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Copyright © 2015 Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito
Todos os direitos reservados e protegidos.
Nenhuma parte deste livro, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios
empregados sem prévia autorização dos editores.
Produção Editorial: Equipe Conpedi
Diagramação: Marcos Jundurian
Capa: Elisa Medeiros e Marcos Jundurian
Impressão:
Nova Letra Gráfica e Editora Ltda.
CNPJ. nº 83.061.234/0001-76
Editora:
Ediciones Laborum, S.L – CIF B – 30585343
Deposito legal de la colección: MU 859-2015
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
E56p
Encontro de Internacionalização do CONPEDI (1. : 2015 : Barcelona, ES)
I Encontro de Internacionalização do CONPEDI / organizadores: Enoch Alberti
Rovira, Clerilei Aparecida Bier. – Barcelona : Ediciones Laborum, 2015.
V. 6
Inclui bibliografia
ISBN (Internacional): 978-84-92602-86-5
Depósito legal : MU 859-2015
Tema: Atores do desenvolvimento econômico, político e social diante do Direito
do século XXI
1. Direito – Estudo e ensino (Pós-graduação) – Congressos. 2. Direito
constitucional. 3. Direito internacional 4. Direitos humanos. I. Rovira, Enoch
Alberti. II. Bier, Clerilei Aparecida. III. Título.
CDU: 34
Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071
1º Impressão – 2015
EDICIONES LABORUM, S. L.
CIF B-30585343
Avda. Gutiérrez Mellado, 9 - 3º -21- Edif. Centrofama
Teléfono 968 88 21 81 – Fax 968 88 70 40
e-mail: [email protected]
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Conselho Fiscal
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3
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(Diretor de Educação Jurídica)
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Cep.: 88040-400
Florianópolis – Santa Catarina - SC
www.conpedi.org.br
4
Apresentação
Este livro condensa os artigos aprovados, apresentados e debatidos no
Iº ENCONTRO DE INTERNACIONALIZAÇÃO DO CONSELHO
NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO –
CONPEDI, realizado entre os dias 08, 09 e 10 de outubro de 2014, em parceria
com a Faculdade de Direito da Universidade de Barcelona – Espanha. O evento teve
como tema os “Actores del Desarrollo económico, político y social frente al Derecho
del siglo XXI”. Para o evento foram submetidos e avaliados mais de quinhentos
artigos de pesquisadores do Brasil e da Europa. Após as avaliações foram aprovados
em torno de trezentos artigos para apresentação e publicação.
O principal objetivo do evento foi o de dar início ao processo de
internacionalização e fundamentalmente, o de construir espaços para a inserção
internacional e divulgação de pesquisas realizadas pelos Pesquisadores dos
Programas de Pós-Graduação em Direito do Brasil, associados ao CONPEDI. A
realização deste primeiro evento procurou estimular o debate e o diálogo sobre
questões atuais do Direito envolvendo a realidade brasileira e espanhola.
Os artigos apresentados analisaram o papel dos “Actores del Desarrollo
económico, político y social frente al Derecho del siglo XXI” praticamente em todas
as áreas do Direito. Considerando a amplitude do tema, as diversas abordagens
e buscando uma aproximação entre as áreas de conhecimento optou-se pela
organização de seis grupos de trabalhos (GTs), que foram constituídos da seguinte
forma: a) Derecho Constitucional, Derechos Humanos e Derecho Internacional;
b) Derecho Mercantil, Derecho Civil, Derecho do Consumidor e Nuevas Tecnologías;
c) Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social; d) Derecho Administrativo, Derecho
Tributario e Derecho Ambiental; e) Teoría del Derecho, Filosofía del Derecho e
História del Derecho; f) Derecho Penal, Criminología e Seguridad Pública.
Além da promoção do intercambio entre as Instituições e profissionais da área
do Direito do Brasil e Europa, a possiblidade de ampliar e difundir a produção
cientifica no âmbito internacional e a melhoria dos indicadores dos Programas
de Pós-graduação brasileiros, com a realização do primeiro evento internacional
5
a atual Diretoria do CONPEDI também cumpre com um de seus compromissos
assumidos quando eleitos. A transcendência da realização deste primeiro evento
internacional para os pesquisadores brasileiros da área do Direito se reflete no
resultado final obtido. A publicação de 15 livros, através da Ediciones Laborum
da Espanha em parceria com o CONPEDI, com todos os artigos apresentados
e debatidos nos GTs representa uma expressiva conquista que trará importantes
resultados para os programas de Pós-graduação brasileiros e, fundamentalmente,
para a área do Direito.
Barcelona/Florianópolis, março de 2015.
Os Organizadores
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i encontro de internacionalização do conpedi
Sumário
Os Direitos Humanos, o Universalismo Interativo e o Dever de Solidariedade: Observações às Teorias de Justiça de Rawls e Habermas
José Alcebíades de Oliveira Júnior e Andressa Fracaro Cavalheiro............9
Parlamentarismo e Sistema Político-Constitucional Brasileiro: Uma
Boa Opção?
Anderson Santos dos Passos e Paula Veiga ..............................................35
Participação e Proteção dos Direitos Humanos na Implantação de
Políticas de Reurbanização: Um Estudo de Caso do Programa Polos
de Cidadania
Adriana Goulart de Sena Orsini e Nathane Fernandes da Silva..............69
Perspectivas do Acesso à Justiça ante a Chegada de um Novo Código
de Processo Civil
Lenio Streck e Lúcio Delfino..................................................................101
Políticas Públicas de Saúde para Idosos com Alzheimer em Persperctiva Internacional e Comparada
Célia Barbosa Abreu e Eduardo Manuel Val ..........................................127
Quando as Intenções Não Bastam: A Incongruência entre o Discurso
Parlamentar e o Perfil do Controle Concentrado de Constitucionalidade no Brasil
Alexandre Araújo Costa e Alexandre Douglas Zaidan de Carvalho..........161
Reflexão Epistemológica Sobre o Estudo da Constituição e do Constitucionalismo no Brasil
Monique Falcão e Ricardo Falbo............................................................195
Regularização Fundiária e as Favelas Cariocas. O Caso de Rio das
Pedras
Antonio Renato Cardoso da Cunha e Cláudia Franco Corrêa..................227
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i encontro de internacionalização do conpedi
Solidarismo Internacional e Globalização Sustentável: Análise da
Viabilidade do Intercâmbio Acadêmico na Educação Jurídica dos
Alunos da Universidade de Palermo (Itália) na Universidade de
Fortaleza (Brasil)
Dayse Braga Martins e Randal Martins Pompeu.....................................249
Técnicas de Decisão na Jurisdição Constitucional e a Garantia de
Direitos Fundamentais das Minorias pelo Stf
Ana Paula Oliveira Ávila......................................................................275
Tratados Internacionais: Soberania Versus Indivíduo
Luís Renato Vedovato e Daniel Francisco Nagao Menezes........................303
Uma “Boa” Jurisdição Constitucional
Cibele Fernandes Dias e Andrea Abrahão Costa......................................325
Uma Nação Entorpecida: Os Direitos Fundamentais das Pessoas
Portadoras de Deficiência Psiquíca no Brasil
Gabrielle Bezerra Sales..........................................................................349
Uma Proposta de Reconfiguracão das Concepções e Tipologia do
Estado Contemporâneo
Luiz Henrique Urquhart Cademartori e João Luiz Martins Esteves.........369
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volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
os direitos humanos, o universalismo
inter ativo e o dever de solidariedade:
observações às teorias de justiça
de r awls e habermas1
José Alcebíades de Oliveira Júnior2
Andressa Fracaro Cavalheiro3
Resumo
No presente trabalho são analisados aspectos dos direitos humanos, desde sua
configuração nos paradigmas liberal e social, até seu atual estágio na sociedade
pós-moderna. A partir disto, apresentam-se as diferenças entre o universalismo
substitucionista e o universalismo interativo, demonstrando-se a adequação deste
último na busca pela efetivação dos direitos humanos, notadamente quando
associado ao dever de solidariedade, entendido como constitutivo da própria
natureza humana. Assim, as teorias de justiça de Rawls e Habermas são analisadas
sob os pressupostos do universalismo interativo e do dever de solidariedade,
do que resulta observações acerca de suas insuficiências para compreensão da
sociedade pós-moderna, que plural, diversa e detentora de uma identidade cultural
ambivalente, precisa ter seus membros reconhecidos como sujeitos situados que
buscam pela efetivação dos seus direitos.
Palavras-chave
Direitos Humanos; Universalismo Interativo; Dever de Solidariedade; Teorias de Justiça.
1 Este trabalho é resultado das pesquisas desenvolvidas no primeiro semestre de 2014 com base
nas temáticas estudadas na disciplina de Sociologia Judiciária ministrada junto ao PPGDir/
UFRGS.
2 Doutor em Direito. Professor Titular na Faculdade de Direito da UFRGS, Brasil. Líder do
Grupo de Sociologia Judiciária do PPGDir/UFRGS. E-mail: [email protected]
3 Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Brasil.
Mestre em Direito. Professora Assistente na Faculdade de Direito da Universidade Estadual
do Oeste do Paraná – Unioeste, Brasil. Membro do Grupo de Pesquisa de Sociologia Judiciária
do PPGDir/UFRGS. Bolsista da Fundação Carolina. E-mail: [email protected]
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i encontro de internacionalização do conpedi
Abstract
This paper analyses the human rights aspects since its configuration in the
liberal and social paradigms, until its current stage in postmodern society.
Then are presented the differences between the substitutionist universalism
and the interactive universalism, demonstrating the suitability of the interactive
universalism for the realization of human rights, especially when combined with
the solidarity obligation, understood as constitutive of human nature itself.
Thus, the theory of justice of Rawls and Habermas are analyzed under the
assumptions of interactive universalism and solidarity duty, resulting in
appointments of its inadequacies in understanding the postmodern society,
which, being plural, diverse and holding a ambivalent cultural identity, must
have its members recognized as people that seek for the human rights realization.
Key words
Human Rights; Interactive universalism; Situated subject; Duty of Solidarity;
Theories of Justice.
1.introdução
É inegável que a positivação dos direitos humanos – então compreendidos
como fundamentais – foi uma grande conquista e trouxe inúmeros benefícios,
possibilitando não só sua exigência, mas trazendo garantias à sua concreção.
Todavia, ainda que no mundo ocidental a maior parte dos países tenha em
seu texto constitucional direitos humanos formalmente garantidos, é fato que
sua efetivação é ainda distante do ideal que todos buscamos. Todos os dias é
possível verificar a ocorrência de violação aos direitos humanos, em menor ou
maior escala, em países mais ou menos desenvolvidos.
Na luta pela sua efetivação, várias propostas tem sido apresentadas e vários
caminhos são traçados. Neste contexto, pretendemos trazer nossa contribuição,
demonstrando como a adoção do universalismo interativo em substituição ao
universalismo substitucionalista pode, em conjunto a revisão das teorias de justiça
e reconhecendo a solidariedade e suas virtudes, como um dever moral, apontar
um novo caminho para satisfação plena dos direitos humanos na sociedade pósmoderna.
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2.fases evolutivas de uma mesma moeda: os direitos
humanos
Os direitos humanos, pode-se afirmar com Bobbio, são produtos da história,
constituindo uma classe variável, como bem demonstra a história dos últimos
séculos. Por isso é que o elenco dos direitos humanos modificou-se, e continua
a modificar-se, em virtude das condições históricas que podem ser entendidas
como as carências e os interesses das classes do poder, os meios disponíveis para
a realização dessas carências e interesses e, entre outras coisas, as transformações
técnicas havidas na sociedade. Para confirmar-se tal fato, basta lembrar-se de
direitos que declarados absolutos no final do século XVIII (propriedade, por
exemplo), foram submetidos à limitações nas declarações contemporâneas. Do
mesmo modo, direitos que sequer foram mencionados (ou mesmo pensados) nas
declarações deste período, são hoje reconhecidos e exigíveis, como é o caso dos
direitos sociais4. Em suas palavras exatas,
[...] os direitos humanos são o produto não da natureza, mas
da civilização humana; enquanto direitos históricos, eles são
mutáveis, ou seja, suscetíveis de transformação e ampliação.
[...] O desenvolvimento dos direitos do homem passou por três
fases: num primeiro momento, afirmaram-se os direitos de
liberdade, isto é, todos aqueles direitos que tendem a limitar o
poder do Estado e a reservar para o indivíduo, ou para os grupos
particulares, uma esfera de liberdade em relação ao Estado; num
segundo momento, foram propugnados os direitos políticos,
os quais – concebendo a liberdade não apenas negativamente,
como não-impedimento, mas positivamente, como autonomia –
tiveram como consequência a participação cada vez mais ampla,
generalizada e frequente dos membros de uma comunidade
no poder político (ou liberdade no Estado); finalmente, foram
proclamados os direitos sociais, que expressam o amadurecimento
de novas exigências – podemos mesmo dizer, de novos valores –,
como os do bem-estar e da igualdade não apenas formal, e que
poderíamos chamar de liberdade através ou por meio do Estado.5
(destaques no original).
4 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Campus, 1992. p. 18.
5BOBBIO, op. cit., p. 32.
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Nos dá Bobbio, portanto, uma bela introdução às fases históricas dos direitos
humanos, correspondentes, por óbvio, às diversas configurações do próprio
Estado e sua cultura política. Assim, por exemplo, para a cultura medieval o povo
é uma realidade já dada e espontaneamente ordenada, não reduzível a uma soma
de indivíduos abstratamente iguais, posto que sua identidade político-administrativa é obtida por meio dos vínculos que o ligam às comunidades, corporações,
hierarquias. Já na cultura democrática inaugurada com a modernidade, vigora
o paradigma do direito natural que, entre os séculos XVII e XVIII, através da
ficção do “estado de natureza”, fragmenta a relação obrigatória entre o indivíduo
e os corpos, entre o indivíduo e as hierarquias, considerando o sujeito titular de
direitos fundamentais, fazendo com que a fundação da ordem política dependa
da decisão contratual de sujeitos por natureza livres e iguais. O protagonista é o
indivíduo, com seus direitos-poderes invioláveis6.
Na modernidade é possível dividir a trajetória histórica dos direitos humanos
em duas grandes fases, correspondendo, reciprocamente, ao Estado Liberal e ao
Estado Social. Neste sentido, cabe não olvidar que a história dos direitos humanos retrata, antes de tudo, o percurso de uma ideia que brotou e se desenvolveu
na civilização ocidental. Tais direitos são a tradução normativa de uma cosmovisão
que remonta, essencialmente, à filosofia iluminista, razão pela qual há contestação quando ao caráter universal dos direitos humanos, que, ao serem impostos
a civilizações que não partilham da tradição cultural ocidental, constituem-se
violência ante à autodeterminação dos povos7.
No paradigma liberal ocorreu o processo de positivação dos direitos humanos,
fruto da necessidade de incorporação ordenamento jurídico dos direitos tidos por
inerentes ao homem. É a positivação dos direitos humanos. Dentro do paradigma
liberal, a positivação havida resulta da fórmula utilizada para a racionalização e a
legitimação do poder pelo iluminismo e, considerada a lógica jurídica dominante
à época, a única forma de garantir fossem tais direitos objeto de proteção por
parte do Estado. Obviamente que esta é uma lógica perversa, na medida em
6 COSTA, Pietro. Soberania, representação, democracia: ensaios de história do pensamento
jurídico. Curitiba: Juruá, 2010. p. 214.
7 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2004. p. 19.
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que considera que direitos não normatizados juridicamente não são passíveis de
proteção.
No Estado Liberal estabeleceram-se os chamados direitos de primeira dimensão, fruto das lutas travadas entre a burguesia e o Estado absolutista, marcadas pelo ideal do jusntauralismo, do racionalismo iluminista, do contratualismo
e do liberalismo, baseando-se no princípio da liberdade. Entendidos, neste
primeiro momento, como direitos inerentes à individualidade, atributos naturais
do homem, são inalienáveis e imprescritíveis. São, conforme constata Alexy,
destinados, em primeira instância a proteger a esfera de liberdade ou do indivíduo
contra intervenções dos Poderes Públicos; são direitos de defesa do cidadão contra o Estado.
Apesar dos inegáveis progressos que os direitos liberais trouxeram para a
humanidade, a realidade mostrava a sua insuficiência para assegurar a dignidade
humana8. O processo de industrialização, ocorrido a partir do final do século
XVIII, realizado sob a lógica do mercado, acentuou o quadro de exploração do
homem pelo homem, com a concentração de renda e dos meios de produção
nas mãos de uma parcela ínfima da sociedade. Neste aspecto, revelava-se uma
indisfarçável divisão de classes e tornava-se explícito o fato de que a maioria das
pessoas achava-se alijada do sistema e desamparada por um Estado absenteísta.
Com a revolução industrial surgiu na sociedade um cidadão até então
desconhecido: o trabalhador das fábricas. Com as fábricas, vieram as máquinas
que causavam o desemprego, obrigando os trabalhadores a viver em condições
de miserabilidade, em habitações insalubres, cercadas por oficinas e em terrenos
pantanosos, realizando jornadas excessivas de trabalho. O trabalho infantil
e feminino foi incorporado pelo mercado, colaborando para uma diminuição
ainda maior da remuneração percebidas pelos trabalhadores, aumentando,
exponencialmente, os lucros da classe dominante.
Uma passagem da obra de Engels ilustra bem a situação:
A própria concentração das populações nas grandes cidades já
exerce uma influência muito desfavorável; a atmosfera de Londres
8SARMENTO, op. cit., p. 31.
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i encontro de internacionalização do conpedi
não poderá ser tão pura, tão rica em oxigênio como a de uma região
rural; dois milhões e meio de pulmões e duzentas e trinta mil casas
amontoadas numa superfície de três ou quatro milhas quadradas
consomem uma quantidade considerável de oxigênio que só
muito dificilmente se renova por que a maneira como as cidades
estão construídas torna difícil o arejamento. O gás carbônico
produzido pela respiração e pela combustão permanece na ruas
devido à densidade e porque a principal corrente de ventos passa
por cima de todas as casas [...] Toda a matéria animal e vegetal que
se decompõe produz gases incontestavelmente prejudiciais à saúde
e se estes gases não têm saída livre, envenenam necessariamente a
atmosfera. O lixo e os charcos que existem nos bairros operários
das grandes cidades representam pois um grave perigo para a saúde
pública, precisamente porque produzem estes gases patogênicos; o
mesmo acontece com as emanações dos cursos de água poluídos.
Mas não é tudo, ainda há mais. A maneira como a sociedade
actual trata os pobres é verdadeiramente revoltante9.
Dada esta realidade, surgem inúmeras críticas ao liberalismo econômico,
donde surgiu e se nutria o capitalismo selvagem. O marxismo, o socialismo utópico e a doutrina social da Igreja, ainda que sob perspectivas distintas, questionavam
o individualismo exacerbado do constitucionalismo liberal. Assim, com o passar
do tempo, foi se consolidando a convicção de que o efetivo desfrute dos direitos
individuais dependia, necessariamente, de garantir minimamente as condições de
existência para cada ser humano10.
Assim, já na primeira metade do século XIX, a Inglaterra criava as primeiras
normas sociais para proteger o trabalhador e minimizar os nefastos impactos
da Revolução Industrial sobre a classe operária. Na Alemanha, nas décadas de
60 e 70 também do século XIX, Bismark, pretendendo impedir os avanços dos
socialistas e alcançar alguma paz social, esboçava uma legislação de proteção ao
trabalhador e de assistência social. Em 1917 eclodiu a Revolução Russa e, 40
anos mais tarde, um terço da humanidade vivia em regimes diretamente derivados
do modelo soviético de apropriação coletiva dos meios de produção. O medo
de revoluções semelhantes ocorrerem em países desenvolvidos, diminuiu as
9 ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Tradução de Rosa
Camargo Artigas e Reginaldo Forti. São Paulo: Global, 1985. p. 116/117.
10SARMENTO, ob. cit., p. 31 e 33.
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resistências na transição do Estado Liberal para o Estado Social (ou do Bem-Estar
Social), associado à extensão paulatina do direito do sufrágio a parcelas cada vez
maiores da população, permitindo que mudanças também viessem a ocorrer no
universo normativo11.
Surge então, na virada do século XX, o Estado do Bem-Estar Social, e com
ele a consagração constitucional de novos direitos que, por seu turno, demandam
prestações estatais destinadas à garantia de condições mínimas de vida para a
população. Está-se tratando, portanto, do advento dos direitos sociais que, de
acordo com Luño,
[...] tienen como principal objeto asegurar la participación en
la vida política, económica, cultural y social de las personas
individuales, así como de los grupos en los que se integran.
Gurvich los definió, en fórmula que puede considerarse clásica,
como ‘derechos de participación de los grupos y de los individuos,
derivados de su integración en colectividades y que garantizan el
carácter democrático de éstas’. Esta definición permite advertir
los caracteres más salientes de los derechos sociales. Así, pueden
entenderse tales derechos, en sentido objetivo, como el conjunto
de las normas a través de las cuales el Estado lleva a cabo su
función equilibradora de las desigualdades sociales. En tanto que,
en sentido subjetivo, pueden entenderse como las facultades de los
individuos y de los grupos a participar de los beneficios de la vida
social, lo que se traduce en determinados derechos y prestaciones,
directas o indirectas, por parte de los poderes públicos.12
Estabelecidos os paradigmas dos direitos humanos nos Estados Liberal e
Social, necessário se faz abordar sua concepção contemporânea. Neste sentido,
considerando uma pluralidade de significados, optamos por destacar a concepção
introduzida pela Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, nascida
como resposta às atrocidades e horrores praticados durante a Segunda Guerra
Mundial.
Neste contexto, e sendo necessária a reconstrução do valor dos direitos humanos como um paradigma e referencial ético, surge a Declaração como um código
11SARMENTO, ob. cit., p. 33
12 LUÑO, Antonio-Enrique Pérez. Los derechos fundamentals. 8. ed. Madrid: Tecnos, 2005. p. 184.
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de princípios e valores universais a serem respeitados pelos Estados. A Declaração
Universal de Direitos Humanos demarca uma concepção inovadora de que os direitos humanos são direitos universais, cuja proteção não deve se reduzir ao domínio
reservado do Estado, porque revela tema de legítimo interesse internacional13.
A Declaração de 1948 consagra a ideia segundo a qual os direitos humanos
compõem uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, na
qual os direitos civis e políticos são conjugados com os direitos econômicos,
sociais e culturais (acepção ampla dos direitos sociais14), introduzindo, assim,
extraordinária inovação ao combinar o discurso liberal da cidadania com o
discurso social, elencando tanto direitos civis e políticos quanto direitos sociais,
econômicos e culturais. A Declaração Universal atribui aos direitos humanos o
caráter de unidade indivisível, inter-relacionada e interdependente15.
Assim, também a Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993, afirma,
no item 5, de sua primeira parte, que
todos os Direitos do homem são universais, indivisíveis,
interdependentes e interrelacionados. A comunidade internacional
tem de considerar globalmente os Direitos do homem, de forma
justa e equitativa e com igual ênfase. Embora se devam ter sempre
presente o significado das especificidades nacionais e regionais
e os antecedentes históricos, culturais e religiosos, compete aos
Estados, independentemente dos seus sistemas político, económico
e cultural, promover e proteger todos os Direitos do homem e
liberdades fundamentais.16 Deste modo, a concepção contemporânea de direitos humanos engloba o
alcance universal destes direitos e a unidade indivisível e interdependente que
assumem. Os Estados, portanto, devem garantir sua implementação e efetividade,
porque indispensáveis à própria existência digna dos cidadãos.
Entretanto, ainda que se deva considerar este um dever do Estado, é preciso
reconhecer que ainda estamos longe de seu cumprimento integral, sendo neces13 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad, 2003. p. 92.
14LUÑO, ob. cit., p. 184.
15PIOVESAN, ob. cit., p. 92/93.
16 DECLARAÇÃO DE VIENA. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/
viena/viena.html.> Acesso em 13 de junho de 2013.
16
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i encontro de internacionalização do conpedi
sário pensar-se em alternativas para garantir efetividade aos direitos humanos,
nesse que se pode chamar de período pós-moderno, onde, nos dizeres de Bauman,
a racionalidade moderna, na busca pelo “único” se deparou com o “múltiplo”,
com o diverso, com a ambivalência. A pós-modernidade, prossegue, nada mais é
do que a superação da condição moderna da existência humana.17
Por isso, enquanto na modernidade o que víamos eram direitos humanos
formais, para sujeitos abstratos e buscando uma igualdade formal, na pósmodernidade, temos uma identidade cultural, um sujeito situado e a busca por
uma igualdade material.
Sobre os direitos humanos na pós-modernidade, as reflexões trazidas por
Santos18 nos parecem pertinentes, razão pela qual, perfunctoriamente, as
trazemos à lume. Assim, para este autor, os direitos humanos configuram-se em
uma das principais promessas do projeto da modernidade e uma das que obteve
maior grau de realização. Todavia, esse maior grau de realização não significa sua
efetividade ou concretização verdadeiramente universal, enquanto experimentada por todos, em todos os lugares. É necessário reconhecer-se sua falta de
efetivação. Para o autor, essa falta de completa efetivação se deve ao fato de que os
direitos humanos, por encontrarem-se ancorados na jurídica estatal, partilham
da crise do direito e da crise do Estado. A solução ao problema residiria no que
chama de uma concepção pós-moderna dos direitos humanos, assentada em duas
questões: a primeira relativa à natureza e ao âmbito dos direitos humanos por
que se deve lutar, e a segunda, concernente aos tipos e objetivos das lutas que se
devem empreender.
