconhece que não é possível uma interpretação que leve à alteração do sentido literal do texto constitucional (mutação x modificação constitucional)4. Quando as possibilidades do texto se esgotam, surge o momento de nova deliberação do poder constituinte, evitando-se, assim, dos dados da realidade recortada pela norma. A concretização constitucional consiste na integração desses dois elementos, sendo o entendimento do primeiro orientado pelo segundo. MÜLLER, Friedrich. Discours de la méthode juridique. Trad. Olivier Jouanjan. Paris: PUF, 1993, p. 168. 3 Nas palavras de CANTILHO, “a densidade da norma constitucional impõe-se: (1) quando há necessidade de tomar decisões inequívocas em relação a certas controvérsias; (2) quando se trata de definir e identificar os princípios identificadores da ordem social; (3) quando a concretização constitucional imponha, desde logo, a conveniência de normas constitucionais densas.” [...] “A abertura de uma norma constitucional significa, sob o ponto de vista metódico, que ela comporta uma delegação relativa nos órgãos concretizadores; a densidade, por sua vez, aponta para a maior proximidade da norma constitucional relativamente aos seus efeitos e condições de aplicação.” (grifos do autor). Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3.ed. Coimbra: Almedina, 1998, p. 1.105. 4 HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1991, p. 23: “o sentido da proposição jurídica estabelece o limite da interpretação e, por conseguinte, o limite de qualquer mutação normativa. […] Se o sentido de uma proposição normativa não pode mais ser realizado, a revisão constitucional afigura-se inevitável. Do contrário, ter-se-ia a supressão da tensão entre norma e realidade com a supressão do próprio direito.” volume 06 279 i encontro de internacionalização do conpedi malabarismos judiciais. Porém, em face da permanente necessidade de proteção dos direitos do indivíduo, resta saber qual atitude do Judiciário seria aceitável diante de omissão persistente do legislador em oferecer resposta às questões que integram a agenda social. Isso examinarei mais próximo das conclusões. b) Segundo, muitas questões concretas submetidas à Corte suscitaram o emprego da técnica de modulação de efeitos à declaração de inconstitucionalidade. Com isso, coube à doutrina reconhecer que há graus de maior ou menor inconstitucionalidade, ou, em outras palavras, há decisões que promovem melhor a ordem constitucional como um todo do que outras [bloco de constitucionalidade5]. Dito de outro modo, além de decisões que declaram a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de uma norma, o STF tem proferido soluções que podem ser classificadas como mais ou menos constitucionais em face do conjunto normativo da Constituição6. Passo então ao exame das decisões que exprimem juízos conclusivos e, após, às técnicas que lidam com as zonas cinzentas. 2.1. juízos conclusivos 2.1.1. Declaração de constitucionalidade A declaração de constitucionalidade é a reafirmação, taxativa, da validade presumida que a norma já possui. Pode resultar de uma Ação Declaratória de Constitucionalidade procedente ou de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade improcedente. Essa decisão garante a permanência da norma jurídica no ordenamento e, por ter efeito vinculante, se torna um precedente obrigatório para as instâncias inferiores ao STF no Poder Judiciário, bem como ao Poder Executivo, sob pena de reclamação perante aquela máxima Corte (art. 28, parágrafo único, da Lei n° 9.868/99, c/c art. 102, I, “l”, da CF/88). A extensão 5 FAVOREU, Louis; LLORENTE, Francisco Rubio. El bloque de la constitucionalidad. Madrid: Civitas, 1991, p. 95-109. 6 AVILA, Ana Paula. A modulação de efeitos temporais pelo STF no controle de constitucionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 51. 280 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi deste efeito vinculante das declarações de constitucionalidade, no entanto, já foi objeto de delimitação em estudos doutrinários que aqui não cabe analisar7. Deve-se observar que a declaração de constitucionalidade é emitida sob uma espécie de cláusula rebus sic stantibus, pois obedece a um contexto jurídico e fático dentro do qual a norma foi examinada. Não por outra razão, há quem considere incompatíveis o efeito vinculante e a decisão declaratória de constitucionalidade, pelo fato de que esta “petrifica o processo hermenêutico para o futuro.”8 Havendo alterações nessas condições fáticas e jurídicas, nada impede que uma nova declaração, de inconstitucionalidade, atinja a norma em questão. Um bom exemplo deu-se na Suprema Corte Norte Americana que, em 1896, considerou compatível com a igualdade perante a lei (constitucional, portanto) a política de segregação racial no caso Plessy v. State of Louisiana (instituindo a doutrina do separate but equal). Sem que houvesse qualquer modificação normativa, esse juízo de constitucionalidade foi alterado após mais de 50 anos, no famoso caso Brown v. Board of Education, em que se firmou a segregação racial como atentatória da proteção da igualdade na Constituição Norte Americana.9 Percebe-se a mesma prática segregatória e a mesma Constituição, que ainda permanece vigente, mas uma mudança radical nas condições empíricas exigiu uma alteração total no precedente antes firmado pela Suprema Corte [overruling]. De pronto se percebe que a declaração de constitucionalidade não é [e nem pode ser] uma decisão blindada pelo manto da imutabilidade. Nesse particular, Marinoni tem razão ao observar que a coisa julgada é um instituto próprio dos processos subjetivos, em que existem partes interessadas no desfecho de uma lide, e que a coisa julgada é o instituto processual a garantir que, para aquelas partes, a situação foi definida e não mais será objeto de alteração10. A declaração de 7 ÁVILA. Ana Paula Oliveira. A face não-vinculante da eficácia vinculante das declarações de constitucionalidade: uma análise da eficácia vinculante e o controle concreto de constitucionalidade no Brasil. In: ÁVILA, Humberto (Org.). Fundamentos do Estado de Direito: estudos em homenagem ao professor Almiro do Couto e Silva. São Paulo: Malheiros, 2005. 8 Nesse sentido: STRECK, Lenio. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 491. 9 Plessy v. Ferguson, 163 U.S. 537 (1896); Brown v. Board of Education of Topeka, 347 U.S. 483 (1954). 10 SARLET, Ingo; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: RT, 2012, p. 975 e, mais adiante, p. 990. volume 06 281 i encontro de internacionalização do conpedi constitucionalidade, assim, não recebe o manto da inalterabilidade eterna, pois está atrelada a um determinado momento histórico e a determinados fundamentos jurídicos que, uma vez alterados, podem ser reexaminados. Finalmente, importa relevar que nem o Poder Legislativo e nem o próprio STF são atingidos pelo efeito vinculante de suas decisões e que essas decisões em controle abstrato não fazem coisa julgada material em sentido próprio. 2.1.2. Declaração de inconstitucionalidade A declaração de inconstitucionalidade, na doutrina e na jurisprudência dominantes no Brasil, equivale a uma censura de nulidade atribuída à norma ordinária que contraria a Constituição. Importa na exclusão da norma declarada nula que, na linguagem do STF, é expulsa do ordenamento jurídico. O tratamento análogo ao das nulidades é uma espécie de tradição nos julgados do STF, onde é recorrente a menção ao “dogma da nulidade do ato inconstitucional”11. Muitas reservas já foram dirigidas a este entendimento12, mas para os objetivos deste trabalho, basta compreender que, por força da tradicional censura de nulidade, a norma perde todos os seus efeitos retroativamente, inclusive os efeitos revogatórios que tenha operado sobre norma anterior acaso existente, a qual fica de imediato restaurada até que outra posterior expressamente a revogue13. As relações jurídicas constituídas sob o império da lei declarada inconstitucional poderão retornar ao stato quo ante, se as partes interessadas assim requererem. Por conta de sua expulsão, nenhuma chance tem essa norma de voltar a ser aplicada por qualquer órgão judicial, nem mesmo pelo próprio STF – porque, 11 STF, ADI-QO 652-MA, Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, j. 2/4/1992. 12 ÁVILA, Ana Paula. A modulação de efeitos temporais pelo STF no Controle de Constitucionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 31-36. 13 STF, ADI 652-MA (RTJ, 146:461, 1993), Pleno, Rel. Min. Celso de Mello. “A declaração de inconstitucionalidade em tese encerra um juízo de exclusão, que, fundado numa competência de rejeição deferida ao Supremo Tribunal Federal, consiste em remover do ordenamento positivo a manifestação estatal inválida e desconforme ao modelo plasmado na Carta Política, com todas as consequências daí decorrentes, inclusive a plena restauração de eficácia das leis e das normas afetadas pelo ato declarado inconstitucional. Esse poder excepcional –que extrai a sua autoridade da própria Carta Política—converte o Supremo Tribunal Federal em verdadeiro legislador negativo”. 282 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi em tese, a norma já não mais integra o plano da existência. Daí que o efeito vinculante nessas decisões apresente seu grau máximo de intensidade, pois tornase impossível desafiar o entendimento da Corte e aplicar uma norma que não mais existe. Além disso, interessa observar que o efeito vinculante da declaração de inconstitucionalidade abrange não apenas o dispositivo da decisão, como também os seus próprios motivos determinantes, razão por que se fala em transcendência dos motivos determinantes das decisões do STF, a indicar a interferência da decisão sobre os demais casos que, “embora não tratando da mesma norma, configuram igual questão constitucional, a ser solucionada mediante a aplicação dos mesmos fundamentos ou motivos que determinaram a decisão”.14 A situação da exclusão da norma do ordenamento jurídico interessa também nas técnicas intermediárias, porquanto nelas também se opera um juízo de exclusão. Não se trata contudo de um juízo de exclusão integral da norma, mas apenas de aspectos a ela relacionados, eis que a norma permanece abstratamente vigente no ordenamento jurídico. Veja-se, a seguir, em que consistem tais técnicas. 2.2.juízos intermediários ou alternativos Para bem compreender esses juízos alternativos, é fundamental ter em mente o princípio subliminar de que in dubio, pro norma. Segundo esse princípio, sempre que possível a norma deverá ser preservada e ter sua permanência na ordem jurídica garantida pelo Tribunal Constitucional.15 Esse princípio densifica outros princípios estruturantes do Estado de Direito, tendo em vista que a norma geral posta é uma decisão do Legislador (legalidade), representante diretamente eleito pelo povo (democracia), e garante a previsibilidade e confiança necessárias para o bom andamento das relações jurídicas (segurança jurídica). Por cristalizarem a soberania popular, as presunções são sempre em favor das normas. Tendo isso presente, aparecem situações de dúvida quanto à validade das normas em contextos diversos que suscitam incidências diversas. Isso levou 14 SARLET, Ingo; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: RT, 2012, p. 984. 15 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 4a Ed., São Paulo: Saraiva, 2001, p. 188. volume 06 283 i encontro de internacionalização do conpedi os tribunais a desenvolverem técnicas que são verdadeiras alternativas entre a opção radical de expulsar a norma do ordenamento, no caso da declaração de inconstitucionalidade, ou de permitir sua aplicação irrestrita, no caso da declaração de constitucionalidade16. 2.2.1. Interpretação conforme a constituição A primeira técnica alternativa é a interpretação conforme a Constituição. Através dela o STF faz uma espécie de declaração condicional de constitucionalidade [“a norma é constitucional, desde que...”], valendo apenas com o sentido fixado pela Corte no julgamento. Isso importa na exclusão de outros sentidos que possam ser atribuídos à norma e, em vista disso, o Min. Moreira Alves equiparou a interpretação conforme a uma pronúncia de inconstitucionalidade17. Parece, entretanto, que ante a dificuldade de se declarar a inconstitucionalidade de todas as possíveis interpretações atribuíveis ao texto, melhor seria considerar a interpretação conforme como equivalente a um juízo condicional de constitucionalidade. É esta a lição do Min. Gilmar Mendes: “na interpretação conforme à Constituição se tem, dogmaticamente, a declaração de que uma lei é constitucional com a interpretação que lhe é conferida pelo órgão judicial”18. Um bom exemplo de julgamento empregando esta técnica está na decisão da ADPF 46, a qual examinou a Lei n° 6.538/78. A lei estabelece o monopólio dos serviços postais em favor da EBCT – empresa pública da União. Argumentou-se que a lei instituidora do monopólio é anterior à CF/88 e não teria sido recepcionada pelo art. 177 da CF, dispositivo em que estão fixadas, de modo taxativo e numerus clausus, as atividades sujeitas ao regime de monopólio da União, sem incluir o serviço postal. A Corte, por maioria, declarou que a lei é constitucional, desde que 16 MENDES, Gilmar; MARTINS, Ives Gandra da Silva. Controle de constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 316. 17 Rp. 1.417, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 126/48. A dificuldade prática neste entendimento é que, em se tratando de uma espécie de declaração de inconstitucionalidade, somente pode ser pronunciada nos termos do art. 97 da CF, i.e., pela maioria absoluta dos membros dos Tribunais ou do respectivo órgão especial, inviabilizando a utilização da técnica no controle difuso de constitucionalidade nas instancias inferiores. MENDES, Gilmar. Controle Abstrato de Constitucionalidade: ADI, ADC e ADO. São Paulo: Saraiva, 2012, 527. 18 MENDES, Gilmar. Controle Abstrato de Constitucionalidade: ADI, ADC e ADO. São Paulo: Saraiva, 2012, 529. 284 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi se entenda a expressão monopólio como “exclusividade ou privilégio”, que são os termos compatíveis com as competências reservadas exclusivamente à União pelo art. 21 da mesma Constituição Federal, para o desempenho de serviços públicos (com é o caso do serviço postal), ao passo que “monopólio” é expressão reservada para o desempenho de atividades econômicas em sentido estrito19. Deste modo, manteve-se a lei impugnada e a reserva da atividade à EBCT, sendo a norma considerada constitucional desde que permanecesse vigente com o significado interpretativo fixado pela Corte, por correspondente à exclusividade prevista no art. 21. A decisão opera, assim, sobre o campo da interpretação dos elementos normativos, que possuem seu significado integrado a partir da decisão do tribunal. Algo diverso se passa com a declaração parcial de nulidade sem redução de texto, em que a decisão opera não sobre elementos normativos, mas sim sobre os elementos empíricos. 2.2.2. Declaração parcial de nulidade sem redução de texto Esta é a técnica empregada nos casos em que uma norma pode ser considerada abstratamente constitucional mas ter incidências inconstitucionais em algumas hipóteses de aplicação concreta. Nesses casos, o dispositivo permanece vigente e inalterado, sem redução de texto, mas haverá o bloqueio de sua incidência sobre determinadas hipóteses concretas especificadas na decisão. Observe-se que a censura não recai sobre o dispositivo, e sim sobre determinadas hipóteses de aplicação20 - daí o nome nulidade sem redução de texto. Esta técnica serve à solução da inconstitucionalidade concreta21 de norma abstratamente constitucional. Inicialmente, a jurisprudência do STF entendia como equivalentes as técnicas de interpretação conforme a Constituição e de declaração de nulidade parcial sem redução de texto, conforme restou consignado nas ADIs 491 e 319, ambas de relatoria do Min. Moreira Alves. Mais recentemente a jurisprudência do Tribunal 19 STF, Pleno, ADPF 46, Rel. p/ acórdão Min. Eros Grau, j. 05.8.2009. 20 MENDES, Gilmar. Controle Abstrato de Constitucionalidade: ADI, ADC e ADO. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 529. 21 ÁVILA, Ana Paula Oliveira. Razoabilidade, proteção do direito fundamental à saúde e antecipação de tutela contra a fazenda pública. Revista AJURIS, v.86, p.361-374, 2002. volume 06 285 i encontro de internacionalização do conpedi passou a acentuar a distinção entre elas enquanto técnicas autônomas22, no sentido de que a interpretação conforme opera a exclusão de sentidos normativos que possam ser atribuídos ao dispositivo além daquele fixado pela Corte, ao passo que a declaração de nulidade parcial sem redução de texto opera a exclusão de hipóteses de aplicação do âmbito de incidência da norma. Pode-se citar como exemplo a decisão que teve por objeto decreto estabelecendo aumento de IPI com vigência imediata (em detrimento da exigência constitucional da anterioridade nonagesimal). O STF declarou a nulidade parcial sem redução de texto para que o decreto presidencial que aumentou as alíquotas do IPI sobre a importação de automóveis não se aplicasse às operações ocorridas dentro dos primeiros 90 dias de vigência da norma.23 De qualquer modo, a Corte ainda não exerce maior rigor conceitual quanto a essas técnicas e vacila em alguns julgamentos, como na decisão da ADPF n. 54, pela qual restou autorizada a antecipação terapêutica de parto de feto anencefálico. Em diversos votos foi consignada a necessidade de se fazer a interpretação do Código Penal de “modo conforme a Constituição”, mas claramente operou-se a declaração de nulidade parcial sem redução de texto, eis que a norma proibitiva do aborto segue vigente e aplicável à generalidade dos casos, exceto às hipóteses concretas em que restar configurado o diagnóstico de anencefalia confirmado por junta médica. 3. questões suscitadas pelo emprego das técnicas alternativas e a proteção das liberdades individuais O grande problema na utilização dessas técnicas é que, muitas vezes, ao determinar sentidos interpretativos da norma ou excluir determinadas hipóteses de seu campo de incidência, pode-se alterar o sentido normativo originalmente fixado pelo Legislador, quando não mesmo inovar na ordem jurídica – tarefa que a jurisdição típica deve normalmente evitar. 22 MENDES, Gilmar. Controle Abstrato de Constitucionalidade: ADI, ADC e ADO. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 531. 23 STF, ADI 4661-DF MC, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 20.10.2011. 286 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi Por isso, é pacífico o reconhecimento de que a literalidade do texto apresenta um limite claro à jurisdição constitucional. Isso significa que seria inadmissível que, do emprego dessas técnicas, resultasse um sentido atentatório à expressão literal do texto24 -- esse limite não se circunscreve à jurisdição constitucional, mas à interpretação jurídica de um modo geral. Não se pode negar, porém, que os Tribunais tem sido levados a utilizar essas técnicas decisórias para proferir decisões limítrofes, atípicas portanto, quando seja absolutamente inevitável para dar uma resposta satisfatória aos casos concretos que se põem a exame. Surge com isso uma espécie de ativismo judicial, que tem levado a doutrina de direito constitucional e examinar mais detidamente a atuação das Cortes Constitucionais tanto na Europa, como nos EUA. Nessas condições, percebe-se que o tribunal é levado a transitar entre duas posturas opostas: as doutrinas do “judicial restraint” e do “judicial activism”. A primeira doutrina, do “judicial self-restraint”, releva a deferência em face do Poder Legislativo democraticamente eleito, sobretudo em razão do déficit democrático na ausência de representatividade popular dos juízes das Cortes Constitucionais, que não são diretamente eleitos pelo povo25. Como uma forma de compensação da carência dessa legitimação democrática, os tribunais constitucionais não devem se arvorar nas tarefas do órgão legislativo e as leis somente devem ser declaradas inconstitucionais quando a contrariedade em face da Constituição seja plenamente evidente26. Já a doutrina do ativismo judicial, na apertada síntese de Guastini, se inspira, seja no valor da congruência entre o Direito e a ‘consciência social’; seja em uma meta-ética utilitarista (a tarefa dos juízes é favorecer a melhor distribuição dos recursos); seja no 24 BITTENCOURT, Carlos Alberto Lúcio. O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 95. HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição, p. 23. 25 Entre as referências que bem analisam essa doutrina, cf.: ELY, J. H., Democracy and Distrust. A Theory of Judicial Review. Cambridge, 1980; RIRSCHL, Ran. Towards Juristocracy – the origins and consequences of the new constitucionalism. Cambridge: Harvard University Press, 2007. WALDRON, Jeremy. Law and Disagreement. Oxford: Clarendon Press, 1999. 26 GUASTINI, Riccardo. Teoría e ideología de la interpretación constitucional. Madrid: Minima Trotta, 2010, p. 63. volume 06 287 i encontro de internacionalização do conpedi dever constitucional dos juízes de proteger os direitos dos cidadãos (assim como os direitos das minorias) contra as maiorias políticas; seja em outros valores difíceis de identificar27. Para que este estudo se mantenha estritamente dentro do seu objetivo inicial, que é apenas analisar como as técnicas de decisão do controle abstrato de constitucionalidade operam entre as exigências formais e materiais do Estado de Direito, não adentrarei o debate que divide a doutrina brasileira entre os adeptos e os críticos do neoconstitucionalismo, movimento que defende, no Brasil, o ativismo judicial. Sobre o tema, já existe extensa e consistente produção doutrinária para que o leitor encontre a sua própria corrente28. Não se pode desprezar, contudo, que esse debate subjaz às decisões que passarei a analisar. Os casos abaixo selecionados servem, apenas, para demonstrar, de um lado, a utilização dessas técnicas para garantir direitos não contemplados pela agenda legislativa e, de outro, os cuidados necessários para que elas não venham a substituir a deliberação parlamentar em caráter definitivo. A seleção dos dois casos (ADPF 132 e ADPF 54) deu-se por conta de dois critérios: ambos (a) utilizam técnicas alternativas de decisão e (b) tratam de questões polêmicas que dividem as opiniões de diversos segmentos da sociedade (e, por consequência, também a opinião dos membros do Congresso Nacional), mas tratam de direitos de liberdade e de decisões individuais que não podem esperar eternamente uma deliberação legislativa majoritária para que sejam efetivados. 3.1. adpf 132 – reconhecimento das uniões homoafetivas Em 05 de maio de 2011 foi publicada a decisão unânime do STF, na ADPF n° 132, reconhecendo a união entre pessoas do mesmo sexo como entidade 27 idem, p. 64. [traduzi] 28 Cf., entre outros, RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial - Parâmetros Dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010; COMELLA, Víctor Ferreres. Justicia constitucional y democracia. Madri: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1997; BARROSO, Luis Roberto, Fundamentos teóricos e filosóficos do Novo Direito Constitucional Brasileiro. RDA 225:537; ÁVILA, Humberto. “Neoconstitucionalismo”: Entre a “ciência do direito” e o ” direito da ciência”. Revista Eletrônica de Direito do Estado n. 17. Jan/Fev/Mar 2009, 1-19; BREYER, Stephen. Active liberty: interpreting our democratic constitution. New York: Alfred A. Knopf, 2005. 288 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi familiar. A decisão levou em consideração um conjunto normativo que incluía dispositivos do Estatuto dos Servidores Públicos do RJ (em particular, arts. 19, II e V, e 33, I a X) que, se interpretados discriminatoriamente, negam às uniões homoafetivas o mesmo regime jurídico dispensado às uniões estáveis; o art. 1.723 do Código Civil, que reconhece a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, todos cotejados em face dos arts. 5°, caput (liberdade, igualdade, autonomia da vontade, segurança jurídica), 1°, IV (dignidade da pessoa humana) e 3°, IV (proibição de preconceito em razão do sexo e qualquer outra forma de discriminação). Não há previsão expressa na ordem jurídica brasileira acerca do reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo. Existe apenas, em nível constitucional (CF, art. 226, § 3°) e infra (CC, art. 1.723), a determinação de que o Estado reconheça a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar. Esse tipo de reconhecimento permite às partes o poder de deliberação acerca de diversos aspectos patrimoniais e extrapatrimoniais concernentes à união civil, sem falar, mais tarde, em questões sucessórias e benefícios previdenciários aplicáveis às relação estáveis, de convívio duradouro em entidade familiar. O não-reconhecimento pelo Estado da união homoafetiva impede aos participantes dessa relação o poder de deliberação e disposição em face de todas essas questões. A questão de fundo, como facilmente se percebe, é a proteção das minorias, para que sejam assegurados aos homossexuais os direitos à manifestação da autonomia da vontade e à autorregulação dos próprios interesses, direitos que são indissociáveis da personalidade do indivíduo. O dever [estatal] de proteção das minorias não passou despercebido pelo voto do Min. Gilmar Mendes, que, constatando a existência de lacuna normativa quanto à matéria, asseverou em seu voto: “a omissão da Corte poderia representar um agravamento no quadro de desproteção das minorias, as quais estariam tendo os seus direitos lesionados”29. O interessante é que neste caso o Supremo viu-se compelido a fazer uma interpretação da própria Constituição conforme a Constituição. Dito de outro modo, interpretou a parte conforme o todo. De fato, o STF teve de reconhecer que uma interpretação restritiva do próprio texto constitucional que ampara a 29 ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto. STF, Pleno j. 05/05/2011. volume 06 289 i encontro de internacionalização do conpedi união estável entre homem e mulher (art. 226, § 3°) contrastaria com a dignidade da pessoa e com o direito de igualdade previstos, respectivamente, nos arts. 1° e 5°, e com a proibição de preconceito em razão do sexo e de todas as formas de discriminação, prevista no inc. IV do art. 3° da Constituição. Essa integração entre as diversas normas constitucionais aplicáveis ao caso dá sentido à relevante advertência de Eros Grau, muito difundida na jurisprudência do STF, de que assim como jamais se interpreta um texto normativo, mas sim o direito, não se interpretam textos normativos constitucionais, isoladamente, mas sim a Constituição, no seu todo. Não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços. A interpretação de qualquer norma da Constituição impõe ao intérprete, sempre, em qualquer circunstância, o caminhar pelo percurso que se projeta a partir dela – da norma - até a Constituição.30 [grifei] Procedendo, então, a uma interpretação extensiva (extensão analógica) do art. 226, § 3°, a Corte entendeu que o fato de a Constituição determinar que o Estado proteja a união estável entre homem e mulher não significa que tenha excluído a possibilidade de união entre pessoas do mesmo sexo (“tudo aquilo que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido”). Considerou haver, na espécie, uma situação de lacuna normativa31, que pode ser superada pelo mecanismo da integração analógica, “decorrente da similitude factual entre a união estável e a homoafetiva”. Porém, é por demais evidente que o resultado prático desta decisão interpretativa ilustra, em tese, manifestação de ativismo judicial pelo Supremo Tribunal Federal. Por tal razão a decisão, que foi unânime, foi alvo de muitas críticas. Os críticos registram que, ao proceder à extensão analógica, a Corte, na prática, terminou por 30 GRAU, Eros Roberto Grau, A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros Editores, 14.ed. 2010, p. 69 31 Entre esses dois argumentos da decisão, o bom e velho KELSEN interviria para argumentar que a teoria das lacunas do Direito “é errônea, pois funda-se na ignorância do fato de que, quando a ordem jurídica não estatui qualquer dever de um indivíduo de realizar determinada conduta, permite esta conduta. A aplicação da ordem jurídica vigente não é, no caso em que a teoria tradicional admite a existência de uma lacuna, logicamente impossível. Na verdade, não é possível, neste caso, a aplicação de uma norma jurídica singular. Mas é possível a aplicação da ordem jurídica –e isso também é aplicação do Direito.” [grifei]. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1991, pp. 263-4. 290 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi inovar na ordem jurídica, reconhecendo um tipo de união estranho ao Código Civil e à própria Constituição, que somente contemplam a união estável entre homem e mulher. Registram, ainda, que a decisão contrariou o próprio dispositivo literal da Constituição Federal que dispõe, taxativamente, “entre homem e mulher”, configurando a usurpação, pelo Poder Judiciário, da tarefa que incumbe ao poder legislativo32. Em suma, o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo concitaria a manifestação do legislador, não podendo o Judiciário se impor ao espaço público e impedir a tomada de decisões pela via democrática33. Pouco há que discordar em face desses argumentos quando se pensa nas estruturas formais do Estado de Direito, que repousam, como dito no início deste ensaio, nos pilares da separação de poderes, da democracia e da legalidade. Há no entanto fundamentos materiais para o Estado de Direito, que estão enunciados já no Título I da Constituição Federal e denotam um Estado comprometido com a existência digna e a realização pessoal do indivíduo. Esse comprometimento toca, por certo, a todos os poderes da República, de modo que cumpre verificar qual a postura que se pode esperar do Judiciário quando constata a omissão legislativa no que diz respeito com a realização de direitos fundamentais de que são detentoras as minorias sociais. Como se sabe, a agenda legislativa nem sempre coincide com a agenda de necessidades sociais, muito menos com aquela dos grupos minoritários em situação de desigualdade e vulnerabilidade. Mesmo alguns críticos tradicionais do neoconstitucionalismo (e, por consequência, do ativismo judicial) reconhecem que a exigência de igualdade permite ao intérprete da Constituição criar uma grande quantidade de normas igualadoras e diferenciadoras, seja porque o legislador regulou apenas uma categoria de casos, omitindo-se quanto aos demais, seja porque regulou a todos genericamente, quando deveria ter feito distinções necessárias34. A hipótese aqui 32 A crítica de IVES GANDRA DA SILVA MARTINS está em http://ciencia.estadao.com.br/ noticias/geral,juristas-e-igreja-contestam-a-decisao-do-stf-sobre-uniao-homoafetiva,715497 , publicada em 05.05.2011, capturada em 13.06.2014. 