Em relação à natureza e ao âmbito dos direitos humanos, propõe predomine
um pensamento de emancipação concreta, um pensamento contextual que
embora não recuse o caráter utópico dos direitos humanos, exija que sua utopia,
por mais radical, se traduza num quotidiano diferente, num novo modo vida
mais autêntico, onde ocorra uma verdadeira revalorização da sociologia dos
direitos humanos. Onde se exija que a eficácia das declarações de direitos huma17 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p.
244
18 Reflexões concentradas na obra SANTOS, Boaventura de Sousa. Os direitos humanos na pósmodernidade. n. 10, Coimbra: Oficina do Centro de Estudos Sociais, 1989. p. 1-14.
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17
i encontro de internacionalização do conpedi
nos não seja apenas simbólica, mas real; onde se exija sejam os direitos humanos
efetivamente aplicados. Para isso, há que se traçar o caminho inverso ao traçado
pela modernidade: deve-se trivializar o direito e sacralizar os direitos.
No que tange aos tipos e objetivos das lutas pelos direitos humanos a
serem empreendidas, afirma que reclamam um novo internacionalismo, um
internacionalismo de cidadania e uma concepção cada vez menos resignada com
a mera promulgação dos direitos humanos, e cada vez mais atenta às práticas
quotidianas em que se satisfazem efetivamente as necessidades básicas. Estas
necessidades básicas não se reduzem somente às necessidades materiais, mas
também às necessidades afetivas e expressivas, aquelas cuja satisfação nos confere
um sentido e um lugar no mundo, num mundo de cidadãos. Por isso os novos
movimentos sociais, assentes nos princípios da democracia de base, da autogestão, do direito à diversidade e à individualidade, da autonomia local e regional,
da desprofissionalização e da descentralização, desempenham um relevante papel.
De nosso lado, entendemos que uma das alternativas para a efetivação dos
direitos humanos na pós-modernidade passa pela reformulação das teorias de
justiça, que ao ancorar-se em sujeitos concretamente situados, podem traduzir
o dever de solidariedade e dar aos direitos humanos não mais um universalismo
substitucionista, mas interativo. Comecemos, então, com as questões relativas ao
sujeito situado e à solidariedade, objetos do nosso próximo item.
3. o sujeito situado e a solidariedade
Nosso esforço neste item estará concentrado em desenvolver os pressupostos
para uma análise das teorias de justiça abordadas no item 4, o fazendo pelo
desenvolvimento das ideias do universalismo interativo em contraposição ao
universalismo substitucionalista.
Para entendermos o significado destes termos, recorramos a Benhabid:
Quiero distinguir el universalismo sustitucionalista del
universalismo interactivo. El universalismo interactivo reconoce la
pluralidad de modos de ser humano, y diferencia entre los humanos,
sin inhabilitar la validez moral y política de todas estas pluralidades
y diferencias. Aunque está de acuerdo en que las disputas
normativas se pueden llevar a cabo de manera racional, y que la
18
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i encontro de internacionalização do conpedi
justicia, la reciprocidad y algún procedimiento de universalidad
son condiciones necesarias, es decir son constituyentes del punto de
vista moral, el universalismo interactivo considera que la diferencia
es un punto de partida para la reflexión y para la acción. En este
sentido la ‘universalidad’ es un ideal regulativo que no niega nuestra
identidad incardinada y arraigada, sino que tiende a desarrollar
actitudes morales y a alentar transformaciones políticas que puedan
conducir a un punto de vista aceptable para todos. La universalidad
no es el consenso ideal des selves definidos ficticiamente, sino el
proceso concreto en política y en moral de la lucha de los selves
concretos e incardinados que se esfuerzan por su autonomía.
Assim, em linhas gerais, temos que no universalismo interativo consideram-se as diferenças, que servem como ponto de partida para a reflexão e para a
ação. O que se pretende, então, é uma universalidade que seja um ideal regulativo
que não negue as identidades individuais, mas que desenvolva atitudes morais
e fomente transformações políticas que possam conduzir a um ponto de vista
realmente aceitável para todos.
O universalismo interativo ancora-se em raciocínios de seres humanos
con-cretos, situados, com uma história e uma identidade em construção. No
universalismo interativo a elaboração moral reconhece a contingência. Por isso,
assevera Toldy que o universalismo interativo supõe, pois, o reconhecimento
da existência de uma pluralidade de pontos de vista morais, o ideal moral
da reversibilidade de posições, isto é, o esforço de se colocar na posição do
outro, e ainda a superação de uma noção de outro generalizado, em prol da
consciencialização de que o outro é concreto19.
Segundo Toldy, Seyla Benhabib define o ponto de vista do outro generalizado
como aquele que parte do pressuposto de que cada indivíduo é uma pessoa moral
dotada dos mesmos direitos morais que nós, uma pessoa moral que também é
um ser racional e que age, capaz de um sentido de justiça ou de formular uma
visão do bem, bem como de se comprometer numa ação que conduza ao mesmo.
Por seu turno, o ponto de vista do outro concreto é aquele que nos permite ver
19 TOLDY, Maria Tereza Leal de Assunção Martinho. Da ética do cuidar ao universalismo
interativo. In: Agregação-Interação, s/n., 2010, p. 15. Disponível em: <http://bdigital.ufp.pt/
bitstream/10284/3234/3/LIÇÃO_TToldy.pdf>. Acesso em 15 de junho de 2014.
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i encontro de internacionalização do conpedi
todas as pessoas morais como indivíduos únicos, com uma determinada historia
de vida, com determinadas disposições e dotes, assim como com determinadas
necessidades e limitações20.
O universalismo interativo busca, assim, o ponto de vista do outro concreto,
onde seja possível ver o sujeito como um indivíduo único, com necessidades e
limitações determinadas, com disposições específicas, com uma determinada
história de vida. É uma mudança de paradigma, portanto. É deixar de ver o
outro generalizado e passar a considerar o outro concreto. Neste diapasão, vai o
pensamento de Meyers, senão vejamos:
La visión del sujeito moral que actualmente domina la discussión
en la filosofia moral y política es una visión legalista [...] Con
tal de hacer manejable el problema de la distribución social de
bienes, se marginan las idiossincrasias personales, los profundos
lazos interpersonales y las afiliaciones culturales, y se enumera
un conjunto de interesses humanos universales que pueden ser
equitativamente satisfechos. En consecuencia, el yo es visto como
ampliamente independiente, transparente y racional. Pero esta
concepción del sujeto moral guarda muy poca similitude con la
gente que conocemos y estimamos21.
Deste modo, ao assumir o ponto de vista do outro concreto, fazemos abstração
do que constitui o comum. Tentamos compreender as necessidades do outro, suas
motivações, o que busca e quais são seus desejos. Neste caso, assinala Benhabib,
Nuestra relación con el otro es regida por las normas de equidad y
reciprocidad complementaria, cada cual tiene el derecho a esperar
y suponer de los otros formas de conducta por las que el otro
se sienta reconocido y confirmado en tanto que ser individual
y concreto con necesidades, talentos y capacidades específicas.
en este caso nuestras diferencias se complementan en lugar de
excluirse mutuamente. Las normas de nuestra interacción suelen
ser privadas, no institucionales. Son normas de amistad, amor
y cuidado. Estas normas exigen de varias formas que yo exhiba
20Ibidem, passim.
21 MEYERS, D.T. apud PALMERO, María José Guerra. ¿Tiene género la Justicia? Notas sobre
el androcentrismo como tácita antropología normative. In: BLASCO, Pedro Luis. La justicia
entre la moral y el derecho. Madrid: Trotta, 2013. p. 128.
20
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algo más que la simple afirmación de mis derechos y deberes de
cara a tus necesidades. Al tratarte de acuerdo con las normas de
amistad, amor y cuidado, no sólo confirmo tu humanidad sino tu
individualidad humana. Las categorías morales que acompañan a
tales interacciones son responsabilidad, vinculación y colaboración.
Los sentimientos morales correspondientes son amor, cuidado y
simpatía y solidaridad 22.
Amizade, amor e cuidado, portanto, seriam condições para confirmar a
humanidade e a individualidade humana e, por isso, cada um teria o direito de
esperar dos outros formas de conduta pelas quais se sinta reconhecido de acordo
com sua individualidade, suas necessidades, talentos e capacidades específicas.
As interações sociais seriam acompanhadas pela responsabilidade, vinculação
e colaboração, enquanto categorias morais, ao que corresponderia o amor, o
cuidado e simpatia e a solidariedade.
Sendo nosso escopo a análise de teorias de justiça, e considerando a
solidariedade como elemento da interação social havida com o outro concreto,
vejamos como justiça e solidariedade se relacionam, tomando por base o conceito
de solidariedade de Pedro Luis Blasco23.
Ainda que as elaborações teóricas dos últimos tempos tenham se detido mais
sobre as questões de Justiça, Blasco nos informa sobre um novo caminho que
insiste na solidariedade dos seres humanos e na necessária proteção e garantia dos
direitos humanos dos mais débeis, desprotegidos e marginalizados.24
Assim, pretende Blasco, dar à solidariedade uma concepção sistemática, mais
razoável e melhor embasada, atribuindo a ela uma consistência maior e uma
fundamentação mais finalista. Para o autor, a solidariedade é uma virtude moral e
não somente um fato sociológico, com a dimensão política que lhe é inerente, ou
apenas um elemento importante da psicologia humana25. Para ele,
22BENHABIB, Seyla. El otro generalizado y el otro concreto. In: BENHABIB, Seyla e
CORNELL, Drucilla (Comps.) Teoría Feminista y Teoría Crítica. Valencia: Ediciones Alfons
el Magnánim, 1990. p. 132.
23 Exposto em BLASCO, Pedro Luis. Justicia jurídica y solidariedade moral. In: : BLASCO,
Pedro Luis. La justicia entre la moral y el derecho. Madrid: Trotta, 2013. p. 165-207.
24 Ibidem, p. 167.
25Blasco, op. cit., p. 179.
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[…] [la] solidaridad […] [es una] cualidad constitutiva del ser
humano, previa a la solidaridad empírica y social o externa, y previa
a una solidaridad interna meramente psicológica o emocional. Hay
que pensar una solidaridad intrínseca a la naturaleza humana de
cada individuo que es la que se manifiesta en las acciones concretas
solidarias y que nos inclina a la ayuda al otro como su última
razón de ser […].26
Para o autor, a solidariedade, sendo uma virtude moral, configura-se numa
tarefa, num dever. Um modo de ser que é exigido pela própria natureza humana
de cada pessoa, por e para sua própria plenitude, perfeição e felicidade. Por isso,
diz que a solidariedade moral vai mais além do direito, vai mais além de todos os
direitos e vai mais além da própria justiça. E explica:
Todos los derechos son siempre derechos frente al otro; no son por
ello causa de enfrentamiento, sino que, inversamente, son un modo
justo de resolver enfrentamientos entre individuos: los derechos
son defensa de uno mismo frente a la demanda y a las pretensiones
injustas de otros, la manera de hacer valer y proteger legítimamente
lo proprio de cada uno. De ahí la dimensión individualista de todos
los derechos, incluidos los derechos humanos, bien que los derechos
tienen también una función social imprescindible para la convivencia
de los ciudadanos y como reconocimiento, en su caso, de la dignidad
humana, para posibilitar una vida digna de la humanidad de los seres
humanos Pero los derechos, considerados desde su inmanencia en la
dimensión humana y moral de las personas que son los ciudadanos
– porque nunca dejan de serlo – solamente son una parte, y una
parte insuficiente por lo tanto, de lo que les es constitutivo por
naturaleza: es necesaria la otra parte, transcendencia que nos vincula
y unifica, la del compromiso personal con el otro, esencial asimismo
a las personas y a los ciudadanos, demasiado oculta a veces bajo
todos los roles sociales que desempeñan: la del deber de solidaridad.
Junto a los derechos legítimos e inviolables hay que reivindicar el
deber moral de la solidariedad, igualmente constitutiva de nuestra
naturaleza humana como las personas y ciudadanos que somos. Es
necesario para la plenitud y perfección humana vivir la solidaridad
hasta donde humana y físicamente sea posible, sin limitaciones ni
discriminaciones previas.27
26Ibidem, passim
27 Ibidem, p. 183/184
22
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Portanto, o direito seria só uma parte da natureza humana que, para sua
transcendência e plenitude, necessitaria da solidariedade. Por isso, quando se fala
moralmente da justiça ou quando se entende a justiça como uma virtude moral,
está-se falando, estritamente, não em Justiça, mas em solidariedade. Em razão
disto, se, todavia, cabe falar da justiça como virtude, ou da virtude da justiça,
deve-se falar da justiça como virtude jurídica. Em sendo assim, defendo o autor a
existência de uma relação de prioridade da solidariedade sobre a justiça.28
Por fim, para Blasco, as virtudes solidárias, desenvolvidas que foram, inclusive, por outros filósofos, seriam a acolhida, a amizade, o apoio mútuo, a
beneficência, a benevolência, o compromisso, o cuidado, a fraternidade, a
generosidade, a hospitalidade, o perdão. E, claro, a justiça29.
A escolha pela adoção desta entendimento acerca da solidariedade se justifica pelo fato de entendermos que a prática do universalismo interativo, o olhar
sobre o outro concreto, torna-se muito mais fácil e factível se entendermos a
solidariedade como um dever e facilitará, portanto, a análise pretendida.
4.as teorias de justiça analisadas sob a perspectiva
do sujeito situado: do abstr ato ao real
4.1.breve descrição das teorias de justiça de r awls e
habermas
Nosso trabalho pretende analisar as teorias de justiça de dois grandes filósofos:
John Rawls e Jürgen Habermas, mas sob uma nova perspectiva, a perspectiva do
sujeito situado, como caracterizado pelo item acima. Para tanto, necessário se
faz, primeiro, discorrer sobre ambas as teorias. Obviamente, em função das limitações impostas ao presente trabalho, as considerações feitas à tais teorias abordará
o que se considerou seus principais pontos.
Comecemos por Jonh Rawls, filósofo norte-americano nascido em Baltimore
em 1921 e falecido em Lexington, 2002. Rawls doutorou-se em Filosofia em
1950, na Universidade de Princeton. Em 1962 começou a lecionar em Harvard,
28BLASCO, op. cit., p. 187/188
29 Ibidem, p. 205
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23
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onde tornou-se professor emérito em 1991. Sua principal obra é “Uma Teoria da
Justiça”, publicada em 1971, onde Rawls levou a um plano superior de abstração
a conhecida teoria do contrato social encontrada em Locke, Rousseau e Kant.
Rawls inicia sua obra identificando a justiça como sendo a primeira virtude
das instituições sociais, comparando-a à verdade, que é a primeira virtude dos
sistemas de pensamentos. Afirma que cada pessoa possui uma inviolabilidade
fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo
pode ignorar. Assim, para ele, a única injustiça tolerável seria aquele necessária a
evitar uma injustiça maior ainda. E embora muitas espécies diferentes de coisas
possam ser consideradas justas ou injustas, seu foco é o da justiça social. O objeto
primário da justiça será a estrutura básica da sociedade.
O autor esclarece seu objetivo é apresentar uma concepção da justiça que
generaliza e leva a um plano superior de abstração a conhecida teoria do contrato
social como se lê, digamos, em Locke, Rousseau e Kant. Rawls, a partir da
impossibilidade de se pensar no contrato original como aquele que introduz uma
sociedade ou estabelece um governo, propõe seja concebido como aquele que
tem como objeto de consenso os princípios da justiça para a estrutura básica da
sociedade. Estes seriam princípios que “pessoas livres e racionais, preocupadas em
promover seus próprios interesses, aceitariam numa posição inicial de igualdade
como definidores dos termos fundamentais de sua associação”30.
A isso chama o autor de justiça como equidade, referindo que, sempre
hipoteticamente, esses princípios são escolhidos sob um véu de ignorância, o que
garantiria que ninguém fosse favorecido ou desfavorecido na escolha dos princípios pelo resultado do acaso natural ou pela contingência de circunstancias sociais.
Convém ressaltar que o autor concebe as pessoas na situação inicial como
racionais e mutuamente desinteressadas nos interesses das outras, afirmando
que teriam escolhido, naquele momento, dois princípios bastante diferentes: o
primeiro exige a igualdade na atribuição de deveres e direitos básicos, enquanto
o segundo afirma que desigualdades econômicas e sociais são justas apenas se
resultam em benefícios compensatórios para cada um, e particularmente para os
membros menos favorecidos da sociedade.
30 RAWLS, John. Uma teoria da justiça.Tradução Almiro Pisetta e Lenita M.R. Esteves. São
Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 12.
24
volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
Rawls trata de justificar a posição original concebida quando da celebração do
contrato original, ressaltando, uma vez mais, que a posição original é puramente
hipotética. Para o autor, a estrutura básica da sociedade deve ser planejada
primeiro para produzir o máximo bem no sentido do máximo saldo líquido de
satisfação e, segundo, para distribuir satisfações de modo igualitário.
Ao dizer que justiça como equidade nos aproxima mais do ideal filosófico;
sem, obviamente, atingi-lo, presume Rawls que os princípios que caracterizam os
juízos ponderados de uma pessoa são os mesmos para pessoas cujos juízos estão
em estado de equilíbrio refletido, ou, caso não sejam, que seus juízos se dividem
ao longo de algumas linhas mestras representadas pela família das doutrinas
tradicionais que se propõe a discutir. Sublinha que, ainda que em estágios iniciais,
uma teoria da justiça nada mais é do que uma teoria; uma teoria dos sentimentos
morais que estabelece os princípios que controlam as nossas forças morais, ou,
mais especificamente, o nosso senso de justiça.
A teoria de Rawls pode ser dividida em duas partes principais: uma
interpretação da situação inicial e uma formulação de vários princípios disponíveis para escolha ali, e uma demonstração estabelecendo quais dos princípios
seriam de fato adotados. Nos interessa, aqui, saber quais seriam os princípios
adotados que, inicialmente, são assim apresentados:
Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente
sistema de liberdade básicas iguais que seja compatível com um
sistema semelhante de liberdade para as outras.
Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser
ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas
como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável e, (b)
vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos31.
Diz o autor que esses princípios devem obedecer a uma ordenação serial, o
primeiro antecedendo o segundo e que as violações das liberdades básicas iguais
protegidas pelo primeiro principio não podem ser justificadas nem compensadas
por maiores vantagens econômicas e sociais. Assevera o autor que as frases
“vantajosas para todos” e “igualmente abertos a todos” são ambíguas, cada uma das
31RAWLS, ob. cit., p. 64.
volume
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25
i encontro de internacionalização do conpedi
partes do segundo princípio têm dois sentidos correntes e, sendo independentes
um do outro, possuem quatro significados possíveis.
À primeira interpretação possível o autor denomina sistema de liberdade
natural; A segunda interpretação proposta pelo autor à questão é denominada
interpretação liberal; A outra interpretação é chamada aristocracia natural; A
última interpretação proposta pelo Rawls é a concepção de igualdade democrática, a única que pode garantir “satisfação”. Rawls diz que se chega à igualdade
democrática por meio da combinação do principio da igualdade equitativa de
oportunidades com o principio da diferença. Para o autor, é com a concepção
de igualdade democrática que se deve interpretar a primeira parte do segundo
princípio de justiça.
Ao tratar da igualdade equitativa de oportunidades e da justiça procedimental
pura, Rawls vai iniciar os comentários à segunda parte do segundo princípio, a
partir de agora entendido como o principio liberal da igualdade equitativa de
oportunidades. O ponto nevrálgico desta ideia reside no fato de que o utilitarismo
não interpreta a estrutura básica como um esquema de justiça procedimental pura,
porque o utilitarista tem um padrão independente para julgar todas as distribuições.
A tratar dos bens sociais primários como a base das expectativas, Rawls
estabelece a discussão das expectativas e de como elas devem ser avaliadas, dizendo
que a questão principal a ser discutida é “a de saber se deve ser maximizada em
primeiro lugar a felicidade total ou a felicidade média”. Neste sentido, propõe
estabelecer, com o principio da diferença, bases objetivas para as comparações
interpessoais. A ideia do autor é, neste ponto, identificar elementos essenciais
que expliquem os fatos que se quer, de verdade, entender; Assim, as partes de
uma teoria da justiça devem representar características morais básicas de estrutura
social, restando sua coerência demonstrada tanto por suas consequências quanto
pela aceitabilidade de suas premissas.
Afirma Rawls que é preciso identificar certas posições como mais básicas que
as outras, sendo capazes de fornecer um ponto de vista apropriado para o
julgamento do sistema social; Assim, na medida do possível, a justiça como
equidade analisa o sistema social a partir da posição de cidadania igual e dos
vários níveis de renda e riqueza, sendo necessário, entretanto, que em algumas
oportunidades outras posições sejam levadas em consideração.
26
volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
Para uma teoria completa do justo, propõe Rawls que as partes na posição
original devem escolher, numa ordem definida, não apenas uma concepção de
justiça, mas também os princípios que acompanham cada um dos conceitos
principais subordinados ao conceito de justo. Diz o autor que, em contraste com
as obrigações, a característica dos deveres naturais é que eles se aplicam a nós
independentemente de nossos atos voluntários, razão pela qual, do ponto de vista
da justiça como equidade, um dever natural fundamental é o dever da justiça.
Deste modo, se a estrutura básica da sociedade é justa, ou justa como é razoável
esperar que seja dentro de determinadas circunstancias, todos têm um dever
natural de fazer a sua parte no esquema existente.
Tratemos, agora, da teoria proposta por Jürgen Habermas, nascido em 18
de junho de 1929 em Düsseldorf. Entre 1949 e 1954 estudou filosofia, história,
psicologia, economia e literatura alemã nas universidades de Göttingen, Zurique
e Bonn, cidade onde doutorou-se. Pertenceu ao Instituto de Pesquisa Social de
Frankfurt, ainda que não seja da mesma geração de Adorno e Horkheimer, fundadores
da chamada Escola de Frankfurt. Autor profícuo, publicou diversas obras, do que
aqui destaca-se Direito e Democracia: entre facticidade e validade, onde elabora sua
teoria do agir comunicativo e analisa as instituições jurídicas, propondo um modelo
onde se interpenetram justiça, razão comunicativa e modernidade.
Ao se referir à facticidade e à validade, o autor aponta a dualidade do Direito
moderno, pois, por um lado, considera que o Direito é facticidade quando
se realiza aos desígnios de um legislador político e é cumprido e executado
socialmente sob a ameaça de sanções, e por outro, é validade quando suas normas
se baseiam em argumentos racionais ou aceitáveis por seus destinatários32.
Habermas quer situar a legitimidade do Direito no plano discursivo e
procedimental, razão pela qual lança mão de sua teoria do agir comunicativo,
onde a linguagem supera a dimensão sintática e semântica, constituindo o
medium de integração social, ou seja, o mecanismo pelo qual os agentes sociais
se integram e fundamentam racionalmente pretensões de validade discursivas
aceitas por todos. Em suas palavras,
32 DOMINGOS, Terezinha Oliveria. A teoria da justiça. In: Revista da Faculdade de Direito da
Universidade Metodista, 2009.
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27
i encontro de internacionalização do conpedi
A razão comunicativa distingui-se da razão prática por não
estar adscrita a nenhum ator singular nem a um macrossujeito
sociopolítico. O que torna a razão comunicativa possível é o
medium linguístico, através do qual as interações se interligam e
as formas de vida se estruturam. Tal racionalidade está inscrita
no telos linguístico do entendimento, formando um ensemble de
condições possibilitadoras e, ao mesmo tempo, limitadoras.
A linguagem, assim, assume uma posição central na filosofia habermasiana.
Note-se que o direito é legitimado no plano discursivo e procedimental. Sua
justiça é permitir que todos, em igualdade de condições, manifestem-se na busca
pelo melhor argumento.
Para que essa comunicação de fato ocorra, pressupõe Habermas que
Na prática, os membros de uma determinada comunidade
de linguagem têm que supor que falantes e ouvintes podem
compreender uma expressão gramatical de modo idêntico.
Eles supõem que as mesmas expressões conservam o mesmo
significado na variedade de situações e dos atos de fala nas quais
são empregados. No próprio nível do substrato significativo,
o sinal tem que ser reconhecido como sendo o mesmo sinal, na
pluralidade de eventos significativos correspondentes33.
Habermas sustenta que nas sociedades atuais pós-metafísicas, o direito legítimo depende do exercício constante do poder comunicativo, sendo necessário,
para o não esgotamento da justiça, que um poder comunicativo jurígeno esteja
na base do poder administrativo do Estado. Assim, ainda que assumindo a
perspectiva segundo a qual o ordenamento jurídico é emanado das diretrizes dos
discursos públicos e da vontade democrática dos cidadãos, institucionalizadas
juridicamente, dada a correção parcial, existe sempre a possibilidade de que a
normatividade seja injusta, abrindo-se assim dois caminhos: (1) a permanecer
injusta passa a constituir-se em arbítrio e, (2) ao tornar-se arbítrio surge a
falibilidade e, assim, a presunção de que seja revista ou revogada.
Não é sem razão, então, que Habermas acredita que a resolução dos conflitos
será mais facilmente alcançadas quanto maior for a capacidade dos membros da
33 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre factiidade e validade. Tradução Fábio
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v. 1. p. 29
28
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i encontro de internacionalização do conpedi
comunidade em compartilhar verdades estabilizadoras do conjunto da sociedade,
possibilitando que grandes áreas de interação social desfrutem de consensos não
problemáticos.
4.2.análise das teorias r awlsiana e habermasiana: sujeito situado e universalismo inter ativo
Vimos que a intenção do universalismo interativo é, ao contrário do
universalismo substitucionista, considerar o sujeito concreto, com suas
idiossincrasias, com suas limitações e inseridos num determinado tempo e lugar.
Também vimos que, a partir da concepção de Blasco, a solidariedade configurase em verdadeiro dever moral, sendo preferente à justiça que, enquanto virtude
jurídica, seria apenas uma das virtudes da solidariedade, tal qual o perdão, a
benevolência, o apoio mútuo, entre outras.
Analisemos, então, a partir desses pressupostos, as teorias de justiça destacadas, começando pela rawlsiana.
A teoria da justiça de Rawls deixa claro, desde o início, tratar-se de um
universalismo substitucionalista, na medida em que baseia-se num consenso
fictício. No caso de Rawls, o que vai garantir essa ficção e, portanto, a consideração
de sujeitos abstratos, desconectados de suas idiossincrasias pessoais, de suas
características culturais e falsamente homogêneos.
Claramente assevera Rawls que se deve “anular os efeitos das contingências
específicas que colocam os homens em posições de disputa, tentando-os a
explorar as circunstancias naturais e sociais de seu próprio benefícios34”. Mas,
se é verdade que nossa relação com o outro é regida por normas de equidade e
reciprocidade complementar, as diferenças assumem papel relevante que não pode
ser desconsiderado, posto que, em realidade, complementam-se e nos permitem
confirmar a humanidade e a individualidade humana.
Assim, ao simplesmente abstrair toda e qualquer contingência e colocar as
partes que firmam “o contrato social” sob um véu de ignorância, Rawls, ao invés
34RAWLS, ob. cit., p. 147.
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de garantir equidade e, assim, a justiça, esconde os problemas e as vicissitudes
sociais embaixo do travesseiro35.
Uma concepção da pessoa determina a descrição mesma da “posição original”.
As pessoas tem a capacidade de ter um sentido de justiça e a capacidade para formar, revisar e perseguir racionalmente uma concepção de bem. Por isso, a posição
original de Rawls só poderia estar integrada por aqueles que compartilhem um
conceito moral da pessoa e, que, além disso, tivessem interesse em realiza-lo em
sociedade. Somente estes empreenderiam a construção específica da autonomia
racional, encarnada nos princípios de justiça36.
Por isso, segundo aduz Palermos, Benhabib considera que a posição original
rebaixa suas pretensões universalistas para afrontar a auto compreensão dos
sujeitos e a compreensão das situações históricas, razão pela qual esta concepção
de pessoa não diz nada aqueles que não compartilhem sua estrutura motivacional. Alguns podem acha-la excessivamente formal, repressiva ou individualista37.
Do mesmo modo a teoria de Justiça de Habermas, que centrada na teoria
da ação comunicativa donde se insere o agir comunicativo, um tipo ideal de
comunicação que opera sob a lógica de que só há um sentido racional a informar
a capacidade de comunicação linguística, ou seja, de viabilizar entendimentos e
acordos entre os seres racionais, também se afigura problemática, dado seu grau
de abstração.
Será possível considerar, como quer Habermas, que todos possuem a mesma
competência comunicativa capaz de formular um consenso? Ora, para que sua
teoria funcione é necessário proceder-se a partir de uma condição mínima e geral
da identidade empírica e normativa para ser adstrita aos seres humanos, o que,
considerando o outro em concreto, não parece ser possível ou mesmo desejável,
se se pensar na questão do reconhecimento da humanidade do outro que provém,
justamente, do reconhecimento de suas diferenças.
Nos dizeres de Palermo:
35PALMERO, ob., cit,, p. 129, assim assevera: […] la escoba de la abstracción nunca logra
barrer del todo el contenido, lo que hace es esconderlo debajo de la alfombra.
36 Ibidem, p. 130.
37PALMERO, ob. cit., p. 131
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volume
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Este asunto [la formación de la voluntad discursiva], nos remete
a la rémora de la falácia abstrativa: al abismo insalvable entre lo
ideal y lo real, entre lo normativo y lo empírico. Las condiciones
estructurales de la situación de habla no garantizan el “buen tino”
de los participantes: no garantizan un ejercicio no prejuicioso y
razonable. Lo decisivo aqui es la calidad y racionalidade de los
argumentos. La indeterminación semântica es irredutible: nada
nos garantiza a priori que sepamos reconocer la racionalidade y la
verdade de las pretensiones en liza38.
Assim, temos que essas situações ideais de fala ou de escolha de princípios
em posição original, sob um véu de ignorância (1) partem de critérios de seleção
do relevante que não está justificado e o os utiliza para desenhar descrições
privilegiadas que aspiram à universalidade; (2) ocultam presunções materiais em
sua pretensão de formalidade plena e renunciam a qualquer estratégia situacionista
que dote de conteúdo a estrutura proposta porque isso colocaria em cheque a
universalidade do modelo; (3) se concebem autossuficientes ao determinar
critérios normativos a partir dos elementos selecionados e, em um curioso
contorno, sem saírem, aparentemente, do mundo, recorrendo ao implícito,
autoproclama-se ponto arquimédio e fundamento; e, (4) Apesar da profissão de
fá falibilista do procedimentalismo, se protegem contra a refutação reforçando
sua posição ao invocar uma controvertida teoria consensualista da verdade, que
não pode ser objetada porque nunca alcançaremos a idealidade de condições que
seriam necessárias para confirma-la39.
Portanto, numa perspectiva onde se faz indispensável a análise do sujeito real,
situado, reconhecido em suas diferenças e por suas diferenças, estas teorias estão
longe do universalismo interativo e, assim, muito próxima de um universalismo
idealizado; um universalismo irreal.
5.conclusões
Os direitos humanos, na sociedade contemporânea e pós-moderna, uma
sociedade que é, portanto, plural, diversa com uma identidade cultural
38 Ibidem, p. 133
39 Ibidem, p. 129.
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ambivalente, um sujeito situado que busca por uma igualdade material, ainda
carece completa efetivação.
Uma possível alternativa para tal efetivação passa pela reformulação das
teorias de justiça que, levando em consideração sujeitos concretamente situados,
compreendidos em sua diversidade e pluralidade, compreendidos em suas
diferenças, podem traduzir o dever de solidariedade, qualidade constitutiva do
ser humano, trazendo efetividade aos direitos humanos, cuja universalidade não
deve mais ser substitucionista, mas realmente interativa.
6.referências
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1999.
BENHABIB, Seyla. El otro generalizado y el otro concreto. In: BENHABIB,
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06
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i encontro de internacionalização do conpedi
parlamentarismo e sistema políticoconstitucional br asileiro:
uma boa opção?
Anderson Santos dos Passos1
Paula Veiga 2
Resumo
Nas linhas que se seguem busca-se discorrer sobre uma eventual implementação do Parlamentarismo no sistema jurídico-constitucional brasileiro, o
que obriga a uma breve alusão à história, características fundamentais, vantagens
e desvantagens desse sistema. Assim, começa-se por uma análise histórica
da evolução do Parlamentarismo no seu berço (a Inglaterra), relatando os
principais eventos que marcaram a fixação das respectivas características básicas.
Seguidamente, discute-se sobre os pontos positivos e negativos intrínsecos ao
sistema Parlamentar. E eis que se chega ao Brasil, relatando, em traços gerais, os
dois momentos “parlamentaristas” brasileiros, a saber: (i) o período Imperial e (ii)
o período republicano pré-ditadura militar. O percurso segue com os movimentos
parlamentaristas durante a constituinte brasileira de 1987 e respectivos reflexos
na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (adiante, CRFB). A
reflexão termina com uma análise da viabilidade contemporânea de adoção do
sistema parlamentarista no Brasil, bem como de uma alusão a alguns aspectos
jurídico-constitucionais relacionados com tal hipótese.
Palavras-chave
Parlamentarismo; Presidencialismo; Sistema Político Brasileiro.
1 Doutorando em Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI na Faculdade de Direito/
Economia/CES da Universidade de Coimbra-Portugal. Professor Universitário (licenciado)
da Faculdade de Direito do Agreste –CESMAC/AL. Ex-pesquisador bolsista do PIBIC/
CNPQ/UFPE. Ex-Procurador Federal. Juiz de Direito. Currículo lattes em http://lattes.cnpq.
br/1789202309352232
2 Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal), lecionando Direito
Constitucional quer na Licenciatura, quer no Mestrado. Doutorada pela Faculdade de Direito
da Universidade de Coimbra em 2011; Mestre pela mesma instituição em 2003; e Licenciada
também pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, no Curso 1990-1995.
volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
Abstract
In this article the authors try to discuss the possible implementation of
Parliamentarism in the Brazilian constitutional system, which requires a brief
reference to history, key features, advantages and disadvantages of this system. Thus,
the authors begin with a historical analysis of the evolution of Parliamentarism in
England, reporting key events that marked the establishment of the basic features of
this system. Secondly, the authors discuss about the strengths and the weaknesses of
the Parliamentary system. The main part of the article reports to the two “parliamentary” Brazilians moments, namely: (i) the Imperial period and (ii) the pre-republican
period - military dictatorship period. The article continues with the parliamentary
movements during the year before the approval of the Brazilian constitution (1987)
and in the Brazilian Constitution (1988). The article ends with a serial analysis of
contemporary viability of adopting the parliamentary system in Brazil.
Key words
Parliamentarism; Presidentialism; Brazilian Political System.
1.introdução – breves notas sobre a história do
parlamentarismo
É de bom alvitre que, antes de a reflexão se debruçar sobre o estudo dos elementos do sistema de governo parlamentarista, se refira, à guisa de nota introdutória,
aos elementos históricos que levaram à consolidação do Parlamentarismo ao
longo dos séculos.
Nas palavras de Bonavides (2010, pág. 417) “nenhum teorista criou a forma
parlamentar de governo. Se há um sistema de organização do poder político que
resultou diretamente da história e do contínuo desdobramento das instituições,
este sistema é o Parlamentarismo.” A afirmação de Bonavides parece estar
plenamente correta, uma vez que os contornos específicos do sistema de governo
parlamentarista não foram delineados em um único momento histórico, mas sim
a partir de um longo processo de evolução histórica3, isto é, revelados através do
3 No mesmo sentido leciona Dalmo Dalari que “o Parlamentarismo foi produto de uma longa
evolução histórica, não tendo sido previsto por qualquer teórico, nem se tendo constituído em
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i encontro de internacionalização do conpedi
tempo, até aquele se consolidar, por volta do século XIX, no modelo que hoje se
conhece4.
A evolução do Parlamentarismo encontra-se intimamente ligada ao sistema
jurídico e à história política inglesa, posto que o atual desenho parlamentarista
nasceu, justamente, no direito consuetudinário da Inglaterra (AMARAL, 2012,
pág. 57). Enquanto nos EUA ou na Europa continental o momento fundador
se pode identificar com atos, na Inglaterra a fundação do constitucionalismo
moderno (e do sistema parlamentarista) identifica-se com um longo ciclo histórico
(AMARAL, 2012, pág. 58)5.
Bem observa Dalmo Dalari (1998, pág. 83):
A Inglaterra pode ser considerada o berço do governo representativo. Já no século XIII, o mesmo que assistiu à elaboração da
Magna Carta, numa rebelião dos barões e do clero contra o
monarca, iria ganhar forma o Parlamento. No ano de 1265 um
nobre francês, Simon de Montfort, neto de inglesa e grande amigo
de barões e eclesiásticos ingleses, chefiou uma revolta contra o rei
da Inglaterra, Henrique III, promovendo uma reunião que muitos
apontam como a verdadeira criação do Parlamento. Antes disso,
em 1213, o próprio João Sem Terra convocara “quatro cavaleiros
discretos” de cada condado, para com eles “conversar sobre assuntos
do reino”. Mas Simon de Montfort deu à reunião o caráter de uma
assembléia política, reunindo pessoas de igual condição política,
econômica e social. Morrendo Simon em combate, no mesmo ano
de 1265, continuou a praxe de se reunirem cavaleiros (nobres que
não eram pares do reino), cidadãos e burgueses. E no ano de 1295
o Rei Eduardo I oficializou essas reuniões, consolidando a criação
do Parlamento.
objeto de um movimento político determinado.” DALARI, Dalmo de Abreu. Elementos de
Teoria Geral do Estado. 2ª Edição. São Paulo: Saraiva,1998, pág. 83.
4 Importante colacionar as palavras de Dalmo Dalari, que afirma que “suas características [as
do Parlamentarismo] foram se definindo paulatinamente, durante muitos séculos, até que se
chegasse, no final do século XIX, à forma precisa e bem sistematizada que a doutrina batizou
de Parlamentarismo e que DUVERGER denomina de regime de tipo inglês, indicando-o
como um dos grandes modelos de governo do século XX”. DALARI, Dalmo de Abreu.
Elementos de Teoria Geral do Estado. 2. Edição. São Paulo: Saraiva, 1998, pág. 83.
5 É, justamente, nesse sentido que J. J. Gomes Canotilho (2003, pág. 69) se refere ao movimento
constitucional inglês como tendo “revelado a norma”.
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i encontro de internacionalização do conpedi
Contudo, o percurso não foi nem linear, nem definitivo. Depois da fase de
relativo prestígio (acima citada por Dalari), o Parlamento voltou a perder poder para
o Monarca, diante da ascensão da teoria absolutista e da consequente concentração
dos poderes nas mãos do Rei. Se é certo que o Parlamento existia, já não possuía
poderes políticos expressivos. Tal cenário transformou-se apenas no século XVII,
com a Revolução Inglesa e a expulsão do Rei católico Jaime II, que fora substituído
por Guilherme de Orange e Maria, ambos protestantes, de modo que “a partir de
1688, o Parlamento se impõe como a maior força política, e altera, inclusive, a linha
de sucessão, com a exclusão do ramo católico dos Stuarts” (DALARI, 1998, pág 83).
No reinado de Guilherme e Maria surgiu o costume de o soberano convocar
um grupo de conselheiros de gabinete para o auxiliar em algumas questões do
reino, sobretudo nas relações exteriores. Tal costume continuou a ser respeitado
pela sucessora, a Rainha Anna, até a sua morte. Seguidamente, subiram ao trono,
sucessivamente, os Monarcas Jorge I e Jorge II. Ambos eram alemães, não tinham
muito apreço pelos problemas políticos ingleses (DALARI, 1998, pág. 84) e,
traço que parece fundamental para a radicação do Parlamentismo, não sabiam
falar inglês. Diante deste quadro, de clara dificuldade de comunicação entre o
Parlamento e o Rei, o Gabinete passou a realizar reuniões mesmo sem a presença
do soberano6. Um dos ministros, Robert Walpole7, tomou posição de destaque,
sendo logo popularmente conhecido por “Primeiro-Ministro”.
6 Importante colacionar as palavras de Paulo Bonavides sobre o tema: “Causas históricas
determinantes desse desfecho, onde claramente se vê o extraordinário acréscimo de força,
prestígio e influência no poder do Parlamento, fazendo que este prepondere definitivamente
sobre o poder da Coroa, abrangem os seguintes fatos da vida política inglesa: a deposição do
último Stuart pelas armas da aristocracia insurreta, assinalando iniludivelmente a vitória da
causa do Parlamento; a origem da nova dinastia no consentimento e convocação da autoridade
parlamentar; o procedimento irônico dos ‘reis alemães’ da dinastia de Hannover, a chamada
série dos ‘reis impossíveis’(1714-1837), que foram: Jorge I, um estrangeiro que não esquecia
o lugar de origem, jamais aprendeu a falar inglês, e teve sempre dificuldade de comunicarse em latim com os seus ministros, em suma, um rei completamente alheio dos negócios
públicos, propiciando ao Gabinete reunir-se na ausência do monarca; Jorge II, um rei fraco,
que não forceja por recuperar a influência perdida pelo antecessor; Jorge III, obstinado, cego,
demente, autoritário e irresponsável, faz de sua existência ‘uma espécie de museu de defeitos
de um rei constitucional’; Jorge IV, monarca desidioso e depravado, um roi fainéant, cuja vida
conjugal escandaliza a sociedade inglesa e desprestigia a Coroa. O Parlamento fortaleceu pois
sua influência e ascendência na direção política do país, valendo-se do esvaziamento e desuso
de algumas prerrogativas da realeza” (BONAVIDES, 2010, pág. 418).
7 “Walpole was a British Whig statesman, considered to the first holder of the office of prime
minister, who dominated politics in the reigns of George I and George II (…) In 1714, George
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i encontro de internacionalização do conpedi
A atuação de Robert Walpole foi decisiva para se firmar uma das principais
características do Parlamentarismo: a divisão do poder executivo entre duas
figuras, ou seja, entre o Chefe de Estado e o Chefe de Governo, conforme será
delineado mais adiante.8
Outro fator de destaque para a radicação do Parlamentarismo na Inglaterra
foi a nomeação do Lord North, pelo Rei Jorge III, para a função de PrimeiroMinistro, no ano de 1770. Lord North passou a responsabilizar-se pela política
do Reino e entrou em conflito com representantes da Câmara dos Comuns,
sobretudo com John Wilkes. Após anos de embates, o Monarca se viu obrigado
a demitir Lord North, estabelecendo-se, desde então, que a Câmara dos Comuns
deveria dar sua aquiescência à escolha do Primeiro-Ministro9. Assim se firmava a
supremacia da representação popular, como também, na mesma época, a França
o desejava (DALARI, 1998, pág. 84).
I came to the throne. George distrusted the Tories, whom he believed opposed his right to the
throne, and as a result the Whigs were in the ascendant again. In 1715, Walpole became first
lord of the treasury and chancellor of the exchequer. He resigned in 1717 after disagreements
within his party but in 1720 was made paymaster general. He avoided the scandal that
surrounded the collapse of the South Sea Company and was subsequently appointed first lord
of the treasury and chancellor of the exchequer again. In this position he effectively became
prime minister, although the term was not used at the time. He remained in this position
of dominance until 1742”. Disponível em http://www.bbc.co.uk/history/historic_figures/
walpole_robert.shtml, acedido em 12 de junho de 2014.
8 Walter Bagehot (2009, pág. 125/126) noticia que: “a century ago the Crown had a real choice
of Ministers, though it had no longer a choice in policy. During the long reign of Sir R.
Walpole he was obliged not only to manage Parliament but to manage the palace. He was
obliged to take care that some court intrigue did not expel him from his place. The nation
then selected the English policy, but the Crown chose the English Ministers. They were not
only in name, as now, but in fact, the Queen’s servants. Remnants, important remnants,
of this great prerogative still remain. The discriminating favour of William IV. made Lord
Melbourne head of the Whig party when he was only one of several rivals. At the death of
Lord Palmerston it is very likely that the Queen may have the opportunity of fairly choosing
between two, if not three statesmen. But, as a rule, the nominal Prime Minister is chosen by
the legislature, and the real Prime Minister for most purposes—the leader of the House of
Commons—almost without exception is so.”
9 “A primeira prova a que foi posta essa regra nova do direito constitucional inglês se verifica em
1782, quando Lord North, no exercício das funções de primeiro-ministro, se demite da chefia
do governo, em face da oposição parlamentar que lhe era movida, sem embargo de contar com
a plena confiança do rei Jorge III. Temia porém o Primeiro-Ministro que se consumasse a
ameaça pendente do impeachment, caso não resignasse à sua função ministerial, após receber
duas moções de censura e desconfiança”. BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10ª Edição.
São Paulo: Malheiros, 2010, pág. 420.
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i encontro de internacionalização do conpedi
Posteriormente, o Parlamento decidiu fazer uso de mecanismos para forçar
o afastamento dos Primeiros-Ministros quando não havia concordância com
a política que estava a ser desenvolvida. Inicialmente, o instrumento utilizado
foi o impeachment. Tal instrumento, de natureza penal, poderia conduzir
à responsabilização criminal do Primeiro-Ministro, com o consequente
afastamento da função. O decurso do tempo levou o Governo a perceber que
seria mais “inteligente” afastar-se logo no início de uma investigação parlamentar,
a fim de evitar a responsabilização penal. Diante disto, o costume evoluiu para
“a responsabilidade política, com a obrigatoriedade da demissão do Gabinete
sempre que este receber um voto de desconfiança” (DALARI, 1998, pág. 84).
Percebe-se assim que não foi apenas com a Glorius Revolution que se solidificou
o regime parlamentarista inglês. Foi necessário ainda percorrer muitos anos para
que as características finais estivessem consolidadas. Como bem se pronuncia
Paulo Bonavides (2010, pág. 421)
Vê-se consequentemente o exagero dos que datam de 1688,
da “Gloriosa Revolução”, o início do sistema parlamentar, na
Inglaterra, o qual, para instaurar-se de modo definitivo com a
adoção e prática da responsabilidade ministerial, percorreu ainda
quase um século de vagaroso desenvolvimento das instituições.
Como refere Duguit (1927, apud BONAVIDES, 2010, pág 422), são as seguintes as causas históricas que concorreram para a formação do Parlamentarismo
inglês: a) a vitória de 1688 do Parlamento sobre a realeza; b) o controle parlamentar
sobre o governo na votação da proposta tributária anual; c) a formação de dois
grandes partidos homogêneos, os “Whigs” e os “Tories”; d) a alta cultura da
aristocracia inglesa, e, por fim, e) o já mencionado advento de uma linhagem
estrangeira de reis, em que o primeiro da série, por ignorância da língua inglesa, se
mostrou incapaz de acompanhar os debates e deliberações de seu ministério.
Por fim, a soma de todos estes fatores contribuiu para a criação de um sistema
de governo próprio e original na Inglaterra, onde a centralidade do poder político
está nas mãos do Parlamento, servindo de modelo para inúmeros outros países
na Europa10 e no resto do mundo. Deve ressaltar-se, inclusive, o acentuado viés
10 Com se sabe, o governo parlamentar nasceu em Inglaterra e foi, posteriormente, transportado
para o continente europeu, durante o século XIX, alinhando-se ao pensamento dominante na
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i encontro de internacionalização do conpedi
democrático e republicano, como, entre outros, bem ensina Norberto Bobbio
(1987, pág. 107),
Ora, na medida em que também nas monarquias, a começar da
inglesa, o peso do poder se desloca do rei para o Parlamento, a
monarquia, tornada primeiro constitucional e depois parlamentar,
transformou-se numa forma de governo bem diversa daquela para
a qual a palavra foi cunhada e usada durante séculos: é uma forma
mista, metade monarquia e metade república.
2.
car acterísticas fundamentais do parlamentarismo
O Parlamentarismo surgiu com um claro objetivo: limitar o poder do Rei,
sujeitando-o à fiscalização do Parlamento. Contudo, cabe observar que, além
do Parlamentarismo “puro”, existem várias outras manifestações concretas do
Parlamentarismo e cada uma delas possui peculiaridades específicas. Apesar disso,
há linhas gerais que, segundo se crê, podem ser enumeradas.
Antes de enumerar essas linhas gerais, busque-se uma definição mínima para
o conceito de Parlamentarismo. Se é verdade que a tentativa de se definir algo
sempre trará o vício da imperfeição (posto que as palavras são insuficientes
para descrever toda a riqueza de detalhes dos fenômenos sociais), num trabalho
científico, necessária se torna a delimitação do objecto em análise. Assim, e
baseando-se na definição de STROM, WOLFGANG e BERGMAN (2006,
pág 12/13), pode dizer-se que o Parlamentarismo é o sistema de governo onde
o Primeiro-Ministro e o Gabinete concentram grande parte das competências
executivas e são politicamente responsáveis perante a maioria dos membros do
Parlamento, além de poderem ser retirados da função, a qualquer momento,
através de um voto de não confiança11. A presente definição foca apenas as duas
época e às condições histórico-culturais dos países continentais, o que nem sempre foi tarefa
fácil, como refere Paula Veiga em O Presidente da República: contributo para uma compreensão
republicana do seu estatuto constitucional (Tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra), polic., Coimbra, 2010, pág. 62 e seguintes.
11 Neste sentido, e para o sistema de governo português, vide CANOTILHO, J. J. Gomes.
Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 7ª Ed. 2003, págs. 599 e
560.
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i encontro de internacionalização do conpedi
características mais marcantes do Parlamentarismo: a responsabilidade política do
Governo perante o Parlamento e o papel central do Gabinete. Contudo, existem
outras características, nomeadamente:
i) a diarquia do executivo (há um Chefe de Estado e um Chefe de Governo e a atividade executiva é entre eles partilhada12). Maurice Duverger
(1970, pág 135) fala mesmo em executivo dual, no qual o Chefe de
Estado tem função de representação do País e o Chefe de Governo concentra a maior parte do poder de direção política. Naturalmente que
se nas monarquias parlamentaristas, a função de Chefe de Estado fica a
cargo do Monarca, nas repúblicas parlamentares, tal função é exercida
por um Presidente;
ii) a responsabilidade do Gabinete perante o Parlamento, sendo a nomeação do Primeiro-Ministro (Governo) feita pelo Chefe de Estado (que,
como já se disse, pode ser o Monarca ou o Presidente, conforme os
casos). De salientar que, antes da nomeação, o Governo deve obter a
confiança por parte do Parlamento. Assim, não obstante formalmente
a nomeação ser feita pelo Chefe de Estado, este fá-lo de acordo com a
vontade do Parlamento. Após ser nomeado, o Primeiro-Ministro é responsável politicamente apenas perante o Parlamento (CANOTILHO,
2003, pág. 583), não podendo o Presidente ou o Monarca destituí-lo
do cargo.