33 STRECK, Lenio; BARRETTO, Vicente de Paula; OLIVEIRA, Rafael Tomaz. Normas constitucionais inconstitucionais, artigo publicado no Consultor Jurídico do dia 19.07.2009, por ocasião do julgamento da ADPF n. 132. Captado em: http://www.conjur.com.br/2009jul-19/confiar-interpretacao-constituicao-poupa-ativismo-judiciario 34 GUASTINI, Riccardo. Teoría e ideología de la interpretación constitucional. Madrid: Minima Trotta, 2010, p. 29. volume 06 291 i encontro de internacionalização do conpedi versada é justamente aquela em que o legislador regulou uma categoria de casos (união estável entre homem e mulher), deixando de fora outro grupo (união estável homoafetiva), ensejando a atuação judicial corretiva através da aplicação da norma da igualdade. Nesse sentido, quanto maior for o grau de desigualdade, tanto maior deverá ser o âmbito material de atuação no sentido de corrigi-la ou de verificar os pressupostos para uma diferenciação válida. Só haverá ativismo judicial se o exercício da função judicial comprometer a igualdade geral das regras e a sua uniforme aplicação. [...] Não se pode qualificar tout court a atividade judicial como ativista pelo simples fato de ser extensa. Em algumas situações, o maior âmbito material é imposto pelas normas constitucionais que devem ser concretizadas, pelos direitos fundamentais que são restringidos ou pela relação jurídica por meio da qual aquelas normas e esses direitos são configurados.35 Com efeito, em algumas situações o Poder Judiciário deverá atuar dentro de um âmbito material mais amplo, porque a conformação material do Estado de Direito assim exige. Isso ocorre quando o Legislativo deixa de apreciar e conformar, através da elaboração das leis que lhe compete, os princípios ou direitos fundamentais que cumpre ao Estado garantir e proteger. Tal é o caso do direito de liberdade do indivíduo para constituir união estável com alguém do mesmo sexo, usufruindo da proteção do Estado e todas as repercussões patrimoniais e extrapatrimoniais decorrentes. Por isso, tenho dúvidas de que esta decisão seja mesmo uma expressão de ativismo judicial. Ela mais parece o centro de convergência de diversas normas constitucionais, inclusive daquelas normas que coordenam a distribuição de competências aos diferentes órgãos estatais. É que, ante a ausência de exercício das competências constitucionalmente atribuídas, a própria Constituição estabelece uma solução genérica às lesões decorrentes da inércia estatal ao estabelecer que nenhuma lesão ou ameaça de lesão escapará da apreciação do Poder Judiciário. Nesse caso, pois, o Judiciário não se furtou a uma função que é, ao fim e ao cabo, eminentemente sua. 35 AVILA, Humberto. Ativismo Judicial e Direito Tributário. In Rocha, Valdir de Oliveira (Coordenador) Grandes questões atuais de direito tributário. Vol. 15. São Paulo: Dialética, 2011, p. 154-5 292 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi Embora esse tipo de decisão deva se cercar dos maiores cuidados do ponto de vista da fundamentação, que deve estar sempre amparada em norma constitucional, o certo é que o juízo fixado pelo Supremo Tribunal Federal é válido até que o Legislativo promova as alterações legais ou até mesmo constitucionais necessárias, restabelecendo a soberania popular – alteração essa que deve ser realizada dentro dos parâmetros constitucionais de igualdade e da garantia dos direitos fundamentais, sob pena de nova censura de inconstitucionalidade. 3.2.adpf 54 – antecipação ter apêutica do parto de fetos anencefálicos Outro julgamento bastante polêmico deu-se na ADPF 54, que autorizou a antecipação terapêutica do parto de fetos com anencefalia. Dito de outra forma, o Supremo autorizou a prática de abortamento em uma situação específica (anencefalia do feto), ainda que não contemplada taxativamente como causa de exclusão de ilicitude do tipo de aborto previsto do Código Penal. Em uma síntese tão breve quanto possível do processo, a arguição foi proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS, apontando como violados os preceitos dos artigos 1º, IV – dignidade da pessoa humana –, 5º, II – princípio da legalidade, liberdade e autonomia da vontade –, 6º, caput, e 196 – direito à saúde –, todos da Constituição Federal e, como ato do Poder Público causador da lesão, o conjunto normativo ensejado pelos artigos 124, 126, caput, e 128, incisos I e II, do Código Penal – Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. O pedido principal foi pela declaração de que os artigos 124, 126, 128, I e II, todos do Código Penal, se interpretados de modo a punir tal antecipação terapêutica de anencéfalo, são inconstitucionais. Requereu-se o emprego da técnica da interpretação conforme a Constituição para que apenas o feto com capacidade potencial de ser pessoa possa ser sujeito passivo do crime de aborto. A ação foi julgada procedente, por maioria. O voto do relator, Min. Marco Aurélio, lançou premissas que foram explicita ou implicitamente adotadas pelos demais ministros que votaram pela procedência da arguição, as quais apresento aqui de forma brevíssima. Antes de mais, tece considerações importantes acerca da volume 06 293 i encontro de internacionalização do conpedi laicidade do Estado brasileiro, realizando uma digressão histórica sobre a presença da religião católica no então Império brasileiro, e o momento em que a laicidade foi alçada a princípio constitucional pela Constituição de 1891. Esse caráter laico segue consagrado na atual Constituição de 1988, em seu art. 19, inciso I, razão por que as concepções morais religiosas não podem guiar as decisões estatais, devendo permanecer circunscritas à esfera de intimidade do indivíduo. Fica, assim, estabelecida a premissa de que a decisão referente ao presente processo não pode ser examinada sob os influxos de orientações morais ou religiosas. O relatório refere, inicialmente, que não cabe invocar o direito à vida dos anencéfalos. Isso porque, nas palavras do relator, “anencefalia e vida são termos antitéticos”36, porquanto o anencéfalo não tem expectativa, nem é ou será titular do direito à vida. Neste contexto, portanto, não se pode falar em aborto, este sim crime contra a vida. Refere-se que “a interrupção da gestação de feto anencefálico não configura crime contra a vida – revela-se conduta atípica”. A decisão põe em relevo aspectos psíquicos relativamente à saúde física e moral da mulher, evidenciando que cabe à mulher, e não ao Estado, valorar sentimentos que são de ordem privada. Neste sentido, reconhece-se o direito da mulher de autodeterminar-se em caso de absoluta inviabilidade de vida extrauterina. O julgado consigna, finalmente, que a imposição estatal da manutenção da gravidez diante do diagnóstico de anencefalia do feto vai de encontro a princípios basilares do sistema constitucional, precisamente à dignidade da pessoa humana, à liberdade, à autodeterminação, à saúde, ao direito de privacidade e ao reconhecimento pleno dos direitos sexuais e reprodutivos de milhares de mulheres. O voto do Ministro Luiz Fux acrescenta o exame da proporcionalidade à discussão e propõe uma “releitura das excludentes de ilicitude à luz das novas necessidades científicas e sociais”. Para a Ministra Rosa Weber, a tendência do uso semântico do conceito de vida no Direito está relacionado com critérios voltados às ideias de dignidade, 36 ADPF 54/DF, Rel. Min. Marco Aurélio. STF, Pleno, j. em 12.04.2012. Todas as expressões entre “aspas” que se seguem no texto correspondem a trechos da decisão publicada na ADPF 54. Como serão referidos no corpo do texto os Ministros a quem se atribui cada expressão, deixo de fazer a nota de rodapé correspondente a cada uma dessas citações diretas, por remeterem à mesma fonte aqui citada. 294 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi viabilidade de desenvolvimento e presença de características mentais de percepção, interação, emoção, relacionamento, consciência e intersubjetividade e não apenas atos reflexos e atividade referente ao desenvolvimento unicamente biológico. Diante disso, é de se reconhecer que merecem endosso os posicionamentos de não caber a anencefalia no conceito de aborto. O Ministro Gilmar Mendes, em que pese considerar que a atipicidade do aborto nesta hipótese é incorreta, ante a evidente proteção jurídica que se confere ao nascituro, entende que a situação enseja uma interpretação evolutiva do Código Penal, elaborado num momento em que não se dispunha da tecnologia de diagnóstico hoje acessível a todas as gestantes. Julga procedente a ação, “para dar interpretação conforme a Constituição, com efeitos aditivos, ao art. 128 do Código Penal, para estabelecer que, além do aborto necessário (quando não há outro meio de salvar a vida da gestante) e do aborto no caso de gravidez resultante de estupro, não se pune o aborto praticado por médico, com o consentimento da gestante, se o feto padece de anencefalia comprovada por junta médica competente, conforme normas e procedimentos a serem estabelecidos no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)”. Entre os votos contrários, o Ministro Lewandowski funda seu voto na antiga Escola da Exegese para reafirmar que “quando a lei é clara, não há espaço para a interpretação”. Afirma que os integrantes do Poder Judiciário não podem promover inovações no ordenamento normativo como se parlamentares eleitos fossem. Lançando mão de argumentos ad terrorem, ele lembra que continua em vigor o texto da legislação penal que não admite, em nenhuma circunstância, o aborto eugênico, e que “uma decisão judicial isentando de sanção o aborto de fetos portadores de anencefalia, ao arrepio da legislação penal vigente, além de discutível do ponto de vista ético, jurídico e científico, diante dos distintos aspectos que essa patologia pode apresentar na vida real, abriria as portas para a interrupção da gestação de inúmeros outros embriões que sofrem ou venham a sofrer outras doenças, genéticas ou adquiridas, as quais, de algum modo, levem ao encurtamento de sua vida intra ou extra-uterina”. Na mesma trilha segue o Ministro Peluso, para quem “embora não tenha ainda personalidade civil, o nascituro é, anencéfalo ou não, investido pelo volume 06 295 i encontro de internacionalização do conpedi ordenamento, segundo velha e fundada tradição jurídica, na garantia expressa de resguardo de seus direitos, entre os quais se conta a fortiori o da proteção da vida, como dispõe hoje o art. 2º do Código Civil. Pode, daí, por exemplo, receber doação, desde que aceita por seu representante legal (art. 542 do Código Civil)”. Neste sentido, observa que “o aborto de anencéfalo e a eutanásia aproximam-se de maneira preocupante”, levando a uma “ameaça eugênica”. No entanto, por maioria, o Tribunal realizou a interpretação conforme a Constituição para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal brasileiro. Quanto à técnica empregada, a decisão refere a técnica da interpretação conforme, mas parece mais correto entender que houve, na verdade, uma declaração parcial de nulidade sem redução de texto. Isso porque, diferente da interpretação conforme, em que se faz um juízo condicional de constitucionalidade, no sentido de se aceitar somente uma determinada interpretação entre várias que possam ser atribuídas à norma com exclusão das demais, a decisão na ADPF 54 operou sobre o âmbito normativo da norma, i.e., sobre as hipóteses fáticas compreendidas no seu campo de incidência. Com efeito, o que fez o tribunal foi excluir um grupo de casos (o de gestantes de fetos anencefálicos) do campo de incidência da normas punitiva do aborto, permanecendo ela válida e eficaz para garantir a criminalização dos demais casos. Por tratar de um assunto sensível à sociedade, como é a discussão do aborto, esta foi uma das questões mais polêmicas levadas ao STF. Aqui apresentei brevíssima síntese dos fundamentos do longo julgado, mas o fato é que no resultado está implícito o recurso ao postulado da proporcionalidade para ponderar fatores que não podiam ser considerados pelo legislador ao tempo da elaboração do Código Penal (1940), como o diagnóstico certeiro de inviabilidade de vida em fetos anencefálicos. Isso altera completamente a lógica da proibição do aborto nesta hipótese. Explico: é claro que a Constituição protege o direito a vida, e é este o fim que anima a conformação dada pelo Legislativo à matéria ao criminalizar o aborto e proteger o nascituro. Mas a restrição da liberdade da mãe pela criminalização do aborto não leva ao fim na hipótese de gestação de feto anencefálico. Isso torna a restrição à liberdade de escolha da mãe inadequada, desne296 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi cessária, ipso facto excessiva, porque, mesmo obrigando-a a levar a gestação a termo, o fim que justifica a restrição, que é o bem vida, não será de modo algum atingido. Embora o raciocínio pareça simples, melhor seria se ele fosse desempenhado pelo Poder Legislativo, como não deixou de registrar o Ministro Gilmar Mendes em seu voto. Na prática, a decisão termina por criar uma nova causa de exclusão de ilicitude do crime de aborto, não prevista expressamente no art. 128 do Código Penal. Trata-se, à toda evidência, de inovação legislativa em matéria penal pelo Supremo Tribunal Federal através do emprego de técnica alternativa de decisão. O direito penal, por lidar com a restrição de um dos bens mais fundamentais do indivíduo – a liberdade—, é um campo tradicionalmente submetido ao princípio da reserva legal. Isso implica a submissão da matéria a procedimento legislativo próprio, exigindo a deliberação e consenso dos representantes do povo. A criação de novos tipos penais não é, via de regra, admitida por intervenção do Executivo ou do Judiciário, pois nesta matéria o Legislativo é soberano, sob pena de inconstitucionalidade. Entretanto, o caso aqui tratado versa a exclusão de ilicitude, algo que opera in bonam partem, ao contrário da criminalização. E coloca em relevo um direito fundamental de liberdade da mulher que sofre a restrição do sistema penal desnecessariamente, num tema que o Legislativo, até o momento, não demonstra querer discutir. Estabelecer qual a medida da intervenção do Judiciário no desempenho de sua função de apreciar a lesão ou ameaça de lesão a direitos (art. 5°, inc. XXXV) dessas mulheres é algo que põe em evidência a divisão de poderes, a democracia e a legalidade. E nenhuma intervenção colocaria em evidência a lesão a outras normas igualmente fundamentais da Constituição, que protegem a dignidade da pessoa, a liberdade, a autonomia da vontade, a integridade física e moral e a própria proibição de excesso. Mais uma vez está-se diante de situação em que o Poder Judiciário se utiliza das técnicas alternativas da jurisdição constitucional para atuar dentro de um âmbito material mais amplo, porque a proteção do indivíduo contra os excessos do Poder Público e a efetivação dos seus direitos fundamentais (que são o fundamento e fim último do Estado de Direito) assim exigem. O tema compreende outra questão que ficou de fora da agenda legislativa, geralmente omissa quanto a discussões que desafiam suscetibilidades, questões morais e também religiosas. volume 06 297 i encontro de internacionalização do conpedi Deste modo, quando o Legislativo deixa de tomar as decisões normativas que lhe competem, os direitos fundamentais do indivíduo que cumpre ao Estado garantir permanecem carentes da solução que impende ao Poder Judiciário –por expressa disposição constitucional (CF, art. 5°, XXXV). Tal é o caso do direito de liberdade da gestante de feto anencefálico, que não pode, desnecessariamente, ser obrigada pelo Estado a levar a termo uma gestação que não alcançará o bem vida à sociedade. 4. conclusões Através deste ensaio, pretendi examinar as técnicas de decisão utilizadas pelo Supremo Tribunal Federal no controle abstrato de constitucionalidade. Registrei que, além das técnicas conclusivas de declaração de constitucionalidade e inconstitucionalidade, outras soluções são possíveis, as intermediárias ou alternativas. “Alternativas” porque conferem ao Tribunal uma opção que permite a permanência da norma no ordenamento jurídico através de adaptações quanto ao significado atribuído ao enunciado linguístico da norma (programa normativo) ou ao recorte empírico sobre o qual incide a norma (âmbito normativo). Com isso, apresenta-se uma alternativa entre a exclusão total da norma do ordenamento (inconstitucionalidade, com efeito vinculante) ou sua aplicação irrestrita (declaração de constitucionalidade, com efeito vinculante). Observei que, embora o STF nem sempre faça uma distinção clara entre a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de nulidade sem redução de texto, as duas técnicas operam sobre elementos distintos da norma. Assim, a interpretação conforme se circunscreve à definição, entre diferentes interpretações que possam ser abstratamente atribuídas à norma, daquela que é compatível com o texto constitucional, operando-se a exclusão em relação aos demais sentidos. A seu turno, a declaração parcial sem redução de texto opera em consideração às particularidades evidenciadas em certos casos concretos que venham a ser atingidos pela norma em questão. Isso é necessário porque, embora a norma, abstratamente considerada, não suscite qualquer problema em face do texto abstrato da Constituição, muitos casos compreendidos pelo seu campo de incidência apresentam vicissitudes que tornam a aplicação da norma inviável 298 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi para determinadas questões, pelo prisma da Constituição. Um exemplo bastante singelo desta situação em que a norma, em abstrato, é válida, mas pode ter algumas incidências inválidas (inconstitucionalidade em concreto), está no art. 1° da Lei n° 9.494/97 que proíbe a antecipação de tutela contra a Fazenda Pública. Esse dispositivo foi declarado abstratamente constitucional pelo STF na ADC n° 4, contudo o mesmo tribunal reconhece, pacificamente, em diversas reclamações ajuizadas perante aquela Corte, que no caso de antecipação de tutela de medicamentos indispensáveis que devem ser prestados pelo Estado em caráter de urgência, sob pena de dano irreversível à saúde, o dispositivo deve ter sua incidência bloqueada por lesar o direito à saúde e à existência digna, garantidos na Constituição. Fica evidente que essas técnicas alternativas são mecanismos de adaptação que servem ao escopo de garantir a permanência das normas editadas pelo Legislativo, sob o manto do respaldo popular, apesar de alguns de seus aspectos suscitarem controvérsias constitucionais. Servem, portanto, ao princípio democrático. No entanto, dependendo do resultado hermenêutico atingido através do uso das técnicas, pode-se promover justamente o inverso. Isso porque, como visto, delas podem decorrer inovações na ordem jurídica que muitas vezes atentam contra o próprio texto de proposições normativas aprovadas pelo Poder Legislativo. As decisões judiciais que, sem declarar uma norma inconstitucional, alteram a fixação de seu sentido a ponto de desfigurar a conformação legislativa original, manifestam o que muitos denominam de ativismo judicial. No entanto, há que distinguir os vários tipos de atuação judicial, para que se possa harmonizar algumas dessas situações com o conjunto normativo da Constituição. Esse parece ser o caso das decisões judiciais proferidas nas ADPFs 54 e 132, em que as técnicas alternativas foram utilizadas para solucionar casos de omissão e iniquidade, envolvendo direitos fundamentais de minorias sociais sem representatividade suficiente para fazer mover a máquina legislativa. Não se trata, portanto, de mera disputa entre Poderes para ver quem “pode mais” na República37, e nem de saber 37 E é deste modo que designo uma discussão lateral do HC 82.959/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, em que se propôs o reconhecimento da “mutação constitucional” do art. 52, X, da CF, para entender dispensável a competência do Senado de suspender a execução das normas declaradas inconstitucionais por decisão definitiva do STF. Com isso, as decisões do STF em volume 06 299 i encontro de internacionalização do conpedi quem tem condições de deliberar “melhor” acerca de determinada matéria, pois, como visto nos casos tratados, o tribunal operou em face da falta de regulação normativa específica que atendesse aos direitos sub judice. Trata-se, sim, da realização efetiva do fundamento material do Estado de Direito, que é a proteção do indivíduo e de sua dignidade em face das omissões do Poder Legislativo em regulamentar questões sociais relevantes e urgentes – malgrado já se tenham passado 25 anos desde a promulgação da Constituição. Ressalvo, contudo, que toda atuação judicial nesse sentido deve amparar racionalmente os seus fundamentos nas normas constitucionais e concretizar disposições preexistentes, dando coerência e consistência ao conjunto normativo da Constituição, inclusive daquelas normas que coordenam a distribuição de competências aos diferentes órgãos estatais. E, na falta do exercício de competências constitucionalmente atribuídas aos órgãos legislativos, que se façam valer as soluções constitucionalmente válidas, como é o exercício da jurisdição no restabelecimento de direitos lesados ou ameaçados. O refinamento das técnicas decisórias na jurisdição constitucional deu-se no firme propósito de preservar as normas do Legislativo, tanto quanto possível, mas também para que o Judiciário possa garantir direitos em situação de vulnerabilidade e não se furte a uma tarefa que é, ao fim e ao cabo, eminentemente sua. 5.referências ADPF 54/DF, Rel. Min. Marco Aurélio. STF, Pleno, j. em 12/04/2012 ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto. STF, Pleno j. 05/05/2011 ÁVILA, Ana Paula. A modulação de efeitos temporais pelo STF no Controle de Constitucionalidade. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2009. ÁVILA. Ana Paula Oliveira. A face não-vinculante da eficácia vinculante das declarações de constitucionalidade: uma análise da eficácia vinculante e o controle concreto de constitucionalidade no Brasil. In: ÁVILA, Humberto controle difuso poderiam ter eficácia erga omnes per se, suprimindo-se a atuação do Senado para tanto. 300 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi (Org.). Fundamentos do Estado de Direito: estudos em homenagem ao professor Almiro do Couto e Silva. São Paulo: Malheiros, 2005. _______. Razoabilidade, proteção do direito fundamental à saúde e antecipação de tutela contra a fazenda pública. Revista AJURIS, v.86, p.361-374, 2002. AVILA, Humberto. Ativismo Judicial e Direito Tributário. In Rocha, Valdir de Oliveira (Coordenador) Grandes questões atuais de direito tributário. 15° volume. São Paulo: Dialética, 2011. _______. “Neoconstitucionalismo”: Entre a “ciência do direito” e o ”direito da ciência”. In Revista Eletrônica de Direito do Estado n. 17. Jan/Fev/Mar 2009, 1-19. 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Oxford: Clarendon Press, 1999. 302 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi tr atados internacionais: sober ania versus indivíduo Luís Renato Vedovato1 Daniel Francisco Nagao Menezes2 Resumo O presente artigo pretende debater se os Tratados Internacionais, na atualidade, sofrem um processo de mutação em seu objeto de proteção. Historicamente, os Tratados Internacionais eram uma afirmação de compromisso do soberano, sendo por tal razão, um ato de Estado. Com o passar do tempo, os Tratados Internacionais deixam de proteger interesses dos Estados e passam a proteger interesses dos indivíduos, aproximando-se portanto, em atos de governo (atos ordinários). Por trás desta aparente proteção do indivíduo com esta mutação dos Tratados Internacionais, encontramos a possibilidade de expansão do sistema econômico capitalista, o qual, defende a primazia do indivíduo, porém, sem trazer qualquer proteção a este indivíduo. Palavras-chave Tratados Internacionais; Individualismo; Decisão de Estado. Abstract This article aims to discuss whether international treaties, in actuality, undergo a process of mutation in their object of protection. Historically, international 1 Professor do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Nove de Julho. Também é professor doutor na UNICAMP, lecionando na Faculdade de Ciências Aplicadas e no Instituto de Economia. 2 Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, especializações em Direito Constitucional e Direito Processual Civil ambos pela PUCCampinas, Especialização em Didática e Prática Pedagógica no Ensino Superior pelo Centro Universitário Padre Anchieta, Mestre e Doutor em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor Universitário da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, campus Campinas e, das Faculdades de Campinas FACAMP volume 06 303 i encontro de internacionalização do conpedi treaties were an affirmation of commitment of the sovereign, and for this reason, an act of state. Over time, international treaties fail to protect the interests of States and shall protect the interests of individuals, thus approaching in acts of government (ordinary acts). Behind this apparent protection of individuals with this mutation of International Treaties, we find the possibility of expansion of the capitalist economic system, which defends the primacy of the individual, however, without providing any protection for this individual. Key words International Treaties; Individualism; Decision of State. 1.introdução De acordo como REZEK (2011, p. 35), os Tratado Internacionais fazem parte do cotidiano da vida em comunidade, desde antes de Cristo. Independentemente do modelo de Estado, sempre existiram acordos entre povos, sejam acordos de não agressão, como também os de cooperação, tendo como exemplo clássico, as cidades estados gregas. Estes simples atos internacionais da antiguidade3 – que eram entendidos como compromissos pessoais dos soberanos, até os atuais e complexos acordos multilaterais, tem um ponto em comum, a defesa dos interesses do Estado, quando muito da Nação. Toda a estrutura de formação, negociação, redação e aplicação dos Tratados Internacionais (entendidos aqui como gênero de todos os tipos de atos internacionais) é conduzida por um ente soberano que, atua em seu interesse. Porém, no contexto da pós-modernidade, a finalidade de defesa dos interesses do Estado é colocada em xeque. No atual momento histórico há um resgate do individualismo e a elevação desde ao centro dos interesses da sociedade, 3 O tratado mais antigo de que se tem notícia data de 3000 A.C, firmado entre cidades da Mesopotâmia chamadas Logash e Umma, tratando da fixação de fronteiras, recorrendo-se à arbitragem do rei de uma terceira cidade, Kish, para a solução da questão. Deste tratado se pode inferir um certo desenvolvimento de algumas instituições de direito internacional, neste caso a arbitragem. Após este tratado, tem-se um período de 1000 anos até o surgimento de outro de que se tenha prova. 304 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi transformando a realidade social em algo fluído, baseado no interesse mutável de cada pessoa. Como ficam os Tratados Internacionais, que originariamente possuem a missão de defender interesses nacionais diante da valorização do indivíduo? Como o indivíduo é protegido em um contexto de proteção do interesse do Estado? Estas são as questões centrais a serem discutidas no artigo. 2.evolução dos tr atados Para a existência de Relação Internacionais é necessária a ocorrência de dois fatores simultâneos: a existência de grupos humanos autônomos e, comunicação entre estes grupos. A partir da existência do grupo e, de um canal de comunicação surge a partir da ação política do Estado (grupo humano) a sua relação com outro grupo nas mesmas condições e com interesse na comunicação. A forma jurídica como os acordos (obrigações) pactuados a partir da ação política dos Estados é o que atualmente denominamos Tratados Internacionais. A evolução história dos Tratados pode ser dividido em três momentos históricos distintos: a) Período da unidade (característico da Idade Média): Tem início ainda no Império Romano e busca como característica central manter a unidade do Império, voltando-se os tratados aos interesses de Roma. Após a queda de Roma, passa a ser utilizado pela Igreja Católica a fim de manter a unidade do povo cristão, o qual é considerado “um só” independentemente do território que habitam. b) Período do equilíbrio (próprio da Idade Moderna) A principal pretensão internacional de cada Estado de neutralizar a expansão de cada um dos outros, a fim de manter o status quo político e territorial. Não há mais neste período a força unificadora do Império Romano e, com a pulverização do território romano em pequenos feudos sem uma autoridade central, era necessária negociação constantes entre os vários feudos (reinos) para evitar a aniquilação ou incorporação, criando uma política de compensações territoriais que sobrevive até a II Guerra Mundial. volume 06 305 i encontro de internacionalização do conpedi c) Período da Organização Internacional (Atualmente) Entende-se, especialmente após o final da II Guerra Mundial que assuntos como a segurança, a paz, qualidade de vida, direitos humanos, só são possíveis mediante a colaboração de todos os Estados membros. Uma instituição estável e idônea e pelos deveres dos Estados membros, contando com um sistema juridicamente regulado e de caráter permanente, garantia o alcance dos ideais acima transcritos. Na contemporaneidade, como já colocado estamos diante de um período que prima pela existência de organismos multilaterais, o que acaba por formar o que denominamos Sociedade Internacional, formada pelos Estados, pelos organismos internacionais e pelos indivíduos isoladamente, apresentando as seguintes características (BREGALDA, 2007, p. 04): “(a) Isonomia: deve haver igualdade entre os sujeitos; (b) Descentralização: pois vários são os criadores e destinatários das normas de direito internacional. Ainda permanece, mas não como uma verdade absoluta, já que existem hoje órgãos completamente centralizados; (c) Universalidade: deve abranger o máximo possível de integrantes; (d) É Aberta: como corolário lógico da característica anterior, é aberta a novos integrantes. (e) Com direito originário: visam criar um âmbito normativo novo.” Reiterando o que já fora colocado acima, a forma como os membros desta Sociedade Internacional negociam seus interesses na atualidade, são, em sentido genérico, os Tratados Internacionais, os quais, surgem, como se pode observar, como um ato de soberania, tanto é que nos dias atuais, o Poder Legislativo (representando do poder soberano – povo) também participa dos atos de celebração dos Tratados Internacionais. “Tradicionalmente, a competência do Executivo para a política externa estatal sempre foi reconhecida, mas a atuação do Legislativo no processo de conclusão dos tratados é reputada uma conquista recente, que foi patrocinada pelas revoluções burguesas do século XVIII. Isto é, costuma-se considerar que a partir das referidas revoluções a atuação 306 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi do Executivo na esfera internacional teria sido limitada pela ação do Legislativo. Entretanto, embora historicamente a negociação dos tratados tenha sido constantemente julgada atribuição do Poder Executivo, não é correto considerar que em tempos remotos a decisão sobre a vinculação a um tratado também fosse uma área de amplo arbítrio do governante, de forma que a vontade da unidade política em obrigar-se por um tratado fosse formada exclusivamente pelo seu dirigente.” (TOLFO, 2013, p. 1.731) Ainda que o Tratado tenha participação do Poder Legislação, seja na sua aprovação seja no procedimento de internalização, como determina o art. 49, I da Constituição Federal, o Tratado Internacional, continua a ser uma decisão de soberania de Estado. 3.tr atados internacionais como ato de estado e não de governo O Tratado Internacional é ato de Estado e não mero ato burocrático de governo, cabendo por isso, ao chefe de Estado, a sua celebração, independentemente da aprovação posterior do Poder Legislativo. Tanto é assim, que Carl Schmitt em seus escritos sobre Direito Internacional nega traço universalista ou humanitário neste ramo do direito, traduzindo-o como uma tentativa de regramento em um cenário de caos em que existem vários atores disputando o mesmo espaço, em um cenário de desconfiança, atores os quais, se valem da guerra4 como mecanismo real de relação entre as unidades. Isto porque, os Estados soberanos permanecem portadores de vontades autônomas, alheias a todo tipo de sujeição a uma ordem normativa que lhes seja exterior. Se de um lado é certo que a convivência entre estes Estados não é “um caos sem regras de vontades egoísticas de poder” (SCHMITT, 1979, p. 139), por 4 “É inadmissível designar de maneira indiferenciada todo recurso à violência na forma da guerra como anarquia e considerar esta designação como a última palavra sobre a questão internacional da guerra. Uma circunscrição [Einhegung] da guerra e não a sua abolição foi até hoje o autêntico êxito do direito, foi até hoje a única realização do direito internacional.” (SCHMITT, 1979, p. 159) volume 06 307 i encontro de internacionalização do conpedi outro lado, sua ordem tampouco nos é apresentada como o produto de pactos e compromissos a que cada uma das partes aceitaria se submeter. A guerra é um meio racional e real do Estado buscar construir uma ordem política interna e, portanto, é a força dos Estados Nacionais quem estabelece o jogo de poder e estabilidade internacional, não podendo os Tratados, estipularem contrariamente aos interesses do Estado5, os quais são, por sua vez, políticos e mutáveis. O conceito de Carl Schmitt, radical por um lado, demonstra claramente que o Tratado Internacional nada mais é do que uma manifestação de vontade do Estado, representado por seu chefe, responsável inclusive, pela guarda da Constituição, para manter a linha de pensamento de Schmitt. Assim, pretendemos neste capítulo, deixar claro que o Tratado Internacional, é um ato de soberania, de interesse do Estado, e não de interesse da Nação, do indivíduo ou de grupos de indivíduos, tanto é assim, que Tratados Internacionais são pactuados nos países parlamentaristas, pelos chefes de Estado e não, por chefes de Governo. 