Em regra, o Primeiro-Ministro é o líder do grupo político que detém
a maioria do corpo parlamentar13. Havendo mudança na composição
da maioria, em razão de novas eleições ou alianças, poderá ocorrer a
substituição do Primeiro-Ministro/Gabinete por outro que represente
12 Assim, recentemente, embora sobre o sistema francês, BRANCHET, Bernard. La Fonction
Présidentielle sous la Ve République, L.G.D.J., Paris, 2008, págs. 13 e 14.
13 “O sistema constitucional britânico apresenta-se como paradigma, e a sua característica
principal reside no facto de o Governo ser formado em conformidade com o Parlamento,
do qual depende, respondendo politicamente apenas perante ele. Neste quadro, tanto sua na
formação, como na sua manutenção, o Governo dependerá exclusivamente do Parlamento
e na sua composição traduzirá o reflexo dos partidos políticos com assento no órgão
representativo.” (PINTO; CORREIA; SEARA, 2005, pág. 252 e ss).
42
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a nova configuração do Parlamento. Assim se compreende que é ao
Parlamento que cabe controlar os rumos da política desenvolvida pelo
Chefe de Governo. Por isso, caso haja descontentamento com as opções políticas do Primeiro- Ministro pode ocorrer a aprovação de uma
moção de censura (ou a rejeição de um voto de confiança), que, obrigatoriamente, leva à demissão do Chefe de Governo.
Como bem descreve Bagehot (2009, pág. 126/127):
We have in England an elective first magistrate as truly as the
Americans have an elective first magistrate. The Queen is only at the
head of the dignified part of the Constitution. The Prime Minister is
at the head of the efficient part. The Crown is, according to the saying,
the “ fountain of honour”; but the Treasury is the spring of business.
Nevertheless, our first magistrate differs from the American. He is not
elected directly by the people; he is elected by the representatives of the
people. He is an example of “ double election”. The legislature chosen,
in name, to make laws, in fact finds its principal business in making
and in keeping an executive.
Em suma, o Primeiro-Ministro não é eleito diretamente pelo povo, mas, na
prática, é eleito pelos representantes do povo, sendo politicamente responsável
perante estes.
iii)Dissolução do Parlamento pelo Chefe de Estado. No sistema parlamentarista existe a possibilidade do Chefe de Estado determinar a dissolução
do Parlamento. Como bem explica o Professor de Coimbra J. J. Gomes
Canotilho (2003, pág. 583) “a dissolução é feita por decreto presidencial ou real (consoante se trate de república ou monarquia), mas trata-se
de um acto de iniciativa do Gabinete que assume a responsabilidade
política do mesmo através da referenda (dissolução ministerial ou governamental)”. Ou seja, pode haver dissolução do Parlamento por parte
do Chefe de Estado. Contudo é necessário que haja um prévio pedido
do Chefe de Governo (Primeiro- Ministro) direcionado ao Chefe de
Estado. Apenas por força deste último é que será decretada a dissolução
do legislativo com a imediata convocação de novas eleições.
volume
Ressalte-se que tal instituto tem claro caráter democrático, deixando a
cargo do Povo a decisão final em caso de controvérsia séria entre o Pri06
43
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meiro- Ministro e o Parlamento. Como relata Paulo Bonavides (2010,
pág. 429):
Não devem todavia tais temores prevalecer com respeito ao
governo parlamentar, onde a dissolução é ‘natural, legítima e
quase necessária’, constituindo, segundo o mesmo Esmein, ‘o
derradeiro meio que resta a um gabinete para manter-se no poder’,
depois de haver caído em minoria no Parlamento. Neste, uma
política contrária ao interesse nacional, abraçada contra a vontade
do ministério, não vingará se o corpo de eleitores, chamado a
pronunciar-se soberanamente, em conseqüência da dissolução,
eleger novo Parlamento, desta feita favorável ao gabinete, cuja linha
de governo fora impugnada pelo Parlamento anterior na matéria
que determinou a crise de confiança, da qual duas saídas apenas
restavam ao ministério ameaçado: a renúncia ou a dissolução.
Conclui-se, portanto, que a dissolução do Parlamento é um instrumento
democrático próprio do sistema parlamentar.
No entanto, não deve esquecer-se que, na Inglaterra, a Câmara Alta (a Câmara
dos Lordes) não é eleita. Os seus membros são indicados pelo Monarca e os cargos
são vitalícios (com exceção dos Lordes Espirituais14). Em contrapartida, esta
Câmara não interfere na formação ou manutenção dos Ministérios, bem como
não sofre dissolução (MALUF, 2003, pág. 287).
iv)Eleição indireta do Chefe de Estado nas repúblicas parlamentares. Tratando-se de forma republicana, o Chefe de Estado (Presidente) será eleito
pelo Parlamento, para um mandato fixo. O Presidente eleito é irresponsável politicamente, não podendo ser deposto por meio de moções
de desconfiança. Já nos casos das monarquias parlamentares, é óbvio
que a função de Chefe de Estado está a cargo do Monarca, sendo este
substituído apenas pela sucessão hereditária.
v) Chefe de Governo sem mandato fixo. A permanência do Primeiro-Ministro no poder vai depender da manutenção da confiança depositada
pelo Parlamento. Assim, não há um período pré-fixado para duração do
14 Os Lordes Espirituais mantêm-se no cargo enquanto ocuparem suas funções eclesiásticas.
44
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Governo. Este pode perdurar durante toda uma legislatura ou apenas
poucos dias.
vi)Aprovação do Programa de Governo: a manutenção do Primeiro-Ministro e do seu Conselho de Ministros depende da apresentação de um
Programa de Governo ao Parlamento, e da respectiva aprovação daquele por este, assumindo, assim, os representantes do povo uma forte responsabilidade no destino político estatal. Tal característica se confirma
(como acima já explanado) diante do poder que tem o Parlamento de
determinar a queda do Primeiro-Ministro (através da moção de censura) quando não houver mais anuência da maioria com o Gabinete. Karl
Loewenstein (1979, pág. 106) ressalta que
Fundamentalmente, la función de determinar la decisión política está
distribuida entre el gobierno y el Parlamento. Y ambos colaboran
necessariamente en la ejecución de la decisión política fundamental
por medio de la legislación.
Aqui reside uma das grandes virtudes do Parlamentarismo: a possibilidade de substituição do Chefe de Governo quando o mesmo se mostrar
incapaz de cumprir o programa político a que se propôs. Nos sistemas
presidencialistas, o Presidente só será retirado do cargo se for desonesto
(impeachment), enquanto no Parlamentarismo, o Chefe de Governo
poderá ser substituído se a maioria assim o quiser.
Cabe, ainda, destacar que o Governo é exercido por um corpo coletivo
orgânico, de modo que as medidas governamentais implicam intervenção de todos os Ministros, e respectivos ministérios (SILVA, 1992, pág.
237).
vii)O Governo é formado por membros do Parlamento. Existe uma estreita
ligação entre o Parlamento e o Governo. Esta circunstância é comprovada pelo fato do Governo ser composto, em regra, por membros do
Parlamento. Karl Loewenstein (1976, pág. 105) destaca claramente que
este principio se basa en Inglaterra el la costumbre constitucional o en
convenciones, sin ninguna relación jurídico-formal. Desde Walpole,
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el primer ministro ha sido siempre miembro de una de las cámaras, y
hoy rige esta regla para todos los ministros.
A ideia subjacente a esta característica é a da realização de um controle
mais rigoroso dos atos do Governo, posto que sendo o Primeiro-Ministro uma “peça” que saiu do próprio Parlamento, ter-se-ia maior capacidade de fiscalização e verificação dos atos por ele praticados. Loewenstein (1976, pág. 106) novamente explica que
El sentido íntimo de esta disposición yace en el fecho de que la asamblea
pude exercer un mejor control sobre sus proprios miembros que sobre
elementos extraños a ella; de esta manera podrá someterles a una serie
de preguntas y respuestas, pidiéndoles cuentas sobre el desempeño de su
cargo, y exigiéndoles de esta manear responsabilidad política.
Graficamente, pode representar-se o Parlamentarismo a partir da seguinte
imagem, retirada de uma obra de Pinto, Correia e Seara (2005, pág. 254):
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i encontro de internacionalização do conpedi
3. vantagens do sistema parlamentar
Após haverem sido apontadas as características fundamentais do sistema
parlamentar, pode questionar-se quais os pontos positivos que tal estruturação do
poder pode trazer para uma sociedade.
A primeira e marcante vantagem do Parlamentarismo é a relativa flexibilidade
e elasticidade do sistema, em comparação com o Presidencialismo, porque neste
último o Governo (concentrado no Presidente da República) não responde
politicamente perante o Parlamento, de modo que a realização de uma política
presidencial completamente contrária aos interesses do povo (representado
pelo Parlamento) não poderá ser paralisada, ante a ausência de instrumentos
semelhantes às já citadas moções de censura. Tal engessamento poderá gerar
resultados desastrosos para o Estado do ponto de vista político, visto que será
necessário aguardar o fim do mandato (por vezes ainda longo) para que possa
haver uma substituição de um Presidente que não mais desejado.
Por outro lado, no Parlamentarismo, há a possibilidade de substituição do
Governo a qualquer momento, garantindo flexibilidade e respeito pelos interesses
democráticos através das moções (de censura ou de confiança), com a consequente
queda do Governo, o que permitirá a superação - de forma simples e dentro
das regras - das crises e escândalos políticos que venham a ocorrer. Medeiros e
Albuquerque, na obra Parlamentarismo e Presidencialismo no Brasil, explana que:
“o regime parlamentar tem exatamente a vantagem de permitir, por um lado, a
permanência no poder ‘enquanto bem servirem’ por tempo indefinido e ‘sem
perigo algum’ dos bons governos; por outro lado, a eliminação imediata dos
maus” (ALBUQUERQUE, 1932, pág. 43/44). 15
Outra vantagem do Parlamentarismo é a aproximação do povo com o centro
de poder. Como no sistema parlamentar os rumos da direção política do país
15 José Joaquim Medeiros e Albuquerque (1932, pág. 43/44) ainda complementa: “Não há
dificuldade alguma em mostrar que o governo instável é o presidencial. Estável para o mal,
instável para o bem. Nele quando se elege um mau Presidente, há que suportá-lo por todo
o período; em compensação, quando se tem um Presidente bom, há que pô-lo fora ao cabo
desse período, interrompendo o que estiver fazendo (…) Nada, portanto, mais irracional do
que atribuir, de um modo fixo, o mesmo prazo aos bons e aos maus governos, sem o mínimo
discernimento.”
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i encontro de internacionalização do conpedi
dependem fortemente do Parlamento e como a permanência do Governo
também depende da anuência do Legislativo, é este último poder que toma a
posição de protagonista da política nacional. Em consequência, sendo óbvio que
o povo tem maior probabilidade de contato com os parlamentares do que com
o Presidente, observa-se um incremento da aproximação política do povo, com
uma valorização da opinião pública. Tanto é assim que as eleições parlamentares
passam a ter um papel central (diferentemente do sistema presidencialista, onde as
eleições parlamentares são puramente secundárias e de pouco interesse popular).
No mesmo caminho, afirma Bonifácio de Andrada (1997, pág. 34/35) que
O Poder Legislativo, com todos os seus defeitos, é o mais
democrático. Suas manifestações, decisões e providências
são às claras aos olhos do povo, que tem toda a facilidade em
recorrer ao Deputado, em conversar, discutir, e até influir nas
suas posições (…) Se o povo tem facilidades de se aproximar do
Deputado, por intermédio dele terá certeza de que seus interesses
e clamores passarão a ter o pleno conhecimento do governante. As
interpelações ao Governo, obrigando o Ministro e o Presidente
do Conselho a comparecerem à Câmara, constituem normas de
importância democrática extraordinária.
Como bem resume o célebre britânico Walter Bagehot (2009, pág. 124),
referindo-se à Constituição Inglesa,
The efficient secret of the English Constitution may be described as the
close union, the nearly complete fusion, of the executive and legislative
powers. No doubt by the traditional theory, as it exists in all the books,
the goodness of our constitution consists in the entire separation of the
legislative and executive authorities, but in truth its merit consists in
their singular approximation. The connecting link is the Cabinet. By
that new word we mean a committee of the legislative body selected to
be the executive body. The legislature has many committees, but this
is its greatest.
Essa aproximação entre o executivo e o legislativo, e, em consequência, entre
o Governo e o povo, é o grande trunfo democrático do Parlamentarismo. Assim,
os defensores do Parlamentarismo consideram-no, de fato, mais racional e menos
personalista, porque o sistema atribui responsabilidade política ao Chefe do
Executivo e transfere para o Parlamento, onde estão representadas todas as grandes
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i encontro de internacionalização do conpedi
tendências do povo, a competência para fixar a política do Estado, ou, pelo menos,
para decidir sobre a validade da política fixada (DALARI, 1998, pág. 86).
Outro ponto positivo do Parlamentarismo é a necessidade contínua do trabalho
em equipe por parte dos ministérios, posto que o insucesso de uma pasta pode
colocar em risco todo o Governo16. Diferentemente, no Presidencialismo não há
qualquer correlação de natureza política entre os ministérios. Na verdade, ocorre
uma inteira separação das ações, e, em alguns casos, uma verdadeira disputa entre
os Ministros presidencialistas, o que, na maioria dos casos, se revela prejudicial.
Nestes termos, explica Bonifácio de Andrada (1997, pág. 36) que:
enquanto o Presidencialismo favorece o trabalho individualista
e isolado, o Parlamentarismo impõe o trabalho de equipe […]
os Ministros não são aqui concorrentes na disputa do apreço
presidencial; formam, isto sim, um grupo em que os destinos se
juntam, onde do bom êxito de um dependem os demais, e viceversa […] propiciando a unidade governamental tão necessária à
obra administrativa.
Ressalte-se, ainda, que recentes estudos empíricos indicam a menor propensão
a atos de corrupção nos sistemas parlamentares, quando comparados aos sistemas
presidencialistas, em razão da diluição do poder.17
16 Paulo Bonavides explica, do ponto de vista histórico, a responsabilidade solidária de todo o
Gabinete: “A Câmara dos Comuns, impotente em face dessa prerrogativa real, tomou porém
um caminho que acabou por conduzi-la satisfatoriamente ao domínio do gabinete, quando
o impeachment, empregado para esse fim, transitou do seu caráter inicial de responsabilidade
penal, concepção vigente no século XVIII, para o de responsabilidade política, responsabilidade
perante a opinião pública, ‘que expõe à perda do poder, e se impõe coletivamente a todo o
ministério, obrigando-o consequentemente à exoneração solidária. A responsabilidade
penal, brandida como ameaça sobre Lord North, obrigou-o a demitir-se com todo o
gabinete. Daí por diante, tornou-se na praxe do sistema uma arma fadada a ‘enferrujar-se’,
substituída que foi, segundo Esmein, ‘por um instrumento mais flexível e mais seguro’: a
responsabilidade política e coletiva do Gabinete” (BONAVIDES, 2010, pág. 427).
17 “Democracy reduces corruption by 0.7 points; presidential systems in a democracy, as
opposed to parliamentary systems, increase corruption by 0.8 points; each additional 20
years of uninterrupted democracy reduce corruption by 0.5 points; and 50 points more in the
freedom of press index (as from the level of Turkey to the level of the United Kingdom) reduces
corruption by 0.5 points. These main results are robust to the inclusion of the government
wages variable in the right hand side, which typically reduces the sample to less than 200
observations.” A citação e o estudo completo pode ser encontrado em LEDERMAN, Daniel;
LOYAZA, Norman; SOARES, Rodrigo R.. Accountability and Corruption: Political
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i encontro de internacionalização do conpedi
Outra característica positiva do Parlamentarismo é a maior facilidade e
velocidade no processo de aprovação das leis (BATES, 1986, pág. 114-123).
Isto ocorre porque o Governo sempre vai ter a maioria do Parlamento como
aliada, não havendo grandes conflitos para a aprovação das normas de interesse
do Executivo. Por outro lado, no sistema presidencialista, o Presidente é um órgão
independente, podendo deter, ou não, a maioria do Parlamento, de forma que as
leis de seu interesse e necessárias ao desenvolvimento da política estatal podem ser
barradas no Legislativo, por razões meramente partidárias.
4. desvantagens do parlamentarismo
Obviamente, que o sistema parlamentar não apresenta apenas pontos positivos. E o rigor científico obriga a mencionar algumas críticas apontadas a este
sistema de Governo.
A primeira delas é a excessiva instabilidade do Governo. O grande exemplo
citado pelos críticos é o Parlamentarismo francês da Terceira República, que se
prolongou de 1875 a 1940, onde houve nada mais nada menos do que 105 (cento
e cinco) ministérios. O Parlamentarismo da Quarta República, que vai de 1946 a
1958, conheceu 16 ministérios. Ou seja, a média de duração de cada ministério
não ultrapassou 9 (nove) meses (BONAVIDES, 2010, pág. 437/438).
Contudo, os parlamentaristas rebatem tal crítica dizendo que no Parlamentarismo a substituição do Governo é algo natural, não tendo todas as consequências
maléficas que uma queda do Presidente no sistema presidencialista gera. Neste
último sistema, o afastamento de um Chefe de Governo acarreta o esfacelamento
da Administração, em razão de que (sobretudo no Brasil), Governo e Administração
“têm uma identificação acentuada, alterando-se os quadros administrativos
facilmente, com qualquer alteração havida no Governo” (ANDRADA, 1997, pág.
41). Por outro lado, no Parlamentarismo há uma tendência clara de se traçar uma
linha divisória entre Governo e Administração, de modo que a substituição do
primeiro não atinge gravemente a segunda. Bonifácio de Andrade relata que no
Parlamentarismo a própria psicologia do regime tende a uma separação orgânica
Institutions Matter. 2001. World Bank Policy Research Working Paper No. 2708. Disponível
em SSRN: http://ssrn.com/abstract=632777. Acedido em 13 de junho de 2014.
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i encontro de internacionalização do conpedi
entre o Governo e a Administração. Aquele, praticamente representado pelos
Ministérios ou Gabinetes, altera-se nas quedas e formações de novas equipes, mas a
Administração tende a permanecer a mesma (ANDRADA, 1997, pág. 41) gerando
“problemas” menos graves em caso de formação de um novo Gabinete.
No mesmo sentido, relata-se que na própria França a instabilidade foi mais
aparente do que verdadeira. Isto porque a França republicana testemunhou
muitas quedas de ministérios, mas, em compensação, no período de 65 anos,
teve apenas uma Constituição e nenhuma revolução (BONAVIDES, 2010, pág.
437/438). Ou seja, há menos estabilidade dos Primeiros-Ministros, mas tem-se
mais estabilidade nas instituições republicanas.
Outra desvantagem atribuída ao Parlamentarismo (nomeadamente, no Brasil)
seria a sua suposta incompatibilidade com o Federalismo. Diz-se que, no plano
doutrinário, “a incompatibilidade entre sistema parlamentar e federação resultaria
da posição secundária do Senado (Câmara Alta) em relação à Câmara dos
Deputados (Câmara Baixa), que só ela governaria o País, ‘só ela poderia instituir,
destituir e reconstruir Gabinetes’, na expressão de Sampaio Dória, citado por
Kildare Gonçalves Carvalho (2008, pág. 135). Este último autor cita ainda Rui
Barbosa, nos seguintes termos: “Também Rui Barbosa via incompatibilidades
essenciais entre o Parlamentarismo e forma federal de Estado, pela predominância da Câmara dos Deputados, circunstância que contrariava a equiponderância
do bicameralismo federal” (CARVALHO, 2008, pág. 135).
No entanto, atualmente tende a acreditar-se que esta incompatibilidade
teorizada entre Parlamentarismo e Federalismo não se manifesta na prática. Para
tanto basta observar que Estados Federais tais como o Canadá, a Austrália, a
Índia, a Áustria e a Alemanha adotam tranquilamente sistemas parlamentaristas
(GROFF, 2003, pág. 137/146). Obviamente que são necessárias algumas
adaptações pertinentes à realidade concreta de cada País, mas não se pode afirmar
que haja uma incompatibilidade teórica e absoluta.
5. parlamentarismo no br asil
5.1. o pseudo-parlamentarismo do br asil imperial
O Brasil teve duas experiências supostamente parlamentares em sua história.
A primeira ocorreu durante o 2.º Reinado, no período entre os anos de
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1847 e 1889. Pouco tempo antes, em 1824, Dom Pedro I havia outorgado a
Constituição Imperial de 1824. Nela, com clara inspiração nas ideias de Benjamin
Constant, definiu-se um modelo quadripartido de “poderes”, com a presença
do Legislativo, Executivo, Judiciário e do Poder Moderador.18-19 Este último foi
deferido exclusivamente ao Imperador como Chefe Supremo da Nação, e seu
Primeiro Representante, para que incessantemente velasse sobre a manutenção
da Independência, equilíbrio, e harmonia dos demais Poderes Políticos20. A
Constituição de 1824 conferia, também, ao Imperador o poder de dissolver a
Assembleia, convocar novas eleições, nomear e demitir Ministros de Estado.21
Ocorre que o governo absolutista de Dom Pedro I, imbuído de tantos poderes,
não agradou nem aos partidos políticos, nem à Câmara dos Deputados, tendo18 BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil de 25 de março de 1824 - Art. 10. Os
Poderes Politicos reconhecidos pela Constituição do Imperio do Brazil são quatro: o Poder
Legislativo, o Poder Moderador, o Poder Executivo, e o Poder Judicial. Obs. Texto mantido
no português original. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constituicao24.htm. Acessado em 01 de abril de 2014.
19 Também em Portugal, a Carta Constitucional de 1826 consagrou o Poder Moderador,
justamente por influência da Constituição Brasileira. Neste sentido, vide Paula Veiga, O
Presidente da República: contributo para uma compreensão republicana do seu estatuto
constitucional, polic., Coimbra, 2010, págs.242 e segs..
20 BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil de 25 de março de 1824 - Art. 98.
O Poder Moderador é a chave de toda a organisação Politica, e é delegado privativamente
ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que
incessantemente vele sobre a manutenção da Independencia, equilibrio, e harmonia dos mais
Poderes Politicos. Obs. Texto mantido no português original. Disponível em http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm. Acessado em 01 de abril de 2014.
21 Raul Pilla, comentando esse primeiro momento da Constituição de 1824, afirmou que:
“Era a constituição de uma monarquia simplesmente constitucional e representativa, não de
uma monarquia parlamentar. Era uma constituição presidencialista: já ali se encontravam
as disposições, as próprias expressões que se tornariam, mais tarde, a definição do
Presidencialismo em nosso país: independência e harmonia de poderes, livre nomeação e
demissão dos ministros de Estado. Era, ainda mais, uma Constituição superpresidencialista,
graças à prerrogativa, que se arrogava o Imperador, de dissolver as Câmaras.” O trecho citado
se encontra no livro FRANCO, Afonso Arinos de Melo; PILLA, Raul. Presidencialismo
ou Parlamentarismo? - Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 1999, pág 130. A
referida obra é composta por manifestações dos então Deputados Federais Afonso Arinos
de Melo Franco e Raul Pilla. O primeiro apresenta no livro parecer contrário à emenda
constitucional parlamentar proposta pelo Deputado Raul Pilla, a qual buscava a instalação
do Parlamentarismo no Brasil. Este último juntou ao livro seus fundamentos para a emenda
parlamentar e a resposta ao parecer de Melo Franco. O curioso é que, anos mais tarde, Afonso
Arinos de Melo Franco converteu-se ao Parlamentarismo, tornando-se um fervoroso defensor
deste sistema de governo.
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se travado sérios embates na época. Já bastante desgastado politicamente, em
1831, Dom Pedro I abandonou o Trono e voltou para Portugal. Por força da
lei, o Imperador deixou o Governo nas mãos de uma regência integrada por três
representantes, em razão da pouca idade do sucessor Dom Pedro II (o qual, na
oportunidade, possuía apenas cinco anos e quatro meses de idade).
Foi nesse período regencial que as primeiras características de um suposto
Parlamentarismo começaram a despontar. Os regentes reuniam-se (como que em
um Gabinete) para decidir as políticas do Império, com o objetivo de barrar o
crescente prestígio da Câmara dos Deputados. A partir destas reuniões, surgiu a
figura do Primeiro-Ministro (que era chamado de Ministro-Presidente).
Atingida a maioridade de Dom Pedro II (maioridade esta que foi abreviada
para a idade de quinze anos), o Imperador foi coroado e assumiu o Trono do
Império brasileiro.
Dom Pedro II, diante da situação de crise política que se encontrava a nação,
criou expressamente o cargo de Presidente do Conselho de Ministros, através
do Decreto nº 523, de 20 de Julho de 184722. Boa parte da doutrina brasileira
considera o referido momento o ponto inicial de um regime parlamentar no
Brasil.23 Compreende-se facilmente a importância da inovação. Até então, os
ministros ligavam-se diretamente à pessoa do Monarca e não constituíam um
verdadeiro corpo coletivo; criada a Presidência do Conselho, surgia formalmente
o Chefe do Governo, em face do Chefe do Estado, configurando-se, claramente,
o Governo de Gabinete (FRANCO, 1999, pág. 139).
22 BRASIL. Decreto nº 523, de 20 de Julho de 1847- Crea hum Presidente do Conselho dos
Ministros. Tomando em consideração a conveniencia de dar ao Ministerio huma organisação
mais adaptada ás condições do Systema Representativo: Hei por bem crear hum Presidente
do Conselho dos Ministros; cumprindo ao dito Conselho organisar o seu Regulamento, que
será submettido á Minha Imperial Approvação. Francisco de Paula Sousa e Mello, do Meu
Conselho d’Estado, Ministro e Secretario d’Estado dos Negocios do Imperio, o tenha assim
entendido, e faça executar. Palacio do Rio de Janeiro em vinte de Julho de mil oitocentos
quarenta e sete, vigesimo sexto da Independencia e do Imperio.” Obs. Texto no Português
original. Disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto523-20-julho-1847-560333-norma-pe.html. Acedido em 01 de abril de 2014.
23 Por exemplo, Pedro Lenza (2013, pág. 546) afirma: “o Parlamentarismo se consolidou com a
criação do cargo de Presidente do Conselho de Ministros pelo Decreto n. 523, de 20.07.1847,
conforme o qual D. Pedro II escolhia o Presidente do Conselho e este, por sua vez, escolhia os
demais ministros, que deveriam ter a confiança dos Deputados e do Imperador, sob pena de
ser dissolvido (...)”.
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Contudo, não obstante a opinião da doutrina, deve observar-se que o
sistema instituído por Dom Pedro II possuía desvirtuamentos que claramente
lhe retiraram o caráter parlamentar. O primeiro deles foi o fato do Presidente
do Conselho (cargo equivalente ao Primeiro-Ministro inglês) ser politicamente
responsável perante o Imperador, e não perante o Parlamento. Nesse sentido,
muitos doutrinadores chegaram a chamar o regime de “Parlamentarismo às
avessas” (LENZA, 2013, pág. 546).
Observe-se que,
em verdade não houvera no Império a mencionada consciência
democrática, que postulasse o Parlamentarismo; tampouco existiu
a separação citada entre poder Moderador e poder Executivo, pois,
embora suas atribuições fossem diversas, ambos competiam ao
Imperador. A situação, em geral, não muda muito com a criação,
em 1847, do cargo de Presidente do Conselho, porque este,
com os demais Ministros, era nomeado e demitido livremente
pelo Imperador. A única diferença é que agora se deu alguma
organicidade ao Ministério, que passara a decidir os assuntos
mais importantes reunido em Conselho de Ministros. Mas seu
Presidente não passava de simples coordenador do Ministério. Suas
atribuições não eram, nem podiam ser, as de Chefe de Governo,
porque o Imperador persistia chefe do poder Executivo. (SILVA,
1990, pág. 622).
O Imperador fez uso exaustivo de suas prerrogativas como Poder Moderador,
nomeando e demitindo os Presidentes do Conselho inúmeras vezes e sem observar
a composição da maioria parlamentar presente na Câmara dos Deputados,
realizando, simplesmente, um rodízio entre os dois partidos mais significativos da
época24. Da mesma forma, em várias situações o Imperador dissolveu a Câmara
dos Deputados quando julgou ser oportuno, mas sem justificativas aparentes.
Uma outra caraterística que comprova a ausência de um verdadeiro sistema
parlamentar no segundo Império brasileiro foi a ineficiência de institutos básicos
do Parlamentarismo, tais como as moções de censura ou de confiança (SILVA,
24 Durante cinqüenta anos, 36 Gabinetes sucederam-se no poder. Os conservadores foram
os que mais tempo dominaram o Governo do Império: 29 anos e dois meses. Os liberais,
malgrado seus 21 Gabinetes, governaram apenas 19 anos e cinco meses.
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1990, pág. 622), já que os Governos eram substituídos em sua grande maioria
pela vontade única do Rei.
Em suma, não se pode, do ponto de vista científico, qualificar como parlamentar o sistema de governo instituído no Brasil no Segundo Império. Prova disso
é que boa parte dos requisitos relacionados neste trabalho como sendo características básicas do Parlamentarismo não estavam presentes, nomeadamente:
i) não havia separação entre o Chefe de Estado e o Chefe de Governo,
posto que, de fato, o Imperador conservava todas as funções executivas
em suas mãos;
ii) não havia responsabilidade do Governo perante o Parlamento, na medida em que a dissolução do Governo dependia exclusivamente do
Imperador, não existindo consulta ao Parlamento, nem respeito pela
maioria parlamentar;
iii)a dissolução do Parlamento poderia ocorrer por ato uníssono do Imperador, não havendo a necessidade de pedido prévio do Presidente do
Conselho de Ministros;
iv)era irrelevante a anuência, ou não, do Parlamento ao Programa de Governo do Presidente do Conselho de Ministros, de modo que a política
estatal não era controlada pelo Parlamento, e sim pelo Imperador;
v) a maioria dos Governos caíram não por moções de censura ou de confiança do Parlamento, mas sim por vontade exclusiva do Imperador
(MALUF, 2003, pág. 285).
Concorda-se, por isso, que não houve, de fato, governo parlamentar no Brasil
Imperial (SILVA, 1990, pág. 622).
5.2.o fugaz parlamentarismo republicano
O segundo momento histórico brasileiro relacionado com o Parlamentarismo
ocorreu na década de 60 do século passado. A eleição presidencial de 1960 elegera
como Presidente Jânio Quadros, candidato de extrema-direita apoiado pelos
militares. Contudo, como Vice-Presidente fora eleito João Goulart, de ideologia
mais progressista (SILVA, 1990, pág. 623).
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Ocorre que, apenas sete meses após a posse, Jânio Quadros renunciou à
presidência de República, abrindo espaço, nos termos constitucionais, para
a posse do Vice-Presidente João Goulart. Contudo, os Ministros militares
opunham-se veementemente ao nome de João Goulart como Presidente da
República, declarando, inclusive, que o retorno de João Goulart ao Brasil (que
no momento da renúncia de Jânio Quadros estava em viagem à República Popular da China) era completamente inconveniente. A crise tomara grandes
proporções, assumindo o risco de uma guerra civil.25
A solução política para o impasse foi a votação, às pressas, de uma emenda
constitucional que transformaria o Brasil numa República parlamentar, com o
objetivo de permitir a posse de João Goulart, mas subtraindo-lhe poderes. A
emenda referida foi a nº 4, de 02 de setembro de 1961, chamada de Ato Adicional.
Aprovado o Ato Adicional passou a determinar-se que o Poder Executivo seria
exercido pelo Presidente da República e pelo Conselho de Ministros, cabendo ao
Conselho a direção e a responsabilidade política do Governo e da Administração
Federal.26
Nas palavras de José Afonso da Silva (1990, pág. 623):
Esse período provou que o Presidente, no Presidencialismo, é
detentor de grandes poderes, mas numa realidade cambiante,
multipartidarista, não encontra base de sustentação estável. Tornase assim, muitas vezes um poder fraco. A concentração de poder,
na pessoa de um Presidente, com mandato fixo, é, na mais das
25 “No Rio Grande do Sul, sede do III Exército, o Governo local armava-se para enfrentar
qualquer ação que impedisse a legítima posse de João Goulart, fundamentados sob o manto
da legalidade e da constitucionalidade. Nesse contexto é que o líder do III Exército, Marechal
Lopes, aderira ao movimento, opondo-se expressamente a orientação dos ministros militares
de veto à posse do legítimo mandatário da vontade popular, numa promessa de obediência
à Constituição.” PAIVA, Leonardo Carlo Biggi de. As Origens do Parlamentarismo e a sua
Manifestação no Brasil. Disponível em http: www.infoescola.com/formas-de-governo/asorigens-do-parlamentarismo-e-sua-manifestacao-no-brasil/. Acesso em 01/04/2014.
26 BRASIL. Emenda Constitucional nº 04 de 02 se setembro de 1961. Ato Adicional. Institui
o sistema parlamentar de govêrno. Art. 1º O Poder Executivo é exercido pelo Presidente da
República e pelo Conselho de Ministros, cabendo a êste a direção e a responsabilidade da
política do govêrno, assim como da administração federal. Obs. Texto no português original.
Texto disponível em http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=113505.
Acesso em 02/04/2014.
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vezes, empecilho à solução das crises de poder. Um poder forte,
sem mecanismo flexível de solução de crises governamentais, se
torna, no fundo, num poder fraco, sob a perspectiva democrática.
Os poderes do Presidente da República estavam descritos na Emenda
parlamentar, podendo destacar-se os seguintes: nomear o Presidente do Conselho
de Ministros e, por indicação deste, os demais Ministros de Estado e exonerá-los,
quando a Câmara dos Deputados lhes retirar a confiança; presidir às reuniões
do Conselho de Ministros, quando julgar conveniente; representar a Nação
perante os Estados estrangeiros; celebrar tratados e convenções internacionais,
ad referendum do Congresso Nacional; declarar a guerra depois de autorizado
pelo Congresso Nacional ou sem essa autorização, no caso de agressão estrangeira
verificada no intervalo das sessões legislativas; fazer a paz, com autorização e ad
referendum do Congresso Nacional; exercer, através do Presidente do Conselho de
Ministros, o comando das Forças Armadas.
Quanto ao Conselho de Ministros, a Emenda estatui, expressamente, dentre
outras competências, que o Conselho responderia coletivamente perante a
Câmara dos Deputados pela política do Governo e pela administração federal, e
cada Ministro de Estado, individualmente, pelos atos que praticasse no exercício
de suas funções; que todos os atos do Presidente da República deveriam ser
referendados pelo Presidente do Conselho e pelo Ministro competente, como
condição de validade (referenda ministerial).
Contudo, tal sistema possuía vícios que o levaram a um rápido abandono.
Primeiro, fora criado em um momento de crise e como instrumento para retirada
do poder de um Presidente da República específico27, ou seja, nasceu não como
um instrumento de disseminação da democracia, mas sim beirando um golpe
de Estado. Segundo, o mecanismo previsto para a nomeação do Governo era
extremamente burocrático e complicado (SILVA, 1990, pág. 623)28.
27 “Nenhuma circunstância favorecia, por conseguinte, a consolidação daquele Parlamentarismo
condenado pelo berço espúrio, pelo caráter de enxertia de que se revestiu, pelo atentado que
representou ao princípio monista do poder democrático, fazendo o governo dualista, tanto na
sua formação como no seu exercício” (BONAVIDES, 2010, pág. 447).
28 BRASIL. Emenda Constitucional nº 04 de 02 se setembro de 1961. Art. 8º O Presidente da
República submeterá, em caso de vaga, à Câmara dos Deputados, no prazo de três dias, o nome
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Ressalta, ainda, José Afonso da Silva (1990, pág. 624) que um outro fator
para a derrocada do sistema foi a previsão da obrigatoriedade de desincompatibilização (afastamento do cargo) dos membros do Conselho de Ministros para
que participassem das eleições parlamentares.
Contudo, o principal ponto para a falência do sistema foi a redação do art.
25 do Ato Adicional29, a qual prescrevia a possibilidade de realização de um
plebiscito que decidiria pela manutenção do sistema parlamentar ou a volta do
sistema presidencial.
Interessado em retomar os plenos poderes, João Goulart conseguiu convencer
o Conselho de Ministros a realizar um plebiscito em 1963, em desacordo com o
prescrito no artigo 25 da Emenda 04/61, na medida em que nesta só se previa a
possibilidade de realização de plebiscito nove meses antes do término do mandato
do atual Presidente da República, o que ocorreria apenas em 1966.
Realizado o plebiscito, a maioria absoluta do povo decidiu pelo retorno ao
sistema presidencialista, pondo fim à única e rápida experiência (minimamente)
parlamentar da história política brasileira.30
do Presidente do Conselho de Ministros. A aprovação da Câmara dos Deputados dependerá
do voto da maioria absoluta dos seus membros. Parágrafo único. Recusada a aprovação, o
Presidente da República deverá, em igual prazo, apresentar outro nome. Se também êste fôr
recusado, apresentará no mesmo prazo, outro nome. Se nenhum fôr aceito, caberá ao Senado
Federal indicar, por maioria absoluta de seus membros, o Presidente do Conselho, que não
poderá ser qualquer dos recusados. Art. 9º O Conselho de Ministros, depois de nomeado,
comparecerá perante a Câmara dos Deputados, a fim de apresentar seu programa de govêrno.
Parágrafo único. A Câmara dos Deputados, na sessão subseqüente e pelo voto da maioria
dos presentes, exprimirá sua confiança no Conselho de Ministros. A recusa da confiança
importará de nôvo Conselho de Ministros. Art. 10. Votada a moção de confiança, o Senado
Federal, pelo voto de dois terços de seus membros, poderá, dentro de quarenta e oito horas,
opor-se à composição do Conselho de Ministros. Parágrafo único. O ato do Senado Federal
poderá ser rejeitado, pela maioria absoluta da Câmara dos Deputados, em sua primeira sessão.
Obs. Texto no português original. Texto disponível em http://legis.senado.gov.br/legislacao/
ListaPublicacoes.action?id=113505. Acedido em 02/04/2014.
29 BRASIL. Emenda Constitucional nº 04 de 02 se setembro de 1961. Art. 25. A lei votada nos
termos do art. 22 poderá dispor sobre a realização de plebiscito que decida da manutenção
do sistema parlamentar ou volta ao sistema presidencial, devendo, em tal hipótese, fazerse a consulta plebiscitaria nove meses antes do termo do atual período presidencial. Obs.
Texto no português original. Texto disponível em http://legis.senado.gov.br/legislacao/
ListaPublicacoes.action?id=113505. Acedido em 02/04/2014.
30 Após o retorno ao regime presidencialista e mantendo João Goulart a função de Presidente da
República, mas agora exercendo sozinho a função de Chefe de Estado e Chefe de Governo,
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i encontro de internacionalização do conpedi
Contudo, como bem ressalta Sahid Maluf (2003, pág. 287), “o fracasso dessa
experiência parlamentarista não chega a depor contra a excelência do sistema,
mesmo porque, em última análise, o Ato Adicional de 1961 não continha senão
um tímido arremedo de Parlamentarismo”.
5.3.o parlamentarismo e a constituição de 1988
A Constituição brasileira de 1988 quase foi parlamentar. Esta afirmação pode
parecer inverídica e impossível, porque o sistema de governo descrito na referida
carta política é o Presidencialismo. Contudo, numa análise mais atenta, notarse-á que a ideia inicial era a da criação de um sistema parlamentar no Brasil.
Após o fim da ditadura militar, instaurou-se a Assembléia Constituinte de
01 de fevereiro de 1987, com a missão de criar um novo texto constitucional
para consolidar o processo de redemocratização. Durante a elaboração do texto,
a Comissão III (Organização dos Poderes e Sistema de Governo) era composta
por três outras subcomissões (uma dedicada ao Poder Legislativo, outra ao Poder
Judiciário e ao Ministério Público, e a última dedicada ao Poder Executivo).
A subcomissão responsável pelo Poder Executivo apresentou uma proposta
inovadora, prevendo que o sistema de Governo a ser adotado pelo Brasil na nova
Constituição seria o parlamentar. Submetido à votação na Comissão III, o Projeto
parlamentar foi aprovado.
Neste sentido, José Afonso da Silva cita o texto do projeto, afirmando o
seguinte (SILVA, 1990, pág. 668/669):
Era uma proposta coerente, na qual se separava devidamente a
Presidência da República do Governo. O Presidente da República
seria o Chefe de Estado e comandante supremo das Forças
Armadas, cabendo-lhe garantir a unidade, a independência, a
defesa nacional e o livre exercício das instituições democráticas.
Seria eleito por sufrágio universal, direto e secreto, por maioria
absoluta em dois turnos, se necessário, para um mandato de cinco
anos (…). O Governo seria exercido pelo Primeiro Ministro e
instaurou-se uma forte crise política que acabou por culminar no nefasto Golpe Militar de
1964.
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06
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i encontro de internacionalização do conpedi
pelos integrantes do Conselho de Ministros, que dependeriam da
confiança da Câmara dos Deputados e seriam exonerados quando
ela lhes faltasse.
Contudo, a proposta parlamentar não agradou ao então Presidente da
República, nem à maioria dos Governadores dos Estados, os quais não desejavam
perder qualquer parcela do poder que já possuíam (e tinham esperança de mantêlo em novas eleições). Por esse motivo, houve uma grande pressão sobre os
Deputados constituintes para que, no Plenário, rejeitassem o Parlamentarismo.
Submetida a proposta em votação plenária, o projeto parlamentar foi rejeitado
pela Assembleia Constituinte.31 Ainda se tentou aprovar uma proposta de sistema
misto (denominado Presidencialismo parlamentarizado, mas não houve sucesso).
Embora derrotado, os defensores do Parlamentarismo conseguiram inserir
no texto da Carta Constitucional de 1988 o artigo 2º do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, o qual convocara um plebiscito para o dia 7 de
setembro de 1993, no qual os brasileiros poderiam escolher a forma de governo
(República ou Monarquia constitucional) e o sistema de governo (Presidencialismo
ou Parlamentarismo).
O mais interessante do citado artigo é que ele possui uma prescrição
constitucional potencialmente “suicida”, ante o fato de que se houvesse escolha
pela forma monárquica, toda a Constituição estaria revogada, devendo uma
outra ser elaborada, ante a absoluta incompatibilidade do texto positivado com a
monarquia. Contudo, tal problema não chegou a ocorrer, em razão da vitória da
República e do Presidencialismo no plebiscito realizado em 1993, mantendo-se o
texto da Constituição de 1988.
31 “Houve indecente pressão do Presidente da República, de seus Ministros e da Maioria dos
Governadores do Estado contra o Parlamentarismo. Foi a única vez em que compareceram
todos os quinhentos e cinquenta e nove membros da Assembléia Constituinte. A mobilização
envolveu recursos de toda a ordem, aviões para buscar constituintes, ofertas de favores especiais
para constituintes votarem contra o Parlamentarismo e em favor de uma das propostas de
Presidencialismo. (…) A vitória do Presidencialismo foi a maior prova do poder pessoal do
Presidente da República. Mesmo quando este não goza, em nível nacional, de prestígio e
de credibilidade, assim mesmo dispõe de uma máquina governamental capaz de fazer votos
parlamentares em prol de seus interesses políticos.” (SILVA, 1989, pág 671).
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i encontro de internacionalização do conpedi
6. conclusão - parlamentarismo, por que não?
A derrota do Parlamentarismo no plebiscito de 1993 arrefeceu as discussões
sobre a questão do sistema de Governo no Brasil. No entanto, nos últimos anos,
e diante as numerosas crises políticas, a doutrina retomou o debate sobre a
viabilidade, ou não, da mudança do sistema instituído.
De tudo quanto se escreveu neste trabalho, a primeira conclusão a que se chega
é que nunca não houve, efetivamente, a implantação de um sistema parlamentar no
Brasil (ou, pelo menos, não houve por período suficiente) para que se possa fazer
uma análise empírica do comportamento da sociedade brasileira no referido sistema.
Contudo, a ausência de elementos empíricos não impede que o Parlamentarismo possa ser uma boa opção para superar os problemas políticos existentes
no Brasil.
O primeiro ponto a favor é a constatação de que o Parlamentarismo é um regime
mais democrático, porque submete o governante à vontade popular não apenas
no momento das eleições, mas, também, durante todo o período de Governo, em
razão da possibilidade de aprovação de uma moção de censura e/ou afastamento
do Primeiro-Ministro a qualquer tempo. Além do mais, a possibilidade de
dissolução do Parlamento e de convocação de novas eleições permite que o povo
se pronuncie directamente, em momentos de graves crises políticas e desavenças
entre o Chefe de Estado, o Chefe de Governo e o Parlamento, e decida quais
devem ser os titulares dos cargos.
Em uma República parlamentar, mesmo uma eventual eleição indireta do Chefe de Estado (Presidente) não deixa de ser um mecanismo democrático, pois permite aos representantes do povo escolherem quem será o mediador entre os inúmeros interesses em jogo no cenário político, com um mandato temporalmente fixado.
O Executivo e o Legislativo trabalhariam num intenso regime de colaboração,
já que nenhum Governo se manteria no poder sem a anuência da maioria do
Congresso, evitando-se o fenômeno da constante “compra” de apoio e votos32 dos
parlamentares.
32 Os noticiários brasileiros são fartos de exemplos onde o Presidente ou Governador, após eleito
e precisando conquistar o apoio da maioria do Congresso ou da Assembleia Legislativa para
poder aprovar as leis de seu interesse e imprimir as políticas que entende necessárias, distribui
Ministérios, cargos públicos e demais benesses entre os Partidos políticos que aderem ao
Governo.
volume
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61
i encontro de internacionalização do conpedi
Outro ponto importante seria a rápida e legítima solução para as crises
políticas. Com efeito, a flexibilidade do sistema parlamentar permite a imediata
substituição dos Governos que se envolvam em atos de corrupção (tão comuns
no Brasil) através de mecanismos de responsabilização política. Diferentemente,
no atual regime (presidencialista), o afastamento do governante corrupto só
poderá ocorrer após um difícil e longo processo judicial por atos de improbidade
administrativa ou em caso de condenação penal, os quais, em razão dos entraves
legislativos/processuais e falta de estrutura do Judiciário brasileiro, demoram anos
(quiçá décadas) para serem julgados, sendo o povo obrigado a conviver com um
mau político durante todo o resto do mandato.
Alguns argumentam que o Presidencialismo possui o impeachment para a
solução de tais crises. Contudo, a prática demonstra que os requisitos para a sua
efectivação são demasiadamente rigorosos e sujeita ainda o cenário político a um
processo de instabilidade por demais perigoso.
A ausência de tempo fixo para a permanência do Governo é algo que
se perspectiva verdadeiramente de positivo, inclusive para se permitir o
prolongamento de uma boa gestão. Como já se referiu acima, o Presidencialismo
é estável para o mal e instável para o bem (ALBUQUERQUE, 1932, pág. 43),
posto que prolonga demasiadamente os maus Governos e finda inevitavelmente os bons Governos.
Ainda que, como o leitor já se apercebeu, se defenda uma eventual
experimentação da institucionalização do sistema parlamentar no Brasil, ciente
do risco de Governos perpétuos, poder-se-ia sempre estabelecer um período
máximo, ainda que longo, para a manutenção de um mesmo Primeiro-Ministro
no cargo.
A valorização dos partidos e do seu caráter ideológico, além da predisposição
para um maior envolvimento político do povo, afiguram-se como ganhos
imensuráveis, inclusive como instrumentos de inclusão política e mecanismos
de formação de novos quadros políticos. Com efeito, a posição de destaque dos
partidos no regime parlamentar é proclamada por Clóvis de Souto Goulart (1979,
pág. 47) nos seguintes termos:
São efetivamente eles, na condição de veículos de expressão das
ideias e das aspirações nacionais, que governam o Estado. Só
62
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06
i encontro de internacionalização do conpedi
através deles, como entes catalisadores e organizadores da opinião
pública, a maioria dos cidadãos, pela via da representação política,
terá condições de exercitar o poder. Em suma, só com eles a
democracia será possível.
Por fim, pode o leitor perguntar-se qual seria o instrumento jurídico apropriado para uma mudança do sistema de governo. Entende-se que uma Emenda
Constitucional poderia, perfeitamente, conduzir a uma modificação do sistema,
sem necessidade de nova manifestação do poder constituinte originário, desde
logo porque, dentre as cláusulas pétreas (imodificáveis) previstas na Constituição
Federal brasileira de 1988, não consta o sistema de governo.33
A implementação do Parlamentarismo no Brasil não atingiria a forma
federativa de Estado (primeira cápsula pétrea), em razão de que, conforme acima
debatido, não há incompatibilidade entre o Parlamentarismo e o Federalismo.
A segunda cláusula pétrea (voto direto, secreto, universal e periódico) também
não seria maculada, ante a persistência de eleições diretas para os membros do
Parlamento. A separação dos Poderes (terceira cláusula pétrea) não seria anulada,
tendo em vista que no Parlamentarismo também existe uma separação dos
poderes, embora diferente porque se incrementam as relações entre o Executivo
e o Legislativo. Por fim, não se perspectiva um desrespeito à quarta (e última)
cláusula pétrea expressa, considerando que o sistema parlamentar é plenamente
compatível com o respeito pelos direitos e garantias fundamentais.
Em suma, do ponto de vista formal, não se encontra obstáculo.
No entanto, diga-se, em abono da verdade, não se está aqui a afirmar que
o Parlamentarismo vai, como que em um passe de mágica, solucionar todos os
problemas políticos brasileiros. Obviamente que não! Tal configura-se impossível.
O que se pretendeu demonstrar nesta pequena reflexão foi que o
Parlamentarismo possui instrumentos jurídicos e políticos que se creem mais
efetivos para uma evolução democrática no Brasil34. Ou, pelo menos, que os
33 As cláusulas pétreas da Constituição Federal brasileira de 1988 estão previstas no artigo 60,
§ 4º. São elas: a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a
separação dos Poderes; e os direitos e garantias individuais.
34Em sentido aproximado, embora para a realidade político-constitucional portuguesa,
escrevem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira que “[a] principal alteração estrutural
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06
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i encontro de internacionalização do conpedi
políticos tenham a coragem de experimentar se tal faria funcionar melhor o
sistema político-constitucional brasileiro, na busca de um efetivo desenvolvimento econômico, político e social neste século XXI.
Recorde-se, como bem explanou Raul Pilla (1999, pág. 130), que “o êxito
dos regimes depende muito mais do espírito com que são aplicados e da
correspondência com o meio social que pretendem governar, do que da sua
estrutura jurídica.”