4. a individualização dos tr atados internacionais Como discutido acima, os Tratados Internacionais têm um viés de defender interesses do Estado e não de particulares. Porém, a evolução dos Tratados Internacionais, ao passar a defender minorias, como o vem fazendo especialmente após a II Guerra Mundial, passa a individualizar o objeto de atuação do Tratado Internacional, fugindo da lógica originária de que os Tratados Internacionais são uma extensão da política interna. Atualmente, com a ascensão do período de prevalência das Organizações Internacionais, as quais, além de plurais, são setoriais, isto é, tratam de assuntos específicos, a forma de negociação dos Tratados Internacionais se altera. Agora, diante deste quadro de Organizações Internacionais, passa a existir um interesse 5 “a força vinculatória de uma obrigação de Estados soberanos em termos do direito internacional, não pode residir na problemática autovinculação dos soberanos que se mantém livres, mas no pertencimento comum a um espaço circunscrito [umhegten], isto é, baseia-se no efeito abrangente de uma ordenação concreta do espaço.” (SCHMITT, 1979, p. 198) 308 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi global, e não somente dos países envolvidos levando, consequentemente, a mecanismos de adesão mais abertos (a qualquer tempo), diminuindo a tensão no momento de negociação dos Tratados Internacionais. Uma visão geral sobre a evolução dos tratados Internacionais é elaborada por VASQUEZ (2006, p.42): “Está se produzindo uma verdadeira quebra do esquema clássico contratual do tratado, para se converter em um instrumento de legislação internacional: a despersonalização dos negociadores, a multiplicidade/variedade dos sujeitos, as alterações fundamentais nos procedimentos de formação do tratado, a extensão do efeito dos mesmos a terceiros. Observando a realidade político-internacional, verificamos que os mais importantes tratados, são realizados de forma multilateral. No século XIX os conflitos internacionais surgiam entre grupos de estados, daí que o esquema contratual bilateral não atendia mais. (...) Por outro lado surge a questão das reservas: o Estado que fazia as reservas, não participava da Convenção Multilateral se os outros não aceitassem as reservas: na teoria clássica era necessária a unanimidade dos estados (depois se adotou o sistema Panamericano). Nos tratados contemporâneos temos a adesão aos tratados multilaterais abertos, aonde não necessariamente se vincula a um grupo de estados (pela não ratificação ou renúncia), e também temos a possibilidade de obrigar a outros que não participem diretamente (Ex. Cláusula da Nação mais favorecida).” Elaboramos uma pequena lista dos principais Tratados Internacionais dos últimos cem anos a fim de demonstrar a hipótese do artigo de que, os Tratados vem deixando de abordar questões de Estado para proteger interesses individuais e de minorias. 1. Organizações Internacionais e Instituições Regionais 1.1. Pacto da Sociedade das Nações (1919) 1.2. Carta das Nações Unidas (1945) 1.3. Estatuto da Corte Internacional de Justiça (1945) volume 06 309 i encontro de internacionalização do conpedi 1.4. Carta da Organização dos Estados Americanos (1948) 1.5. Tratado de Cooperação Amazônica (1978) 1.6. Protocolo de Emenda ao Tratado de Cooperação Amazônica (1998) 2. Desarmamento e Segurança Coletiva 2.1. Protocolo de Genebra (1925) – Proibição do emprego na guerra de gases asfixiantes, tóxicos ou similares e de meios bacteriológicos de guerra 2.2. Tratado de renúncia à Guerra (1928) – Pacto de Paris ou Briand-Kellog 2.3. Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (1947) – Pacto do Rio 2.4. Tratado de Proscrição das Experiências com Armas Nucleares na Atmosfera, no espaço cósmico e sob a Água (1963) 2.5. Tratado sobre a Não-Proliferação de Armas Nucleares (1968) 2.6. Tratado para Proscrição de Armas Nucleares na América Latina e no Caribe (1967) – Tratado de Tlatelolco 2.7. Convenção para Prevenir e Punir os Atos de terrorismo configurados em delitos contra pessoas e a extorsão conexa, quando tiverem eles Transcendência Internacional (1971) 2.8. Tratado de Proibição Completa dos Testes Nucleares (1996) 2.9. Protocolo ao Tratado de Proibição Completa dos Testes Nucleares (1996) 2.10. Convenção Internacional sobre a Supressão de Atentados Terroristas com Bombas (1998) 2.11. Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (2000) 2.12. Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, Relativo ao combate ao tráfico de migrantes por via terrestre, marítima e área (2000) 2.13. Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, relativo à prevenção, repressão e punição do tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças (2000) 310 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi 3. Relações diplomáticas e consulares 3.1. Convenção de Viena sobre relações diplomáticas (1961) 3.2. Convenção de Viena sobre Relações Consulares (1963) 4. Asilo territorial e diplomático 4.1. Convenção sobre Asilo Territorial (1954) 4.2. Convenção sobre Asilo diplomático (1954) 5. Direito dos Tratados 5.1. Convenção de Havana sobre Tratados (1928) 5.2. Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (1969) 5.3. Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados entre Estados e Organizações Internacionais ou entre Organizações Internacionais (1986) 6. Espaços marítimos 6.1. Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (1982) – Convenção de Montego Bay 6.2. Lei 8.617, de 4 de janeiro de 1993 – Dispõe sobre o mar territorial a zona contígua, a zona econômica, exclusiva e a plataforma continental brasileiros, e dá outras providências. 6.3. Acordo relativo à implementação da Parte XI da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (1982) 7. Espaço aéreo 7.1. Tratado sobre Princípios Reguladores das Atividades dos Estados e na Exploração e Uso do espaço cósmico, inclusive a lua e demais corpos celestes (1967) 7.2. Convenção relativa às infrações e a certos outros atos praticados a bordo de aeronave (1963) 7.3. Convenção sobre Responsabilidade Internacional por danos causados por objetos espaciais (1972) volume 06 311 i encontro de internacionalização do conpedi 8. Zonas polares 8.1. Tratado da Antártida (1959) 8.2. Protocolo ao Tratado da Antártida sobre Proteção ao Meio Ambiente (1991) 8.3. Convenção sobre a conservação dos recursos vivos marinhos antárticos (1980) 9. Proteção Internacional dos Direitos Humanos Declarações de Direitos Humanos aprovadas pelo Brasil A) Sistema Global 9.1. Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) 9.2. Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento (1986) 9.3. Declaração e Programa de Ação de Viena (1993) 9.4. Declaração de Pequim adotada pela quarta conferência sobre as mulheres: ação para igualdade, desenvolvimento e paz (1995) B) Sistema regional interamericano 9.5. Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948) Tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil A) Sistema global 9.6. Convenção para Prevenção e a Repressão do crime de genocídio (1948) 9.7. Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951) 9.8. Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados (1966) 9.9. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966) 9.10 Protocolo Facultativo relativo ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966) 9.11. Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966) 9.12. Convenção Internacional sobre Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial (1965) 312 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi 9.13. Convenção Internacional sobre Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (1979) 9.14. Protocolo Facultativo à Convenção Internacional sobre Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (1999) 9.15. Convenção contra a tortura e outros Tratamentos ou Penas cruéis, desumanas ou degradantes (1984) 9.16. Convenção sobre os Direitos das Crianças (1989) 9.17. Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança referente à venda de criança, à prostituição infantil e à pornografia infantil (2000) 9.18. Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo ao envolvimento de crianças em conflitos armados (2000) 9.19. Convenção das Nações Unidas contra corrupção (2000) – Convenção de Mérida B) Sistema regional interamericano 9.20. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969) – Pacto de San José da Costa Rica 9.21. Estatuto da Corte Interamericana de Direitos Humanos (1979) 9.22. Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em matéria de direitos econômicos , sociais e culturais (1988) – Protocolo de San Salvador 9.23. Protocolo à Convenção Americana sobre Direitos Humanos referentes à abolição da pena de morte (1990) 9.24. Convenção Interamericana para prevenir e punir a Tortura (1985) 9.25. Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a Mulher (1994) – Convenção de Belém do Pará 9.26. Convenção Interamericana sobre Tráfico Internacional de Menores (1994) 9.27. Convenção Interamericana para a Eliminação de todas as formas de discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência (1999) volume 06 313 i encontro de internacionalização do conpedi 10. Comércio Internacional 10.1. Acordo Constitutivo da organização Mundial do Comércio (1994) 11. Direito Internacional Ambiental 11.1. Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992) 11.2. Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima (1992) 11.3. Protocolo de Quioto à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima (1997) 11.4. Convenção sobre Diversidade Biológica (1992) 12. Direito Penal Internacional 12.1. Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (1998) 13. Nacionalidade e cidadania 13.1. Tratado de Amizade, Cooperação e consulta entre a República Federativa do Brasil e a República Portuguesa (2001) 13.2. Lei 6.815 , de 19 de agosto de 1980 – define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, cria o Conselho Nacional de Imigração e dá outras providências 13.3. Decreto 86.715, de 10 de dezembro de 1981 – regulamenta a Lei 6.815, de 19 de agosto de 1980, que define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, cria o Conselho Nacional de Imigração e dá outras providências 13.4. Declaração constitutiva da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (1996) 13.5. Estatutos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (1996) 14. Mercado Comum do Sul – MERCOSUL 14.1. Tratado para constituição de um Mercado Comum entre a República Argentina, a República Federativa do Brasil, a República do Paraguai e a República Oriental do Uruguai (1991) – Tratado de Assunção 14.2. Protocolo Adicional ao Tratado de Assunção sobre a estrutura institucional do Mercosul (1994) – Protocolo de Ouro Preto 314 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi 14.3. Protocolo de Buenos Aires sobre Jurisdição Internacional em Matéria Contratual (1994) 14.4. Protocolo de Defesa da Concorrência no Mercosul (1998) 14.5. Acordo de Extradição entre os Estados Partes do Mercosul (1998) 14.6. Protocolo de Olivos para Solução de Controvérsias no Mercosul (2002) 14.7. Acordo-Quadro sobre Meio Ambiente do Mercosul (2001) 14.8. Acordo de Admissão de Títulos e Graus Universitários para o Exercício de Atividades Acadêmicas nos Estados Partes do Mercosul (1999) 15. Direito Internacional do Trabalho 15.1. Constituição da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e seu Anexo (1946) – Declaração de Filadélfia 16. Direito Internacional Privado 16.1. Convenção de Direito Internacional Privado (1928) – Código de Bustamante 16.2. Estatuto da Conferência de Haia de Direito Internacional Privado (1951) 16.3. Decreto-lei 4.657, de 4 de setembro de 1942 – Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (antiga Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro – alterada pela Lei nº 12.376, de 2010) 16.4. Estatuto Orgânico do Instituto Internacional para Unificação do Direito Privado (UNIDROIT) (1940) 16.5. Interpretação do artigo VII-A do Estatuto Orgânico, aprovada na XI Sessão da Assembleia-Geral (1953) 16.6. Convenção sobre a Prestação de Alimentos no Estrangeiro (1956) 16.7. Convenção Interamericana sobre Obrigação Alimentar (1989) 16.8. Convenção sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras (1958) 16.9. Convenção Interamericana sobre Cartas Rogatórias (1975) volume 06 315 i encontro de internacionalização do conpedi 16.10. Protocolo Adicional à Convenção Interamericana sobre Cartas Rogatórias (1979) 16.11. Convenção Interamericana sobre Arbitragem Comercial Internacional (1975) 16.12. Convenção Interamericana sobre Normas Gerais de Direito Internacional Privado (1979) A escolha pela divisão em temas serve para reforçar a afirmação de que os Tratados Internacionais estão a deixar de possuir um caráter de interesse de Estado para passar a possuir um interesse do indivíduo. 5. a proteção do indivíduo Historicamente o indivíduo sempre possui proteção jurídica e, modernamente, possui as consagradas “garantias” do homem e do cidadão6. A figura do indivíduo, embora sempre sido discutida do Direito ao longo dos tempos, desde a Revolução Francesa, ocupa um papel central na estrutura jurídica mundial. A filosofia do individualismo ganha força no século XVIII e se torna parte fundamental de uma série de ramos do conhecimento, como a história, a economia, a sociologia e, também o próprio Direito. A Revolução Francesa é importante pois alça o indivíduo ao centro de todos estes ramos do saber, em especial do Direito. Na economia, os meios de produção feudais são substituídos pelos meios de produção capitalistas, baseados na propriedade individual dos meios de produção; na filosofia, há um afastamento das doutrinas teocráticas, colocando-se o homem no centro do conhecimento; na sociologia idem, o homem passa a ser o centro da organização social. Não se trata de pensar o indivíduo fora do mundo, aquele que renuncia a convivência social, mas sim, organizar a sociedade a partir de um indivíduo que 6 “A noção de direitos inerentes à pessoa humana encontra expressão, ao longo da história, em regiões e épocas distintas. A formulação jurídica desta noção, no plano internacional, é, no entanto, historicamente recente mormente a partir da adoção da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948. As raízes que hoje entendemos por proteção internacional dos direitos humanos remontam, contudo, a movimentos sociais e políticos, correntes filosóficas, e doutrinas jurídicas distintos, que florescem ao longo de vários séculos em diferentes regiões do mundo” (CANÇADO TRINDADE, 1997, p. 17) 316 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi está presente no mundo mas, age com base no seu interesse particular, afastandose do interesse comunitário ou coletivo. Individualismo torna-se assim, um conceito que sintetiza a liberdade do indivíduo frente a um grupo, à sociedade e ao Estado, estruturando a sociedade a partir da competição e na ação individual. Não poderia ser diferente no Direito. Aqui, soma-se o individualismo com o positivismo, que nada mais é do que a racionalização das ações individuais na sociedade, resolvendo assim as “patologias” sociais. Assim que o Direito atua, uma regra de conduta para o indivíduo inserido na sociedade, que ao mesmo tempo normaliza a sua ação e por outro a protege de ingerências indevidas. Todo o Direito positivo, cujo melhor exemplo é o Código Civil napoleônico, é a tentativa de proteção do indivíduo em todos os seus aspectos. A proteção jurídica do indivíduo, que está consolidada na legislação ordinária, após a II Guerra Mundial é constitucionalizada, isto é, passa a integrar as Constituições de inúmeros países pelo mundo, especialmente frente a onda de novas constituições com o término da guerra. O atual momento de reformas legais está a ocorrer no Direito Internacional. Desde a Declaração Universal de Direitos, considerado o marco legal inicial do atual momento do Direito Internacional, este vem individualizando, isto é, sendo mais específico, nas regulamentações. Não bastasse os Direitos Humanos já possuírem por si só uma estrutura individualista, este sai de uma busca pela universalização de procedimentos e passa, para regulações cada vez mais localizadas. Da Declaração Universal de 1948, passamos na década de 60 e 70 para discussões vinculadas a procedimentos de conduta, como direitos civis e desenvolvimento econômico e; na atualidade (final da década de 80), encontramos na pauta política dos organismos internacionais proteções a grupos específicos, como negros, mulheres e pobres, crianças e, portadores de necessidades especiais. A proteção à dignidade humana, é a última esfera de proteção que o Direito pode conceder a um indivíduo. Não mais a integridade física e patrimonial do indivíduo é protegida, mas sua dignidade. volume 06 317 i encontro de internacionalização do conpedi “A dignidade da pessoa humana constitui um valor que atrai a realização dos direitos fundamentais do Homem, em todas as suas dimensões; e, como a democracia é o único regime político capaz de propiciar a efetividade desses direitos, o que significa dignificar o Homem, é ela que se revela como seu valor supremo, o valor que o dimensiona e humaniza.” (SILVA, 2007, p. 63) Isto vem fazendo que as regras de internalização do Direito Internacional venham desaparecendo a cada dia, havendo a tendência que as normas internacionais e nacionais protetivas da dignidade humana se equiparem em termos de validade7, sendo um grato exemplo, o art. 5º, § 3º da Constituição Federal, levando inclusive alguns doutrinadores a afirmar a existência de um novo ramo do Direito, o “Direito Internacional dos Direitos Humanos”, cujo principal mérito até o momento foi transformar o indivíduo em sujeito de direito internacional. 6. estudo de casos – a hier arquia dos tr atados de direitos humanos no br asil Por mais que a discussão entre monistas e dualistas8 nos últimos anos tenha caído no desuso9, entende-se que ela é de suma importância (CHAUMONT, 1970, p. 129; BROWNLIE, 1990, p. 210) para se compreender exatamente o procedimento para sua revogação, podendo-se, em última análise, até mesmo, dizer-se que, nos países monistas, a desvinculação do país de um tratado internacional é pressuposto para que a norma dele proveniente seja revogada. 7 O Secretário Geral das Nações Unidas, Boutros-Ghali, em seu discurso na plenária de abertura da II Conferência Mundial de Direitos Humanos (realizada em Viena, em 14 de junho de 1993), afirmou que, “par leur nature, les droits de l’ homme abolissent la distinction traditionnelle entre l’ordre interne et l’ordre international. Ils sont créateurs d’une perméabilité juridique nouvelle. Il s’agit donc de ne les considérer, ni sous l’angle de la souveraineté absolue, ni sous celui de l’ ingérence politique. Mais, au contraire, il faut comprendre que les droits de l’ homme impliquent la collaboration et la coordenation del États et des organisations internationales” (ONU, Communiqué de Presse n. DH/VIE/4, de 14.06.1993, p. 10) 8 Não é objeto do presente trabalho a análise do ordenamento jurídico brasileiro e sua adequação à teoria monista ou dualista. Parte-se do pressuposto de que é monista. Nesse sentido o meu pensar sobre o caso exposto em Luís Renato VEDOVATO (2008). 9 “Jiménez de Aréchaga, por sua vez sustenta que a discussão entre monistas e dualistas não afeta outro ponto, mais essencial para aferir-se a eficácia e validade dos tratados nos ordenamentos internos. Importa mais é analisar a hierarquia que os tratados ocupam nas legislações internas, crucial para definir-se qual das normas prevalece em caso de conflito”. (STEINER, 2000, p. 65) 318 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi Dentre os países monistas, entretanto, há diversas posições, determinando que o tratado se incorpora no nível de lei ordinária, lei complementar ou, até mesmo, regra constitucional. Cumprindo dizer que só há monismo com supremacia do direito internacional, sendo as demais correntes apenas falsos monismos. Ressalte-se, quanto a essa última hipótese, o caso espanhol, que determina a alteração constitucional antes que haja a vinculação a um tratado contrário a uma disposição da mesma (MENÉNDEZ, 1995, p. 503; PASTOR RIDRUEJO, 1993). Invariavelmente, entra em discussão a possibilidade de violação da soberania do Estado quando se levanta a hipótese de prevalência do tratado sobre a Constituição (DELBEZ, 1964, p. 85). Mas, deve-se ter presente que o Direito Internacional tem como principal característica o consentimento, ou seja, nenhum país se vincula, em tese, a um tratado se assim não desejar (MALANCZUK, 1998, p. 03). Assim, o cumprimento de um tratado pode ser entendido como exercício de soberania e não sua violação. Além disso, especificamente no que diz respeito aos direitos fundamentais, a sua internacionalização pode evitar exageros totalitários10 ou pressões econômicas internas. Realmente, a internacionalização da proteção dos direitos fundamentais traz benefícios incomensuráveis aos indivíduos, criando mais uma fonte de proteção contra atos ou, como no presente caso, omissões do Estado. Posicionamentos importantes para o tema devem ser analisados, principalmente o proferido pelo Supremo Tribunal Federal, que é o que soa mais forte e vai no sentido de que o Tratado Internacional assume a hierarquia de lei ordinária sendo válida a regra de que lei posterior revoga lei anterior (RE 80.004), tornando possível, assim, que um tratado seja revogado por uma lei ordinária, desde que posterior. Além do posicionamento recente sobre tratados sobre direitos humanos, que teriam hierarquia supralegal. 10 “O valor atribuído à pessoa humana, fundamento dos direitos humanos, é parte integrante da tradição, que se viu rompida com a irrupção do fenômeno totalitário.” (LAFER, 1988, p. 118). No mesmo sentido também encontrados Fábio Konder COMPARATO (2001, p. 16). “O que importa dizer, antes de mais nada, do sistema de direitos humanos, é que ele representa o principal elemento de integração do direito interno ao direito internacional, representado assim o núcleo pré-constitutivo da mencionada ‘sociedade universal do gênero humano”. volume 06 319 i encontro de internacionalização do conpedi No julgamento do Recurso Extraordinário 466.343-1- SP, o Min. Gilmar Mendes assim votou: “O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, dessa forma, torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação.” Colocando os tratados de direitos humanos em posição supralegal, o que demonstra que a humanização do direito internacional se coloca diante da soberania do Estado, por conta da celebração de tratados internacionais. Celso LAFER (2005, p. 15), apesar de se referir apenas aos tratados anteriores à CF/88, defende que: “Com efeito, entendo que os tratados internacionais de direitos humanos anteriores à Constituição de 1988, aos quais o Brasil aderiu e que foram validamente promulgados, inserindo-se na ordem jurídica interna, têm a hierarquia de normas constitucionais, pois foram como tais formalmente recepcionados pelo § 2° do art. 5° não só pela referência nele contida aos tratados como também pelo dispositivo que afirma que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ele adotados.” (grifo do autor). Vai além o Min. Celso de Mello, reconhecendo, em voto proferido no HC 87.585-8 – TO, hierarquia materialmente constitucional aos tratados internacionais de direitos humanos aos quais o Brasil se vinculou: “Após muita reflexão sobre esse tema, e não obstante anteriores julgamentos desta Corte de que participei como Relator (RTJ 174/463-465 – RTJ 179/493-496), inclino-me a acolher essa orientação, que atribui natureza constitucional às convenções internacionais de direitos humanos, reconhecendo, para efeito de outorga dessa especial qualificação jurídica, tal como observa CELSO LAFER, a existência de três distintas situações concernentes a referidos tratados internacionais [...] (grifo do autor).” Dessa maneira, mesmo não tendo sido aprovados pela forma determinada no art. 5º, parágrafo 3º (inserido pela EC 45), os tratados de direitos humanos recebem hierarquia superior, apesar de ainda ser possível classificar o Brasil como dualista, pela exigência de decreto presidencial para dar ao acordo pertença 320 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi ao ordenamento jurídico brasileiro, conforme decidido pelo STF no Agravo Regimental em Carta Rogatória n. 8279-4. A soberania do Estado mudou, assim como mudou o Estado, muitos são os fatores que demonstram que a soberania não pode mais ser entendida como já foi no passado. A globalização e o avanço tecnológico, certamente, fazem parte desses fatores. Como assevera STIGLITZ (2003, p. 87), a globalização tem transformado as relações jurídicas internacionais. Atividades antes confinadas ao espaço interno das fronteiras nacionais passam a ter consequências internacionais de escala e impacto ainda desconhecidos; no entanto, apesar de opiniões contundentes, favoráveis ou não, sobre a globalização, ela continua a ter significados variados (STIGLITZ , 2007, p. 32). Um dos usos mais comuns do termo globalização se concentra no comércio internacional, empregado para se referir tanto aos benefícios econômicos de livre intercâmbio comercial, trabalhista e ambiental quanto aos perigos decorrentes da retirada da proteção fronteiriça (SOLIMANO, 2010). E é inevitável que os outros campos recebam as consequências dessas mudanças. 7.conclusões A análise feita no capítulo anterior demonstra o quanto fora alegado anteriormente, ou seja, que os Tratados Internacionais cada dia mais deixam de possuir uma natureza de soberania e, cada dia mais passam a defender direitos individuais. A formação das atuais “Cortes Internacionais” corrobora o estudo de caso apresentado. Cada vez mais casos particulares são submetidos a julgamentos em organismos internacionais. Se por um lado a “individualização” é boa pois acaba por aperfeiçoar os direitos fundamentais (MENEZES, RIBEIRO, 2014) protegendo as minorias através da imposição do respeito à dignidade humana; por outro lado, abre-se a possibilidade de imposição de um valor chave “ocidentalizado”, que é o valor do individualismo. volume 06 321 i encontro de internacionalização do conpedi Por trás da proteção cada vez maior do “indivíduo” devemos atentar ao fato de que há uma série de valores e posições, até mesmo econômicas, que acompanham este movimento de aumento de proteção ao indivíduo. Isto porque, por detrás da liberdade que o indivíduo vê protegida pela atuação do Direito Internacional está a expansão de uma matriz econômica que tem o indivíduo por elemento central, porém, utiliza e esgota este mesmo indivíduo, descartando-o quando necessário, causando assim, mais malefícios do que benefícios. 8.referências BREGALDA. Gustavo. Direito internacional público & Direito Internacional Privado. 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Sem pretender solucionar a tensão entre democracia e garantia judicial da supremacia constitucional, propõe-se a observância de um dharma da justiça constitucional, orientado para o repúdio tanto da sua falta (passivismo judicial) como do seu excesso (ativismo judicial). Palavras-chave Controle jurisdicional de constitucionalidade; Democracia; Interpretação constitucional. Abstract The paper analyzes the phenomenon of constitutional jurisdiction and its challenges in the current stage of development of democratic states. If, on the 1 Advogada. Mestre e Doutora em Direito Constitucional (PUC/SP). Professora da Escola da Magistratura Federal do Paraná. Professora da Escola da Magistratura Estadual do Paraná. Professora da Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná. Professora da Universidade Tuiuti do Paraná (UTP). Professora de Direito Constitucional (FESP/PR). [email protected] 2 Advogada. Doutoranda em Direito (PUC/PR). Mestre em Direito Econômico e Socioambiental (PUC/PR). Pós-graduada em Sociologia (UNICAMP). Professora de Direito Civil (FESP/PR). [email protected] volume 06 325 i encontro de internacionalização do conpedi western legal culture, democracy and constitutional justice are impossible realities of dissociation, one must find a balance between them so that one can carry out the project of building a democratic political organization, subject to the empire of the Constitution. Shifting political representative for the interpretive field of a Power Ball unelected, as the Judiciary, raises questions regarding the legitimacy and judicial discretion. Without wishing to resolve the tension between democracy and judicial constitutional supremacy, it is proposed to observe a dharma of constitutional justice, walked to the repudiation of both failing (judicial passivism) as its excess (judicial activism). Key words judicial review; Democracy; Constitutional interpretation. 1.introdução O exercício da jurisdição constitucional é uma das temáticas mais sensíveis no contexto de desenvolvimento dos Estados democráticos e a necessidade de sua não degeneração ou corrupção é o objeto do presente estudo. A reflexão perpassa o debate acerca dos limites e possibilidades da interpretação constitucional judicial diante do princípio democrático e do primado do Legislador. Para tanto, sem o intuito de esgotar o tema, parte-se da ideia de que um moderado exercício da jurisdição constitucional depende, sobretudo, embora não exclusivamente, da difusão e desenvolvimento de um “dharma”, buscando-se sistematizar, inicialmente, sete3 regras orientadas pela razão prática4, imprescindíveis ao manejo adequado dos poderes inerentes ao exercício da jurisdição constitucional.5 Nesse sentido, defende-se o argumento de que uma “boa” jurisdição constitucional somente pode ser exercida se forem enfrentados dilemas como 3 Para Pitágoras, sete é número da perfeição. O mundo foi criado em sete dias, são sete cores do arco-íris. Simbolicamente, são elencadas sete qualidades de uma boa jurisdição constitucional. 4 Conforme aponta QUEIROZ (2009, p. 402), sabedoria prática que “se revela como uma mistura de educação e experiência.” 5 Colocações relacionadas à razão prática (phronesis ou prudência), aquela, nos termos de Aristóteles, que “busca a excelência, o que se deve fazer aqui e agora, ou seja, o bem agir, a decisão melhor, ocupando-se dos particulares e do contingente, e é própria dos juízos éticos e políticos.” (JÚNIOR, 2012, p. 639). 326 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi o do juiz-legislador, o ativismo judicial, a legitimidade democrática dos juízes constitucionais, a necessidade de deferência aos representantes do povo reunidos no Poder Legislativo. 2.o “dharma” e as sete regr as par a o exercício da jurisdição constitucional Dharma significa para os hindus dever. É o que melhor corresponde à noção ocidental de direito. Segundo aponta GILISSSEN (2008, p. 102): o dharma é o conjunto das regras que o homem deve seguir em razão de sua condição na sociedade, isto é, o conjunto de obrigações que se impõem aos homens, por derivarem da ordem natural das coisas. O dharma compreende, portanto, regras que, segundo a nossa óptica, relevam umas da moral, outras do direito, outras ainda da religião, do ritual ou da civilidade. O moderado exercício da jurisdição constitucional depende, sobretudo, embora não exclusivamente, da difusão e desenvolvimento de um “dharma”, ou seja, de um código de conduta que contribua para evitar sua corrupção. Tratase de munir a própria justiça constitucional de garantias contra o seu inevitável processo de degeneração, ou seja, desenvolver institutos contra o abuso no exercício dos poderes (o tyrannus quoad exercitium) e o déficit de legitimação (o tyrannus absque titulo). Trata-se de buscar um regime “reto” de jurisdição constitucional, que, conduzido pelo saber (sofos), realize a virtude política por definição - a justiça (JÚNIOR, 2012, p. 637). Cumpre, nessa linha de ideias, elencar, de forma exemplificativa, sete regras orientadas por uma razão prática, imprescindíveis à utilização adequada dos poderes inerentes ao exercício da jurisdição constitucional. 2.1.a primeir a regr a: a admissão do erro judicial e a cultur a da responsabilidade dos juízes A primeira regra é aceitar que a Corte ou Tribunal Constitucional erra ou pode errar. Como sustenta STRECK (2012, p. 1), a doutrina precisa assumir uma postura crítica em relação à jurisprudência de forma a efetivamente constatar volume 06 327 i encontro de internacionalização do conpedi e diagnosticar erros cometidos pelo Poder Judiciário e, notadamente, pela mais alta Corte. Admitir que até o Tribunal Constitucional ou a mais alta Corte do país, como no Brasil, o Supremo Tribunal Federal, pode errar é um gesto republicano. Do contrário, estar-se-ia retrocedendo ao princípio monárquico da irresponsabilidade do Rei. Implicaria substituir o “the king can do not wrong” pelo “the supreme court can do not wrong”. A possibilidade de superação dos precedentes mostra que a justiça constitucional pode errar e deve corrigir seus erros. No caso Loving versus Virginia (1967), revogando Pace versus Alabama (1883), a Suprema Corte norteamericana declarou a inconstitucionalidade da Lei da Virginia de 1924 que vedava o casamento inter-racial por ofensa ao princípio do “equal proteccion of law”. Reconheceu uma ofensa velada ao princípio da igualdade, pois o legislador, ao proibir a miscigenação racial, fomentava a superioridade da raça branca. O mesmo erro histórico se pode dizer em relação ao caso Dred Scott versus Sanford (1857). Dred Scott ajuizou uma ação declaratória de reconhecimento de homem livre, fundamentando seu pedido numa Lei Federal (Missoure Compromise Act) que assegurava a liberdade dos negros nascidos naquele território federal em situações específicas e também na Declaração de Independência segundo a qual “todos os homens nascem livres e iguais”. A Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade da lei federal abolicionista, sob o argumento que o Congresso Nacional não tinha poderes para banir a escravidão mesmo em território federal tendo em vista o direito fundamental de propriedade dos donos de escravos. A Suprema Corte também decidiu que Dred Scott não poderia ser considerado cidadão americano, já que os negros não faziam parte do povo americano. O precedente foi um dos estopins para a Guerra da Secessão de 1861 a 1865. Em 1865, a 13ª Emenda à Constituição norte-americana corrigiu o erro histórico abolindo a escravidão e reconhecendo a cidadania americana aos negros nascidos nos Estados Unidos. O queria teria sido da história americana sem Dred Scott? Teria ocorrido a Guerra da Secessão? Se não é possível responder a essas perguntas, cabe sim perceber que as decisões judiciais não são neutras. Revelam o conteúdo de opções políticas (a escravidão é permitida ou não pela Constituição?), como também sinalizam o modus operandi da decisão em si (a 328 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi abolição poderá ser realizada por lei, emenda, revolução?). Se a história política também é escrita pela jurisdição constitucional, os seus erros e acertos interferem na trajetória de uma nação. A consciência da possibilidade do erro judicial pressupõe a própria consciência da humanidade dos juízes, da realidade de que não são heróis míticos (Hércules). Como todos os seres demasiadamente humanos, nem sempre acertam. Além disso, a doutrina tem o nobre dever de apontar o erro. Deve-se, para tanto, absorver uma cultura de responsabilidade política dos juízes constitucionais. Como sustenta DWORKIN (1978, p. 81-149), embora juízes estejam em posição menos adequada para elaborar argumentos de política do que representantes eleitos, há um espaço a ser decidido a partir de argumentos de princípio. Estes são capazes de fazer o juiz responsável por sua decisão, contornando assim sua suposta falta de legitimidade democrática. A justiça constitucional, desde a sua origem, tem convivido com a acusação de usurpar um espaço que não lhe haveria sido atribuído ou imaginado pela Constituição, conforme aponta TAVARES (2007, p. 11). Há uma verdadeira espada de dâmocles a pairar sobre a cabeça dos juízes: a dos juízes legisladores. A defesa mais comum é aquela segundo a qual a Corte atua como “aristocracia do saber”, contendo a degeneração da democracia em demagogia, fixando um ponto firme para o desenvolvimento racional de uma sociedade – uma “ilha de razão” diante do caos formado por opiniões contraditórias. Ou como um Moisés secular que guia o povo no deserto conduzindo-o à terra prometida da vida constitucional. Todavia, esta legitimação teológica poderia desvirtuar todo o sentido da Corte. O risco, como adverte ZAGREBELSKY (2008, p. 99), é o dos juízes se sentirem “super-legisladores”. 2.2.a segunda regr a: o dever de coerência e a legitimação da decisão judicial pela fundamentação r acional A segunda regra é aceitar que os juízes constitucionais devem ser coerentes e suas decisões legitimadas pela racionalidade argumentativa, sensível às tradições e à cultura política de uma nação. Como sustenta DWORKIN (1999, p. 452), “o direito como integridade é sensível às tradições e à cultura volume 06 329 i encontro de internacionalização do conpedi política de uma nação, e, portanto, também a uma concepção de equidade que convém a uma Constituição.” Neste sentido também explica QUEIROZ (2000, p. 171) que “a ‘justeza’ ou ‘correção’ (richtigkeit) da decisão depende da sua ‘aceitabilidade racional’. Esta, por sua vez, pressupõe um conceito ‘forte’ de racionalidade procedimental (Verfahrenrationalität).” Sem fundamentação, não há uma verdadeira interpretação jurídica, e sim uma “invenção”. Nesse contexto, pertinente a crítica de SILVA (2011, p. 108) sobre a utilização do princípio da proporcionalidade pela Suprema Corte brasileira: Em decisão recente, no muito comentado caso Ellwanger, alguns ministros recorreram à regra da proporcionalidade como se ela fosse uma espécie de ‘varinha mágica’, capaz de resolver problemas de colisão entre direitos, sem grandes considerações substanciais sobre os direitos envolvidos e, mais do que isso, sem grandes considerações substanciais sobre qual a concepção que o Supremo Tribunal Federal e seus ministros têm sobre o papel dos direitos fundamentais no sistema jurídico brasileiro. Por essa razão, desconfia-se da tese de que a Constituição, a lei e os precedentes forneçam limites fortes e suficientes para determinação da decisão judicial, deixando de lado as considerações extranormativas (a pré-compreensão do intérprete, seus valores, crenças, cultura e tradições). A propósito, já argumentava CALAMANDREI (1960, p. 145) que: Não quer isto dizer, porém, que a parte dispositiva seja dita ao acaso e que a fundamentação tenha apenas o fim de fazer aparecer como fruto de rigoroso raciocínio o que na realidade é fruto do arbítrio. Apenas se quer dizer que, ao julgar, a intuição e o sentimento têm frequentemente maior lugar do que à primeira vista parece. Não foi sem razão que alguém disse que sentença derivava de sentir. É certo que, muitas vezes, os juízes tentam ocultar suas convicções sobre justiça e política. Como adverte POSNER (2008, p. 25), é confortável ao julgador pensar que suas decisões são obrigadas pela “lei”, algo externo às suas próprias preferências e valores pessoais. Paradoxalmente, a tendência de escamotear a natureza política da função de outorgar sentidos aos enunciados normativos constitucionais é mais acentuada na Suprema Corte. Precisamente por ser um Tribunal político, seus membros estão inclinados a negar o que, verdadeiramente, são. 330 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi Contudo, a decisão judicial não pode sugerir. Pelo contrário, deve explicitar todo o caminho percorrido para a solução encontrada. Não pode haver atalhos. Os juízes constitucionais têm o dever de coerência. Como representantes do povo, a sua representatividade é “argumentativa”, o que exige não só a fundamentação racional, a objetividade na argumentação jurídico-constitucional e a existência de argumentos válidos ou corretos, como também a aceitação da decisão por um número suficiente de cidadãos, tal como afirma ALEXY (2007, p. 163-165). Afinal, como enfatiza QUEIROZ (2000, p. 36): se a actividade desenvolvida pelo juiz, com as suas notas de ‘liberdade’, ‘flexibilidade’ e ‘mobilidade’ subjectivas, é de carácter político, então necessita de ser fundamentada (: legitimada), não se entendendo como suficiente o recurso ao costumado axioma clássico segundo o qual todo o poder – e subsequentemente toda a actuação política – emana da ‘vontade popular’. Ademais, as práticas constitucionais e a própria linguagem do Direito Constitucional na atmosfera política da democracia devem refletir uma forma de conduta política baseada na persuasão e na compreensão, que constituem, afinal, o “telos” do constitucionalismo comparado com o sistema político autocrático, fundado na ordem e obediência.6 Como sustenta CLÈVE (2012, p. 70), “uma Constituição democrática é uma fonte valiosa de argumentos que podem ser utilizados com o sentido de democratizar o direito.” No caso brasileiro, note-se que em muitas decisões do Supremo Tribunal Federal não se consegue encontrar a ratio decidendi. E isto ocorre, entre outros motivos, por uma falha de nossa própria legislação, que exige, para a formação do veredito, a maioria absoluta para o dispositivo e não para a fundamentação.7 6 Sobre o “telos” do constitucionalismo e da autocracia, cumpre salientar o pensamento de Karl LOEWENSTEIN (1976, p. 53). Sustenta o autor que uma determinada forma de governo pode ser reconhecida a partir das específicas técnicas que movem suas instituições. Por essa razão, as técnicas autocráticas e constitucionalistas não se encaixam na estrutura teleológica do sistema político oposto, e que quando transplantados a outro meio político não produzem os resultados esperados. 7 Exemplo notório é o julgamento a respeito da união estável entre pessoas do mesmo sexo. Trata-se de questionar se o direito à felicidade integra os seus motivos determinantes. (BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 4277-DF. Ação direta de inconstivolume 06 331 i encontro de internacionalização do conpedi Caso recente e polêmico a ser citado é aquele objeto do Mandado de Segurança 31816 Agr-MC/DF julgado em 27 de fevereiro de 2013. Trata-se de writ impetrado por deputado federal contra ato da Mesa Diretora do Congresso Nacional consubstanciado na aprovação de requerimento de urgência para exame do Veto Parcial 38/2012, aposto pela Presidente da República ao Projeto de Lei 2.565/2011, que dispõe sobre a distribuição entre os entes federados de royalties relativos à exploração de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos. O writ objetivava impedir a deliberação pelo Congresso Nacional do Veto Parcial nº 38/2012, sob o fundamento de que o art. 66, da CF exige a apreciação cronológica dos vetos presidenciais e, por essa razão, a deliberação do Veto Parcial n. 38/2012 somente seria possível após a análise dos 3.060 vetos pendentes. A liminar foi concedida monocraticamente pelo Ministro Luis Fux em 17 de dezembro de 2012 determinando a impossibilidade de apreciação e deliberação do Veto Parcial n. 38/2012 em face da existência de 3.060 vetos pendentes, adotando-se a interpretação segundo a qual o art. 66, §§ 4º e 6º, da CF exige a observância da ordem cronológica de comunicação dos vetos para fins de deliberação. A Mesa do Congresso Nacional interpôs agravo regimental, que por maioria, foi concedido em 27 de fevereiro de 2013 para possibilitar a apreciação do Veto Parcial 38/2012. Os quatro votos vencidos do Ministro Luis Fux, Marco Aurélio, Celso de Mello e Joaquim Barbosa, que mantinham a liminar concedida, foram pautados no mesmo sentido: (i) no que diz respeito ao dispositivo em si da decisão – a impossibilidade de apreciação do Veto Parcial 38/2012 enquanto houvesse vetos pendentes com prazo constitucional expirado e (ii) nos seus motivos determinantes: a violação do devido processo legislativo e correlata inconstitucionalidade da deliberação aleatória dos vetos presidenciais pendentes de análise legislativa, cuja simples existência subtrairia do Poder Legislativo a autonomia para definição da respectiva pauta política (CF, art. 66, §6º), dada a obrigatória tucionalidade. Relator: Ministro Carlos BRITTO. Julgamento: 05.05.2011. Tribunal Pleno. DJe 198, divulgado em 13.10.2011, publicado em 14.10.2011, ementário volume 0260703, p. 00341. BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 132-RJ. Arguição de descumprimento de preceito fundamental. Relator: Ministro Carlos Ayres Britto. Julgamento: 05.05.2011. Tribunal Pleno. DJe 198, divulgado em 13.10.2011, publicado em 14.10.2011, ementário volume 02607-01, p. 00001). 332 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi deliberação dos vetos presidenciais em ordem cronológica de comunicação ao Congresso Nacional. O mesmo, todavia, não ocorreu com os votos vencedores. Embora a maioria dos seis Ministros tenha convergido no tocante ao dispositivo da decisão (provimento do agravo regimental para possibilitar a apreciação do Veto Parcial 38/2012 mesmo havendo 3.060 vetos pendentes de apreciação), o mesmo não se pode dizer em relação aos motivos determinantes. Não há maioria na definição dos fundamentos da decisão majoritária: (1) o Ministro Teori Zavaski votou no sentido da declaração de inconstitucionalidade com efeitos ex nunc da prática até agora adotada pelo Congresso Nacional no processo legislativo de apreciação de vetos, com exclusão das deliberações tomadas, os vetos presidenciais apreciados e os que já tivessem sido apresentados, mas pendentes de exame; (2) a Ministra Rosa Maria Weber votou no sentido da impossibilidade do controle judicial da legitimidade da prática adotada pelo Congresso, tratando-se de tema cujo exame encontra-se vedado ao Poder Judiciário por se tratar de matéria interna corporis; (3) os Ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Ferreira Mendes votaram no sentido da constitucionalidade da prática do Congresso diante da inexistência de imposição constitucional de ordem cronológica de votação dos vetos; (4) a Ministra Carmem Lúcia entendeu que a manutenção da liminar poderia gerar conjuntura mais gravosa ao Parlamento, à sociedade e ao Direito e não adentrou no mérito da constitucionalidade do ato impugnado. Com efeito, com a derrubada da liminar em sede de provimento de agravo regimental e a apreciação posterior do veto presidencial, o mandado de segurança perdeu objeto e a sociedade atônita ficou sem saber se o Congresso pode ou não escolher os vetos presidenciais que quer apreciar ou se há uma ordem cronológica a ser observada. O Supremo Tribunal Federal decidiu o caso concreto, mas eximiuse de decidir o caso constitucional sub judice: afinal, o devido processo legislativo exige ou não a apreciação cronológica dos vetos presidenciais? 2.3.a terceir a regr a: a negativa do voluntarismo e do decisionismo judicial A terceira regra é refutar veementemente o voluntarismo judicial para não ressuscitar-se o costume do Império Romano segundo o qual o que agrada ao volume 06 333 i encontro de internacionalização do conpedi príncipe tem força de lei - “quod principi placuit, legis habet vigorem”. Embora o verdadeiro fundamento da legislação imperial fosse a auctoritas principis (GILISSEN, 2008, p. 89), o real fundamento da jurisprudência constitucional não pode ser a simples autoridade de um Tribunal Constitucional. Nesse contexto, justa a advertência de STRECK (2012, p. 192): Não se pode confundir, portanto, a adequada/necessária intervenção da jurisdição constitucional com a possibilidade de decisionismos por parte de juízes e tribunais. Seria antidemocrático. Com efeito, defender um certo grau de dirigismo constitucional e um nível determinado de exigência de intervenção da justiça constitucional não pode significar que os tribunais se assenhorem da Constituição. Há um risco constante e inevitável de se tratar o texto da Constituição como um espelho a refletir os volúveis humores dos intérpretes, o que importaria aceitar a conversão de preferências ideológicas em jurisprudência constitucional.8 Não se pode ignorar o perigo de desintegração do texto constitucional verdadeiro e próprio. De outro lado, o argumento da interpretação literal cede quando a Constituição se utiliza de termos como justiça social, dignidade da pessoa humana. O uso da palavra “dignidade” pode converter-se numa espécie de “abracadabra”?9 Isso ocorre porque todo texto constitucional é, pela sua própria 8 O que implicaria adotar o “modelo atitudinal” (attitudinal model) de comportamento judicial, segundo o qual os juízes dos tribunais superiores decidem simplesmente com base nas suas convicções políticas pessoais (ROHDE e SPAETH, 1976; apud MAGALHÃES; ARAÚJO, 1998, p. 13-14) 9 São as chamadas “cláusulas délficas”, termo usado analogicamente ao oráculo de Delfos que, segundo GARCIA DE ENTERRIA (1981, p. 103), comportam-se como fórmulas vagas, obscuras e misteriosas, impregnadas de significações possíveis. No mesmo sentido, LEAL (2006, p. 79.) alude aos “preceitos enigmáticos”. Segundo este autor, o texto constitucional, notadamente como o brasileiro, constitui um “manancial quase inesgotável de preceitos enigmáticos”, ou seja, repleto de “formulações normativas de amplíssima textura que admitem um infinito leque de vias interpretativas.” Advertia KELSEN (2003, p. 170) que o uso de fórmulas vagas pela Constituição pode desempenhar um papel extremamente perigoso. Assim, se um tribunal constitucional anula uma lei por ser injusta, a concepção que a maioria dos juízes deste Tribunal tivesse da justiça poderia estar em total oposição com a da maioria da população e com a concepção do Parlamento que votou a lei. Isto importaria um evidente deslocamento de poder - do Parlamento para uma instância a ele estranha. “[...] a Constituição deve, sobretudo criar um tribunal constitucional, abster-se deste gênero de 334 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi vocação, termômetro e medida da práxis, mais do que mero recipiente, tendo a missão de guiar os diversos estágios políticos e civis, acolhendo somente a escolha que o texto mesmo está em condições de aceitar, tendo em vista o próprio universo de significados (AINIS, 2007, p.312). A tentação do “narcisismo constitucional” não pode ser menosprezada. É o que aponta BARROSO (2001, p. 46) quando afirma que “há no Brasil uma crônica compulsão dos governantes de modificar a Constituição para fazê-la à imagem e semelhança de seus governos. Uma espécie de narcisismo constitucional.” E também COMPARATO (1998, p. 3) quando denuncia este comportamento num discurso de protesto: Não sejamos ridículos. A Constituição de 1988 não está mais em vigor. É pura perda de tempo discutir se a conjunção “e” significa “ou”, se o “caput” de um artigo dita o sentido do parágrafo ou se o inciso tem precedência sobre a alínea. A Constituição é hoje o que a Presidência quer que ela seja, sabendo-se que todas as vontades do Planalto são confirmadas pelo Judiciário. 2.4.a quarta regr a: o repúdio do passivismo judicial na judicialização dos conflitos políticos A quarta regra é investir na efetivação do postulado da separação de poderes. Separados e distribuídos, os poderes limitam-se reciprocamente num sistema engenhoso de freios e contrapesos, o que evita o isolamento institucional, notadamente da jurisdição constitucional. Como já ensinava MONTESQUIEU (JÚNIOR, 2012, p. 655) “para instituir um governo moderado é preciso combinar poderes, regulá-los, temperá-los, fazê-los agir. Adicionar a um, por assim dizer, o lastro necessário para resistir ao outro.” Nesse sentido (POSNER, 2005, p. 40), o juiz constitucional exerce uma inegável função política.10 Afinal, a ele compete decidir os conflitos entre os fraseologia, e se quiser estabelecer princípios relativos ao conteúdo das leis, formulá-los da forma mais precisa possível.” 10 Para ZAGREBELSKY (1989, p. 522), uma função política exercitada de forma jurisdicional ou, ao contrário, uma função jurisdicional exercitada de forma política são contradições que volume 06 335 i encontro de internacionalização do conpedi poderes, exercendo, tanto nas relações sociais como políticas, uma função de chave ou fecho de cúpula, ou seja, como a pedra que equilibra as forças da cúpula, evitando seu desmoronamento. Nas democracias contemporâneas, algum tipo de politização dos tribunais constitucionais parece inevitável em virtude da importância política de suas decisões. Isto se deve, entre outros motivos, pelo enorme potencial do controle abstrato de constitucionalidade para influenciar a formação das políticas públicas.11 Como defendem MAGALHÃES e COUTINHO (2000, p. 211; 218), partindo do pressuposto que o Tribunal Constitucional necessita de litigantes que lhes apresentem casos e questões de constitucionalidade, é preciso recordar ainda que o papel político desempenhado por um Tribunal Constitucional dependerá, em larga medida, de fatores externos, como os incentivos dos atores políticos para judicializar os seus conflitos por meio da litigância constitucional. As oposições judicializam os processos legislativos para ganharem aquilo que normalmente perderiam nos processos políticos normais. Ou seja, os agentes políticos usam a litigância constitucional para a prossecução de objetivos políticoideológicos. Referidos autores (1998, p. 9-10) lembram que através da fiscalização abstracta, diversos tribunais constitucionais europeus têm bloqueado ou modificado importantes iniciativas políticas de governos e parlamentos, chegando mesmo a ditar aos órgãos legislativos o modo como devem ser elaboradas certas leis sob forma a recolherem a aprovação da justiça constitucional. Deste modo, os tribunais constitucionais parecem ter constrangido seriamente o poder das maiorias parlamentares. se resolvem concretamente por meio da prevalência de um termo e a corrupção do outro ou através de compromissos pragmáticos. Sublinhar o caráter jurisdicional da forma da justiça constitucional significa um modo específico de concebê-la como função qualitativamente diferenciada daquela exercida pelos órgãos constitucionais estritamente políticos e, portanto, como função que, caso se queira dizer política (como certamente em um sentido particular se pode dizer) deve, ao menos, distinguir-se daquelas que outros órgãos operam de forma absolutamente diversa. Em sentido contrário, KELSEN (1995, p. 18) já lecionava ser errado o pressuposto segundo o qual existe uma contradição essencial entre a função jurisdicional e as funções políticas e que a decisão acerca da constitucionalidade e anulação das leis seriam atos políticos e não mais justiça. 11 Embora referente à justiça constitucional europeia, as circunstâncias que circundam a politização destacada pelos autores também ocorrem no Brasil. 336 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi É preciso, como quer RAMOS (2010, p. 129) repudiar o passivismo que está radicado nas teorias interpretativistas do textualismo e originalismo, que levam em consideração apenas o texto da constituição ou a intenção original dos seus fundadores. Lembra DWORKIN (1999, p. 446-449) que os juízes passivos mostram grande deferência para com as decisões de outros poderes do Estado, revelam um ceticismo exterior sobre a moral política, como se não houvesse uma resposta certa para as questões constitucionais, só respostas diferentes. Destaque-se: os passivistas citam o caso Lochner e outros, nos quais a Suprema Corte – erradamente, como hoje se pensa -, recorreu aos direitos individuais para impedir ou frustrar programas legislativos justos e desejáveis. Mas teríamos mais a lamentar se a Corte tivesse aceitado irrestritamente o passivismo: as escolas do Sul poderiam ainda estar segregadas, por exemplo. Na verdade, se fôssemos reunir as decisões mais lamentadas da Corte ao longo da história constitucional, acharíamos muitas outras nas quais o erro esteve na falta de intervenção em momentos nos quais, como hoje pensamos, os princípios constitucionais de justiça exigiam uma intervenção. Os norte-americanos sentiriam mais orgulho de sua história política se esta não incluísse, por exemplo, os casos Plessy ou Korematsu. Nesses dois casos, a decisão majoritária do legislativo foi profundamente injusta, e também, como muitos juristas hoje acreditam, inconstitucional; lamentamos que a Suprema Corte não tenha intervindo para fazer justiça em nome da Constituição. 2.5.a quinta regr a: a rejeição do ativismo judicial e advertência do argumento contr amajoritário A quinta regra é ter sempre em mente o argumento contramajoritário, ou seja, qual a razão para que num Estado baseado no princípio democrático a decisão de um reduzido conjunto de pessoas não eleitas pelo povo imponha-se diante da vontade dos legítimos representantes? É necessário não se deixar seduzir pelo ativismo judicial, entendido, segundo RAMOS (2010, p. 129), como o exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições volume 06 337 i encontro de internacionalização do conpedi subjetivas (conflitos de interesse) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva (conflitos normativos). Há, como visto, uma sinalização claramente negativa no tocante às práticas ativistas, por importarem na desnaturação da atividade típica do Poder Judiciário, em detrimento dos demais poderes. E, contrariando os federalistas, a história demonstra que há um perigo real de usurpação das funções legislativas pelo Poder Judiciário ou, conforme aponta HAMILTON et al (2003, p. 476), “é preciso observar que o perigo tão receado das usurpações do Poder Judiciário sobre o Legislativo é puramente imaginário.” Assim, legítima a advertência de DWORKIN (1999, p. 452) no sentido de que o ativismo é uma forma virulenta de pragmatismo jurídico. Um juiz ativista ignoraria o texto da Constituição, a história de sua promulgação, as decisões anteriores da Suprema Corte que buscaram interpretá-la e as duradouras tradições de nossa cultura política. O ativista ignoraria tudo isso para impor a outros poderes do Estado seu próprio ponto de vista sobre o que a justiça exige. O direito como integridade condena o ativismo e qualquer prática de jurisdição constitucional que lhe esteja próxima. Também, como assinala SAMPAIO (2001, p. 170), o ativismo judicial se impõe assim como uma compensação a essa falta de racionalidade da práxis política, como uma forma de atenuar o hiato existente entre o ideal político e a realidade constitucional ou de preencher o ‘vácuo (deixado) pela renúncia do legislador do seu papel político próprio’ (Kutler. 1979: 523). A Corte Constitucional é vista, sob esse ângulo, como ‘representante do povo ausente’ (Ackerman. 1984: 1013) ou como ‘reserva do autogoverno’, (Michelman. 1986: 65), conferindo legitimidade ao sistema constitucional como um todo e à própria atividade governamental em particular (Black Jr. 1991: 11). 2.6.a sexta regr a: o sepultamento do mito do juiz como or áculo vivo da constituição A sexta regra é sepultar o mito de que todas as respostas estão pré-determinadas na Constituição esperando para serem descobertas pelo juiz, o que dispensaria a 338 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi atividade legislativa. Mesmo não concordando com a tese radical de WALDRON (2003, p. 105-106), a respeito da defesa da abolição do controle judicial de constitucionalidade, é prudente levar em consideração a sua advertência de que o deslocamento do centro de decisões para o Judiciário, com a demissão consciente e deliberada do Legislativo, significa abrir mão do compromisso fundamental com a ideia de que a solução final das nossas discordâncias é um assunto nosso. A doutrina do “judicial restraint”, segundo GUASTINI (2010, p. 214-215), ou seja, da autolimitação judicial, inspira-se no valor da deferência do Judiciário diante do legislador democrático, que impede o Judiciário de invadir ou usurpar a competência do Poder Legislativo. Subjacente a esta doutrina, encontra-se a concepção da Constituição como um conjunto de normas amplas e lacunosas, que permite ao legislador, na ausência de um parâmetro seguro de legitimidade constitucional, dispor livremente sobre o tema. De outro lado, em casos difíceis, que envolvem dilemas morais, não se pode dispensar um amplo debate público prévio à decisão judicial. O Tribunal Constitucional não deve antecipar a decisão e sufocar o diálogo. Não só existe um timing a ser respeitado como escolhas que vão além de uma pura interpretação da Constituição porque dizem respeito a formas diferentes de viver, agir e acreditar. Para tanto, os juízes constitucionais precisam desenvolver sensibilidade política. A validade dessa atividade não está na possibilidade de se atingir a essência dos valores constitucionais (paradigma do objeto), tampouco numa especial qualidade dos magistrados para definir seu significado (paradigma do sujeito). Diferentemente, a possibilidade de o Judiciário dizer o que significa uma norma constitucional decorre da validade argumentativa, ou seja, da capacidade de os fundamentos aduzidos na decisão cooperarem para a formação de consensos sociais.12 12 Segundo RAWLS (2003, p. 45), não existe uma doutrina com a qual todos os cidadãos concordem ou possam concordar para decidir as questões fundamentais de justiça política. Todavia, é possível obter numa sociedade bem-ordenada um “consenso sobreposto razoável”. Assim, “a concepção política está alicerçada em doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis, embora opostas, que ganham um corpo significativo de adeptos e perduram ao longo do termpo de uma geração para outra.” Este consenso atuará como a base mais razoável da unidade política e social para os cidadãos em uma sociedade democrática. O consenso constitui um ponto de vista comum a partir do qual os cidadãos podem resolver questões concernentes aos elementos constitucionais essenciais. volume 06 339 i encontro de internacionalização do conpedi Explica BOBBIO (1992, p. 27) que o consenso consiste num modo de justificar os valores. Um valor é tanto mais fundado quanto mais aceito. Com o argumento do consenso, substitui-se pela prova da intersubjetividade a prova da objetividade, considerada impossível ou extremamente incerta. Trata-se, certamente, de um fundamento histórico, e como tal, não absoluto: mas esse fundamento histórico do consenso é o único que pode ser factualmente comprovado. A Declaração Universal dos Direitos do Homem pode ser acolhida como a maior prova histórica até hoje dada do consensus omnium gentium sobre um determinado sistema de valores. Os velhos jusnaturalistas desconfiavam – e não estavam inteiramente errados – do consenso geral como fundamento do direito, já que esse consenso era difícil de comprovar. Duvida-se da tese de que a Constituição endossa o lema de “policy-making by judges”. Como questiona SIFFERT (2002, p. 83), por que o povo iria preferir que as decisões políticas e sociais fossem tomadas pelo Supremo Tribunal Federal e não através de um processo democrático descentralizado? O mito desenvolvido na common law de juízes vistos como “the depositaries of the law, the living oracles of the law”13 aplicado no campo da jurisdição constitucional pode produzir efeitos indesejáveis e desastrosos para a vida política de um país como o nosso que engatinha em matéria de experiência democrática.14 Na realidade, o juiz constitucional precisa achar o delicado meio-termo entre suas faltas e excessos.15 Como assinala SAMPAIO (2001, p. 190), “talvez a vida 13 A ideia é do famoso jurista inglês William Blackstone, segundo CRUZ E TUCCI (2004, p. 11). 14 Para WALDRON (2005, p. 361), defensor da tese anti-jurisdição constitucional, não há nenhuma razão para pensar que o controle judicial de constitucionalidade melhora o debate político participativo em uma sociedade. O autor acredita ainda que segue em aberto a questão de se saber se o controle judicial de constitucionalidade tornou os Estados Unidos mais justo (ou faria mais justa qualquer sociedade) do que seria sem sua prática. 15 Exemplo desta postura ponderada é o voto do Ministro Marco Aurélio no julgamento das leis federal e estadual a respeito da regulação da exploração de amianto: “Considerou que, em questões a envolver política pública de alta complexidade e com elevada repercussão social, a Corte deveria adotar postura de deferência à solução jurídica encontrada pelos respectivos formuladores. Não haveria excepcionalidade a justificar a atuação do STF, que teria conhecimento limitado acerca dos efeitos e das políticas públicas a envolver o uso controlado do amianto, bem como das consequências práticas de eventual decisão pelo banimento, a 340 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi real e a experiência histórica tenham ensinado a esse juiz que exceder-se, quando possível, é até preciso, mas recuar, quando necessário, é sinal de maturidade ou arma de sobrevivência”. 