7.referências
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introduzida pela CRP [Constituição da República Portuguesa de 1976 – atualmente
vigente] neste esquema formal – para além dos pressupostos democráticos nas eleições do
PR [Presidente da República] e da AR [Parlamento português denominado Assembleia da
República] – , tornar o Governo dependente também da Assembleia, devolvendo ao sistema
a componente parlamentar que tinha sido suprimida em 1933 [a Constituição portuguesa de
1933 corresponde ao período antidemocrático e autoritário que nasceu com o golpe de Estado
em 1926 e durou até à Revolução do 25 de Abril de 1974, à qual se seguiram os trabalhos
constituintes tendentes a aprovar a Constituição de 1976]. Para encontrar a citação e/ou
aprofundar no assunto, vide CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital, Constituição
da República Portuguesa Anotada, vol. II – Artigos 108.º a 296.º, 4.ª ed. revista, Coimbra
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67
i encontro de internacionalização do conpedi
participação e proteção dos direitos
humanos na implantação de políticas
de reurbanização: um estudo de caso do
progr ama polos de cidadania
Adriana Goulart de Sena Orsini1
Nathane Fernandes da Silva 2
Resumo
O presente artigo abordará a questão do desenvolvimento urbanístico e
socioeconômico de aglomerados de favelas, promovido por políticas públicas de
caráter sociourbano, e alguns problemas daí advindos, especialmente em relação à
violação e a não garantia de direitos humanos-fundamentais nesses locais. De modo
a demonstrar esta situação, debateram-se problemas decorrentes da implantação
do Programa Vila Viva, uma política pública do município de Belo Horizonte
em comunidades vulnerabilizadas, com efeitos nas esferas urbanística, jurídica
e socioeconômica. A partir da metodologia do estudo de caso, foram analisadas
situações em que restou demonstrado como a participação popular é imprescindível
para possibilitar a efetivação dos direitos humanos-fundamentais em processos de
intervenção pública que buscam o desenvolvimento de comunidades excluídas.
Concluiu-se, por fim, que a abertura de canais dialógicos entre a comunidade e o
Poder Público, por meio da metodologia da mediação, pode ser um instrumento
fundamental para se aliar desenvolvimento e garantia de acesso à ordem jurídica justa.
Palavras-chave
Políticas públicas; Desenvolvimento sociourbano; Direitos humanos-fundamentais; Participação; Mediação.
1 Professora Doutora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). Membro do corpo permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito
da UFMG. Juíza Federal da 47ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte – TRT 3ª Região.
Coordenadora do Programa RECAJ UFMG.
2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade
Federal de Minas Geras (UFMG) – orientação: Profa. Dra. Adriana Goulart de Sena Orsini.
Professora Adjunta da Faculdade de Estudos Administrativos – FEAD MG. Mediadora de
Conflitos. Subcoordenadora do Programa RECAJ UFMG.
volume
06
69
i encontro de internacionalização do conpedi
Abstract
This article will address the issue of urban and socioeconomic development of
clusters of slums, promoted by sociourban public policies , and some problems
which arise from them, especially in relation to rape and no guarantee of
fundamental human rights in these sites. In order to demonstrate this situation,
debates were hold concerning problems arising from the implementation of the
Program Vila Viva, a public policy of the city of Belo Horizonte in vulnerable
communities, with effects in the urban, legal and socioeconomic spheres. Based
on the case study methodology, we analyzed situations which demonstrated that
popular participation is essential to enable the realization of fundamental human
rights in processes of public intervention aiming the development of excluded
communities. Final conclusion was that the opening of dialogic channels between
the community and the government, through the methodology of mediation can
be a key tool to combine development and guarantee of access to fair legal system.
Key words
Public policies; Sociourban development; Fundamental human rights;
Participation; Mediation.
1.introdução
O cenário urbano brasileiro se remodelou rapidamente nas últimas décadas, o
que acarretou mudanças alinhadas ao crescimento econômico e demográfico do
país e a novas configurações políticas e jurídicas nacionais. Novos grupos sociais
se constituíram, novas necessidades surgiram e outras formas de regulação, de
aplicação do direito e de solucionar conflitos emergiram (GUSTIN; PEREIRA,
2012, p. 21). Nesse contexto, o desenvolvimento das cidades não vem ocorrendo
de forma harmônica e homogênea, o que torna a sociedade e as relações sociais
ainda mais complexas.
A este conjunto, soma-se a falta de planejamento adequado das cidades, o que
acaba por gerar uma ocupação desordenada e ilegal do território, e, consequentemente, o aumento das áreas de exclusão e de risco social, nas quais o acesso à justiça3
3 O termo “acesso à justiça” aqui é compreendido como o direito dos cidadãos de verem suas
questões analisadas pelo Estado, serem ouvidos por este e, simultaneamente, usufruírem
70
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i encontro de internacionalização do conpedi
e a efetivação de direitos humanos-fundamentais4 é uma realidade distante. Em Belo
Horizonte, capital do estado de Minas Gerais – Brasil –, por exemplo, quase um
quinto da população vive em vilas e favelas5, terrenos não regularizados e desprovidos
de infraestrutura adequada. Nestes espaços, o quadro de populações em situação de
risco, de exclusão e de violação de direitos, com acesso à justiça insuficiente ou até
mesmo inexistente, é uma alarmante realidade nos contextos urbanos.
O Estado, em parte de sua atuação, não se mantém inerte diante das
desigualdades sociais, econômicas e jurídicas provocadas pelo desenvolvimento
urbano não adequadamente ordenado. Diversas ações são pensadas, planejadas
e executadas para a melhoria das condições da população de modo geral e para a
diminuição das diferenças socioeconômicas das regiões intramunicipais. Todavia,
muitas dessas ações são realizadas de modo insatisfatório, inadequado ou até
mesmo prejudicial, o que, se não agrava, mantém a situação de vulnerabilidade
de certas regiões.
São exemplos de ações que não atingem o escopo de realização esperada pela
atuação estatal algumas políticas públicas adotadas no intuito de se promover
a reurbanização e a regularização fundiária dos espaços informais das grandes
cidades. Em boa parte das intervenções, a população local ou não é consultada ou
é pouco escutada, e projetos que não atendem às comunidades são implantados,
portanto, de forma autoritária, imposta e não dialogada. Sob o argumento e visão
de que se está a levar o desenvolvimento a essas localidades, o Poder Executivo,
de modo satisfatório dos serviços públicos (SENA, 2010, p.157). Este conceito extrapola a
definição clássica de acesso à justiça como somente acesso ao Poder Judiciário e ao devido
processo, para englobar o acesso a uma ordem jurídica efetiva e justa.
4 O uso da expressão direitos humanos-fundamentais no presente artigo tenciona reforçar
a importância da efetivação de tais direitos, tutelados nacional e internacionalmente. Tal
expressão substancia a ideia de direitos e não meras concessões, tendo em vista a formalização
dos direitos humanos no plano internacional, por meio da Carta das Nações Unidas, e dos
mesmos enquanto direitos fundamentais no plano nacional, através da Constituição da
República de 1988. A autora Mariá Brochado afirma que “o espírito das leis do nosso tempo
são os direitos humanos-fundamentais” (BROCHADO, 2010, p. 38).
5 Informação retirada do site da Prefeitura de Belo Horizonte, que, por meio de dados levantados
pela Diretoria de planejamento da URBEL – Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte
–, afirma que 19% (451.395 habitantes) da população da cidade de Belo Horizonte vivem
em terrenos irregulares, caracterizados como vilas e aglomerados de favelas (PREFEITURA,
2012).
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71
i encontro de internacionalização do conpedi
por vezes, acaba desrespeitando os direitos fundamentais e humanos de seus
moradores e agravando a situação socioeconômica destes, produzindo mais
exclusão e vulnerabilidade social.
A difícil tarefa de reversão do quadro de desigualdades criadas ou agravadas em
virtude do desenvolvimento social, econômico e urbanístico deve ser realizada com
a imprescindível participação popular, afim de que todos os cidadãos se envolvam
e se impliquem nos destinos das cidades. À população deve ser franqueada
participação ativa nas questões da cidade, de modo que o desenvolvimento
urbano traga melhorias efetivas em suas condições de vida, assumindo, assim, uma
postura emancipatória e de mobilização; no mesmo diapasão, a população deve,
portanto, ser ouvida pelos governantes para que, de forma conjunta e dialógica,
políticas públicas adequadas sejam alcançadas e se tornem uma realidade nesses
espaços, representando um desenvolvimento verdadeiramente sustentável6.
As questões levantadas não têm sido debatidas satisfatoriamente pelos
governos e pela sociedade civil, e as ações empreendidas não têm merecido o
aprofundamento devido por estudos e pesquisas da comunidade acadêmica,
de modo geral. São problemas que, na maioria das vezes, estão à margem das
discussões, e que envolvem diretamente a (falta da) realização do direito e do
acesso à justiça no desenvolvimento do país.
No presente artigo, será abordada a questão do desenvolvimento urbano
em aglomerados de favelas, das políticas públicas municipais voltadas para
essas comunidades e suas relações com a realização dos direitos humanos e
fundamentais e do acesso à justiça. De modo a ilustrar os problemas gerados
pelo desenvolvimento das cidades, com enfoque na violação de direitos humanosfundamentais e na necessidade de abertura de canais de diálogo para a promoção
desses direitos, será trazido ao debate a situação dos Aglomerados Serra e Santa
Lúcia frente à política de reurbanização de vilas e favelas da prefeitura municipal
6 A ideia de desenvolvimento sustentável envolve a elaboração e execução de projetos e
intervenções pelo Poder Público que possibilitem um salto de qualidade de vida para a
população, levando-se em consideração não apenas a preservação do meio ambiente, mas
também questões sociais, culturais, econômicas e urbanísticas, dentre outras. As políticas
públicas sustentáveis devem visar todos os setores sociais, sob pena de se tornarem perversas
e excludentes para determinados grupos. A sustentabilidade destas políticas se encontra, em
parte, no respeito ao pluralismo e à participação social nas etapas do processo.
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volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
de Belo Horizonte, denominada Programa Vila Viva, ação vinculada ao PAC
– Programa de Aceleração do Crescimento – do governo federal, uma ação de
desenvolvimento sociourbano.
Será utilizada, para tanto, a técnica metodológica do estudo de caso, a fim
de se buscar informações sobre os eventos em questão e compreendê-los em
determinado contexto, analisando e/ou buscando possíveis soluções para a situação
pesquisada. O estudo de caso envolve a coleta de informações sobre determinado
objeto – que pode ser um processo social, como no presente estudo – a fim de
se conhecer como opera em um contexto real, indicando porque certas decisões
ou intervenções foram tomadas ou implantadas e quais foram seus resultados
(CHIZZOTTI, 2011, p. 135).
A partir da experiência vivenciada no Programa Polos de Cidadania, atividade de pesquisa e extensão da Faculdade de Direito da Universidade Federal
de Minas Gerais – UFMG –, será relatada e analisada a intervenção municipal
nos referidos Aglomerados em dois momentos distintos: no Aglomerado da
Serra, após a implantação do Programa Vila Viva, e no Aglomerado Santa Lúcia,
durante o processo de implantação do referido programa, que teve início com a
discussão do projeto elaborado para esta localidade, mas antes do seu término
(em relação ao Aglomerado Santa Lúcia, o corte temporal da pesquisa se deu
entre os anos de 2010 e início de 2012, período em que as discussões foram
acompanhadas pelas autoras do presente artigo). O que se pretende demonstrar é
a necessidade de que a formulação de políticas públicas ocorra em parceria efetiva
com as comunidades que sofrerão intervenções de cunho urbanístico e social, de
modo a evitar que o pretenso ou real desenvolvimento destas localidades ceda
lugar ao agravamento dos problemas socioeconômicos vivenciados pelas mesmas
ou por outras comunidades com histórico de exclusão em um contexto regional.
Será demonstrado, também, como o uso de técnicas da metodologia da
mediação7 pode ser uma importante ferramenta nestes processos de elaboração
e implantação de políticas públicas urbanizadoras, na perspectiva de que tal mé7 Vale ressaltar, desde já, que a mediação a que o presente artigo se refere foi especialmente
desenvolvida e adequada aos contextos urbanos em que o Programa Polos de Cidadania atua,
voltando-se essencialmente para a solução pacífica de conflitos por meio da promoção da
responsabilização e da emancipação de seus usuários.
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i encontro de internacionalização do conpedi
todo, para além da resolução consensual de conflitos, é um instrumento de acesso
à justiça, de emancipação social e de exercício da cidadania pela participação.
A escolha de tal metodologia para ser aplicada em contextos vulnerabilizados
justifica-se, portanto, pelo fato da mediação ser uma alternativa para a minimização ou superação de riscos e danos destes segmentos sociais (GUSTIN,
2005). Isto porque a mediação promove o diálogo entre os envolvidos em conflitos, estimulando a comunicação e a intercompreensão entre estes, em detrimento
do uso da violência.
A necessidade de políticas públicas sustentáveis, que promovam um
desenvolvimento social, econômico e urbanístico efetivos, de modo a transformar o cenário das cidades, sem, contudo, prejudicar populações socioeconomicamente excluídas, é tema que será apresentado a seguir.
2.da necessidade de políticas públicas par a a efetiva
promoção dos direitos humanos-fundamentais
Conforme exposto anteriormente, por diversas vezes a violação de direitos
humanos-fundamentais em algumas localidades do Brasil está intimamente
relacionada ao desenvolvimento não sustentável e heterogêneo das cidades, que
apresentam regiões muito desenvolvidas em detrimento de outras nas quais o
desenvolvimento não é suficiente para retirar-lhes a condição de exclusão, pobreza
e indignidade.
A pobreza no Brasil assola boa parte de sua população, que não consegue ver
supridas suas necessidades básicas, que, para além da falta de acesso à alimentação
saudável e suficiente, educação e saúde, dentre outros, envolve também a falta de
moradia digna. Grande parcela de moradores de terrenos irregulares e informais
no Brasil sofre com a ausência de efetivação de direitos, mesmo estando acima
da dita “linha da pobreza” estabelecida para o país. Assim, a pobreza não pode
ser medida apenas pela insuficiência de renda: é pobre mesmo quem, possuindo
renda, não a consegue converter em uma vida decente, por diversas carências,
como saúde, eduação ou moradia (VEIGA, 2010).
Comunidades inteiras permanecem repisando uma situação de vulnerabilidade intensa: moradias em situação de risco, alto nível de violência – tanto entre os
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i encontro de internacionalização do conpedi
indivíduos quanto aquela protagonizada pelo Estado e instituições –, desemprego
e subemprego, acesso à saúde inexistente ou insuficiente, baixa escolaridade,
limitado acesso à informação; compreensão da informação recebida de forma
deficitária e não acesso aos direitos e à Justiça, dentre outros, são realidades
recorrentes junto a grupos historicamente excluídos que contribuem fortemente
para a degradação humana (SENA; SILVA, 2012).
Trata-se de populações que representam elevados níveis de pobreza, pobreza
esta que não mais inclui ou marginaliza, mas, sendo generalizada e permanente,
exclui camadas da população do sistema vigente (SANTOS, 2011), com a
consequente negativa de acesso à justiça e de efetivação de direitos humanosfundamentais.
O acesso a estes direitos é assunto de interesse de todos e que tem a necessidade
de ser tutelado pelo Estado. Ocorre que certos países, que deveriam ter como foco
central a efetivação dos direitos humanos-fundamentais, não conseguem realizar
tal objetivo de forma abrangente e definitiva, já que muitas vezes a situação de
violação é tão intensa que se apresenta de forma quase irreversível; em outros
casos, há uma naturalização da pobreza e da situação de exclusão de parcelas
consideráveis da sociedade (SANTOS, 2011), o que também dificulta a reversão
deste quadro. Assim, as localidades nas quais se verifica uma grande violação
de direitos humanos-fundamentais são aquelas que permanecem em crescente
distanciamento entre realidade vivenciada e o acesso concreto a uma ordem
jurídica efetivamente justa e cidadã.
Na América Latina, especialmente em certos locais como os aglomerados de
favelas no Brasil, a escassez ou até mesmo a inexistência de recursos e canais que
permitam um acesso aos direitos é patente. De acordo com Gustin (2005, p.181),
as estátisticas sociodemográficas e econômicas e outros estudos vêm demonstrando
que na América Latina ainda persistem espaços de extrema pobreza e degradação
humana.
O Brasil se inclui nestas regiões de degradação humana, em que pese constatarse a existência de movimentos e ações em prol de mudanças dessa perversa
realidade. Políticas públicas para a promoção dos direitos humanos-fundamentais
são realizadas, mas ainda de forma tímida, distanciadas da realização de uma
justiça social e insuficientes a atingir de modo satisfatório todas as camadas sociais,
especialmente aquelas nas quais o forte histórico de exclusão está arraigado.
volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
Existe uma crença generalizada de que o Poder Judiciário é a via de acesso
para a efetivação dos direitos humanos-fundamentais. Sem dúvidas é uma das
vias. Entretanto, o que se vê há algum tempo é que o Judiciário tem limitações
em sua atuação, sendo seus instrumentos alvo constante de reformas legislativas
e até mesmo de inovações práticas. Além disso, a sociedade e outros poderes
devem assumir a sua parcela de participação na efetivação dos referidos direitos.
É imprescindível, neste contexto, que o acesso à justiça seja compreendido
como acesso a uma ordem jurídica justa, o que inclui, necessariamente, o acesso
e concretização dos direitos humanos-fundamentais, e que isto se torne uma
realidade para os cidadãos e não apenas para parcela da população brasileira.
Se o acesso à justiça – em sentido amplo – não está garantido para a sociedade
de modo geral (por uma série de fatores, sabe-se), isto se agrava em contextos
socioeconômicos mais vulneráveis, especialmente junto a populações que vivem
em vilas e aglomerados de favelas e que sofrem com violações constantes aos seus
direitos, sem acesso ou com acesso incipiente a serviços públicos de qualidade e
também ao próprio Poder Judiciário.
Nessas localidades, o que se observa é a grande dificuldade de alteração do
patamar de extrema vulnerabilidade social, uma vez que não há ainda uma política pública ou social eficiente que permita um acesso efetivo aos direitos, que
são ali violados. Gustin (2005, p. 186) afirma que o suprimento das necessidades
triviais do ser humano e a promoção do acesso igualitário a bens e serviços
deve ser a primeira preocupação do Estado, por meio de políticas públicas que
efetivamente cumpram os direitos fundamentais e humanos, e que aumente as
possibilidades de se distribuir os bens disponíveis àqueles que mais necessitam.
Gustin prossegue o seu raciocínio explicitando que um dos fatores que
impossibilita a expansão dos direitos humanos nos países periféricos, como o
Brasil, é a forte descrença que se tem de que algo de efetivo possa ser feito, de
modo a realizar uma sociedade mais justa, em sentido lato. Há uma “desesperança
em relação a mudanças efetivas que possam recompor o bem-estar social e atribuir
maior dignidade à população como um todo” (GUSTIN, 2005, p. 187). Na
mesma corrente, Santos aponta que “exclusão e dívida social aparecem como se
fossem algo fixo, imutável, indeclinável, quando, como qualquer outra ordem,
pode ser substituída por uma ordem mais humana” (SANTOS, 2011, p. 76).
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i encontro de internacionalização do conpedi
O que se percebe, então, é uma soma de fatores que levam a uma desvalorização
e não promoção dos direitos humanos-fundamentais, especialmente junto a
comunidades vulnerabilizadas, que possuem histórico de exclusão e trajetória
de risco: o Estado não realiza políticas públicas e sociais suficientes; o Poder
Judiciário, sozinho, não consegue solucionar a questão de forma satisfatória; e a
população, de modo geral, está descrente numa transformação social real (SENA;
SILVA, 2012).
Ponto central do presente estudo, as políticas públicas, além de serem por
vezes insuficientes para garantir um efetivo acesso à justiça e a realização de
di-reitos, quando de fato são realizadas, apresentam consequências diversas.
Em alguns casos, as ações de desenvolvimento executadas pelos governos,
especialmente aquelas voltadas para urbanização, regularização fundiária e
melhoria de infraestrutura de vilas e favelas, possuem um caráter ambíguo e
paradoxal: ao mesmo tempo em que promovem melhorias para alguns, acabam
por gerar ainda mais precariedade para outros.
Alguns exemplos que ilustram esta situação podem ser observados no Brasil,
como é o caso da Zona Leste do município de São Paulo. Este local, alvo dos
políticos paulistanos pela elevada expressão eleitoral, recebeu investimentos em
massa do Poder Público na década de 1970. Apesar de terem gerado uma boa
infraestrutura para a região, tais recursos, entretanto, não foram suficientes para
alocar toda a população, cujo excedente acabou se alojando em invasões e favelas
na região (ALMEIDA; D’ANDREA; LUCCA, 2008, p. 123).
Ainda em relação à Zona Leste, a vinte e cinco quilômetros do centro de
São Paulo foi construída uma grande área de conjuntos habitacionais como
política pública para realocar a população pobre de outras regiões de São Paulo
e diminuir o déficit da habitação (ALMEIDA; D’ANDREA; LUCCA, 2008, p.
115). Ocorre que as pessoas deslocadas para esta região, denominada “Cidade
Tiradentes”, acabaram sendo extremamente distanciadas de seus respectivos
trabalhos e empregos, o que representou um aumento nos custos com transporte
e queda na qualidade de vida:
Cidade Tiradentes tem um emprego a cada 398 indivíduos, o que
tem por resultado o desgastante deslocamento diário de milhares
de pessoas em direção às regiões centrais, o qual chega a demorar
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i encontro de internacionalização do conpedi
de quatro a cinco horas por dia no percurso casa-trabalho-casa,
por meio de ônibus, trem, metrô e van (ou perua).
[...]
Uma ideia generalizada sobre Cidade Tiradentes é a de que o distrito
é um “depósito de gente”. Removidos de outras favelas da cidade,
beneficiados por programas habitacionais do governo, pessoas que
não conseguem pagar o custo de vida de outros bairros. Ainda que
haja exceções, o “ir morar na Cidade Tiradentes” quase sempre
representou uma das últimas opções, quando a possibilidade de
se manter em locais mais ou menos distantes do Centro, onde o
custo de vida é mais alto, já não era mais factível (ALMEIDA et
al., 2008, p. 116).
Conforme o estudo levantado, o que se observa é que frequentemente políticas
urbanizadoras não representam de fato uma possibilidade de efetivação dos direitos
humanos-fundamentais em regiões periféricas, de grande desigualdade e exclusão
socioeconômica. De acordo com as anotações de Almeida, D’Andrea e Lucca
(2008, p. 124), a promoção de certas políticas sociais de habitação que distanciam
os cidadãos dos espaços centrais e de outros espaços dotados de infraestrutura,
como benefícios públicos e possibilidades de trabalho, ao mesmo tempo em que
realiza política de inclusão, acaba por reforçar a segregação presente nas cidades.
Como salientado, o presente estudo volta-se à análise da implantação do
Programa Vila Viva, política pública de reurbanização de vilas e aglomerados de
favelas de Belo Horizonte na qual também se observa um caráter dúplice: com a
intenção de se levar desenvolvimento para vilas e favelas, o Programa Vila Viva,
por vezes, gera aumento da situação de vulnerabilidade de certos moradores, que
se tornam ainda mais excluídos em prol deste desenvolvimento.
3. o prgr ama vila viva e sua realização em belo horizonte
O Programa Vila Viva é uma ação da prefeitura de Belo Horizonte que vem
sendo implantado nas vilas e favelas da cidade desde 2005 (PREFEITURA, 2013),
em parceria com o Estado de Minas Gerais e a União. Este programa tem por
objetivo melhorar a qualidade de vida das populações residentes nestas localidades,
normalmente consideradas como Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS),
realizando três espécies de intervenção: a urbanística, a jurídica e a socioeconômica.
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i encontro de internacionalização do conpedi
Os valores necessários para a execução dos projetos do Vila Viva provêm em
sua maior parcela do governo federal, por meio do PAC (Programa de Aceleração
do Crescimento)8. Outras verbas que compõem o montante para aplicação do
Programa são financiamentos do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento)
e da Caixa Econômica Federal, além dos recursos da própria prefeitura de Belo
Horizonte, que oferece uma contrapartida, menos significativa do que o recurso
federal (PREFEITURA, 2013).
Previamente ao surgimento do Vila Viva, foi realizado um estudo detalhado
nas vilas e aglomerados de Belo Horizonte pela prefeitura em parceira com
as comunidades, de modo a levantar os problemas vivenciados e orientar as
intervenções que seriam feitas nestas regiões. Tal estudo, denominado Plano
Global Específico – PGE –, foi produzido pela Companhia Urbanizadora de Belo
Horizonte (URBEL), tendo sido realizado em três etapas: levantamento de dados,
elaboração de um diagnóstico integrado dos principais problemas da área em
estudo e, por último, definição das prioridades locais e das ações necessárias para
atendê-las (PREFEITURA, 2013).
De acordo com a prefeitura de Belo Horizonte, o Vila Viva tem como escopos
a promoção social e o desenvolvimento comunitário por meio da realização de
obras, do estímulo à educação sanitária e ambiental, e do acesso a alternativas
de geração de trabalho e renda na própria comunidade (PREFEITURA, 2013).
Além disso, pretende-se que a implantação do Vila Viva possa contribuir para a
diminuição da violência e da concentração do tráfico de drogas nessas localidades.
O Programa Vila Viva já foi implantado em diversas regiões de Belo Horizonte, sendo o Aglomerado da Serra, região centro-sul da cidade, o primeiro
lugar que recebeu as intervenções do programa. Em termos gerais, o Vila Viva é
conceituado como um programa de urbanização e inclusão social, cujas obras de
infraestrutura previstas são o alargamento de becos e criação de vias; a construção
de conjuntos habitacionais para moradores que vivem em áreas de risco ou que
são removidos em função das obras; a implantação de parques e equipamentos
para esporte, lazer e cultura; a melhoria nas condições de saneamento básico;
8 Mais informações sobre o PAC podem ser encontradas no site <http://www.planejamento.
gov.br/secretaria.asp?cat=500&sub=677&sec=62>.