2.7. a sétima regr a: levar a constituição a sério A sétima regra é levar a Constituição a sério. Não pode haver trivialidade ou sensaboria no ato de interpretar, aplicar ou emendar a Constituição. O Poder Constituinte derivado brasileiro estava distraído quando elaborou o art. 2º da Emenda 52/2006? Como, em ano de eleição, uma emenda que suprime a verticalização nas coligações partidárias prevê “essa emenda entra em vigor na data de sua publicação aplicando-se às eleições que ocorrerão no ano de 2002”? Ano de 2002? Uma emenda de 2006 pode ser aplicada a uma eleição que ocorreu há quatro anos? Da manutenção do “telos” da persuasão e compreensão na aplicação da Constituição depende a própria sobrevivência de uma Constituição democrática. SUNSTEIN (2001, p. 201) conta que quando a multidão perguntou a Benjamin FRANKLIN o que os autores da Constituição tinham garantido aos americanos, ele respondeu: “Uma república, se vocês conseguirem mantê-la.”16 A resposta de FRANKLIN é uma expressão de esperança, mas também um convite a lembrar da contínua obrigação de enfrentar este desafio. Uma república depende muito menos da decisão dos fundadores, ou de um culto texto, de autoridades ou ancestrais, mas da ação e do compromisso dos cidadãos a todo tempo. A manutenção de uma república depende da criação de “arenas” nas quais os cidadãos com as mais variadas experiências e projetos e diferentes pontos de vista sobre o que é bom e certo, possam se encontrar e se consultarem. Assim, concorda-se com RAMOS (2009, p. 141;146) para quem o sistema brasileiro é misto apenas no tocante ao aspecto modal, permanecendo difuso quanto ao aspecto subjetivo ou orgânico. exigir o predicado da autocontenção. Aquilatou que nem mesmo os órgãos da União seriam uníssonos quanto à continuidade da exploração de amianto no Brasil.” BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 3937/SP. Relator: Ministro Marco Aurélio. Julgamento: 31.10.2012. Informativo 686 do STF, de 29 a 31 de outubro de 2012. 16 Inegável, conforme BRITO (2004, p. 373), encontrar na expressão de Benjamin Franklin o “momento maquiavélico” da República, isto é, a consciência da sua natureza finita. volume 06 341 i encontro de internacionalização do conpedi 3.conclusões Ambientes como o brasileiro, de um sistema misto17 de controle judicial, que combina a herança do sistema de judicial review com o controle abstrato concentrado, mostra-se propício para a investigação dos limites e possibilidades da jurisdição constitucional. Não se pode adiar a discussão sobre os parâmetros de legitimidade da atuação dos juízes constitucionais para tal empreendimento, notadamente num regime democrático que pressupõe a existência do pluralismo político. Não se trata de uma questão meramente formal – de repartição de competências inerente à separação de poderes – mas de fundo, da compreensão do que é a Constituição, de como a sua identidade é concebida, da intensidade de sua força normativa. Como questiona QUEIROZ, (2000, p. 165), “existe, na realidade, um segundo texto constitucional”, resultado da interpretação constitucional judicial? Outorgar a guarda precípua de um documento supremo a um dos poderes do Estado (seja ele uma Suprema Corte ou uma Corte Constitucional) faz dele um poder supremo. Não se pode ignorar o risco constante de conflitos interinstitucionais, que afetam o delicado equilíbrio entre os poderes. O relacionamento pode se converter, segundo BONAVIDES (1997, p. 268), em uma disputa pelo poder de dizer a última palavra, dirigida sob o manto da “vontade de poder”.18 A tensão entre a democracia e o constitucionalismo, que não está de modo algum resolvida, converte-se numa tensão entre os poderes constituídos, o Legislativo e o Judiciário, que disputam a condição de supremos intérpretes da Constituição (LLORENTE, 2009, p. 25). 17 Concorda-se com RAMOS (2009, p. 141;146) para quem o sistema brasileiro é misto apenas no tocante ao aspecto modal, permanecendo difuso quanto ao aspecto subjetivo ou orgânico. 18 Exemplo recente deste potencial conflito é a disputa pela “última palavra” concretizada na discussão e votação da PEC (Proposta de Emenda Constitucional) 33/2011, que condiciona o efeito vinculante de súmulas aprovadas pelo STF à aprovação pelo Poder Legislativo e submete ao Congresso Nacional a decisão sobre a inconstitucionalidade de emendas à Constituição. Caso emblemático e histórico de conflito entre poderes, como explica FILHO (2002, p. 41) é a “vingança” do governo Roosevelt às decisões da Suprema Corte que persistia na declaração de inconstitucionalidade das leis do New Deal com a apresentação, em fevereiro de 1937, de um projeto de lei ao Congresso Nacional americano onde se prevê a reformulação na justiça federal norte-americana e, principalmente, na composição da Suprema Corte, o que conhecido como “Court-Packing Plan”. A base do plano democrata era acrescentar um novo Justice a cada um daqueles membros que estivessem acima de setenta anos. 342 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi A Constituição não é um produto acabado ou uma narrativa completada. O valor de uma boa Constituição, adverte DWORKIN (2011, p. 613), traduz-se no valor da perfomance dos atores constitucionais. Como assinala CAETANO (1996, p. 349), se, na prática, os resultados da justiça constitucional não forem aqueles esperados pela doutrina, “isso quer dizer que nenhuma instituição ou sistema pode produzir os seus frutos numa sociedade se não for servida por homens dignos, com autoridade moral, competência profissional e total devoção à tarefa que lhes é confiada e se nessa sociedade não houver a convicção da necessidade e da utilidade da instituição ou do sistema, traduzida em respeito geral e em geral colaboração.” Espera-se, ainda nas palavras de DWORKIN (2012, p. 430), que os juízes constitucionais criem algo mais, escrevam um subscrito para sua mortalidade e transformem suas vidas e a da Constituição em “pequenos diamantes nas areias cósmicas”19. 4.referências ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. AINIS, Michele. Sul valore della prassi nel diritto costituzionale. Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, n. 2, Milano, p. 308, 2007. 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DJe 198, divulgado em 13.10.2011, publicado em 14.10.2011, ementário volume 02607-03, p. 00341. _______. _______. ADPF 132-RJ. Arguição de descumprimento de preceito fundamental. Relator: Ministro Carlos Ayres Britto. Julgamento: 05.05.2011. Tribunal Pleno. DJe 198, divulgado em 13.10.2011, publicado em 14.10.2011, ementário volume 02607-01, p. 00001. BRITO, Miguel Nogueira de. Autoridade e argumentação numa ordem constitucional. In: ARAÚJO, Antonio de et al. Estudos em homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa. Coimbra: Coimbra, 2004. CAETANO, Marcello. Manual de ciência política e direito constitucional. Tomo I. Coimbra: Almedina, 1996. CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados. 7. ed. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1960. CLÈVE, Clèmerson Merlin. Para uma dogmática constitucional emancipatória. Belo Horizonte: Forum, 2012. COMPARATO, Fabio Konder. Uma morte espiritual. Folha de São Paulo, São Paulo, caderno 1, p. 3, 14 mai. 1998. 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Giuffrè Editore, 1989. volume 06 347 i encontro de internacionalização do conpedi uma nação entorpecida: os direitos fundamentais das pessoas portador as de deficiência psiquíca no br asil Gabrielle Bezerra Sales1 Resumo O presente estudo intenta analisar aspectos da história da loucura em algumas das principais fases da história da Humanidade para, mediante reflexão sobre o panorama atual, oferecer hipóteses alternativas ao estigma, à ditadura da normalidade e à exclusão. Essa pesquisa se posiciona a partir de um referencial crítico para refletir sobre a realidade dos pacientes com transtornos psíquicos no Brasil e, dessa maneira, compreender os efeitos da política antimanicomial e seus desdobramentos para a afirmação dos direitos fundamentais dessa parcela da população brasileira: os portadores de deficiência psíquica. Intenta igualmente reafirmar esses direitos fundamentais para servir de instrumento de denúncia da falta de políticas públicas efetivas e, principalmente, da falta de cuidado para com a grande parcela dessa população que resta simplesmente negligenciada. Ademais, intenta demonstrar a complementariedade dos diálogos pautados em outras modalidades de lógica para a recepção de outras modalidades que incluam mais do que excluam aqueles que estão além da sutil fronteira existente entre a razão e a desrazão. Palavras-chave Deficiência; Tutela; Direitos Humanos; Direitos Fundamentais; Alienação. Resumen Este estudio trata de analizar aspectos de la historia de la locura en algunas de las principales fases de la historia de la humanidad a través de la reflexión sobre la 1 Gabrielle Bezerra Sales é advogada, graduada e mestre em Direito pela UFC- Universidade Federal do Ceará, doutora em Direito pela Universidade de Augsburg, Alemanha, professora de Direitos Humanos e Fundamentais, coordenadora geral do curso de graduação em Direito da Unichristus- Centro Universitário Christus e, atualmente, doutoranda em Bioética na Universidade do Porto- Portugal. volume 06 349 i encontro de internacionalização do conpedi situación actual, ofrecer hipótesis alternativas a la estigmatización, a la dictadura de la normalidad y a la exclusión. Esta investigación se encuentra desde un marco crítico para reflexionar sobre la realidad de los pacientes con trastornos mentales en Brasil y, así, comprender los efectos de la política anti-asilo y sus consecuencias para la afirmación de los derechos fundamentales de esa porción de la población brasileña: las personas con discapacidad psíquica. Tiene la intención de reafirmar estos derechos fundamentales para servir de instrumento de denuncia de la falta de políticas públicas eficaces y, sobre todo la falta de cuidado que torna la tutela de la porción de esta población desatendida. Además, intenta demostrar la complementariedad de los diálogos guiados por otras formas de lógica para la recepción de otras modalidades que incluyan más que excluyan las personas que están más allá de la frontera sutil que hay entre la razón y la sinrazón. Descriptores Discapacidad; Tutela; Derechos Humanos; Derechos Fundamentales; Alienación. 1.aproximações O conceito de Deficiência vem sofrendo alterações substanciais ao longo dos últimos séculos, sobretudo em razão das alterações culturais do final do século XX. De fato, a concepção atual de deficiência pode ser considerada um desdobramento do modelo social surgido na Inglaterra e nos EUA no inicio dos anos 702. Essa concepção se tornou paradigmática em razão da mudança no conceito que, outrora era tido apenas na perspectiva biomédica e individual em uma abordagem extremamente excludente e estigmatizante3, passando para a perspec2 DINIZ, Debora. O que é deficiência? São Paulo: Brasiliense, 2007, p. 09. “Essa foi a revolução dos estudos sobre deficiência surgidos no Reino Unido e nos Estados Unidos nos anos 1970. De um campo eminentemente biomédico confinado nos saberes medicos, psicológicos, e de reabilitação, a deficiência passou a ser também um campo das humanidades. Nessa guinada acadêmica, deficiência não é mais uma simples expressão de uma lesão que impõe restrições à participação social de uma pessoa. Deficiência é um conceito complexo que reconhece o corpo com lesão, mas que também denuncia a estrutura social que oprime a pessoa deficiente.” 3 SANDEL, Michael J. Contra a Perfeição: ética na era da engenharia genética. Ana Carolina Mesquita (trad). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 64-65. 350 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi tiva social em que há uma nítida busca pela inclusão e adaptação do cotidiano às necessidades de todos, especialmente dos mais vulnerabilizados, ou seja, os deficientes4. Trata-se, portanto, de uma modalidade de percepção da deficiência a partir de uma perspectiva sociológica, mas, igualmente como expressão de um conceito eminentemente político5. A ideia central do modelo social se pautava preponderantemente em dois pontos: 1- A deficiência em si não poder justificar a desigualdade e a exclusão que ainda se verifica em relação aos deficientes, condizendo, nesse sentido, com a proposta de separação entre os conceitos de lesão e deficiência; 2 – Uma vez que se trata de um conceito sociológico e igualmente politico, a abordagem deixaria de ser individual, personalizada e biomédica no sentido de uma tragédia pessoal ou de castigo divino para ser pensado na forma de objeto para a criação de políticas públicas que visem a transformação de todas as espécies de padrões sociais excludentes, transferindo a responsabilidade acerca da inclusão para o Estado em parceria com a Sociedade civil6. O que ocorre é que, ainda assim, após a nova percepção do conceito de deficiência, subsiste na vida cotidiana a ideia de medicalização7 incessante da sociedade e, principalmente, das pessoas deficientes em função da supremacia da ditadura do ideal de normalidade8. O modelo social buscou superar o chamado modelo biomédico da deficiência que ainda insiste em processos que intentam curar, tratar, eliminar e, com isso, torturam o corpo e a alma. E, desse modo, buscam moldar a pessoa deficiente a um padrão social, mental e físico que é, de fato, uma grande idealidade. Mas, de 4 DINIZ, Debora. O que é deficiência? São Paulo: Brasiliense, 2007, p. 27-28. 5 RIOS, Roger Raupp. Direito da antidiscriminação e discriminação por deficiência. In: Deficiência e discriminação. Debora Diniz e Wederson Santos(Org.). Brasília: LetraslivresEdunb, 2010, p. 73-96. 6 DINIZ, Debora. Modelo social da deficiência: a crítica feminista. Série Anis. Brasília: Letraslivres, 1-8 julho, 2003, p. 02. 7 RODRIGUES, José Carlos. O Corpo na História. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999, p. 112. 8 DINIZ, Debora; SANTOS, Wederson. Deficiência e direitos humanos: desafios e respostas à discriminação. In: Deficiência e discriminação. Debora Diniz e Wederson Santos(Org.). Brasília: Letraslivres- Edunb, 2010, p. 09-17. “(…) Não há corpos naturalmente em desvantagem, mas simplesmente uma ideologia da normalidade que os classifica como inferiores a um ideal de produtividade, de independência e de vida boa.” volume 06 351 i encontro de internacionalização do conpedi todo modo, esse modelo biomédico recria e, especialmente, reforça as estruturas de discriminação e de intolerância que já existem e que ainda disciplinam corpos e mentes em nossas sociedades. Com efeito, um dos legados mais importantes desse modelo social foi a compreensão da deficiência em uma perspectiva coletiva que se projeta para a pluralidade, para a igualdade, para a tolerância e para a diversidade com a qual deve ser entendida nos dias atuais. Outro legado foi a consciência de que cabe a todos, solidariamente, a retirada das barreiras sociais, intelectuais, culturais e arquitetônicas que separam todas as pessoas, deficientes ou não. Portanto, diz-se que houve a neutralização do aspecto estigmatizante que se pensava estar ínsito à noção de deficiência. 2.do direito à igualdade ao direito à diferença: a formação do caleidoscópio humano no br asil A deficiência, no entanto, persiste como um dogma na sociedade ocidental, especialmente nos dias atuais em que se busca cada vez mais ansiosamente pela padronização de um ideal de perfeição9. Quanto mais se utiliza a medicalização para conter, dominar, transformar o ser humano mais efeitos nocivos se detecta para a ideia de inclusão dos diferentes. Convém lembrar que a concretização do direito à igualdade somente se aperfeiçoa na medida em que se contempla na mesma medida o direito à diferença e, no que tange as pessoas deficientes, deve se falar igualmente do direito à inclusão10. Pois o direito à inclusão é, na contemporaneidade, a consequência natural do amadurecimento da teoria dos direitos fundamentais e, dai, a sua afirmação deve ser pluridimensional no intuito de alcançar a máxima efetividade. Seguindo essa linha de raciocínio, cumpre ressaltar que o mais essencial direito das pessoas deficientes pode ser traduzido, na atualidade, como direito 9 COSTA NETO, João. Dignidade humana: visão do Tribunal Constitucional Federal Alemão, do STF e do Tribunal Europeu. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 113. 10 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 2a. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 259-789 352 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi de viver livre de toda e qualquer forma de discriminação, isto é, o direito à antidiscriminação11. Entretanto, a ideologia da normalidade é tão perversa e tão insidiosa que a discriminação advinda dela é silente, pois, não há uma nomenclatura para se adjetivar a pessoa que discrimina alguém em razão da sua deficiência12. Notória é a dificuldade de se combater uma discriminação dessa ordem, vez que apela para sentimentos íntimos e até inconscientes, que por meio de ações equivocadas, supostamente estariam buscando o bem daquelas pessoas, na medida em que evocam atitudes que mesclam desde a violência13 propriamente dita até ao paternalismo extremo. “A verdade é que não sabemos descrever esse fenômeno, que é multidimensional e perpassa todas as esferas da vida de uma pessoa com deficiência. A deficiência não é descrita como desigualdade imerecida e, portanto, injusta, mas como resultado de um acaso que demarca diferentes pontos de partida para a vida social. Nessa lógica excludente, uma pessoa com deficiência mental é tida como alguém fora dos parâmetros da normalidade, um julgamento de valor travestido de narrativa biomédica sobre o normal e o patológico. Por isso, enfrentar a discriminação contra as pessoas com deficiência exige um giro linguístico e normativo em diferentes campos do conhecimento científico e simbólico, como a biomedicina e as religiões. Não há corpos naturalmente em desvantagem, mas simplesmente uma ideologia da normalidade que os classifica como inferiores a um ideal de produtividade, independência e vida boa14.” A deficiência, via de regra, provoca reações apaixonadas, desde a repulsa até o fascínio, o que, a principio, justificaria atitudes totalmente desproporcionais. 11 RIOS, Roger Raupp. Direito da antidiscriminação e discriminação por deficiência. In: Deficiência e discriminação. Debora Diniz e Wederson Santos(Org.). Brasília: LetraslivresEdunb, 2010, p. 73-96. 12 DINIZ, Debora; SANTOS, Wederson. Deficiência e direitos humanos: desafios e respostas à discriminação. In: Deficiência e discriminação. Debora Diniz e Wederson Santos(Org.). Brasília: Letraslivres- Edunb, 2010, p. 10. 13 O ESTADO DE SÃO PAULO JORNAL. Aluno com retardo mental é torturado. www. estadao.com.br/estadaodehoje/20090618/not_imp.389067,0.php. Consulta em: 10.abr.2012. 14 DINIZ, Debora; SANTOS, Wederson. Deficiência e direitos humanos: desafios e respostas à discriminação. In: Deficiência e discriminação. Debora Diniz e Wederson Santos(Org.). Brasília: Letraslivres- Edunb, 2010, p. 10. volume 06 353 i encontro de internacionalização do conpedi Desafiadora é, pois, a tarefa de construir um lugar no mundo que, após o balanceamento dos interesses contrários e a superação do padrão biomédico, o deficiente seja colocado em sua condição primordial e irrenunciável: a condição de sujeito de direito15. O silêncio acerca desse problema foi enfrentado pela Constituição Federal de 1988 no Brasil16. Mas, igualmente pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência aprovada pela ONU em 200617. A abordagem dessa Convenção é, sobretudo ética, mas firma uma posição como marco normativo no cenário internacional e se afirma como um dos mais relevantes documentos na teoria dos direitos humanos na medida em que demonstra a insuficiência da teoria dos direitos fundamentais, circunscritos aos limites da soberania estatal, para abranger integralmente o fenômeno humano e tutelá-lo de maneira adequada. E assim, em uma perspectiva de interpretação autêntica, esse documento tratou de definir a discriminação sofrida pelas pessoas deficientes como qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência cujo resultado seja toda e qualquer espécie de limitação de acesso a direitos e a garantias, bem como as diversas formas de políticas de reconhecimento de sua singularidade e, inclusive, à distribuição de bens e de recursos. Portanto, a alteração do padrão comportamental excludente só poderá ocorrer se, como já foi afirmado, se for pautado em políticas públicas18 que objetivem desde o esclarecimento, a educação até às intervenções mais radicais que propiciem 15 ELIA, Luciano. O conceito de sujeito. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 14-16. 16 RIOS, Roger Raupp. Direito da antidiscriminação e discriminação por deficiência. In: Deficiência e discriminação. Debora Diniz e Wederson Santos(Org.). Brasília: LetraslivresEdunb, 2010, p. 78-79. “Essas questões se relacionam diretamente à dogmática constitucional do princípio da igualdade no direito brasileiro. O direito brasileiro dispõe de uma lista exemplificativa de critérios proibidos de discriminação e de extenso rol de direitos fundamentais, ainda que não exaustivo. Juntos, tais critérios e direitos proveem proteção contra discriminação fundada em condições pessoais (idade) e em escolhas e condutas (convicção filosófica e expressão artística). Nesse quadro, o reconhecimento da proibição de discriminação por deficiência é incontestável.” 17 In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm Consulta em: 10.jun.2014 18 MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. 4a. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 289-326. 354 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi alterações substanciais na vida cotidiana e nos marcos normativos afim de que as pessoas deficientes possam definitivamente ter seus corpos e suas mentes livres das pressões impostas pela ditadura da normalidade e, assim, gozem de seus direitos. Para isso, a partir do diálogo com o teor dessa Convenção, se verifica a necessidade de se adicionar ao legado do modelo social a contribuição feminista19. Partindo, então, dessa expansão, o texto da Convenção demonstrou nitidamente a relevância da tutela específica para meninas e mulheres deficientes, visando a efetividade real dessa tutela, pois dentre todas as condições de vulnerabilidade, elas reúnem as mais cruéis condições de vulnerabilização20 quando, além de deficientes, são igualmente pobres. analfabetas e negras e se encontram em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento como o Brasil21. Dai, falar sobre toda e qualquer forma de deficiência somente é possível em um contexto de aproximação com a teoria dos direitos humanos e em estreita relação com o teor dos direitos fundamentais, na medida em que falar de deficiência é tratar diretamente de igualdade, de liberdade, de dignidade e de justiça estendidas para todos, indiscriminadamente. E buscar, na medida do possível, oferecer alternativas de novos padrões sócioculturais que intentem ajustamentos que incluam as pessoas diferentes e as tutelem contra todas as formas de opressão. O Brasil ratificou com força de emenda constitucional essa Convenção em 2007 e, a partir dai, um Universo de dúvidas e de inquietações ainda restam a serem analisadas com seriedade, tanto pela comunidade acadêmica quanto pela sociedade, mas especialmente pelos poderes públicos. Em um primeiro momento, pode se inferir que um dos maiores desafios é, em uma perspectiva de justiça, retirar a questão da deficiência da esfera privada para 19 DINIZ, Debora. Modelo social da deficiência: a crítica feminista. Série Anis. Brasília: Letraslivres, 1-8 julho, 2003, p. 03. A autora destaca a importancia do movimento feminista para a valorização do cuidador e, assim, o estabelecimento de uma ética do cuidado. 20MONTEIRO, Geraldo Tadeu Moreira. Construção jurídica das relações de gênero: o processo de codificação civil na instauração da ordem liberal conservadora no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 19. 21 SAFFIOTI, Heleieth L. B. Quantos sexos? Quantos gêneros? Unissexo/Unigênero? In: Cadernos de Crítica Feminista. Ano III. N. 2. Dez-2009, Recife: SOS- Instituto Feminista para a Democracia, p. 20-21. volume 06 355 i encontro de internacionalização do conpedi a esfera pública e, assim, forjar um novo padrão comportamental, mas sobretudo normativo. Segundo o último Censo cerca de 24 por cento da população brasileira sofre algum tipo de deficiência, justificando, nesse sentido, a urgência de medidas que possibilitem essa alteração22. 3. uma crise da normalidade ou a eterna solidão dos alienados? Dentre os diversos tipos de deficiência se destaca a deficiência psíquica como aquela que tem sido mais negligenciada em termos de políticas públicas inclusivas em razão do grande estigma que carrega, vez que a figura do louco ainda agrega uma extrema carga de preconceito e, em certa medida, ainda coloca em xeque radicalmente a ideologia da normalidade23. Foucault, especialmente em História da Loucura, demonstrou que, desde o período medieval os deficientes psíquicos tem sido alvo de discriminação por meio do confinamento24. Assim, percebe-se que após as epidemias de lepra que vitimaram a Europa na idade média, a loucura passou a ser alvo das mesmas estratégias de medicalização e de higienização utilizadas para combater aquele mal. Com isso, a partir da noção de contágio e, sobretudo, por meio da estratégia política de banimento dos inadequados, surgiram as famosas naus dos alienados que serviam para afastar das cidades todos que eram desviantes, mas especialmente os chamados alienados25. A figura da barca serve, segundo Foucault, para mostrar o pavor que os deficientes psíquicos causavam nos demais, vez que não aderiam aos padrões 22 Instituto fez análises com base nos dados do Censo Demográfico 2010. Migração, nupcialidade, fecundidade também estão no levantamento. http://g1.globo.com/brasil/noticia/20 12/04/239-dos-brasileiros-declaram-ter-alguma-deficiencia-diz-ibge.html. Consulta em: 10. jun. 2014. 23 MUSSE, Luciana Barbosa. Novos sujeitos de direito: as pessoas com transtorno mental na visão da bioética e do biodireito. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 01-05. 24 FOUCAULT, Michel. História da Loucura na idade clássica. José Teixeira Coelho(Trad). São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 45-78. 25 RODRIGUES, José Carlos. O Corpo na História. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999, p. 109-110. 356 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi sociais e questionavam a autoridade estabelecida com seus comportamentos desviantes e, de certa forma, classificados como destituídos de razão26. A lógica binária, portanto, era o padrão utilizado para opor a razão à desrazão tal qual se fazia em relação ao bem e ao mal, as trevas à luz, ao sagrado em relação ao profano e, notoriamente, a saúde à doença. Outro ponto importante demonstra que, a partir do medievo o Homem foi confrontado com uma nova forma de contagem do tempo, pois a partir de então deixava de usufruí-lo livremente para subjugá-lo ao principio da eficiência27. Uma realidade que estabeleceu a vida humana como uma temporalidade em função da salvação de sua alma e, pois, submetida a uma contagem de tempos que seria mensurada ao final dos dias vividos na terra e, principalmente, em razão do alcance do objetivo pressuposto. Nesse sentido, a eficiência acabou por tornar a todos escravos de uma lógica que, por meio da utilização do tempo para atingir à eficiência afastava todas as outras formas as formas de gozá-lo, especialmente a naturalidade de apenas viver28. Os tempos então passaram a ser entendidos como o tempo da vivência terrena em busca da promessa da eternidade e do esforço humano para merecê-la. E, assim, todas as demais formas de contá-lo e usufruí-lo deveriam ser extirpadas, pois afetavam a ideia subjacente à própria vida humana e ao seu maior propósito: a santidade29. Tudo isso, além de outras circunstâncias, gerou para o ser medieval uma convivência pautada em padrões morais extremamente rígidos e, consequentemente, excludentes. Com efeito, nesse cenário a população de desviantes só tinha motivos para crescer30. 26 FOUCAULT, Michel. História da Loucura na idade clássica. José Teixeira Coelho(Trad). São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 03-44. 27 LE GOFF, Jacques. Para uma outra Idade Média: tempo, trabalho e cultura no ocidente. Thiago de Abreu e Lima Florêncio e Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p. 58-82. 28 RODRIGUES, José Carlos. O Corpo na História. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999, p. 87. 29 ROUDINESCO, Elisabeth. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos. André Telles (Trad). Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 15-43. 30 RODRIGUES, José Carlos. O Corpo na História. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999, p. 116. volume 06 357 i encontro de internacionalização do conpedi “É preciso ter sempre em mente que o ritmo da transformação quantitativa das cidades foi muito maior que o da metamorfose das mentalidades e sensibilidades. E que os hábitos e as formas de vida medievais, incompatíveis com as novas dimensões da cidade, eram ainda plenamente operantes mais de três séculos depois do fim da idade média- que, aliás, só terminou em 1453 por decisão dos historiadores do século XIX. Ademais, as características medievais doravante coexistem, sobretudo nas cidades de índole industrial, com os odores também fétidos do carvão queimado, das fumaças que escurecem o ar, dos gases gerados em larga escala pela fermentação já industrial de cervejas, com a fabricação de tijolos, com as poeiras levantadas pelas rodas dos veículos, com as exalações sulfurosas das fábricas...31” Com o aumento do número das barcas dos alienados e a recusa das cidades de deixá-los desembarcar em solo firme, se optou pela estratégia do confinamento em terra firme como forma de sanar as radicais impossibilidades de convivência com aqueles que haviam sido banidos. A figura da barca servia igualmente para demonstrar o louco como aquele ser mais indesejado cuja existência havia sido atingida de forma abissal no momento em que ocorria o diagnóstico, o julgamento moral de sua incapacidade e, por obvio, de sua total inadequação para a vida social. A ele deveria ser negada a condição básica de viver e conviver com os outros, em razão da sua impossibilidade de seguir os padrões que lhe eram impostos e que sobejavam em termos de subversão em relação até às mesmo práticas como a festa dos mortos e o carnaval em que era permitida alguma espécie de flexibilização das normas sociais. “ O cargo de intendente-geral de polícia foi instituído na França em 1665 e em 1757 se definiu um primeiro código de polícia, cujo objetivo era fazer que as pessoas vivessem civilizadamente, isto é, de modo cultivado, polido ou refinado, excluindo tudo o que parecesse bárbaro, irracional ou governado pela confusão. Polir (limpar), policiar (vigiar), ser polido (bem educado), politica (poder) pertencem ao mesmo campo semântico e se entrelaçam no mesmo processo histórico de vigiar, inspecionar, relatar, delatar, 31 RODRIGUES, José Carlos. O Corpo na História. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999, p. 114. 358 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi alertar, controlar, regulamentar, proibir, intervir, constranger... Não obstante, devemos considerar que contra mentalidades tão fortemente enraizadas dificilmente há repressão eficaz a curto prazo.”32 A modernidade, por sua vez, também reforçou a supremacia da ideia de normalidade ao apontar para a entronização da razão no lugar outrora ocupado por Deus. E, dessa forma, recrudesceu a exclusão na medida em que estabeleceu como principal forma de abordagem da loucura o modelo hospitalocêntrico. Medidas resultantes desse modelo, visando a higienização das populações se tornaram frequentes e deram ensejo às práticas eugênicas que perduraram até o início do século XX. Por meio dessas práticas, as pessoas com deficiência psíquica não eram apenas banidas, mas destituídas de todo e qualquer direito, vez que passavam a serem vistas como uma subcategoria da Humanidade. E, dessa forma, a partir desse legado da modernidade, se torna perceptível que, dentre as diversas modalidades de deficiência, a psíquica é a que tem sido mais negligenciada em termos de empreendimentos que propiciem a inclusão, vez que é a que gera mais repulsa por colocar em xeque uma das mais arraigadas crenças da Humanidade, ou seja, a do Homem como ser eminentemente racional. 4. o estado da arte no br asil O Brasil herdou diretamente da colonização portuguesa a tradição hospitalocêntrica para o tratamento da loucura. Os Hospícios e Manicômios brasileiros, então, se tornaram celeiros de seres humanos amontoados, submetidos às degradantes condições, ou seja, eivados de qualquer vestígio de proteção do Estado. A Sociedade civil, por meio de seus preconceitos, já havia sentenciado, desde o Brasil colônia, abandono aos portadores de transtornos psíquicos e, de fato, o Estado apenas tratou de empreender isso, institucionalizando-o. Assim, o Brasil pode ser reconhecido como um dos locais em que houve maior desrespeito à dignidade dos pacientes com deficiência psíquica, pois houve o 32 RODRIGUES, José Carlos. O Corpo na História. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999, p. 114. volume 06 359 i encontro de internacionalização do conpedi aprimoramento da noção excludente advinda do ponto de vista eurocentrista e a solidificação de práticas de extrema crueldade em relação a esse tipo de paciente33. Tratava-se da mesma modalidade segregacionista que se depreende da análise dos Campos de concentração na Alemanha hitlerista e que igualmente pode ser reconhecida nos episódios de horror que a história manicomial expressa no Brasil. Pacientes submetidos a torturas, sem prontuários, sem registro civil, total falta de higiene e de alimentação que geravam mortes em massa, cadáveres abandonados ou vendidos para as direções dos cursos de medicina etc34. Os anos 70, no entanto, trouxe mudanças, dentre elas a visita de Michel Foucault ao Brasil que influenciou uma geração de estudantes de medicina e de médicos que passaram a protestar por melhores condições de trabalho nas Instituições psiquiátricas e por melhorias nas condições de vida dos pacientes e, assim, a trabalhar pela desospitalização35. Minas Gerais foi o locus da maior tragédia na história da loucura no pais em razão das atrocidades no Hospital Colônia em Barbacena36. Mas, infelizmente, esse panorama atroz de inúmeras violações de direitos foi replicado em todos os estados brasileiros37. Amontoados de anônimos e anônimas, pretos e pretas, em sua maioria pobres, analfabetos e analfabetas, sem face, em suma, abandonados. Esse panorama dos manicômios no Brasil tão aviltante se estabeleceu como a composição de um celeiro de indesejáveis e de inadequados à sociedade brasileira que, antes de ofertar qualquer tipo de tratamento, desejava punir e afastar essa parte da população. Os anos 70 evidenciaram um novo discurso: a boética38 que, aliada a luta antimanicomial, possibilitou o surgimento de nomes como Basaglia que, na Itália, 33 ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro. 4.ed. São Paulo: Geração Editorial, 2013, p. 48-67. 34 ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro. 4.ed. São Paulo: Geração Editorial, 2013, p. 71-83. 35 MUSSE, Luciana Barbosa. Novos sujeitos de direito: as pessoas com transtorno mental na visão da bioética e do biodireito. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 01-05. 36 ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro. 4.ed. São Paulo: Geração Editorial, 2013, p. 94-95. 37 O caso Damião Ximenes e a condenação do Brasil por violação dos direitos humanos. Carta-denúncia escrita pela irmã do paciente gerou a condenação emblemática na área de saúde mental. In: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_ content&view=article&id=4407&secao=391 Consulta em: 10.jun.2014 38 DINIZ, Debora; GUILHEM, Dirce. O que é Bioética? São Paulo: Brasiliense, 2002, p. 10; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Saúde pública é bioética? São Paulo: Paulus, 2005, p. 58-61. 360 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi propunha a abolição do sistema hospitalocêntrico, denunciando os horrores que eram praticados em nome da razão. Basaglia, em sua visita ao Brasil, denunciou igualmente o sistema psiquiátrico brasileiro e ajudou a mudar a realidade no pais. O final da década de 70 então foi marcado pelo debate acerca do teor do Decreto Presidencial de 1934 que permitia o recolhimento de paciente psiquiátrico a hospital mediante simples atestado médico39. Mas, foi com a promulgação da Constituição Federal de 1988, notadamente a partir do que prescreveu em seus artigos 3o, IV; 7o, XXI; 23, II; 24, XIV; 37, VIII; 203o, IV; 208o, III; 227o, § 1o, II, que se tornou possível as mudanças mais efetivas na área da saúde mental. Basicamente, a Constituição de 1988, com base nos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, proibiu toda e qualquer forma de discriminação e assegurou a diversidade como elemento constitutivo da sociedade brasileira no sentido de que sua pluralidade esteja amparada pelo princípio da solidariedade. A Constituição, portanto, assegurou a proibição de todas as formas de discriminação, especialmente no tocante ao salário e aos critérios na admissão de trabalhador deficiente; atribuiu competência comum da União, dos Estados e dos Municípios para cuidar da saúde e da assistência pública, bem como da proteção e da garantia das pessoas deficientes; atribuiu competência legislativa comum à União, aos Estados e ao Distrito Federal quanto à proteção e à integração social das pessoas deficientes; reservou cargos e empregos públicos para pessoas deficientes na Administração pública; se obrigou à prestação da assistência social para assegurar a habilitação e a reabilitação das pessoas deficientes e à promoção de sua integração à vida comunitária; se obrigou a oferecer atendimento educacional especializado às pessoas deficientes, preferencialmente na rede regular de ensino; instituiu o dever da família, da sociedade e do Estado em favor da criança e do adolescente, de criar programas de prevenção e de atendimento especializado para as pessoas deficientes física, mental ou sensorial, visando favorecer a reintegração social dessas pessoas mediante o treinamento para o trabalho e a convivência e, desse modo, facilitar o acesso a bens e serviços coletivos com a eliminação de preconceitos e de obstáculos arquitetônicos. 39 In: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-24559-3-julho-1934-515 889-publicacaooriginal-1-pe.html. Consulta em: 10.jun.2014. volume 06 361 i encontro de internacionalização do conpedi No caso da saúde mental, a repercussão desses preceitos constitucionais, segundo dados do Ministério da Saúde, atingiram e continuam atingindo em média a 12 por cento da população brasileira, vez que esse é o percentual da população brasileira que necessita de algum tipo de atendimento psiquiátrico, contínuo ou eventual40. O fecundo debate acerca da saúde mental no Brasil do período pósConstituição de 1988, intentava uma série de reforma drásticas das práticas e da assistência em saúde mental. Desse panorama, surgiu a Lei 10.216 em 200141. Com a promulgação dessa lei eclodiu uma nova categoria de sujeitos, ou seja, os pacientes psiquiátricos passaram a ser conhecidos como os novos sujeitos de direitos. E isso em razão da espécie de exclusão crônica a que eles haviam sido submetidos não somente no Brasil, mas em todas as fases da história da Humanidade. A ideia era então por meio do emponderamento, fortalecer a identidade e a autonomia individual e de grupo dos pacientes psiquiátricos no Brasil para que eles se tornassem protagonistas, construtores de sua própria cidadania, inclusive das tratativas que intentavam a construção das diretrizes da Lei 10.216/ 2001. Portanto, foi no cenário político propiciado pelo processo de redemocratização do Brasil que, nos anos 90, ocorreu um amplo debate que envolveu diversos setores da sociedade civil sobre os direitos fundamentais das pessoas deficientes e, especificamente, dos deficientes psíquicos. Dentre as exigências, se destaca a necessidade do reconhecimento da autonomia ético-jurídica para essas pessoas. São deficientes psíquicos, os indivíduos, de ambos os sexos, independentemente de sua faixa etária, classe social, profissão de fé, de cor, de raça ou de etnia que apresentem um ou mais transtornos mentais, sejam eles: congênito, adquirido, crônico ou agudo42. 40 Transtornos mentais atingem 23 milhões de pessoas no Brasil Pelo menos 12% da população necessitam de algum atendimento em saúde mental e 3% sofrem de transtornos graves. In:http://saude.ig.com.br/transtornos+mentais+atingem+23+milhoes+de+pessoas+no+brasil/ n1237686125917.html Consulta em: 10.jun.2014. 41 In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm Consulta em: 04.Jun.2014 42 MUSSE, Luciana Barbosa. Novos sujeitos de direito: as pessoas com transtorno mental na visão da bioética e do biodireito. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 41. 362 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi De acordo com o IBGE existem em média 20 milhões de brasileiros que recorrem ou já recorreram a algum tipo de atendimento em saúde mental, sendo que 3 por cento desse total sofrem de transtornos psiquiátricos graves e persistentes43. Atualmente, mais de 6 por cento da população brasileira apresenta transtornos psiquiátricos graves em decorrência do uso de álcool e de drogas. Com o chamado boom do crack, se observa que, infelizmente, 70 por cento dos usuários dessa droga, que deixa sequelas psiquiátricas irreversíveis, se encontram no Nordeste do país, local em que ha os mais baixos índices sócio-econômicos. 5.conclusões A população de deficientes psíquicos no Brasil é bastante considerável e nela podem ser reconhecidos indivíduos em diversas fases de seu desenvolvimento humano. A população adulta, todavia, é mais suscetível a transtornos psíquicos, embora se tenha registros de que há uma espécie de processo de enlouquecimento das crianças brasileiras na medida em que o uso desenfreado de psicotrópicos nessa etapa da vida tem radicalmente aumentado e isso tem sido objeto de pouca ou nenhuma atenção dos poderes públicos44. Segundo a OMS- Organização Mundial de Saúde, pode se afirmar que os transtornos psíquicos atingem a Homens e Mulheres em percentuais semelhantes, porém, enquanto as mulheres tem mais inclinação à depressão, os homens se inclinam mais ao abuso e à dependência ao álcool e às drogas. Tal panorama se confirma no Brasil atualmente, apesar de ser facilmente constatável a imensa quantidade de crianças e adolescentes de ambos os sexos usuários de crack nas metrópoles brasileiras45. 43 In: http://www6.ensp.fiocruz.br/radis/revista-radis/38/reportagens/como-anda-reformapsiquiatrica. Consulta em: 09.jun.2014. 44Como se fabricam crianças loucas. In: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/03/17/ opinion/1395072236_094434.html. Consulta em: 07.maio.2014. 45 Dos usuários de crack do Brasil, 14% são crianças e adolescentes -A Pesquisa encomendada pelo Ministério da Justiça também mostrou que 70 mil moradores das principais capitais brasileiras usaram crack, pasta base, merla e óxi regularmente durante o periodo de 2012 Consulta em: 08.jun.2014. In:http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/ volume 06 363 i encontro de internacionalização do conpedi A insegurança, a insalubridade e as péssimas condições de trabalho a que a maioria dos brasileiros são submetidos, bem como o stress da vida contemporânea, podem ser apontados como relevantes fatores que geram ou propiciam o aparecimento de alguns transtornos psíquicos46. Nesse sentido, ainda deve ser considerada a extenuante jornada de trabalho a que as mulheres trabalhadoras são submetidas no Brasil, vez que algumas são submetidas à tripla e até quarta jornada para conciliar o trabalho dentro e fora de casa, e, com isso, o exaurimento a que são submetidas se tornam importantes causas para a produção e aumento dos grupos populacionais dependentes de psicotrópicos e drogas em geral. Toda essa realidade, contudo, ainda é escamoteada como um tabu na sociedade brasileira e hodiernamente ainda se verifica casos em que os transtornos mentais são ainda considerados frutos de uma espécie de castigo divino, pois somente essa abordagem justificaria a falta de eficiência das políticas públicas voltadas para esse setor, bem como a falta de atenção aos pacientes nessa área da saúde. Ocorre que, com o processo de desospitalização no Brasil o que verifica na prática é que as famílias e os próprios pacientes ficaram ainda muito mais desassistidos, pois tem que se reorganizar na economia dos insumos e dos afetos para conviver com pacientes que, por vezes, se encontram em situações agudas, em surto, por exemplo e, pois, oferecem até um certo perigo para si mesmo e para os outros na convivência social. Imperioso, face a esse panorama, é destacar alguns dos direitos constitucionais das pessoas com transtornos psíquicos no Brasil: o direito à vida e à igualdade, o direito a não discriminação, o direito à liberdade, o direito à saúde, o direito à educação, o direito ao trabalho, o direito à moradia, o direito à inclusão social, o direito ao convívio familiar e social, os direitos sexuais e reprodutivos, os direitos culturais e, sobretudo, o direito a receber o atendimento adequado ao seu quadro clinico. Inconteste, nesse sentido é a afirmação de que o direito mais elementar quando se trata da condição de deficiente psíquico é o direito ao diagnóstico. Ademais, brasil/2013/11/28/interna_brasil,400681/dos-usuarios-de-crack-do-brasil-14-sao-criancas-eadolescentes.shtml. 46 MUSSE, Luciana Barbosa. Novos sujeitos de direito: as pessoas com transtorno mental na visão da bioética e do biodireito. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 46-57. 364 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi a ONU já havia preconizado desde 1991, por meio da Carta de Princípios sobre a Proteção das pessoas acometidas de transtornos mentais e as melhorias da assistência à saúde mental, que o diagnóstico de um transtorno mental deve ser de natureza não discriminatória, pautado, portanto, em critérios internacionalmente aceitos como o CID- 1047. O CID- 10 é a classificação de enfermidades desenvolvida pela OMS. De acordo com o CID- 10 há vários tipos de transtornos psíquicos, desde os mais simples até os mais graves48. No entanto, evidencia-se que a própria classificação desses transtornos é igualmente fruto de um julgamento que sobeja à abordagem biomédica e se estende no âmbito social, moral, ético, e, sobretudo, político. Nesse panorama médico, ético e, principalmente, jurídico, torna-se relevante e necessária a conjugação de instrumentos que visem a tutela integral dos pacientes, das famílias e da sociedade civil, tais como: a Declaração da ONU de 1948, o Pacto de San José da Costa Rica, a Constituição Federal de 1988, a Lei 10.216 de 2001, a Convenção sobre os direitos das Pessoas com deficiência, dentre outras. Ocorre que, apesar da existência dessa teia de marcos normativos que cuidam da tutela dos deficientes mentais, o cenário atual ainda é catastrófico. As conquistas advindas do texto constituinte, não obstante seus quase trinta anos de promulgação, não foram plenamente concretizadas, especialmente no que se refere aos direitos sociais. Nesse sentido, há grupos ideologicamente posicionados que ainda insistem em afirmar a impossibilidade de se assegurar esses direitos, especialmente em países em desenvolvimento como o Brasil, apoiando-se na equação da alocação de recursos. A esse triste panorama de falta de efetividade das normas constitucionais, pode ser adicionado o desconhecimento por parte da maioria da população brasileira do sistema interamericano de direitos, mormente do teor do Pacto de San José da Costa Rica49. Além disso, há uma flagrante falta de efetividade da Lei 10216 de 2001. 47 In:http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/deficiente/protec.htm. Consulta em: 09.jun.2014. 48 CID- 10 In: http://www.medicinanet.com.br/cid10.htm. Consulta em: 09.jun.2014 49 In:http://www.agu.gov.br/page/content/detail/id_conteudo/113927.Consulta em: 08.jun.2014 volume 06 365 i encontro de internacionalização do conpedi Outro agravante é o fato de que a população brasileira tem culturalmente recorrido à automedicação, inclusive no que se refere ao uso indiscriminado de psicotrópicos. Muito embora, estejam na categoria de remédios controlados, são facilmente adquiridos e consumidos por boa parte da população, gerando para o Brasil a alcunha de Nação Rivotril50. Assim, a ânsia por entorpercimento de grande parcela da população brasileira tem gerado um incremento nas vendas de psicotrópicos que, indiscriminadamente, tem sido ingeridos pelas mais diferentes pessoas. O mais grave, como outrora se afirmou, se trata da intensa prescrição desse tipo de medicamento para uma significativa parcela de jovens e de crianças das classes alta e média no Brasil, restando aos pobres o uso das drogas como o crack. De todo modo, essa nação entorpecida, seja pelo crack quando se trata das pessoas de classes mais baixas, seja pelo Rivotril no que se refere aos mais afortunados, é cada vez mais cruel e excludente, sobretudo em relação as pessoas com transtornos psíquicos mais graves e agudos. Com advento dessa série de marcos normativos, houve, de fato, a busca pela extinção do modelo hospitalocêntrico, no entanto, restou insanável a complexa teia de problemas referentes à deficiência psíquica e toda a carga de discriminação. Ocorre que, além de um longo caminho a ser trilhado ainda no sentido de recepcionar os modos de tutela da Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência, afirmando desde a singeleza da acessibilidade nas cidades brasileiras até a sofisticação da revisão do instituto civil da interdição, o Brasil tem se posicionado no ranking mundial como uma das sociedades mais desiguais e isso tem afetado diretamente aos mais vulnerabilizados pelo sistema. Assim, pode se dizer com Leminski51 que, com advento dos marcos normativos ainda não era o dia, era apenas o raio na escuridão e na invisibilização que ainda se encontra essa parte da população brasileira. A falta de leitos suficientes para atendimentos e para a internação de casos graves, a ineficiência de políticas públicas na área da saúde mental, o desvio de 50 In: http://super.abril.com.br/saude/nacao-rivotril-587755.shtml. Consulta em: 09.jun.2014 51 In: http://pauloleminskipoemas.blogspot.com.br. Consulta em: 09.jun.2014 366 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi verbas públicas por parte dos agentes públicos, a falta de preparo da Sociedade civil e das famílias para o convívio com os pacientes e a precariedade dos orçamentos para as políticas públicas, o endividamento do Estado brasileiro, a fragilidade das Instituições, o aumento no número de dependentes de psicotrópicos, álcool e drogas, a fragilidade da atuação dos centros de atendimento e de referência em saúde mental, a dificuldade das pessoas que já foram institucionalizadas em restabelecer laços afetivos e sociais, a concentração de investimentos nas regiões sul e sudeste, são alguns dos principais problemas nessa área que dificultam ou até mesmo impedem o exercício dos direitos humanos e fundamentais das pessoas com deficiência psíquica no Brasil. O resultado mais aterrador e facilmente constatável é o aumento das populações de rua e carcerárias que, de fato, são fruto inclusive dessa falta de cuidado com essa parte da população brasileira. Conclui-se, com isso, que a mera edição de novos marcos normativos não será suficiente para a mudança desse cenário, vez que se trata de algo estruturante que tangencia a formação do povo brasileiro e que deve ser objeto de enfretamento coletivo para que possamos compreender que o principal papel do paciente psiquiátrico é o de ser a expressão da decadência da lógica binária, cartesiana. E, assim, proporcionar o diálogo a partir de outras lógicas, outras facetas da razão que não podem ser simplesmente taxadas de desrazão ou de alienação. Dessa forma, buscar empreender mais ações inclusivas do que punitivas para uma efetiva cultura de paz e, especialmente, de solidariedade. Dos arrazoados poéticos se pode expressar que, mais uma vez, a afirmação dos direitos humanos e fundamentais no Brasil deve se deslocar em travessias... “pelos caminhos que ando/ um dia vai ser/ só não sei quando.” (Paulo Leminski) volume 06 367 i encontro de internacionalização do conpedi uma proposta de reconfigur acão das concepções e tipologia do estado contempor âneo Luiz Henrique Urquhart Cademartori1 João Luiz Martins Esteves2 Resumo O presente trabalho aborda seu objeto a partir da constatação de uma indeterminação ou confusão teórica quanto ao conceito de Estado Constitucional ao se subestimar a importância do ambiente político e econômico que constitui e fundamenta cada modelo de Estado em um determinado período e lugar. Considerado isto, realiza-se uma crítica às teorias existentes sobre esse tema, e analisa-se a trajetória e característica dos modelos jurídico-político e econômico dos estados de Direito desenvolvidos de forma vinculada à experiência constitucional, reconhecendo quais são estas experiências e como se efetua a identificação dos tipos de Estado, bem como, das concepções que os sustentam. Palavras-chave Estado liberal; Estado de Direito; Estado Social; Estado Constitucional. Resumen El presente trabajo analiza su objeto partiendo de la constatación de la indeterminación o confusión teórica sobre el concepto de Estado de Derecho 1 Pós-doutorado pela Universidade de Granada (Espanha) em Filosofia do Direito. Doutor e Mestre pela Universidade Federal de Santa Catarina em Direito Público. Professor titular dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito, stricto sensu, Mestrado e Doutorado da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Consultor Jurídico. e-mail: luiz.hc@terra. com.br 2 Doutorando em Direito, pelo Programa de Doutorado da Pós Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Direito, Estado e Cidadania, pelo Programa de Mestrado da Universidade Gama Filho (UGF/RJ). Professor na graduação e pós-graduação da Universidade Estadual de Londrina – (UEL). Procurador do Município de Londrina – Estado do Paraná. e-mail: [email protected] volume 06 369 i encontro de internacionalização do conpedi al subestimarse la importancia de la situación política y económica en que se basan y fundamentan cada tipo de estado en un momento y lugar determinados. Considerado esto, lleva a cabo una revisión de las teorías existentes sobre el tema, y se analiza la trayectoria y las características de los modelos jurídico-políticos y económicos de los estados de derecho desarrollada a partir de la experiencia vinculada al modo constitucional, reconociendo estas experiencias y cómo ellas afectan la identificación de tipos de Estado, así como los conceptos que les son subyacentes. Palabras clave Estado Liberal; Estado de Derecho; Estado Social; Estado Constitucional. 1.introdução A crise do liberalismo, vivenciada principalmente a partir de meados do século XIX, teve como consequência imediata a crise do sistema jurídico-político que lhe deu suporte. A emergência da declaração dos direitos sociais, os quais encontraram nos valores do liberalismo individualista um comportamento refratário a eles, exigiram não somente da atividade política, mas também da atividade jurídica, um novo posicionamento que possibilitasse o entendimento desta nova configuração política e social e suas consequências nos âmbitos do Direito e da Política. A importância disto encontra-se objetivamente em que, uma teoria do direito utilizada por uma comunidade jurídica lhe oferece os métodos de intepretação e aplicação de suas normas a traçar suas condutas sociais e individuais, não podendo estar apartada do entendimento sobre qual é o modelo jurídico-estatal ao qual se encontra submetida. Com base nos desafios derivados das novas configurações do Estado, após as revoluções burguesas, é possível perceber na literatura jurídica, principalmente a partir de meados do século XX, uma preocupação com a identificação de qual é o tipo de organização jurídico-política sucessora daquela que foi criada a partir do final do século XVIII, levando a uma multiplicidade de denominações como, por exemplo: Estado Liberal, Estado de Direito, Estado Social e Estado Constitucional. Somam-se a isto, conceituações também múltiplas e divergentes que podem ter sua causa nas diferenças existentes entre concepções jurídicas que desconsideram 370 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi ou reduzem a importância do ambiente político e econômico que constitui cada modelo de Estado em um determinado período e lugar. No presente trabalho, como forma de contribuir para a minimização da indeterminação teórica existente, se realiza uma análise sobre a característica do modelo jurídico-político e econômico da época do liberalismo, da crise deste modelo, e também do seu sucedâneo no contexto do Estado, de forma a reconhecer claramente quais são e como se realiza a identificação dos tipos de Estados existentes desde o início desta trajetória e também das concepções que os fundamentam sob a perspectiva da evolução constitucional. 2.limitação do poder estatal como condição do liber alismo O termo “constituição” é utilizado desde a antiguidade para designar qualquer lei feita pelo Imperador de Roma, podendo encontrar-se a utilização do termo durante a idade média no mesmo sentido em que se utilizam os termos ordenações e estatutos, entre outros (GILISSEN, 2001, p. 419). Mas é em meados do século XVIII que o termo iniciou a ter um significado não existente até este período, o qual se tornou necessário como instrumento, também simbólico, para identificar o novo modelo de Estado que se construía na Europa, derivado das transformações econômicas, políticas e sociais experimentadas desde a época renascença. Foi em 1748 que Montesquieu (2003, p. 165), descrevendo seu conceito de liberdade política, buscou relacionar as leis que a formam conjugadas com o que lhe parece ser a melhor forma de funcionamento do poder estatal, a ser fracionado em instâncias legislativa, executiva e judicial3, modelo este ao qual dá a denominação de Constituição da Inglaterra4. 3 Montesquieu denomina os poderes executivo e judicial, respectivamente de: poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes e poder executivo das coisas que dependem do direito civil, ou ainda de “poder executivo do estado” e “poder de julgar”. (MONTESQUIEU, 2003, p. 165). 4 Conforme lembrado por Paulo Bonavides Montesquieu teria cometido equívoco fundamental quando propôs a Constituição da Inglaterra por exemplo vivo relativo à prática daquele do princípio da separação de poderes, uma vez que aquele Estado iniciava a experiência parlamentar de governo, a qual atenuou a distinção entre poderes. Mas salienta que isto não teria tirado o papel fundamental desempenhado de sua concepção de tripartição de poderes. (BONAVIDES, 2010, p. 147). volume 06 371 i encontro de internacionalização do conpedi É importante notar que não existia ainda um documento político ou jurídico, formalmente estabelecido, que recebesse a denominação de “constituição”. Nem mesmo a Inglaterra, utilizada como modelo paradigmático pelo filósofo e político francês, tinha ou viria a ter um documento com esta característica, fato este que permanece até os dias atuais. E é perceptível que o relevo que se deu ao termo “constituição” durante este período do iluminismo5, esteve mais agregado à forma de distribuição do exercício do poder estatal, do que necessariamente à preocupação com a emissão de um documento de característica jurídica ou política necessário à fundação de um Estado ou que conferisse a este legitimidade política. A “constituição” é concebida como instrumento que estabelece limitações ao exercício do poder estatal, mas não como condição da existência de um governo ao qual caberia o exercício deste poder. É importante destacar que os Estados já existiam, mesmo que identificados por meio de outra nomenclatura6, muito antes que existisse a própria ideia de constituição e à época de Montesquieu, não estava em relevo a legitimidade desta forma de organização política – o Estado - ou daquele a quem era conferido o exercício do poder. Isto não quer dizer que a legitimidade não fosse tema já tratado teoricamente por outros autores da modernidade7, entretanto, a preocupação central exposta por Montesquieu foi quanto ao modo de exercício do poder estatal. Mas, também, o modo como se exercia o poder ou as funções estatais não era uma novidade no debate filosófico e político existente no século XVIII. Especificamente, a concepção de uma separação de poderes já é um tema que ocupou o pensamento moderno anterior a Montesquieu, de que são exemplos Maquiavel (2003, p. 114) no século XVI e Locke (2001, p. 182) no século XVII, tendo aquele realizado a primeira sistematização teórica da separação de poderes, 5 Conforme Binetti (1997, p. 605), “O termo iluminismo indica um movimento de idéias que tem suas origens no século XVII (ou até talvez nos séculos anteriores, nomeadamente no século XV, segunda interpretação de alguns historiadores), mas que se desenvolve especialmente no século XVIII, denominado por isso o “século das luzes”. 6 Em 1532, o termo “Estado” foi introduzido por Maquiavel (2003, p. 29), que delineando os tipos estatais propõe que “Todos os Estados que existem e já existiram são e foram sempre repúblicas ou principados”. 7 Por exemplo, Bobbio (1987) lembra que para Hobbes “[...] a segurança dos súditos, que é o fim supremo do Estado, e portanto da instituição do poder político, é necessário que alguém, não importa se pessoa física ou assembleia, ‘detenha legitimamente no Estado o sumo poder’”. (BOBBIO, 1987, p. 88). 372 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi isto sem contar com as diversas teorias das formas de governo de filósofos com Aristóteles na antiguidade clássica. A questão relativa ao exercício do poder estatal sempre foi algo recorrente e tem sido, até a atualidade, um tema sobre o qual a humanidade tem se ocupado e pode ser considerado como um dos temas mais desafiadores no âmbito das, denominadas, ciências humanas. Entretanto, em cada um dos períodos históricos traçados, é possível identificar que a preocupação com o modo de agir estatal está irremediavelmente e evidentemente, subordinada à sua época e consequentemente aos valores proeminentes em cada um dos contextos históricos em que foram desenvolvidas as variadas teses sobre a maneira de exercício do poder, bem como do estabelecimento de suas funções. Sendo, portanto o exame do ambiente histórico em que se geram conceitos como “poder estatal” e “constituição”, indispensável à sua compreensão. É interessante notar que Montesquieu não pareceu estar desatento à necessidade de contextualizar a época e lugar em que os estados definiram-se por objetivos distintos. Tomou por premissa que os estados, em geral, apresentam como objetivo a sua própria conservação mas que, apesar disto, cada um deles apresentava um objetivo particular. Exemplifica que estes objetivos poderiam ser a guerra, o comércio, a religião, a tranquilidade pública, entre outros, vinculando-os a diferentes estados existentes em diferentes épocas. Entretanto, coerente à sua época, e alçado pelo valor político e existencial que o movia – a liberdade - o filósofo francês apresenta outro objetivo, derivado e estritamente vinculado a Constituição, qual seja, o das condições e limites ao exercício do poder estatal, que passa a denominar-se “[...] liberdade política [...]” (MONTESQUIEU, 2003, p. 165). Apesar dessa conjugação, que acresce a política à liberdade, as transformações sociais não aconteceram e nem tiveram sua origem exclusivamente no campo da política. As relações econômicas é que foram decisivas nas mudanças que aconteceram á época de Montesquieu, pressionadas pelo imperativo burguês de liberdade de mercado. E quanto a isto deve ser esclarecido que mesmo nesse momento de nova conformação estatal e apesar de poderem caminhar juntos, não se pode confundir o liberalismo político com o liberalismo econômico. Isto porque no século XVIII os fisiocratas, balizadores da nova ordem8 e defensores 8 Conforme Avelãs Nunes (2011), “[...] a caracterização do novo estado burguês emergente como estado de classe é feita, sem qualquer disfarce, pelos fisiocratas e por Adam Smith”. (NUNES, 2011, p. 1). volume 06 373 i encontro de internacionalização do conpedi da liberdade econômica (o laissez faiere, laissez passer), em termos políticos eram favoráveis a um “[...] despotismo legal [...]”(MAFREY, 1997, p. 503, grifo do autor), ou ainda a um “[...] despotismo esclarecido [...]”