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i encontro de internacionalização do conpedi
e a regularização fundiária, através de emissão de escrituras dos terrenos aos
proprietários que recebem apartamentos em conjuntos habitacionais.
Sendo um dos objetivos do Vila Viva erradicar áreas de risco e proporcionar
moradia digna aos moradores que vivem em situação precária, o Programa inclui
em suas ações várias remoções e reassentamentos da população que será diretamente atingida pelas intervenções. O Vila Viva estabelece algumas opções para as
famílias em tais situações, como o reassentamento em outras moradias, a cessão de
um apartamento em unidade habitacional, ou o recebimento de uma indenização
(PREFEITURA, 2013). Nesta última hipótese, o valor da indenização leva em
consideração apenas as benfeitorias do imóvel, não agregando o valor da propriedade, já que os terrenos ocupados normalmente são da prefeitura e não são
considerados propriedades dos cidadãos que ali vivem. Sendo assim, esta última opção
é a mais precária, pois o valor das indenizações pagas muitas vezes é insuficiente para
comprar uma nova moradia em local próximo ao anterior. Isto ocorre por causa do
aumento no valor das propriedades da comunidade, em função das obras realizadas,
acréscimo gerado pelo que se denomina “especulação imobiliária”. Enquanto
aguardam a construção das unidades habitacionais, para as famílias que terão suas
casas removidas, a URBEL disponibiliza temporariamente uma bolsa aluguel no
valor de R$ 400,00 (quatrocentos reais), segundo dados colhidos em 2013.
Este é o panorama geral do Programa Vila Viva. No próximo tópico, será
relatada a sua implantação nos Aglomerados da Serra e Santa Lúcia, a partir de
experiências distintas vivenciadas pela atuação do Programa Polos de Cidadania
da Faculdade de Direito da UFMG. A partir de tais experiências, pode ser
percebido que, por vezes, as ações estatais de fomento ao desenvolvimento
de comunidades vulnerabilizadas podem levar a uma violação de direitos dos
moradores, especialmente quando as ações não são realizadas de forma conjunta,
dialogada e não impositiva.
4.estudo de caso: o progr ama polos de cidadania
e sua atuação na implantação do vila viva nos
aglomer ados serr a e santa lúcia
O Programa Polos de Cidadania é um programa interdisciplinar e
interinstitucional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), criado
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volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
em 1995 por professores da Faculdade de Direito e que, desde então, conjuga
atividades de ensino, pesquisa e extensão, valorizando a subjetividade e
promovendo a cidadania e emancipação de grupos socialmente vulnerabilizados.
As equipes do Programa Polos se organizam em frentes de trabalho de acordo
com as necessidades verificadas em diversas comunidades de Belo Horizonte e do
Vale do Jequitinhonha (Minas Gerais). São realizadas pesquisas diagnósticas em
cada local, e, por meio destas pesquisas, são estabelecidas as principais atividades
do Programa, voltadas à geração de renda, minimização de violências, organização
e mobilização popular, combate à exploração sexual de crianças e adolescentes,
regularização fundiária sustentável e uso da metodologia da mediação para
solução de conflitos e promoção de direitos e cidadania.
A metodologia de pesquisa utilizada pelo Programa é a da pesquisa-ação9,
na qual suas equipes atuam de forma interativa, envolvendo ativamente a
comunidade em suas atividades, sejam de pesquisa, sejam de extensão. As equipes
são formadas por profissionais e estudantes de diversas áreas de conhecimento,
tais como direito, psicologia, ciências sociais, administração, arquitetura,
geografia, ciências do estado e da governança social, comunicação social, dentre
outros. O Polos conta ainda com um grupo de teatro, a Trupe a Torto e a Direito,
formado por alunos do Teatro Universitário e pelos integrantes do Programa, que
buscam, através da arte, provocar o público para transformações (POLOS, 2013).
O Polos possui Núcleos de Mediação e Cidadania – os NMC’s – localizados
nos dois maiores aglomerados de Belo Horizonte, o Aglomerado da Serra e o
Aglomerado Santa Lúcia, locais onde realizam suas atividades desde 2002. Nos
NMC’s é utilizada a metodologia da mediação, especialmente adequada para
lidar com situações vivenciadas em contextos socioeconomicamente excluídos e
que possuem um alto nível de risco e de violência.
A mediação é uma forma complementar de solução de conflitos, em que os
envolvidos, auxiliados por uma terceira pessoa – o mediador – buscam, por meio
9 A metodologia da pesquisa-ação empregada pelo Programa Polos é a definida por Thiollent
como “... um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita
associação com uma ação ou com uma resolução de um problema coletivo e no qual os
pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos
de modo cooperativo ou participativo.” (THIOLLENT, 1985).
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i encontro de internacionalização do conpedi
do diálogo, da criatividade e da intercompreensão, a melhor maneira de solucionar
a questão sem que uma das partes saia prejudicada ou insatisfeita com o resultado
alcançado (SILVA, 2010, p. 177). Trata-se de um processo essencialmente
participativo, voltado para questões individuais e coletivas, instigando
responsabilidade e senso crítico naqueles que buscam solucionar seus próprios
conflitos, e com vista ao desenvolvimento de uma cultura voltada à paz social.
Importante esclarecer que a metodologia da mediação é utilizada pelo
Programa Polos na intenção de solucionar conflitos nas comunidades em que
atua, tanto individuais quanto coletivos, em um contexto de promoção de uma
cultura voltada à paz social. Segundo Gustin,
Essa proposta de resolução foi selecionada, dentre outras similares,
por se entender que esta técnica é a mais adequada aos princípios
que fundamentam a metodologia de capital social (...), por ser
também emancipadora. Verificou-se, ainda, que a esfera formal
do Direito já não mais dá conta da crescente complexidade
social e do aumento permanente de litígios em decorrência dessa
mesma complexidade e da grande heterogeneidade das sociedades
periféricas (GUSTIN, 2005, p. 200).
Uma vez que o Programa Polos de Cidadania também objetiva participar
do processo de emancipação dos grupos com os quais trabalha e interage,
a mediação oferecida nos NMC’s tem um caráter inclusivo e participativo,
evitando assistencialismos, pois busca demonstrar aos atendidos que eles devem
se responsabilizar e se organizar para reivindicar e realizar seus direitos e exercer
sua cidadania. Nicácio (2011, p. 25) explicita a metodologia adotada afirmando
ser a mediação utilizada no Programa Polos um meio que busca o equilíbrio
entre os excessos de um estado paternalista e as ausências de um estado mínimo,
estimulando um modelo de justiça que promova a autonomia e a emancipação
social, além de reparar condições sociais precárias através de um direito mais
efetivo.
Nesta linha, faz-se mister o relato da implantação do Programa Vila Viva
nos Aglomerados da Serra e Santa Lúcia, a partir da experiência vivenciada pelas
equipes dos Núcleos de Mediação e Cidadania do Programa Polos. No Aglomerado da Serra, a atuação do Polos foi posterior à intervenção do Vila Viva, tendo
sido por meio de uma pesquisa sobre os impactos socioeconômicos do programa
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municipal para os moradores daquela região. No Aglomerado Santa Lúcia, a
atuação da equipe do NMC teve início com as discussões sobre qual projeto
seria o mais adequado para aplicação naquela localidade. Foi neste momento em
que se começou a utilizar as técnicas da metodologia da mediação como um
instrumento diferencial na criação de canais de diálogo entre a comunidade e o
Poder Público, garantindo, assim, uma participação popular mais concreta e a
realização de direitos humanos-fundamentais e do acesso à justiça.
4.1.o progr ama vila viva e sua implantação no aglomer ado serr a
O Aglomerado da Serra é o maior aglomerado de favelas de Belo Horizonte,
sendo considerado um dos maiores da América Latina. Segundo dados
da prefeitura, o Aglomerado reúne cerca de trinta e quatro mil habitantes
(PREFEITURA, 2007). Localizado na zona sul de Belo Horizonte, próximo a
bairros considerados nobres, o Aglomerado da Serra tem uma grande visibilidade
no cenário urbano da cidade.
O Programa Vila Viva começou a ser planejado para o Aglomerado da Serra
entre 1998 e 2000, com a realização do Plano Global Específico (PGE) para a
região, tendo as obras se iniciado em 2005 (PREFEITURA, 2013). O próprio
PGE previa em todas as suas etapas a participação popular, realizada por meio de
Grupos de Referência, criados para que as lideranças comunitárias discutissem a
implantação das obras de modo a representar os interesses de toda a comunidade.
Os componentes dos Grupos de Referência – moradores que têm disponibilidade
de acompanhar as reuniões com a equipe técnica da prefeitura – são escolhidos em
assembleia inicial para divulgação da implantação do Vila Viva nas comunidades.
São “multiplicadores e divulgadores das informações, acompanham o andamento
dos trabalhos e alimentam os técnicos sobre dúvidas e questionamentos feitos
pelos moradores” (SILVEIRA et al., 2003). Além de todas as obras previstas pelo Programa Vila Viva, para o Aglomerado
da Serra foi idealizada a construção de uma avenida que ligaria o Bairro Santa
Efigênia ao Bairro Serra, passando por dentro do Aglomerado. Esta avenida,
denominada Avenida do Cardoso, concentrou boa parte dos recursos destinados
à implantação do Vila Viva naquela localidade (UMA AVENIDA, 2011).
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i encontro de internacionalização do conpedi
A equipe do Núcleo de Mediação e Cidadania do Programa Polos, atuando
no Aglomerado da Serra desde 2002, percebeu, em 2008, que as obras previstas
e até então iniciadas gerariam grandes impactos na vida dos moradores do local.
Vislumbrando a importância da realização de uma pesquisa científica acerca
do assunto, o Programa Polos conseguiu, com o apoio financeiro do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), iniciar um estudo
cujo escopo era analisar os efeitos do Vila Viva na condição socioeconômica dos
moradores afetados pelas intervenções, sob a perspectiva dos próprios moradores.
Para o levantamento dos dados desejados, a equipe do Programa Polos utilizouse da pesquisa de cunho qualitativo, valendo-se de entrevistas em profundidade com
roteiros semiestruturados10, uma vez que a apuração quantitativa dos moradores
atingidos pelo Vila Viva tornou-se impossível, em virtude da confidencialidade
dos dados retidos pela URBEL (VIANA, 2011, p.17). Dessa forma, por meio de
indicações dos próprios moradores da comunidade, foram entrevistadas, ao longo
do ano de 2011, 60 pessoas – consideradas os responsáveis pelas decisões principais
da família em que viviam – sendo estas subdivididas igualmente em quatro grupos:
reassentados, indenizados Serra, indenizados não Serra e demais moradores.
Conforme exposto acima, para além dos moradores que não foram diretamente
afetados pelas intervenções do Programa Vila Viva (demais moradores), a equipe do
NMC Serra dividiu os moradores do local em três categorias: reassentados, indenizados e não removidos. Os reassentados, para a pesquisa, eram aqueles moradores
que foram removidos de áreas de risco ou em função das obras; os indenizados foram
aqueles que receberam uma quantia em dinheiro pelas benfeitorias de suas casas e
não pelo terreno (já que é da prefeitura, conforme salientado anteriormente), em
virtude das mesmas estarem situadas nas áreas de intervenção; e os não removidos
são aqueles moradores que permaneceram vivendo no Aglomerado da Serra após a
implantação do Vila Viva (VIANA et al, 2011, p.10).
De acordo com dados levantados pela equipe do NMC, 2.269 famílias tiveram
que sair de suas casas, seja em função das obras, seja em virtude de morarem
em áreas com situação de risco. Deste número elevadíssimo de removidos, 856
10 Tais entrevistas possibilitam que o entrevistador consiga as informações que busca por meio
do entrevistado, utilizando-se de um roteiro que o oriente em suas questões, mas que não se
fecha em si mesmo, possibilitando ao pesquisador explorar ao máximo o tema escolhido.
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famílias foram reassentadas em apartamentos e 1.413 famílias foram indenizadas,
recebendo valores que variaram entre R$ 10,00 (dez reais) e R$ 180.000,00
(cento e oitenta mil reais) (VIANA et al, 2011, p.29).
Por meio de entrevistas realizadas, a equipe do Programa Polos levantou alguns
efeitos positivos e negativos advindos da implantação do Vila Viva. Os moradores
vislumbraram como efeito positivo o fato de saírem da favela, de poderem morar
em bairros e terem a segurança da posse, além da erradicação de áreas de risco,
da abertura de becos e ruas e da construção de vias. Seguem alguns relatos de
moradores, recolhidos pela equipe de pesquisa do Programa Polos:
“A maior mudança foi sair da área de favela e vir para um bairro
porque essa mudança faz diferença”.
(...)
“O melhor resultado foi ter saído do beco”.
(...)
“Foi bom porque tirou muita gente das áreas de risco, ajudou
bastante porque tinha muita gente sendo soterrada por causa das
chuvas, casas em barranco caindo”.
(...)
“A principal mudança foram os predinhos, pois as pessoas não
tinham condições de reformar a casa. As casas estavam caindo e
se não fossem os prédios tinha um monte de gente que iria ficar
sem casa, embaixo de chuva. Minha casa não era área de risco, mas
depois meu vizinho descobriu que ela estava caindo. Aonde a gente
ia ficar? A mudança que Deus fez foi me trazer pra cá. Descobri
que ela ia cair depois que já tinha vindo para cá”.
(...)
“(...) a Avenida Cardoso foi a obra mais importante, pois liga os
bairros, dá um acesso muito grande; depois os predinhos!”.
(...)
“A única coisa que eles fizeram que ajudou bastante foi abrir essas
ruas.[...] Até agora, só as ruas.” (VIANA et al, 2011, p. 112-114).
Já os efeitos negativos levantados foram a falta de participação popular
nas etapas do processo, pois considerou-se que os Grupos de Referência foram
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i encontro de internacionalização do conpedi
insuficientes; a escassez ou ausência de melhorias para determinados locais11; a
falta de oportunidade para jovens; o abandono de praças antigas, locais públicos
onde a população se encontrava e tinha como referência social; a falta de segurança
e o aumento da violência; a falta de equipamentos de lazer em determinadas
regiões; e a acumulação de lixo e entulho em virtude da realização das próprias
obras (UMA AVENIDA, 2011), e que não foram recolhidos ao final delas
(VIANA et al, 2011, p. 116).
Na fala dos moradores, a questão mais recorrente diz respeito à ausência de
participação da população nas etapas do processo:
(...) conforme Úrsula, o que faltou no Programa Vila Viva foi
“ouvir a população; se a população tivesse sido ouvida, não teria
sido uma coisa ditada, e sim uma coisa construída”. A entrevistada
Pilar argumenta que “parece que eles excluem muito as pessoas,
eles tem aquele bolo deles, as pessoas certas para eles colocarem
ali”. Ainda sobre isso, Lionel coloca que o “projeto já vem pronto,
o povo não participa”. Da mesma forma, Tatiane expõe: O grande
problema foi o Vila Viva ter agido com muito autoritarismo na
remoção das casas. O Vila Viva não estava preparado para lidar
com o lado humano das pessoas. Pessoas que viviam ali a vida
inteira não estavam preparadas para aquele processo de remoção
brusco. Os implantadores do Vila Via deveriam ser mais humanos
e delicados. Eles não são só máquinas que estão ali para remover
casas. Faltou o acompanhamento psicológico e acompanhamento
social que foi prometido. Portanto, a reivindicação maior para
os próximos projetos é para que os aplicadores tratem as pessoas
de maneira mais humana. Devem ser mais flexíveis no modo de
tratar todo mundo, já que as pessoas são diferentes e eles estavam
tratando todo mundo de forma igual, como ditadores. (VIANA et
al, 2011, p. 114-115).
Para os moradores que foram indenizados, mas tiveram de ir morar em regiões
distantes do Aglomerado, os efeitos negativos do Programa Vila Viva foram a
baixa indenização recebida, a redução das mesmas no decorrer das obras e o
próprio fato de terem saído do Aglomerado, em razão da pouca oferta de trabalho
11 Ressalta-se aqui que a maior parte dos recursos do Vila Viva foi utilizada na construção da
Avenida do Cardoso, pouco utilizada pela população do Aglomerado (UMA AVENIDA,
2011).
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i encontro de internacionalização do conpedi
na nova região de moradia e da distância da mesma em relação ao centro de Belo
Horizonte. Já os moradores reassentados nas unidades habitacionais construídas
pela prefeitura reclamaram principalmente da baixa qualidade dos apartamentos
recebidos (VIANA et al, 2011, p. 117-118):
De maneira recorrente, foi citado pelo grupo dos Indenizados Não
Serra, como fatores que geraram insatisfação, os baixos valores
das indenizações pagas pela URBEL, o que é retratado na fala
de Júlio, ao afirmar que “o que mais queria era ter recebido um
valor justo” na sua indenização, pois “o fato de serem pobres e
não pagarem impostos não significa que não investiram em sua
casa”. Assim, também, Deividson coloca: Acho que lá na Serra eles
fizeram tudo bom lá, não tem do que reclamar. Mas tinham era
que pagar um valor certo, pois eles pagam o que eles querem dar
e não mostram nada não. Igual pra mim que deram 30 mil e não
falaram nada. É complementar a fala de Tânia que coloca: “houve
gente que até morreu por causa da mudança, por não aguentar a
mudança; no final a URBEL passou a pagar menos” (VIANA et
al, 2011, p. 117).
Com a realização da pesquisa, concluiu-se que, como resultado direto da
implantação do Programa Vila Viva no Aglomerado da Serra, houve uma redução
na qualidade das condições físicas de habitação dos indenizados, ao passo que,
para os reassentados, houve notória melhoria. Observou-se, ainda, que as demais
diferenças socioeconômicas entre indenizados e reassentados foram pontuais, na
perspectiva dos próprios moradores entrevistados (VIANA et al, 2011, p. 127).
Ainda como considerações finais da pesquisa, verificou-se que o Programa
Vila Viva privilegiou o lado urbanístico e negligenciou a questão socioeconômica,
pois as intervenções urbanísticas, na visão dos moradores, foram mais satisfatórias
que as de cunho social. Um efeito colateral da implantação do Programa foi a
forte especulação imobiliária gerada no local, o que dificultou enormemente a
permanência dos indenizados na comunidade, somada à dinâmica do próprio
processo, que também não facilitou esta permanência (VIANA et al, 2011, p.
125).
Outras conclusões podem ser tiradas do estudo feito pela equipe do NMC.
Conforme observado no levantamento de dados, 26% das famílias receberam
indenização e não conseguiram comprar uma nova moradia seja no Aglomerado
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i encontro de internacionalização do conpedi
ou em localidades próximas, o que caracteriza, em parte, o Programa Vila Viva
como uma política pública de caráter expulsor, já que muitos moradores tiveram
que se reinstalar em outras áreas informais de Belo Horizonte ou na região
metropolitana da cidade, em virtude da baixa indenização recebida, não podendo
permanecer no Aglomerado da Serra (VIANA et al, 2011, p. 124).
Tal fato gera outras consequências que também merecem atenção, pois os
novos lugares escolhidos para moradia, com infraestrutura inferior à observada
no Aglomerado da Serra (UMA AVENIDA, 2011), sofreram com o recebimento
de um contingente significativo de pessoas, o que certamente reforçou e agravou
a situação de exclusão socioeconômica destas regiões e dos próprios moradores
removidos. A distância entre a nova moradia e o local de trabalho remete à
situação vivenciada na Cidade Tiradentes, relatada no início deste artigo como
um exemplo de problemas gerados pelo desenvolvimento urbano e pela ausência
de políticas sociourbanísticas adequadas à inclusão de populações com trajetória
de exclusão.
Os resultados obtidos após a implantação do Programa Vila Viva permitem
afirmar que o desenvolvimento comunitário preconizado por tal política pública
foi feito à custa da violação de direitos humanos-fundamentais de parcela da
população, como o direito a uma moradia digna e a locais com infraestrutura
sociourbana adequada. Além disso, percebeu-se uma grande alocação de recursos
para a construção de uma avenida de pouca serventia à população (UMA
AVENIDA, 2011), privilegiando de fato o lado urbanístico – em especial pela
ligação viária com outros bairros – em detrimento das intervenções de melhorias
socioeconômicas.
Por fim, a crítica dos próprios moradores em relação à ausência de participação popular satisfatória comprova que o método adotado pela prefeitura – os
Grupos de Referência – não conseguiram expressar os anseios da população de
modo efetivo, pois, apesar de se concentrarem em pessoas consideradas lideranças
comunitárias, não foram suficientes para que a opinião da grande massa da
população local fosse levada em consideração (VIANA et al, 2011, p.98). Isto
comprova que os canais de diálogo entre prefeitura e comunidade foram frágeis e
pouco eficientes, o que levou a intervenções muitas vezes descompassadas com os
interesses da população da região.
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i encontro de internacionalização do conpedi
4.2.a implantação do progr ama vila viva no aglomer ado santa lúcia
O Aglomerado Santa Lúcia é um dos grandes aglomerados de Belo Horizonte,
sendo também um dos conjuntos de favelas que mais se destaca na cidade.
Segundo dados da prefeitura, o aglomerado reúne cerca de quinze mil moradores
(PREFEITURA, 2007), apesar dos dados estatísticos serem discrepantes.
Localizado na zona sul de Belo Horizonte, o Aglomerado Santa Lúcia é rodeado
pelos bairros mais nobres da cidade, situando-se numa região de forte especulação
imobiliária. Trata-se de uma ilha de exclusão social em meio aos bairros ricos de
Belo Horizonte, uma paisagem que contrasta fortemente com seu entorno.
O Núcleo de Mediação e Cidadania do Programa Polos desenvolve suas
atividades no Aglomerado Santa Lúcia desde 2002, quando foi instalado o NMC
num dos pontos centrais da comunidade. Utilizando a metodologia da mediação,
como explicitado no início deste capítulo, o NMC e sua equipe sempre buscam
a promoção dos direitos humanos-fundamentais nas localidades em que atuam,
bem como a emancipação dos sujeitos envolvidos em seus processos de mediação,
com a responsabilização dos mesmos pela boa solução de seus conflitos. O
estímulo ao diálogo e a soluções compartilhadas e não impositivas fazem da
mediação uma metodologia especialmente adequada para conflitos coletivos que
envolvem comunidades e o Poder Público.
Antes mesmo que a pesquisa sobre os efeitos do Vila Viva na condição
socioeconômica dos moradores fosse concluída no Aglomerado da Serra, a
equipe do NMC percebeu que a discussão sobre o Programa municipal e sua
implantação na comunidade do Aglomerado Santa Lúcia deveria ser feita
previamente a qualquer intervenção, buscando sempre envolver a população no
planejamento das ações, de modo a evitar a expulsão dos moradores, já que a
região, em que pese possuir uma série de problemas de infraestrutura e de ordem
socioeconômica, permitia um acesso especialmente facilitado ao local de trabalho
e alguns serviços públicos. Dessa forma, o diálogo com a prefeitura e a URBEL,
principal órgão de planejamento e execução do Vila Viva, tornava-se fundamental
para a comunidade, de modo a resguardar seus interesses e de fato promover
melhorias nas condições de vida de seus moradores.
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O PGE do Aglomerado Santa Lúcia, marco inicial para aplicação do Programa Vila Viva, foi realizado de 1999 a 2003 (PREFEITURA, 2013). Entretanto,
apenas em 2010 iniciaram-se as discussões sobre a implantação do Vila Viva na
região, que já havia sido executado em outras localidades da cidade, para além do
Aglomerado da Serra.
O contato da equipe do NMC do Programa Polos com a implantação do Vila
Viva no Aglomerado Santa Lúcia teve início com seu acionamento por parte de
moradores de uma das vilas do Aglomerado – a Vila São Bento – para a formação
de uma associação que pudesse defender seus interesses, em virtude de ser a vila
mais precária de toda a região, situando-se numa área de extremo risco geográfico
e geológico. Referida vila era alvo constante de visitas pela prefeitura, através da
sua companhia urbanizadora – URBEL –, de modo a inibir e até mesmo proibir
que outras famílias se instalassem no local. Após diversas tentativas de se retirar
os moradores da Vila São Bento, inclusive uma ação judicial, o problema foi
aparentemente resolvido quando se incluiu, no rol das obras do Programa Vila
Viva, uma intervenção sobre o local, no qual ficou estabelecido que para esta
região ocorreria a remoção total de seus moradores.
Entretanto, por meio de um questionário12 aplicado pela equipe do NMC
junto aos moradores da Vila São Bento, percebeu-se que grande parte da população
não queria ser removida daquele local, pois possuíam fácil acesso aos seus empregos
e trabalhos, a escolas, a postos de saúde e ao transporte público. Estes dados
foram essenciais para que se buscasse o fortalecimento do diálogo com a URBEL,
pois havia o interesse em se proteger os direitos daqueles moradores, levando-se
em consideração situações negativas já vivenciadas por outras comunidades que
também receberam a intervenção do Programa Vila Viva.
Aproveitando-se do contexto de mobilização da comunidade na Vila São
Bento, o Programa Polos, em parceria com diversas instituições do Aglomerado
Santa Lúcia, destacando-se a Igreja Católica, promoveu, ao final de 2010,
12 O questionário em questão teve por objetivo traçar o perfil socioeconômico dos moradores
da Vila São Bento, Aglomerado Santa Lúcia, Belo Horizonte, a fim de se apurar o valor
agregado do local (por ser bem localizado), para além de suas casas, de modo a evitar baixas
indenizações em futuras remoções realizadas pela prefeitura. Realizou-se um convite aos
moradores do local para que respondessem ao questionário; das 115 casas cadastradas junto à
Prefeitura de Belo Horizonte, 74 delas aderiram à pesquisa, realizada em outubro de 2010.