(NUNES, 2011, p. 1). A preocupação central seria, portanto, adequar o Estado a um novo objetivo, o qual serviria a um novo modelo de relações sociais e econômicas em ebulição na Europa e que convivia ainda com um antigo modelo político-jurídico insuficiente para dar resposta a esta nova realidade. A necessidade de uma liberdade para se contratar e de que não houvesse a interferência nas relações entre particulares; a necessidade de liberdade para ser proprietário9 e de que o poder estatal tivesse uma atuação limitada a garantir o exercício dos direitos patrimoniais; bem como, a necessidade de que os sujeitos destes direitos atuassem indiretamente na formação da vontade do poder estatal, como forma de garantir o exercício destes mesmos direitos, requisitava uma nova forma de atuação do poder estatal. A melhor fórmula para garantir esta liberdade – objetivo do novo modelo jurídico-político que se desenvolveu – foi apresentada por uma proposta de regulação das condições de exercício do poder estatal. E ainda calcada no fracionamento do exercício do poder e na delimitação rígida de suas funções, a qual estaria traduzida em uma constituição, ideia esta firmemente presente no processo revolucionário francês e transcrita no art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, o qual proclama que uma sociedade que não assegure a garantia dos direitos e não estabeleça a separação dos poderes não tem uma Constituição. Esse ideário formava a sustentação de um discurso e de uma ação que serviram perfeitamente às pretensões naturalistas daqueles que – como Adam Schmidt defendiam a não regulamentação das relações econômicas, e consequentemente sociais, autorreguladas pela “mão invisível do mercado” que deveriam estar apartadas do Estado10. 9 Avelãs Nunes (2011) nos dá uma visão bem clara da relação estabelecida entre liberdade e propriedade, por meio da transcrição do pensamento de Mercier de La Rivère, discípulo do célebre fisiocrata Quesnay : “atacar a propriedade é atacar a liberdade”; [...] perturbar a liberdade é perturbar a propriedade; assim, propriedade, segurança, liberdade, eis o que nós buscamos e o que devemos encontrar evidentemente nas leis positivas que nos propomos instituir; eis o que devemos considerar a razão essencial destas mesmas leis.” (NUNES, António 2011, p. 2) 10 Conforme Nunes (2011), “Em consonância com o cânone liberal, Smith entende que a economia (separada do estado) funciona de acordo com as suas próprias leis, leis naturais, leis 374 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi É este entendimento político e filosófico, que molda a concepção de constituição, que também determina as bases do Estado constitucional, também denominado de Estado de Direito, conforme assinalado por Miranda (2005, p. 47). Da sua configuração econômica e política deriva seu epíteto de Estado liberal. Sob o entendimento de que é isto que sustentam os pressupostos doutrinais e prismas próprios de autores do século XVIII e XIX, Miranda (2005) assinala ainda que O Estado constitucional, representativo ou de Direito surge como Estado liberal, assente na ideia de liberdade e, em nome dela, empenhado em limitar o poder político tanto internamente (pela sua divisão) como externamente (pela redução ao mínimo das suas funções perante a sociedade). (MIRANDA, 2005, p. 47) De outra parte, Norberto Bobbio entende que doutrina liberal ou liberalismo11 compreende que estas suas duas características de restrição podem receber um tratamento distinto. Quanto a isto, sustenta que a noção corrente que serve pra representar a limitação dos poderes é Estado de direito; e a noção corrente que serve para representar a limitação das funções estatais é Estado mínimo. Entretanto não abandona a noção de Estado liberal para designar a situação na qual se encontram em um só movimento os dois tipos de limitação concebidos pelo liberalismo12. de validade absoluta e universal. E defende que a ordem natural harmoniza todos os interesses e realiza o máximo de utilidade social quando a vida económica decorre segundo as leis da natureza, perseguindo cada um o máximo de satisfação com o mínimo de esforço.” (NUNES, 2011, p. 7, grifo do autor) 11 Atualmente o termo liberalismo, embora defina um fenômeno histórico identificável, não encontra uma única definição possível, variando conforme o lugar. O sentido que em que aqui se utiliza é o utilizado na Itália que é também corrente no Brasil, o qual identifica o aspecto econômico, mas também se agrega a ele o aspecto político-jurídico relativo à separação de poderes. Conforme Nicola Matteucci “[...] a palavra assume diferentes conotações conforme os diversos países: em alguns países (Inglaterra, Alemanha), indica um posicionamento de centro, capaz de mediar conservadorismo e progressismo, em outros (Estados Unidos), um radicalismo de esquerda defensor agressivo de velhas e novas liberdades civis, em outros, ainda (Itália), indica que procuram manter a livre iniciativa econômica e a propriedade particular”. (MATTEUCCI, 1997, p. 688). 12 Conforme Bobbio (2005), “Embora o liberalismo conceba o Estado tanto como Estado de direito quanto como Estado mínimo, pode ocorrer um Estado de direito que não seja mínimo (por exemplo, o Estado social contemporâneo) e pode-se também conceber um Estado mínimo volume 06 375 i encontro de internacionalização do conpedi Reconhece-se, portanto, que essa conjugação de elementos, que reduzem e limitam o poder estatal por meio de uma divisão do seu exercício e da minimização de suas funções econômicas e sociais frente à sociedade, e que estão lastreados juridicamente na existência de uma Constituição, foi o fator que possibilitou a consolidação do liberalismo na sua correlação mais genuína, o Estado Liberal do século XIX. 3. o liber alismo como mecanismo de gar antia do individualismo As transformações sociais derivadas da ruptura da ordem existente, ainda que sejam impulsionadas pelas condições materiais da vida, não são determinadas exclusivamente por elas. As revoluções sempre apresentam um conjunto de valores a serem incorporados à sociedade e sedimentados no ideário coletivo de forma a consolidar a nova ordem que se impõem. Estes valores se retroalimentam de forma que um passa a justificar o outro. Nesta linha, é necessário explicitar que a liberdade é apresentada como um valor, e como tal é uma expressão aberta que, assim sendo, constitui critério de avaliação de ações. Entretanto, a própria liberdade não deve ser considerada um valor em si mesmo, pois é necessário que seja explicitado qual o seu propósito ou a qual objetivo ela serve. Isto se explica pelo motivo de que, também são feitas valorações dos próprios valores e, portanto sempre serão feitas valorações quanto ao que pode significar o próprio valor liberdade. Ou seja, é necessário indagar qual foi o valor que fundamentou a liberdade apresentada como objetivo direto das limitações ao exercício do poder estatal, e que por ele era condicionada. A reposta deve ser retirada da análise do pensamento vigorante à época das revoluções liberais. E sendo assim, por meio de uma análise que realiza uma associação que não seja um Estado de direito (tal como, com respeito à esfera econômica, o Leviatã hobbesiano, que é ao mesmo tempo absoluto no mais pleno sentido da palavra e liberal em economia). Enquanto o Estado de direito se contrapõe ao Estado absoluto entendido como legibus solutus, o Estado mínimo se contrapõe ao Estado máximo: deve-se, então, dizer que o Estado liberal se afirma na luta contra o Estado absoluto em defesa do Estado de direito e contra o Estado máximo em defesa do Estado mínimo, ainda que nem sempre os dois movimentos de emancipação coincidam histórica e praticamente”. (BOBBIO, 2005, p. 17 e 18). 376 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi histórica, é fatalmente verificável que as concepções da escola do direito natural ou jusnaturalismo, e também o contratualismo, devem ser apresentados como sendo a raiz filosófica do Estado liberal como contraposição ao Estado absoluto, as quais eclodiram em um momento de continua corrosão deste. Segundo o jusnaturalismo os homens têm certos direitos fundamentais pré-existentes à sociedade, como direito à vida, à liberdade e à propriedade independente da sua vontade ou da vontade de outro ou de outros (BOBBIO, 2005, p. 12). Por sua vez, o Estado liberal recebe uma explicação legitimadora como sendo o resultado de um acordo entre indivíduos inicialmente livres. A partir deste entendimento, verifica-se que a afirmação dos direitos naturais e a teoria do contrato social estão estreitamente ligados. Conforme Bobbio (2005) O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo é a comum concepção segundo a qual primeiro existe o indivíduo singular com seus interesses e com suas carências, que tomam a forma de direitos em virtude da assunção de uma hipotética lei da natureza, e depois a sociedade, e não vice-versa como sustenta o organicismo em todas as suas formas, segundo o qual a sociedade é anterior aos indivíduos ou, conforme a fórmula aristotélica destinada a ter êxito ao longo dos séculos, o todo é anterior às partes. (BOBBIO, 2005, p. 15). Bobbio (1991) expõe a contraposição do contratualismo a uma concepção, originada na antiguidade clássica, onde não estava contemplada sobremaneira a ideia de individuo, e sim calcada sob uma concepção organicista que concebia o todo (a sociedade ou o Estado) como dado anterior às partes (os indivíduos). No que se refere á concepção organicista, pode-se encontrar as suas bases filosóficas no pensamento de autores tais como Aristóteles (384-322 a.C) na medida em que este teorizava a ideia de Estado como ser natural anterior ao indivíduo, o que leva a conclusão de que o todo tem precedência sobre as partes13. Também Platão (427-347 a.C) já entendia, ao comparar o Estado ao homem, que o primeiro era uma ampliação do segundo. 13 Aristóteles formula o princípio constitutivo do organicismo sob o argumento de que “O Estado, ou sociedade política, é até mesmo o primeiro objeto a que se propôs a natureza. O todo existe necessariamente antes da parte. As sociedades domésticas e os indivíduos não são antes se não as partes integrantes da Cidade [...]”. (ARISTÓTELES, 1991, p. 4). volume 06 377 i encontro de internacionalização do conpedi A concepção organicista ainda se estendeu na Idade Média, através do pensamento escolástico representado, principalmente, por Santo Tomás de Aquino (1225-1274) que, no período da Alta Idade Média, apenas interpôs a essa ideia totalizante de Estado (ou sociedade natural) o elemento divino entre este e o homem, vindo tal dado novo a caracterizar o jusnaturalismo teológico ou organicista dessa época. Uma das primeiras e importantes refutações a esse tipo de concepção orgânica de sociedade veio através de Hobbes (2003), nos primórdios da era moderna. Ao afirmar que não é o impulso natural que leva o homem ao Estado mas, ao contrário, é o seu temor a outros homens que o leva a submeter-se a um ordenamento estatal, criado pelos mesmos homens, Hobbes desencadeou uma verdadeira inversão de valores na abordagem filosófica da época sobre a relação individuo-Estado. Com efeito, partindo este pensador da ideia de que o Estado é uma criação artificial posterior e diferenciada dos homens, germinam as raízes do jusnaturalismo individualista e racional que veio a caracterizar toda a Idade Moderna. Essa mudança paradigmática propiciada por Hobbes, onde se privilegia a ideia dos indivíduos precedendo a organização social, rompendo com o organicismo, é relevante por três motivos que podem ser constatados a partir dela: a) a sociedade somente pode ser tida como um fato natural tendo como pressuposto a existência dos indivíduos; b) possibilitou-se a concessão de espaço à ação independente do todo e o reconhecimento de uma distinção entre as esferas pública e privada (BOBIO, Norberto, 2005, p. 46); c) a existência da sociedade passa a ser fundamentada na garantia de direitos derivados dos interesses e necessidades dos indivíduos. Entre estes direitos encontra-se a própria liberdade, a qual somente existe por interesse dos indivíduos. E conforme já observado por Bobbio, “sem individualismo não há liberalismo” (BOBIO, Norberto, 2005, p. 16). As declarações de direitos, apresentadas durante os processos revolucionários do século XVIII, e que desempenharam importante papel de orientação política na formação das primeiras constituições, servem como suficiente parâmetro para que se observe a materialização teórica dos valores fundantes do constitucionalismo liberal. A declaração francesa de 1789, sem dúvida, foi a mais importante do período, não somente por que eclodira no centro da efervescência 378 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi do movimento revolucionário burguês daquele período, mas também em virtude do seu caráter universal, dirigindo seus anseios para além das fronteiras da França e da também da Europa. Por meio de um discurso que reconhecia ao indivíduo a detenção de direitos pré-estatais, fez-se uma declaração de direitos que proclamou numerosas liberdades e na qual “[...] o individualismo ocupa um lugar essencial, sendo que ela exclui qualquer corpo intermediário, qualquer grupo entre o indivíduo e a comunidade nacional [...]”(GILISSEN, 2001, p. 426), ou seja, entre o indivíduo e a nação. Esta declaração teve por objetivo o reconhecimento e asseguramento da ideia de liberdade em uma perspectiva do individuo, na qual fundamentalmente se assentou a nova ordem política e jurídica. Se o poder foi limitado para assegurar a liberdade, e esta tinha por fundamento e objetivo assegurar a emancipação do individuo, é decorrência lógica que a limitação do poder estatal – e, portanto o surgimento da Constituição -, tanto pela divisão do seu exercício, como pela redução ao mínimo das suas funções, teve por objetivo assegurar o exercício do individualismo burguês e, ao mesmo tempo, o freio a qualquer manifestação social que pudesse oferecer oposição ao exercício do individualismo, apanágio do liberalismo14. A tarefa acima exposta foi realizada sob o entendimento de que toda e qualquer organização, que buscasse regular qualquer conduta de cunho social deveria ser extirpada da sociedade, como forma de garantir a liberdade do indivíduo. Por consequência disto, a ordem jurídica estabelecida estimulou a erradicação de qualquer possibilidade de intervenção estatal nas relações sociais, que se apresentassem como obstáculo à nova organização econômica. A aversão à possibilidade de que os indivíduos sejam representados coletivamente, ou de que tenham uma vontade coletiva que não seja a própria vontade do Estado legislativo, aliada à fórmula de fracionamento do exercício do poder e delimitação rígida de suas funções estatais, foi utilizada para garantir 14 MATTEUCCI (1997), identifica que, para o iluminismo francês e para o utilitarismo inglês liberalismo significa individualismo e que “[...] por individualismo entende-se, não apenas a defesa radical do indivíduo, único real protagonista da vida ética e econômica contra o Estado e a sociedade, mas também a aversão à existência de toda e qualquer sociedade intermediária entre o indivíduo e o Estado; em consequência, no mercado político, bem como no mercado econômico o homem deve agir sozinho”. (MATTEUCCI, 1997, p. 689). volume 06 379 i encontro de internacionalização do conpedi a liberdade de contrato e de propriedade sem qualquer interferência e serviu perfeitamente às posições naturalistas de não regulamentação das relações econômicas e sociais. Este tipo de liberdade nada mais é do que a liberdade para contratar e para ser proprietário, conferida ao indivíduo na conformidade de agente econômico e sujeito (privado) da economia (NUNES, 2011, p. 18). Ficou demonstrado, assim, que o ideário liberal presente nas revoluções burguesas, o qual se apresentou como valor fundante do Estado de Direito na sua primeira versão histórica, teve como fundamento a garantia de exercício do individualismo burguês frente a suas necessidades e pretensões econômicas, sendo este seu principal objetivo. 4.a crise do invididualismo e a emergência dos direitos sociais A exacerbação individualismo levado até as suas últimas consequências, quando se torna um fim absoluto, conforme aconteceu durante todo o século XIX e início do século XX, possibilitou a consolidação de uma sociedade altamente desigual, notadamente, no seu aspecto de condições materiais de existência da maioria dos seus membros. Esta situação em que se fez do individualismo um dado único e absoluto de forma de vida social, somente foi possível com liberalismo levado aos seus extremos. Os axiomas do liberalismo como a tese de que a não regulamentação da economia e das relações sociais proporcionaria a todos os indivíduos as condições para desenvolvimento de uma vida material adequada e que, portanto, a tarefa principal do Estado seria a de garantir o livre mercado e a garantia da propriedade individual foram confrontados e posteriormente alterados pela própria realidade. Avelãs Nunes aponta para os seguintes fatores que levaram à falência do pressuposto liberal de organização social e econômica: [...] progresso técnico; aumento da dimensão das empresas; concentração do capital; fortalecimento do movimento operário (no plano sindical e no plano político) e agravamento da luta de classes; aparecimento de ideologias negadoras do capitalismo, que começaram a afirmar-se como alternativas a ele. (NUNES, 2011, p. 18). 380 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi A partir desse esgotamento e consequente crise do Estado liberal, derivados da não realização das promessas marcadas pela apoteose do liberalismo econômico e do individualismo, mas também estimulados pelo surgimento dos movimentos de caráter social e antiliberais empreendidos desde meados do século XIX na Europa, verificou-se uma mudança no comportamento estatal, não prevista e nem desejada quando do surgimento do constitucionalismo liberal. Esta foi assinalada pelo surgimento de uma legislação de caráter social15 que teve por objetivo abrandar as péssimas condições materiais de vida a que ficou submetida a grande maioria da população, notadamente operária, conforme esclarece GarcíaPelayo (GARCÍA-PELAYO, 1985). Em efecto, desde el último tercio del siglo XIX se desarrolló em los países más adelantados uma “política social” cuyo objetivo inmediato era remediar las péssimas condiciones vitales de los estratos más desamparados y menesterosos de la población. Se trataba, así, de uma política sectorial no tanto destinada a transformar la estructura social cuanto a remediar algunos de sus peores efectos y que no precedia, sino que seguia a los acontecimentos. (GARCÍAPELAYO, 1985, p. 18, destaque do autor). Direitos que tinham por objetivo o bem-estar da coletividade, e que não tinham como foco somente a garantia do agir individual, começam a ser declarados e positivados até adquirirem status de bens que requisitavam uma vinculação jurídica, que lhe permitisse a sua garantia e realização concreta, por meio de um compromisso estatal mais elevado. Se, em um primeiro momento, são feitas leis definidoras de direitos sociais, de que são exemplo: o direito à habitação; o direito à educação e o direito à saúde, posteriormente estes direitos passam a ser positivados nas constituições, iniciando-se pela constituição zapatista de 1917 no México e pela constituição de Weimar de 1919 na Alemanha. Esta mudança no comportamento político, com reflexos no âmbito jurídico, recebeu acompanhamento no plano econômico caminhando para um recrudescimento da ordem econômica liberal que deu lugar a um agir estatal interventor e propulsor de medidas econômicas. O 15 A partir de revoltas operárias e sob a influência de ideologias progressistas (Saint Simon, Proudhon, K. Marx, etc.) foram tomadas algumas medidas de carácter social a partir dos anos quarenta do século dezenove. (GILISSEN, 2001, p. 468). volume 06 381 i encontro de internacionalização do conpedi economista inglês John Keynes (KEYNES, 1992), desvencilhando-se do modelo liberal clássico de economia, mas mantendo as bases do sistema capitalista, propôs medidas de regulação fiscal e monetária, que influenciaram governos – de que é exemplo o do presidente Rosevelt nos Estados Unidos da América, por meio do estabelecimento do New Deal - e que tiveram por objetivo influenciar as políticas econômicas dos Estados capitalistas servindo de instrumento para conter o avanço socialista ocorrido depois da primeira guerra mundial16. Sem que se abandonassem os princípios elementares do liberalismo econômico, como por exemplo, de existência do regime de propriedade e de liberdade de contratação, o Estado passou a intervir nas relações produtivas, sendo ele o próprio o principal fomentador da atividade econômica, com o objetivo “[...] de reduzir a intensidade e a duração das crises cíclicas próprias do capitalismo, e motivadas pelo objetivo de salvar o próprio capitalismo [...]” (NUNES, 2011, p. 67). Ao mesmo tempo em que regulou as relações de produção existentes entre capital e trabalho por meio de uma legislação de proteção social. Esta situação foi o mais duro golpe nas concepções econômicas liberais clássicas que alardeavam a tese de que a economia deveria ser tida como uma ordem natural e que deveria ser afastada da atividade estatal, convertendo-se em uma mudança paradigmática que deu lugar à emergência do Estado social, e conforme esclarece Avelãs Nunes (2011) Desfeito o mito de que a sociedade civil (a ordem económica natural) garantiria por si própria a ordem social e a justiça social, o estado social veio traduzir e assumir a necessidade de intervir de forma sistemática na economia, deixando esta de ser, para o estado e para os cidadãos, um dado da ordem natural, para se tornar um objeto susceptível de conformação pelas políticas públicas. (NUNES, 2011, p. 32, grifo do autor). O Estado passou à condição de garantidor dos direitos declarados e reconhecidos, retirando-se da situação de inércia defendida pelos postulados do liberalismo e do individualismo, gerando duas situações decorrentes disto: 16 Conforme Alvin Harvey Hansen, professor de economia em Havard, o presidente dos Estados Unidos da América Harry Truman, sucessor de Franklin Rosevelt, confirmou que “Em 1932 o sistema de livre empresa privada estava próximo do colapso. Havia verdadeiro perigo de que o povo norte-americano adoptasse outro sistema”. (HANSEN, 1941, apud, NUNES, 2011, p. 47). 382 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi a) verificou-se um abandono do individualismo exacerbado como objetivo primordial do Estado, em decorrência do reconhecimento da legitimidade das organizações corporativas e também pela necessidade de intervenção estatal nas relações sociais. Esta situação abalou a noção de limitação do poder estatal por meio da minimização de suas funções; b) enfraqueceu-se a concepção de liberdade fundada no fracionamento do exercício do poder com rigidez na delimitação de funções repartidas, em virtude das transformações que levaram a uma complexidade das tarefas estatais, das múltiplas funções adquiridas, e da necessidade de uma atuação estatal coordenada com objetivo de garantir efetivamente os direitos conquistados. Esta tendência se consolidou a partir da segunda metade do século XX com o fortalecimento do estado de bem-estar social (Welfare State) na Europa, o qual tomou por tarefa, não somente a positivação dos direitos sociais, mas também a sua efetiva e concreta realização. Essa trajetória, marcada pelo pensamento keynesiano no âmbito econômico, com a adoção de uma política fiscal e monetária que pendulava inflação e emprego, com controle cambial (NUNES, 2011, p. 115), alargou o caminho para que houvesse uma atuação estatal no reconhecimento e positivação de direitos que vão além dos direitos individuais clássicos. Enquanto que, no âmbito teórico, o entendimento quanto à existência gerações de direitos, construídos sob a noção de cidadania, tem sua originalidade marcada na obra de Marshall (MARHALL, 1967, p. 66), que traça o seu desenvolvimento na consolidação dos direitos individuais, políticos e sociais e teve sequência no trabalho de Vasak (1979, Apud BONAVIDES, 1996, p. 517), o qual traça trajetória similar, em que inclui os direitos da fraternidade e da solidariedade, dividindo-os em gerações17 de direitos, também, já neste período, solidificaram-se nos Estados Unidos, na década de 1960, as chamadas ações coletivas, através das chamadas Class actions18. Estas com possibilidade de pretensões indenizatórias, por meio da Rule 23, as quais tiveram papel importante para o reconhecimento 17 Bonavides (1996, p.525), prefere o termo “dimensões”, no que é acompanhado por Sarlet (2004, p. 52.) 18 A class action do direito estadunidense é um procedimento em que uma pessoa, ou um pequeno grupo de pessoas, enquanto tal, passa a representar judicialmente um grupo maior ou classe de pessoas que compartilham entre si, um interesse comum. (FRIEDENTHAL; KANE; MILLER, 1985, p. 728). volume 06 383 i encontro de internacionalização do conpedi dos denominados direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, que passaram a possibilitar o procedimento judicial em que uma pessoa ou um grupo de pessoas representar um interesse, e relativo a direitos individuais ou sociais, que é comum a uma coletividade à qual pertencem. Foi o resultado concreto da atividade do próprio modelo econômico liberal o responsável pela desestabilização e consequente esfacelamento do ideário de inspiração iluminista e dos valores posteriores que o sustentaram abrindo-se a possibilidade para agregação de novos direitos. Entretanto, esta nova situação não desprezou os valores ligados à liberdade e ao individuo, mas abandonouse definitivamente as características de direitos quase absolutos e naturais que anteriormente foram concebidos pela via revolucionária no século XVIII, possibilitando o entendimento, agora definitivo, de que os direitos são produto da intervenção humana a partir de uma dada configuração política e social. 5. as concepções de estado e o constitucionalismo Os axiomas relativos ao funcionamento e alcance das funções do Estado Liberal, foram teorizados antes e durante a sua formação e consolidação. Um trabalho teórico intenso e de grande alcance fora desenvolvido no campo da filosofia da política e da economia com o objetivo de explicar e justificar o fenômeno do liberalismo e de moldar a estrutura estatal aos seus postulados. Por sua vez, a emergência dos direitos sociais e de sua configuração jurídica, derivada da nova situação social que derivou do processo dialético do próprio empreendimento do Estado Liberal, e que resultou em uma sociedade altamente desigual no aspecto material, impusera aos setores de pensamento e de ação social, empenhados em uma mudança nas relações sociais a tarefa de explicar e justificar os direitos sociais e de contribuir para a construção de uma estrutural estatal que seja adequada à efetividade destes direitos. Entretanto, a disputa política, travada não somente internamente nas sociedades estatais, mas também no âmbito internacional, demonstrou claramente que, no ambiente do sistema capitalista, não existe uma substituição dos direitos individuais pelos direitos sociais, e que também não restou evidenciada uma derrota dos direitos sociais pelos direitos individuais. A emergência dos direitos 384 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi sociais ao lado dos direitos individuais e também a possibilidade de identificar certos tipos de ordens jurídicas e políticas com o título de Estado social19, não significou e não significa o abandono ou substituição do Estado Liberal. Pelo contrário, o Estado Social deve ser tido como uma derivação do Estado Liberal dentro do conceito de Estado constitucional. Jorge Miranda (2005), de forma clara esclarece por quais motivos o Estado social de Direito não é senão uma segunda fase dentro do Estado constitucional (também chamado representativo ou de Direito): 1º) porque, para lá das fundamentações que se matêm ou se superam (iluminismo, jusracionalismo, liberalismo filosófico) e do individualismo que se afasta, a liberdade – pública e privada – das pessoas continua a ser o valor básico da vida colectiva e a limitação do poder político um objetivo permanente; 2º) porque continua a ser (ou vem a ser) o povo como unidade e totalidade dos cidadãos, conforme proclamara a Revolução francesa, o titular do poder político. (MIRANDA, 2005, p. 53). Sem abandonar os pressupostos do liberalismo político, como valor e como um direito, o Estado social tem seu embrião na remediação para os problemas derivados da experiência econômica liberal e, portanto, foi a resposta aos problemas derivados das contradições do modelo liberal de Estado. Neste sentido, conforme García-Pelayo argumenta Em términos generales, el Estado social significa historicamente el intendo de adaptación del Estado tradicional (por el que entendemos em este caso el Estado liberal burguês) a las condiciones sociales de la civilización industrial y postindustrial com sus nuevos y complejos problemas, pero también com sus grandes possibilidades técnicas, económicas y organizativas para enfrentarlos. (GARCÍA-PELAYO, 1985, p. 18). Inicialmente a experiência teve início na Alemanha com a Constituição de Weimar por meio do que é denominado por Avelãs Nunes como uma “solução de 19 Conforme Manuel García-Pelayo, formulação da expressão Estado Social, ou mais a ideia de Estado social de direito se deve a Hermann Heller, socialdemocrata e tratadista de teoria política e do Estado entre os anos vinte e trinta do século XX. (GARCÍA-PELAYO, 1985, p. 14 a17). volume 06 385 i encontro de internacionalização do conpedi compromisso” realizada após a derrota do movimento socialista (spartakista) em 1918, “[...] com o objetivo de refrear as aspirações revolucionárias de uma parte do operariado alemão [...]” (NUNES, 2011, p. 37). Esta solução compromisso representava um significativo avanço civilizatório enquanto que naquele momento, em outros Estados, a solução capitalista para o combate ao socialismo foi a implantação de regimes politicamente autoritários de tipo fascista20. Posteriormente à segunda guerra mundial o compromisso foi retomado, mas sob o novo modelo já descrito anteriormente que se configurou no denominado welfare state. É perceptível que este novo modelo de Estado social foi desenvolvido no período da denominada de guerra fria, quando acontecia uma similar disputa internacional entre os campos políticos socialista e capitalista que tivera vez durante as três primeiras décadas do século XX. Entretanto, o que se evidencia no estado de bem-estar social é que as tarefas relativas à garantia e efetividade de direitos individuais e sociais, passaram a conviver concomitantemente no campo prático e teórico conferindo aos direitos sociais não somente um caráter formal como o que lhes foram atribuídos durante a República de Weimar. 5.1. as classificações de estado de direito zagrebelsky e pérez luño Antes de tratar do aspecto que informa a existência de um caráter evolutivo quanto à efetividade dos direitos sociais, o qual acontece sob a percepção da existência de duas concepções de Estado – do Estado liberal e do Estado social -, é necessário esclarecer que podem ser encontradas na literatura jurídica, outras teorias que realizam uma demarcação diferente como, por exemplo, o faz Gustavo Zagrebelski (2007, p. 21 a 31), que enuncia e conceitua a existência de dois tipos de Estado: Estado de direito, típico do século XIX na Europa, e o Estado constitucional da atualidade. Na classificação de Zagrebelsky, o Estado de Direito indica um valor como eliminação da arbitrariedade no âmbito da atividade estatal, como oposição ao 20 Conforme Nunes, “Em outros países da Europa, o falhanço das tentativas revolucionárias inspiradas na revolução soviética ocorridas em 1918 e 1919 deu lugar à implantação de regimes de tipo fascista: Itália, 1922; Bulgária, 1923; Espanha (Gen. Primo de Rivera), 1923; Albânia, 1925; Polônia (Pilsudski), 1926.” (NUNES, 2011, p. 37). 386 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi Estado Absoluto, que tem representado historicamente os elementos básicos das constituições liberais e que tem na lei a centralidade e garantia subjetiva dos direitos, os quais teriam na Constituição somente uma dimensão objetiva de dever estatal. O Estado Constitucional, como contraponto ao Estado de Direito, é apresentado como uma transformação na concepção do Direito sob o entendimento de ter sido modificado o status hierárquico da lei, como limite de todo direito, a qual passa a se submeter à Constituição, bem como o desprendimento do conceito de direito da própria lei. Nas palavras de Zabrebelsky (2007) La ley, por primera vez em la época moderna, viene sometida a uma relación de adecuación, y por tanto de subordinación, a um estrato más alto de derecho estabelecido por la Constitución. (ZAGREBELSKY, 2007, p. 34).21 E completa Zagrebelsky que: Teniendo presentes los catálogos de derechos estabelecidos em Constituciones rígidas, es decir, protegidas contra el abuso del legislador, podemos distinguir uma doble vertiente de la experiência jurídica: la de lay ley, que expressa los interesses, las intenciones, los programas de los grupos políticos mayoritarios, y la de los derechos inviolables, directamente atribuídos por la Constitución como ‘patrimonio jurídico’ de sus titulares, independentemente de la ley. (ZAGREBELSKY, 2007, p. 51, destaque do autor). Esta concepção, em que estabelece a existência de um Estado de Direito e um Estado Constitucional feita por Zagrebelsky, não deve ser colocada de forma totalmente oposta à concepção que identifica a existência de um Estado Liberal e um Estado Social. Entretanto existem fatores que as vinculam e outros que as separam. O Estado de direito em Zagrebelsky se diferencia do Estado Liberal conceituado por Norberto Bobbio em um aspecto: apesar de entender não caber dúvida de que o Estado de Direito representa historicamente os elementos básicos das concepções constitucionais liberais, Zagrebelsky (2007, p. 23) concebe que, esta noção de Estado pode também ser compatível com orientações totalitárias, 21 Ainda, conforme Zagrebelski (2007), as constituições contemporâneas, em virtude de uma pulverização legislativa e heterogeneidade de seus valores, derivados de um pluralismo das forças políticas e sociais, cumprem uma função unificadora. volume 06 387 i encontro de internacionalização do conpedi “[...] apartándola de su origen liberal y vinculándola a la dogmática del Estado totalitário [...]”. Assim, o referido autor identificaria a existência de um modelo estatal, denominado Estado de Direito, podendo ser liberal politicamente e economicamente, e também autoritário politicamente e economicamente, sendo ainda possível a combinação destes fatores, mas que, em todos os casos a lei teria supremacia sobre a Constituição. Por este motivo utiliza um termo específico [...] Estado liberal de derecho [...] (ZAGREBELSKY, 2007, p. 23) para identificar aquilo que Bobbio denomina de Estado Liberal, entendido este como oposição ao totalitarismo em política e favorável ao minimalismo em economia22. Realmente é induvidoso que um Estado possa ser totalitário em política e liberal em termos econômicos, como se pôde perceber no decorrer da história e já observado anteriormente quanto aos regimes autoritários de caráter fascista, e também se reconhece a existência de experiências que combinaram limitação da liberdade individual com oposição ao liberalismo econômico como na experiência de alguns Estados socialistas. Quanto a isto há que se efetuar dois destaques. Primeiramente é preciso entender que o Estado que se apresenta como totalitário em política e liberal em economia deve ser concebido como um recurso do liberalismo econômico quando se encontra ameaçado, impondo uma anomalia ou imperfeição ao Estado Constitucional. Como já observado, a implantação de regimes desse tipo, geralmente se seguiram após tentativas revolucionárias de substituição do liberalismo econômico por regimes de economia planificada e com a abolição da propriedade privada e/ou estatização dos meios de produção, ou quando forças políticas e econômicas ligadas à defesa do sistema capitalista sentiram algum tipo de ameaça que colocasse em risco a economia liberal23. Ou seja, para defender o capitalismo, privilegia-se a liberdade econômica em detrimento da liberdade política. Em segundo lugar é necessário entender que a existência de Estados em que a falta de liberdade política não vem 22 Ver notas 11 e 12. 23 A crise do sistema capitalista no período entre guerras também teve como resposta a formação de Estados deste tipo na década de 1930 na Alemanha, Itália, Espanha e Portugal, com economia debilitada. (NUNES, 2011, p. 56). Também no pós segunda guerra, “[...] o recurso a regimes totalitários de tipo fascista foi uma solução corrente do imperialismo americano e dos seus aliados autóctones em vários países, especialmente na América Latina, desde o início dos anos 50 até a década de 80 do século passado”. (NUNES, 2011, p. 55). 388 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi acompanhada de liberdade econômica deve ser tida como a completa negação do tipo de Estado formado a partir das revoluções burguesas iniciadas no século XVIII. A compreensão e estudo destes dois tipos estatais não se enquadram no recorte teórico e metodológico analisados no presente trabalho. Ambos os tipos devem ser tidos respectivamente como anomalia e como negação do Estado Constitucional, e seja qual for a nomenclatura que se possa dar a eles, não devem merecer classificação no presente trabalho 24. Quanto às concepções relativas ao Estado Social e ao Estado Constitucional (demarcados por Zagrebelsky), para que seja possível indicar distinções é necessário fazer algumas considerações de carácter conceitual. Como já se demonstrou anteriormente, foi sob o entendimento político e filosófico, dos valores do individualismo e do liberalismo que surgiu o Estado constitucional, ainda vinculado exclusivamente à ideia de Estado de Direito, ou ainda de Estado Liberal. O surgimento dos direitos sociais e sua posterior positivação nas Constituições representou uma transformação efetiva na superestrutura do Estado Constitucional de tipo liberal – entretanto, sem que isto significasse um abandono completo do liberalismo. Por consequência desta transformação de característica material, o conceito de Estado constitucional também é levado a uma revisão e, portanto a uma mudança de paradigma. Sob a perspectiva acima colocada, o Estado Social deve ser entendido como uma segunda fase do Estado Constitucional. E é justamente neste momento que se passa a exigir uma subordinação da lei à Constituição, não como forma de garantia e efetividade dos direitos do indivíduo, pois estes já se asseguravam por meio do modelo jurídico-estatal existente. Não havia, desde o século XIX, uma preocupação com a garantia dos direitos individuais por meio da estrutura estatal do constitucionalismo liberal. O estado revolucionário fora montado e moldado a partir dos postulados do individualismo burguês que teve como sustentação a separação rígida do exercício das funções estatais e da mínima intervenção estatal nas relações sociais. A este momento Depois disto, com o advento do Estado 24 Este trabaho se realiza na forma de uma concepção jurídica no campo do constitucionalismo democrático sob o entendimento de que o princípio da soberania popular é, conforme definição de Canotilho (2003, p. 98), “[...] uma das traves mestras do Estado constitucional”. volume 06 389 i encontro de internacionalização do conpedi Social, caracterizado pela alteração das regras inscritas superestruturalmente no Estado Constitucional, a tarefa que se apresenta para buscar a efetividade dos novos direitos é a adequação dos instrumentos de interpretação e aplicação dos direitos, de forma a que não sejam usurpados por maiorias parlamentares eventuais, e que também independam destas maiorias para que sejam reconhecidos e aplicados. Zagrebelsky (2007, p. 33 e 34) indica como característica do que denomina [...] Estado constitucional [...], uma efetiva subordinação, formal e material, da lei à Constituição e um catálogo de direitos invioláveis diretamente atribuídos pela Constituição, independente de lei ordinária, e protegidos de eventuais maiorias políticas, opondo isto ao que denomina de [...] Estado de derecho legislativo [...] que se apresenta em uma situação histórica na qual, durante o século XIX, o positivismo jurídico acrítico foi a concepção de direito própria do Estado de Direito, tendo na instância legislativa a concentração da produção jurídica. Entretanto esta nova forma jurídica de interpretação, que se opondo à forma de interpretação jurídica clássica do liberalismo, privilegia a norma constitucional em detrimento da norma ordinária, não pode ser tida como uma mudança de paradigma que desencadeia um novo fenômeno concebido como Estado Constitucional. Vale dizer, como um novo tipo de Estado ou mesmo uma nova concepção de Estado que se contrapõe à de Estado de Direito (liberal ou autoritário em termos políticos). De forma diferente, entende-se que o Estado Constitucional já existente desde o final do século XVIII, sempre foi baseado no direito, e tem sua trajetória marcada de forma indelével pelo Estado Liberal e pelo Estado Social, devendo ser entendida a mudança paradigmática verificada por Zagrebelski como interna ao Estado Constitucional e derivada de fatores que apresentam características fundamentalmente econômicas e sociais, mas que exigem uma alteração na forma de compreender o papel jurídico a ser exercido pela Constituição. Ainda, se faz necessário esclarecer que outra conceituação de Estado constitucional, que se diferenciaria do Estado de Direito (assim designado o Estado Liberal) e do Estado Social, fora outorgada por Pérez Luño e observada por Cademartori (LUÑO, apud CADEMARTORI 2009, p. 31 e seg.) o qual resumidamente a estabelece por meio de dois elementos: 1) o deslocamento do princípio da primazia da lei e do controle jurisdicional da legalidade para o princípio da primazia da constituição e do controle jurisdicional da constitucionalidade; 2) 390 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi o reconhecimento de direitos difusos, como direitos de terceira geração. Quanto à caracterização feita pelo jurista espanhol Cademartori observa [...] é que todas as previsões constitucionais (de liberdades públicas individuais no Estado de Direito e direitos socioeconômicos e culturais no Estado social), enunciadas apenas em caráter formal, agora podem ser objeto de uma tutela jurisdicional, vale dizer, são justiciáveis, e isto se deveu, sobremaneira, a Kelsen. De fato, foi o jurista austríaco quem contribuiu de forma decisiva ao afirmar o protagonismo do Tribunal Constitucional como guardião da Constituição (Hutter der Verfassung) na sua polêmica com Carl Schmitt na etapa da República de Weimar, tendo isto ocorrido em 1931. (CADEMARTORI 2009, p. 32, grifo do autor). E resumindo as considerações de Luño: [...] o Estado Constitucional será identificado como Estado de Direito de terceira geração, assumindo o papel de delimitar o meio espacial e temporal de paulatino reconhecimento dos direitos de terceira dimensão, cujo conteúdo gira em torno de temas como a paz social, o direito às relações de consumo, a qualidade de vida e ou a liberdade ampla de informação (o que inclui, portanto, o meio virtual). Assim delimitam-se, então, direitos difusos, vale dizer, direitos que não possuem um destinatário específico, seja ele coletivo ou não, como marca preponderante de uma nova configuração estatal. (CADEMARTORI 2009, p. 33) Esta concepção não deixa de realizar a diferenciação entre Estado Liberal e Estado Social e, portanto, de levar em consideração a tipologia de direitos que são característicos destes dois modelos de Estado, respectivamente as denominadas liberdades públicas (direitos individuais) e os direitos socioeconômicos e culturais. Entretanto agrega um terceiro tipo de direitos que não apresentam destinatário específico e por isto recebem o nome de difusos, fazendo a partir disto a demarcação de um terceiro tipo estatal, que denomina Estado constitucional, cuja conceituação apresenta ainda o fator relativo á possibilidade de serem os direitos, agora em todas as suas dimensões, justiciáveis por meio da existência de um controle jurisdicional de constitucionalidade. Na mesma esteira da crítica feita anteriormente à proposição realizada por Zagrebelsky, entende-se que, não são relevantes os argumentos apresentados por Pérez Luño para que se demarque outro tipo de Estado. volume 06 391 i encontro de internacionalização do conpedi Como já se afirmou inicialmente, a instrumentalização jurídica que passa a conferir efetividade a novos direitos, seja por meio da transformação do modelo de jurisdição ou da adequação dos instrumentos de aplicação dos direitos, não pode ser tida como uma mudança de paradigma que cria o Estado Constitucional como um novo tipo de Estado deslocado do Estado de Liberal e do Estado Social. Deve ser ressaltado que, a ideia de que todas as previsões constitucionais enunciadas apenas em caráter formal devem passar a ser objeto de uma tutela jurisdicional é algo que se confunde com a uma pretensão apresentada a partir do esforço jurídico-hermenêutico para conferir efetividade aos direitos sociais. E a contribuição de Kelsen na formação do sistema de jurisdição constitucional europeu, que sem dúvida serviu de auxilio a esta pretensão, não pode ser a demarcadora da existência de um novo tipo de Estado denominado de Estado constitucional, uma vez que a jurisdição é somente instrumento, e por isto não define o conteúdo dos direitos, estes sim qualificadores do tipo estatal. Caso se tenha esta clara aferição pode-se cair em uma armadilha na qual, a cada novo tipo de mecanismo de controle de constitucionalidade que porventura se venha a ter no futuro, e que possibilite maior efetividade aos direitos, será possível uma nova definição de Estado. Quanto à emergência dos denominados direitos difusos como marca de um Estado de terceira geração e que identificaria um Estado constitucional, no qual os direitos não possuem um destinatário específico, configurando-se isto como sua marca preponderante, deve ser destacado que não há nada que diferencie estes direitos dos direitos individuais e dos direitos sociais que não seja o seu caráter processual. Esta afirmação encontra seu fundamento em duas observações que podem ser feitas a partir da análise do próprio entendimento realizado por Pérez Luño (2007) quanto aos direitos difusos e coletivos: a) os direitos colocados nas categorias de difusos e coletivos em virtude do seu conteúdo são na realidade desdobramento dos já consagrados direitos individuais ou sociais e a eles encontram-se submetidos: ao analisar descritivamente os direitos fundamentais na Constituição espanhola, Pérez Luño (2007, p. 196 e 197) reconhece junto aos direitos sociais de caráter laboral outros como o direito à saúde, e estreitamente vinculado a ele o propósito constitucional de assegurar a todos uma qualidade de vida digna por meio da defesa de um meio ambiente adequado, que guarda ainda uma íntima relação com direitos de caráter econômico e cultural. Também 392 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi se pode agregar a isto a observação de que outros direitos como, por exemplo, das relações de consumo25, estão diretamente vinculados à tutela do hipossuficiente nas relações contratuais do mercado, incidindo sobre a regulação da liberdade de contrato, questão típica dos direitos individuais. Este entendimento contribui para o reconhecimento de que direitos colocados na categoria de direitos difusos são na realidade desdobramento dos já consagrados direitos individuais e sociais; b) a ampliação da legitimação para a defesa de direitos fundamentais configura o reconhecimento do caráter coletivo dos direitos individuais ao lado dos direitos sociais como aperfeiçoamento dos meios para a defesa de interesses coletivos de direito individual ou social: Pérez Luño (2007) reconhece que entes coletivos podem tanto ser titulares de direitos sociais ou de direitos típicos da liberdade26, e como já observado, são nas próprias palavras do jurista espanhol que se pode encontrar o caráter jurídico-processual dos direitos difusos e coletivos Debe también tenerse presente que uno de los fenómenos más interessantes que registra la evoluación de la titularidade de los derechos fundamentales em los últimos años es la tendencia a ampliar la legitimación estrictamente individual para la defensa de intereses colectivos o difusos. La experiência de las décadas más recientes em matérias tales como el médio ambiente, la salud o la defensa de los consumidores há mostrado la conveniência de reconhecer a la generalidade de los ciudadanos la legitimación para defenderse de aquellas agresiones a bienes colectivos o interesses difusos que, por su propia naturaliza, no pueden contemplarse bajo la óptica tradicional de la lesión individualizada. De ahí 25 No Brasil a lei de Ação Civil Pública (Lei 7.347/85), com suas recentes alterações, regulou forma particular de tutela de interesses difusos. Diz seu “Art. 1º. Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: I - ao meio ambiente; II - ao consumidor; III - à ordem urbanística; IV - a qualquer outro interesse difuso ou coletivo; V - por infração da ordem econômica e da economia popular. 26 Conforme o autor “Em lo tocante a la titularidade hay que rechazar como simplista el planteamiento que la vincula em las libertades al hombre individual, y los derechos sociales a los grupos. Es cierto que titulares de derechos sociales pueden serlo, en ocasiones, los grupos em los que la persona se integra para el mejor logro de sus objetivos (asociaciones, sindicatos, colégios profesionales, etc.). Pero no es menos certo que también los entes colectivos pueden ser titulares de derechos personales (inviolabilidade del domicilio, libertad de expresión...), civiles (garantias procesales y pènales...) o políticos (participación de los partidos en el processo electoral...).” (LUÑO, 2007, p. 208). volume 06 393 i encontro de internacionalização do conpedi que se tienda a postular la admisión de formas de acción popular como medio idóneo para superar la concepción individualista del processo, permitiendo la iniciativa de cualquier interessado – individual o colectivo – em la protección de estos intereses. Tratase, em suma, de institucionalizar nuevos medios para la defensa jurídica de intereses que no se pueden considerar privativos de uma persona o de um grupo, por incidir em las facultades e intereses de los ciudadanos em su conjunto. (LUÑO, 2007, p. 208 e 209, grifos do autor). Para além disto, o reconhecimento de que existem direitos que pertencem a uma coletividade e também direitos difusos que são de interesse de todos indistintamente, inclusive do próprio Estado, conferindo às representações coletivas, além dos indivíduos, a legitimação para pleitear juridicamente estes direitos é, sem dúvida, a manifestação de um profundo golpe na concepção liberal clássica, vista anteriormente, de aversão à possibilidade de que os indivíduos sejam representados coletivamente, ou de que tenham uma vontade coletiva que não seja a própria vontade do Estado. Contudo, esse duplo caráter conferido aos denominados direitos difusos e coletivos, em que pese suas especificidades, também não constituem uma mudança paradigmática que possibilite a identificação de outro tipo de Estado além do Estado Liberal e do Estado Social por não se apresentar configurada uma mudança de caráter político e econômico que signifique uma marcante alteração nas relações políticas e sociais. Mas sem dúvida, o reconhecimento da existência dos direitos difusos, significa um profundo avanço teórico e operacional no desdobramento dos direitos fundamentais, além de possibilitar uma significativa ampliação quanto aos instrumentos jurídicos que possibilitam dar uma maior efetividade a estes direitos. 5.2.a distinção entre as concepções liber al e social de estado Retomando agora a abordagem relativa ao reconhecimento das concepções de Estado, de característica liberal e social, por meio da qual se concebeu que o Estado Liberal não tem no Estado Social uma total contraposição, podendo o segundo ser entendido como uma derivação do primeiro, representando ambos 394 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi uma derivação interna ao Estado Constitucional, passa-se ao entendimento relativo àquilo em que efetivamente ambos se diferenciam. É com base na importância conferida às categorias de direitos fundamentais27 do Estado que se torna possível identificar concretamente a diferença entre os dois modelos estatais. A partir do século XIX, é identificável a formação de pelo menos duas grandes concepções do Estado, as quais se podem denominar como: a) uma concepção liberal de Estado, não somente típica do século XIX, mas também presente nos séculos XX e na atualidade, como forma de asseguramento prioritário de direitos individuais clássicos, de que são exemplo a liberdade e propriedade, em detrimento dos direitos sociais; e b) uma concepção social de Estado, a qual não apresenta a garantia dos direitos individuais como único objetivo, mas que reconhece também os direitos sociais, a partir da experiência originada com sua positivação constitucional a partir da segunda década do século XX, em três fases: b.1) na primeira fase os direitos sociais como direitos não são tidos como fundamentais, e portanto encontram-se em patamar inferior aos direitos individuais. Esta fase da concepção social de Estado, se apresentou como inicial na transição que se fez a partir do Estado liberal e teve sua origem, mais bem definida, na Alemanha, em Weimar, por meio da constitucionalização dos direitos sociais em 191928, e assumindo abertamente a intervenção do Estado na economia, visando tanto a “racionalização da economia” como também a “transformação do sistema econômico” (NUNES, 2011, p. 37); b.2) na segunda fase, além da permanência da característica que concebe um poder de intervenção econômica do Estado, os direitos sociais passam a ser tidos como direitos fundamentais e, portanto, apresentam-se em posição igualitária aos direitos individuais, ou seja, com um mesmo regime jurídico. A partir da segunda 27 O termos “direitos humanos” e “direitos fundamentais” têm sido utilizados como sinônimos. Entretanto aqui se adota a distinção assinalada por Pérez Luño em que o termo direitos fundamentais são utilizados para designar direitos positivados a nivel interno, e direitos humanos para denominar os direitos positivados nas declarações e convenções internacionais. (LUÑO, 2007, p. 44). 28 Conforme Pérez Luño, “La Constitución de Méjico de 1917 puede considerarse como el primer intento de conciliar los derechos de libertad com los derechos socialis, superando así los polos opuestos de individualismo y del colectivismo. Pero, sin duda, el texto constitucional más importante, y el que mejor refleja el nuevo estatuto de los derechos fundamentales em trânsito desde el Estado liberal al Estado social de Derecho, es la Constitución germana de Weimar de 1919”. (LUÑO, 2007, p. 39) volume 06 395 i encontro de internacionalização do conpedi metade do século XX foi possível identificar sistemas jurídico-constitucionais que incorporam normativamente os direitos sociais, deixando-os no mesmo nível dos direitos individuais, dependendo do modo como foram sistematizados nos textos constitucionais de cada Estado, ou de como são interpretados pela comunidade jurídica; b.3) a terceira fase, se estabelece por meio do reconhecimento da legitimidade coletiva e difusa dos direitos fundamentais por meio de instrumentos jurídico-processuais que acabam por diluir a dicotomia estabelecida entre direitos individuais e sociais, possibilitando o reconhecimento da particularidade social de todos os direitos fundamentais. Portanto, as diferenças entre Estado liberal e Estado social, encontram-se relacionadas às duas concepções de Estado que lhes são correlatas: concepção liberal de Estado e concepção social de Estado, as quais se estabelecem sob o entendimento existente quanto ao aspecto econômico e social do Estado e também sob a identificação de qual é a característica de amplitude conferida aos direitos fundamentais. E assinalar a existência destas duas grandes concepções não significa afirmar que existam correntes teóricas homogêneas ou que transpassem décadas ou séculos sem modificação ou mesmo que exista um único modelo teórico que sustente cada uma delas. Bem mais do que isto, é possível uma variação teórica indeterminada quando se objetiva justificar ou implementar, por meio da atividade estatal, os valores de uma ou de outra concepção de Estado. Entretanto é possível identificar padrões que caracterizam, de forma geral, uma ou outra concepção teórica. Neste sentido, na delimitação dos contornos da concepção liberal de Estado, em Böckenförde (1993) percebe-se o entendimento de que efetivamente se construiu uma teoria liberal do Estado de direito burguês, relativa aos direitos fundamentais – fato este que serve de sustentação à afirmação da existencia de uma concepção liberal de Estado – como também encontram-se esclarecimentos quanto às características centrais dessa teoria Para la teoria liberal (del Estado de derecho burgués) de los derechos fundamentales, los derechos fundamentales son derechos de libertad del individuo frente al Estado. Se estabelecen para asegurar, frente a la amenaza estatal, ámbitos importantes de la liberdad individual y social que están especialmente expuestos, 396 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi según la experiencia histórica, a la amenaza del poder del Estado. (BÖCKENFÖRDE,1993, p.48). Observa-se claramente nessa definição uma centralidade dos direitos individuais, e mais especificamente a garantia de liberdade do indivíduo como preocupação central da concepção liberal de Estado. Em sentido oposto, o aprimoramento de uma concepção social de Estado, relativa aos direitos fundamentais, apresenta-se como contraposição ao significado dado a uma concepção liberal de Estado, o qual pode ser retirado das características acima expostas. Assim, a garantia de direitos não fica reduzida à liberdade do indivíduo frente à atuação estatal, como também não se admite uma absolutização de qualquer direito tido com fundamental. Na concepção social de Estado, a partir de sua segunda fase, os direitos sociais são colocados em regime de igualdade com os direitos individuais. E além disso, os valores básicos de um Estado liberal e democrático, como a liberdade, a propriedade, as dimensões da igualdade no seu aspecto formal, a segurança jurídica e a participação popular na formação da vontade estatal não somente estão protegidos em um Estado Social, como também este tem a pretensão de torna-los mais efetivos dando-lhes uma base e um conteúdo material. Isto tudo, partindo-se da suposição de que o individuo e a sociedade não são categorias apartadas e contraditórias, mas sim que apresentam implicações recíprocas, não podendo uma realizar-se sem a outra (GARCÍA-PELAYO, 1985, p. 26). Isto significa que, na concepção social de Estado os direitos individuais, assim como os direitos sociais, dependem da atuação objetiva concreta do Estado29. 29Nesta compreensão fica esclarecido que a concepção social de Estado não deve ser simploriamente confundida com uma concepção marxista de Estado. Sem dúvida, uma concepção social de Estado, marcadamente quanto aos direitos fundamentais, tem sua inspiração na concepção marxista de sociedade, dada a sua preocupação com a afirmação da igualdade substancial. Mas deve ser observado que não pode ser confundida com a marca do Estado Socialista, pois se realiza ainda nos marcos do sistema capitalista, e nunca teve por objetivo substituí-lo mas tão-somente torna-lo palatável, diminuindo sua índole de mau distribuidor da riqueza produzida e possibilitando respostas aos influxos socialistas. Neste sentido, como contribuição ao entendimento de que a concepção social de Estado, relativa aos direitos fundamentais não destituí a garantia dos valores liberais, esclarece Böckenförde “La idea de los derechos fundamentales sociales no aparece, vista así, como algo que se oponga a la garantia de la libertad del Estado liberal-burgués de Derecho, sino como su consecuencia lógico-material en una situación social modificada”. (BÖCKENFÖRDE, 1993. p.75). volume 06 397 i encontro de internacionalização do conpedi E se o Estado Social não substituiu o Estado Liberal, mas somente o aperfeiçoou, também é possível identificar que o Estado Liberal, em sua forma clássica, nunca deixou de existir efetivamente. Logo no surgimento do Estado Social em sua primeira fase é possível reconhecer, por meio da análise de textos constitucionais, que houve uma convivência, no mesmo período histórico, entre Estados liberais e Estados sociais, a qual se arrasta até os dias atuais30. Não resta dúvida de que a análise textual das constituições, quanto à forma pela qual se positivam os direitos fundamentais e se define seu regime jurídico é um elemento que permite e possibilita identificar Estados liberais e Estados sociais. Entretanto, não é somente o texto constitucional que determina este reconhecimento pelo intérprete. Fundamentalmente, é na submissão da interpretação constitucional a um dos tipos de concepção de Estado que se passa a reconhecer se este é de tipo liberal ou social. Por exemplo, isto signfica que a análise de uma Constituição repleta de direitos sociais, em convivência com direitos individuais – como é o caso da brasileira de 1988-, pode não resultar na identificação e reconhecimento de um Estado social, se a interpretação que se faz dela é realizada por meio de uma concepção liberal de Estado que diferencia o regime jurídico dos direitos individuais e sociais, possibilitando aos primeiros melhores condições para aplicabilidade jurídica. Da mesma forma, a análise de uma Constituição que textualmente não privilegia direitos sociais, como a estadunidense, pode, ainda, possibilitar a identificação e reconhecimento de um Estado social se - submetida a uma concepção social de Estado - realize uma interpretação que se desvincule hermeneuticamente do texto positivo e confira aos direitos sociais o caráter de fundamentais em regime jurídico de igualdade com os direitos individuais. 6.conclusões Existe, na literatura jurídica, uma indeterminação teórica sobre o que caracteriza e diferencia o Estado liberal, também denominado de Estado de 30 Exemplificando isso, por meio de uma análise dos textos constitucionais é possível verificar que, assim como o Brasil em 1934, países bálticos e alguns países do leste da Europa, foram influenciados pela Constituição de Weimar, o mesmo não ocorreu com países como Reino Unido, França (NUNES, 2011, p. 40) e também E.U.A. E na atualidade é possível identificar a existência de Estados sociais, cujas constituições receberam o influxo da concepção de Estado social a partir da sua segunda fase, de que temos exemplo as Constituições italiana de 1947, alemã de 1949, portuguesa de 1976, espanhola de 1978 e brasileira de 1988, as quais convivem temporalmente com a Constituição liberal dos E.U.A de 1787. 398 volume 06 i encontro de internacionalização do conpedi Direito, daquele que o sucedeu. É possível encontrar teses que exemplificam esta caracterização por meio da identificação de subordinação do direito e da lei à Constituição em oposição a uma subordinação do direito à lei, e também na identificação da emergência de um controle jurisdicional de constitucionalidade e no reconhecimento de direitos difusos e coletivos, oferecendo, nestes casos, a denominação de Estado Constitucional em contraposição a Estado Liberal. Estas teses não são essencialmente excludentes e não apresentam equívoco quanto á verificação de um caráter evolutivo na forma de garantia da realização dos direitos fundamentais, entretanto, desconsideram ou minimizam a importância do ambiente político e econômico que determina cada modelo de Estado em um determinado período ou lugar. O Estado Liberal não teve como sucessor o Estado Constitucional, mas é sim genese deste, por meio do qual se estabelece uma concepção – na qual a Constituição tem papel central - que reduz e limita o poder estatal por meio de uma divisão do seu exercício e da minimalização de suas funções econômicas e sociais frente à sociedade. O Estado Social, por sua vez, denuncia um rompimento paradigmático ocorrido dentro do Estado constitucional, como resultado da crise do liberalismo e da emergência dos direitos sociais, sem que se houvesse um total abandono dos direitos individuais. Neste sentido, o Estado Social apresenta-se como uma derivação do Estado Liberal dentro do conceito de Estado Constitucional. A identificação destes tipos de Estado, não se realiza exclusivamente por meio da análise interpretativa dos textos constitucionais que lhe dão suporte, mas fundamentalmente por meio de uma consequente subordinação interpretativa às concepções vinculadas respectivamente a cada um destes dois modelos de Estado, a concepção liberal de Estado e a concepção social de Estado. Neste sentido, a teoria do direito utilizada por uma comunidade jurídica auxilia uma correta interpretação do direito, caso esteja coadunada ao tipo de Estado ao qual se encontra submetido o ordenamento jurídico estatal, o qual, por sua vez, será determinado pela concepção de Estado adotada pelo intérprete. 7.referências BINETTI, Saffo Testoni. Iluminismo. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 10ª ed. vl. 1. 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