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uma audiência pública a fim de que fosse esclarecido aos moradores de todo o
Aglomerado o que era o Programa Vila Viva, já que a maior parte da população
não sabia a que se propunha a referida ação pública. Nesta audiência foram
divulgadas as intervenções que seriam feitas no Aglomerado a partir do PGE,
quais sejam, a construção e localização dos futuros conjuntos habitacionais, a
completa remoção da Vila São Bento para a construção de um parque ecológico
no local e, principalmente, a construção de uma grande avenida lateral ao
Aglomerado, apelidada “Via do Bicão”. Estas intervenções tornaram-se pontos
primordiais de discussão entre a população e o Poder Público, a fim de se garantir
os direitos da comunidade.
Com as crescentes preocupações da população em torno da implantação do
Programa Vila Viva e diante da falta de informações suficientes, a equipe do NMC
passou a se valer do instrumento das audiências públicas, tanto pelo seu caráter
informativo, pela sua capacidade de mobilização e integração dos envolvidos,
como pela possibilidade de um diálogo efetivo e eficiente entre comunidade e
Poder Público, sendo, também, um meio para solucionar conflitos de forma
compartilhada e não impositiva, como fundamenta a metodologia da mediação
utilizada pelo Programa Polos. O uso das audiências públicas foi fomentado pela
aproximação do Ministério Público Federal (MPF) sobre a questão do Vila Viva
no Aglomerado Santa Lúcia. Referido órgão, em 2011, expediu recomendação à
prefeitura de Belo Horizonte e aos outros órgãos envolvidos na implantação do
Vila Viva no Aglomerado Santa Lúcia para que fossem respeitados os direitos dos
moradores do local, exigindo que as remoções forçadas fossem a última alternativa
para estes órgãos (MOREIRA, 2011).
Foi a partir desta recomendação que se intensificou o processo para que
as famílias que seriam removidas de suas casas – 398 famílias em seu total
(MOREIRA, 2011)13 – fossem totalmente reassentadas no próprio Aglomerado,
evitando, assim, os efeitos perversos da expulsão verificados em outras localidades.
Além disso, outros pontos também passaram a ser destacados na discussão, como
a qualidade dos conjuntos habitacionais a serem construídos, os equipamentos de
13 Informação retirada da recomendação expedida pelo MPF, na qual se afirma que 640 famílias
do Aglomerado Santa Lúcia seriam reassentadas nas unidades habitacionais da prefeitura,
enquanto 398 delas seriam submetidas a deslocamentos forçados.
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lazer, saúde, educação e a questão da necessidade ou não da construção e abertura
de vias.
A aproximação do MPF e de outras entidades do próprio Aglomerado Santa
Lúcia fortaleceram a atuação da equipe do NMC, através da formação de uma rede
onde os direitos humanos-fundamentais, além do acesso à justiça dos moradores
da região seriam defendidos. Entretanto, a URBEL mantinha seu modelo de
participação popular por meio dos Grupos de Referência, que, pela experiência
relatada por moradores do Aglomerado da Serra, era insatisfatória, pois tais
grupos não conseguiam representar fidedignamente os interesses dos moradores e
da comunidade, de modo geral. Neste contexto, foi preciso intensificar a atuação
da rede mencionada, de modo a efetivamente criar um canal de diálogo para
solucionar os conflitos advindos da implantação do Programa Vila Viva.
A necessidade de solução destes conflitos visava não apenas a segurança dos
direitos ameaçados da comunidade, mas também a participação na formação de
uma coletividade crítica e consciente de seu papel transformador, mobilizada e
interessada em participar diretamente do desenvolvimento sociourbano que o
Poder Público estava propondo. Assim, diversas reuniões com a comunidade
foram amplamente divulgadas e realizadas, de modo a consolidar o maior
número de interesses coletivos, buscando alternativas às intervenções que seriam
prejudiciais ou ao menos mitigando os danos sociais causadas pelas mesmas.
Um dos pontos centrais da discussão, para além da questão habitacional, foi a
construção da “Via do Bicão”, uma grande via que seria construída lateralmente
ao Aglomerado Santa Lúcia, ligando duas avenidas de grande importância na
região. Assim como ocorreu no Aglomerado da Serra, esta via concentraria a
maior parte da verba destinada ao Vila Viva, e o questionamento à sua construção
era que a mesma não serviria de fato à comunidade do Aglomerado, mas sim a
um escoamento do trânsito na região dos bairros do entorno. Desta feita, diante
da experiência observada no Aglomerado da Serra e por meio da pressão das
entidades e dos moradores do Aglomerado Santa Lúcia, foi demandado à URBEL
que se apresentassem ao conjunto dos moradores alternativas mais viáveis do que
a construção da referida avenida.
Uma nova audiência pública foi realizada no próprio Aglomerado Santa
Lúcia em maio de 2011 (PREFEITURA, 2013), com a presença da URBEL e
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i encontro de internacionalização do conpedi
de aproximadamente seiscentos moradores, e assim as questões levantadas pela
comunidade puderam ser debatidas. Na ocasião, alguns pontos do Programa Vila
Viva para o local foram apresentados e os presentes puderam discutir questões
como a hierarquização e cronograma das obras, possíveis aberturas de outras
vias em detrimento da Via do Bicão e a instalação de equipamentos públicos
paralelamente às intervenções urbanísticas.
Neste contexto, dois grupos de lideranças comunitárias que apresentavam
opiniões divergentes sobre o projeto e que mantinham desavenças internas
durante um longo tempo, procuraram a equipe do NMC para que fosse realizada
uma mediação entre os dois grupos, de modo que estes pudessem chegar a um
consenso do que era mais importante para a comunidade, somando forças para
dialogar com o Poder Público. Após algumas sessões de mediação, o ponto
consensual mais discutido foi a inadequação da Via e do Parque do Bicão para o
Aglomerado (PROGRAMA, 2011).
De modo a possibilitar uma manifestação maior da comunidade, os
presidentes das associações de moradores das vilas elaboraram uma assembleia
geral extraordinária com o objetivo de encaminhar propostas para a prefeitura
que refletissem os reais anseios da população. Havia cerca de 230 pessoas nesta
assembleia, e a votação foi expressiva contra a abertura da Via e do Parque do
Bicão. No lugar destas obras, a comunidade votou pela abertura de outras ruas e
becos dentro do Aglomerado, que atenderiam melhor à demanda da comunidade,
e para a qual o dinheiro público havia sido direcionado (PROGRAMA, 2011).
Após todas essas reuniões, audiências públicas e assembleias, finalmente houve
uma resposta da prefeitura, principalmente em relação à questão habitacional.
Por meio de um documento, o Poder Público se comprometeu a garantir o
reassentamento de todas as famílias no próprio Aglomerado Santa Lúcia ou
no seu entorno, evitando, assim, a expulsão de moradores para localidades
distantes (PROGRAMA, 2011). Este fato representou um enorme ganho para
a comunidade, fruto de todo o esforço de mobilização e participação popular
na implantação do Programa Vila Viva, realizada de modo inédito em Belo
Horizonte.
Em continuidade ao processo de participação popular, o MPF realizou diversas
reuniões com a comunidade, a URBEL e a empresa executora do projeto, dentre
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i encontro de internacionalização do conpedi
outras entidades de apoio, inclusive o Programa Polos. Nestas reuniões, o projeto
pôde ser esclarecido para a comunidade, percebeu-se a necessidade de captação
de mais verbas para a implantação do Vila Viva no Aglomerado Santa Lúcia e foi
estabelecida a prioridade das obras habitacionais em detrimento das outras obras.
Tudo isto representou um ganho importante para a comunidade, resguardando
seus direitos constitucionalmente garantidos à moradia digna, ao acesso à justiça
e, principalmente, à participação popular no futuro do Aglomerado.
Paralela a estas reuniões, a equipe do NMC do Programa Polos realizou, a
partir de janeiro de 2012, diversos mutirões no Aglomerado Santa Lúcia visando
informar a todos os moradores que tivessem interesse se estes sofreriam direta ou
indiretamente com as intervenções. Tais mutirões foram essenciais, pois muitos
moradores que possivelmente seriam removidos ainda não sabiam deste fato, e,
em vários casos, sequer sabiam o que era o Programa Vila Viva e que o mesmo
seria implantado no Aglomerado muito em breve.
Encerrando a primeira etapa do Programa Vila Viva no Aglomerado Santa
Lúcia, a licitação para início das obras foi marcada para abril de 2012. O diretor
de obras da URBEL afirmou, em uma das reuniões realizadas no MPF, que em
nenhuma outra localidade discutiu-se tanto o Vila Viva como no Aglomerado
Santa Lúcia, apresentando o projeto para a população de forma bastante detalhada.
Nas fases seguintes de implantação do projeto, a comunidade se comprometeu a
formar uma comissão fiscalizadora da obra, garantindo, através da mobilização, o
cumprimento do projeto em sua integridade.
O processo de implantação do Vila Viva no Aglomerado Santa Lúcia,
como se viu, foi inédito, pois garantiu-se a participação efetiva da população,
possibilitando que esta resguardasse, ao menos até o fim da primeira etapa do
projeto, seus interesses e seus direitos. Realizado de modo totalmente diverso
daquele do Aglomerado da Serra, o processo no Aglomerado Santa Lúcia poderá
permitir que o desenvolvimento sociourbano proposto pelo Programa Vila Viva
represente uma melhora efetiva nas condições do conjunto de moradores, sem
que isto fosse feito à custa da violação de direitos de uma parcela da comunidade.
Tudo isto somente foi possível pela abertura do diálogo entre população e Poder
Público, fomentado de modo especial pelo uso da metodologia dialógica da
mediação.
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5.conclusões: a efetivação de direitos humanosfundamentais e os problemas do desenvolvimento
social
Não restam dúvidas que o estudo da relação do homem com o território onde
vive é de extrema importância para a compreensão dos fenômenos sociais atuais.
A transformação do cenário urbano se amoldou aos ditames da globalização, e,
com isto, acabou por atrelar exclusão e ocupação informal do território.
Nesta linha, de modo a reverter situações de desrespeito aos direitos humanosfundamentais e de falta de acesso à justiça, as políticas públicas voltadas para
ocupações irregulares, tais como vilas e aglomerados de favelas, devem buscar
estruturarem-se de modo a garantir um desenvolvimento sustentável para tais
comunidades, promovendo a regularização de lugares informais, o acesso a serviços
como saneamento básico, educação, saúde e lazer, e garantindo a participação dos
moradores na definição das intervenções que serão realizadas na comunidade, de
forma a suavizar ou evitar prejuízos.
Conforme exposto ao longo do artigo, as ações públicas com o intuito de
promoção do desenvolvimento sociourbano não podem ocorrer à revelia da efetiva
participação popular, sob o risco de se avalizar um desenvolvimento apenas para
alguns, prejudicando a condição socioeconômica de outros e a realização de seus
direitos. Prova disso foi a implantação do Programa Vila Viva no Aglomerado
da Serra, que, com suas intervenções urbanísticas, acabou prejudicando alguns
moradores, que tiveram seus direitos humanos-fundamentais violados em virtude
da promoção do desenvolvimento regional.
Lado outro, o processo diferenciado de implantação do Programa Vila Viva no
Aglomerado Santa Lúcia, fomentado em parte pelo Programa Polos de Cidadania
e pelo uso da metodologia da mediação, demonstrou que, com o envolvimento
da comunidade e de órgãos responsáveis pela proteção aos direitos humanosfundamentais, é possível concretizar canais efetivos de diálogo entre Poder Público
e população, de modo a evitar ou ao menos mitigar prejuízos aos moradores de
regiões periféricas, respeitando a pluralidade e a participação, tão caras ao Estado
Democrático de Direito.
O estudo de caso em questão demonstrou que a oitiva de significativa parcela
da população em intervenções nos territórios das cidades é uma importante
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via para o desenvolvimento sustentável, sem a qual se corre o risco de flagrante
descompasso entre interesse social e atuação estatal. As comunidades que vivem
em terrenos informais, em sua grande parte prejudicada pela exclusão que as
assola, não podem ser também excluídas da discussão de políticas públicas que
interfiram diretamente nos seus modos de vida.
Tudo isto leva a conclusão da necessidade de discussão e aprofundamento
científico em face das intervenções públicas de caráter sociourbano, de modo
a se estimular um senso crítico sobre estas. Os exemplos trazidos no artigo
em questão puderam comprovar como a Universidade, órgãos públicos
e a própria sociedade civil exercem papéis fundamentais na implantação de
políticas públicas de desenvolvimento urbano, possibilitando vias de proteção
e realização de direitos humanos-fundamentais e garantindo um efetivo acesso
à justiça.
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i encontro de internacionalização do conpedi
perspectivas do acesso à justiça ante a
chegada de um novo código
de processo civil
Lenio Streck1
Lúcio Delfino2
Resumo
Este artigo pretende fazer uma análise crítica sobre o sentido de acesso à justiça
no contexto do Estado Democrático de Direito, considerando especialmente
o projeto existente de novo Código de Processo Civil brasileiro. Para tanto,
no desenvolvimento deste texto, serão explicitados os diversos elementos que
compõem o conceito de acesso à justiça, fazendo um paralelo com as propostas de
alteração da legislação processual civil no Brasil. Objetiva-se com isso demonstrar
que, a partir de uma perspectiva constitucional do exercício da jurisdição, o
acesso à justiça somente se concretiza como direito garantido a partir da ideia
de responsabilidade judicial. Em outras palavras, isso significa que o acesso à
justiça depende não apenas do aumento das possibilidades de recorrer ao
Judiciário, mas, fundamentalmente, de posturas judiciais que respeitem critérios
de constitucionalidade, construídos a partir de uma teoria da decisão judicial.
Palavras-chave
Acesso à justiça; Judiciário; Teoria da decisão.
Abstract
This paper aims at a critical analysis of the meaning of access to justice in
the context of a democratic state, especially considering the existing design of
1 Doutor em Direito do Estado (UFSC). Pós-doutor em Direito Constitucional e Hermenêutica
(Universidade de Lisboa). Procurador de Justiça aposentado (TJ-RS). Professor titular da
Unisinos, Rio Grande do Sul, Brasil.
2 Doutor em Direito Processual Civil (PUC-SP). Pós-doutorando em Direito (UNISINOS).
Professor titular da Uniube. Advogado. Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual
(RBDPro).
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i encontro de internacionalização do conpedi
the new Brazilian Code of Civil Procedure. To this end, in the development of
this text it will be explained the various elements that make up the concept of
access to justice by making a parallel with the proposed amendments to the civil
procedure law in Brazil. The objective is to demonstrate that with this, from a
constitutional perspective of the exercise of jurisdiction, access to justice is realized
only as guarantee from the idea of judicial
​​
accountability law. In other words, this
means that access to justice depends not only on increasing the possibilities of
recourse to the courts, but fundamentally judicial positions based on criteria of
constitutionality, constructed from a theory of judicial decision.
Key words
Access to justice; Judiciary; Decision making theory.
1.introdução
A expressão acesso à justiça é daquelas cujo campo de abrangência atinge uma
variedade de circunstâncias a depender do contexto em que é utilizada. Temos
assim que, em um Estado Democrático de Direito, acesso à justiça deve significar
o direito fundamental ao recebimento por parte do cidadão daquilo que se entende
por promessas da modernidade insculp i das na Constituição. Nesse sentido,
acesso à justiça deve ser entendido de forma que abranja o direito fundamental a
uma resposta adequada à Constituição nos seus mais amplos espaços de prestação
jurisdicional, incluída a garantia de que o Judiciário não substitua o legislador e
o Poder Executivo nos seus juízos éticos, morais ou políticos, o que constitui o
cerne da diferenciação entre judicialização da política e ativismo judicial. 3
No plano do direito processual, partindo-se de uma mirada historiográfica,
pode-se apontar alguns elementos que possibilitam a compreensão dos problemas
que envolvem a questão do acesso à justiça, tais como: i) o lento progresso do
3 Compreende-se judicialização da política à distinção de ativismo judicial. A judicialização é
um fenômeno complexo que decorre de um contexto social caracterizado por um deslocamento
das tensões ao Judiciário (pela necessidade de implementação de direitos e proteção das
garantias constitucionais). Por outro lado, o ativismo judicial é uma postura assumida por
juízes e tribunais ao tomarem uma decisão utilizando-se de critérios não jurídicos (políticos,
morais e/ou econômicos). (STRECK, 2014a) (TASSINARI, 2013)
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i encontro de internacionalização do conpedi
acesso à justiça entre à época do de s cobrimento até os séculos XVII e XVIII,
quando fervilhava nos países desenvo l vidos a luta contra o absolutismo, com
discussões filosóficas que culminara m nas revoluções inglesa, americana e
francesa; ii) as poucas disposições constantes nas Ordenações Filipinas sobre esse
direito fundamental, que vigoravam no país a partir de 11 de janeiro de 1603; iii)
o panorama, ainda pouco alterado, na primeira quadra do século XIX, mesmo
após a proclamação da Independência do Brasil (1822) e com a elaboração da
Constituição de 1824; iv) o surgim e nto do Regulamento 737, em 1850, que
do ponto de vista histórico pode ser considerado o primeiro Código de Processo
Civil brasileiro, seguido do Regul a mento 738 dispondo sobre os Tribunais de
Comércio e o processo das falências; v) a elaboração da Consolidação das Leis do
Processo Civil, que tomou força de lei em 28 de dezembro de 1876; vi) a influência
da literatura científica produzida na Europa no país a partir de 1870, fazendo do
Rio de Janeiro palco de uma série de conferências e debate para discutir tais
concepções, cenário que alicerçou a fundação do partido republicano, a abolição
da escravatura e por fim a queda do Império com a proclamação da República,
no ano de 1889; vii) o acesso à justiça como tônica dominante durante grande
parte do século XX, com destaque a assistência aos mais pobres, com tendências
sociais introjetadas na legislação ali produzida; viii) as novidades decorrentes da
Constituição de 1934, mormente no que se refere aos direitos trabalhistas, à ação
popular e à assistência judiciar i a para os necessitados; ix) o advento da Carta
Política de 1937, inaugurando o Estado Novo e representativa de um dos mais
marcantes retrocessos já vivenciados no país; x) a publicação da Consolidação das
Leis do Trabalho, em 01 de maio de 1943, a primeira legislação a se preocupar com
o sentimento de coletividade, op o ndo-se ao individualismo então dominante;
xi) a promulgação da Constituiçã o de 1946, alargando o campo dos direitos
sociais; xii) o surgimento da Constituição de 1967, novamente fortalecendo o
Executivo e concentrando nas mãos do presidente muitos poderes; xiii) o período
inaugurado a partir da Constituição de 1969 que, com exceção do governo Médici,
caracterizou-se por um recuo progressivo da ditadura até a edição da Emenda
Constitucional n. 11, de 13 de outubro de 1978, que revogou os chamados atos
de exceção, seguindo-se a ela a L ei da Anistia, o movimento “Diretas Já”, até
a convocação da Assembleia Nacio n al Constituinte, que elaborou a Carta de
1988, ora vigente; xiv) os debates científicos deflagrados em muitos seminários e
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i encontro de internacionalização do conpedi
congressos a partir da década de 1980, e as várias publicações multidisciplinares,
tratando dos direitos fundamentais e sociais, em especial do acesso à justiça de
forma igualitária e eficiente, e os resultados daí oriundos na produção legislativa
(Leis 7.019/82, 7.244/84, 6.938/81, 7.347/85, 7.853/89, 8.069/90, 9.099/90
entre outras); xv) o advento da Emenda Constitucional 45/2004, com novidades
destinadas justamente a promove r o acesso à justiça; xvi) e por fim o CPC
projetado, com algumas interessantes novidades acerca do assunto.
A partir disso, é imprescindíve l sublinhar, já aqui, que o acesso à justiça
representa algo cujo âmago vai além de seus contornos rudimentares, como mero
acesso à jurisdição, e assume atualmente, frente as mutações ideológicas das quais
foi alvo, feição multifacetada e de largo alcance. Ao longo do tempo, uma visão
expansiva do direito de acesso à justiça ganhou cada vez mais espaço, de modo
que hoje é pouco entendê-lo pur a mente como direito de ignição à máquina
judiciária para assim apartá-lo, adotando um cientificismo alheio à história, de
outros matizes, também de calibre constitucional.
A bem da verdade, falar em acesso à justiça na contemporaneidade implica
operar com toda a gama de direi t os fundamentais processuais; mais que isso,
denota uma tratativa fundante por significar, em última análise, o próprio direito
fundamental ao devido processo legal, condição inexorável para a legitimação da
atividade jurisprudencial e do próprio provimento judicial produzido no campo
processual.
De toda sorte, o que se pretende aqui especificamente, em apego aos matizes
que a ciência processual, de antanho até a contemporaneidade, legou para as
gerações futuras, é determinar, da maneira mais precisa possível, alguns dos
significados que presentemente fornecem colorido ao acesso à justiça. É algo que
se faz necessário em prol da seriedade científica, afastando a expressão examinada
de uma possível poluição semântica que lhe crie embaraços, mas ao mesmo tempo
atento ao respeito à tradição, principal responsável pela riqueza de significados que
atualmente se lhe atribui. E tudo será feito em atenção ao Projeto do novo Código
de Processo Civil (CPC Projetado),4 já em fase avançada no Congresso Nacional,
4 Os autores deste artigo trabalharam com a última versão do Projeto do novo Código de
Processo Civil brasileiro – o denominado “Relatório Paulo Teixeira” –, que recentemente foi
aprovado pela Câmara dos Deputados e agora retorna ao Senado.
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com a indicação sobretudo de exemplos extraídos do seu corpo legislativo a fim
de ilustrar, de modo didático e atual, as conclusões às quais adiante se atingiu.
2.acesso à justiça como mero direito de ignição da
atividade jurisdicional
Numa perspectiva rudimentar, ainda estritamente formal, o acesso à justiça
representa um direito subjetivo à obtenção da tutela jurisdicional. Ou simplesmente
direito de acesso à jurisdição. Simples assim. Ao tomar para si o dever de solucionar
os conflitos de interesses, o Estado, sempre que acionado para tanto, concebeu
aos cidadãos o direito a obtenção de uma resposta aos seus clamores de lesões ou
ameaças a direito. Assumindo tal postura, concebeu para todos do povo o direito
à obtenção de tutela jurisdicional. Em termos mais precisos: o acesso à justiça
traduz-se, nesse primeiro momento, na real possibilidade de qualquer um acionar
o Estado-Judiciário sempre que acreditar ameaçado ou lesado direito que entenda
possuir, e dele receber uma resposta ao pedido deduzido.
Como consequência primeira de tal entendimento, o órgão judicial jamais há
de negar o exame a uma afirmação de lesão ou de ameaça a direito que lhe fora
direcionado, mercê do que se extrai da própria literalidade do art. 5º, XXXV, da
CRFB – “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a
direito” –, de resto reproduzida no caput do art. 3o do CPC Projetado. Acionado, o
Judiciário prestará a tutela jurisdicional preventiva ou reparatória, seja o direito
envolvido individual ou coletivo (lato sensu),5 cumprindo-lhe, sempre atento ao
devido processo legal e à participação democrática das partes, encontrar a resposta
correta para a solução do conflito em julgamento.
É possível, ainda segundo essa mirada primitiva, correlacionar acesso à justiça
e regra da congruência,6 e daí extrair outra importante implicação. O Estado-
5 Destaca Nelson Nery Junior (2009, p. 172-173) que “[o] direito de ação pode ser exercido
independentemente da qualificação jurídica do direito material a ser por ele protegido. Com
isso, tanto o titular do direito individual, quanto o do direito meta-individual (difuso, coletivo
ou individual homogêneo) têm o direito constitucional de pleitear ao Poder Judiciário a tutela
jurisdicional adequada”.
6 Para Ricardo Augusto Herzl (2013, p. 95), a regra da congruência (ou correlação) impõe ao
juiz “analisar a demanda somente nos limites em que foi proposta (adstrição aos fatos – CPC,
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i encontro de internacionalização do conpedi
juiz está mesmo obrigado a pronunciar-se sobre lesão ou ameaça a direito. Não
obstante, é exclusivamente das partes o poder de determinar a extensão desse
julgamento: o juiz em seu mister está atrelado ao que foi por elas pedido e
discutido ao longo dos autos.
É nesse ponto que se encontra uma das mais interessantes previsões do CPC
Projetado, estabelecendo textualmente que, em qualquer grau de jurisdição, o
órgão judicial não poderá decidir com base em fundamento a respeito do qual
não se tenha oportunizado a manifestação das partes, ainda que se trate de matéria
apreciável de ofício (art. 10). Note-se que o dispositivo faz alusão à expressão
fundamento de forma genérica, a incluir em seu âmbito aspectos fáticos e jurídicos,
querendo isso significar que a compreensão que hoje se tem do brocardo iura
novit curia merece(rá) revisão – aliás, se submetido à uma filtragem constitucional
já não se mantêm, porque contrário à nova ordem constitucional, especialmente
ao contraditório e à ampla defesa.
E isso vale inclusive para as matérias às quais o juiz está autorizado a suscitar
de ofício (questões de ordem pública). Talvez oriundo da comodidade que
proporciona, prospera o entendimento equivocado e antidemocrático de que
matérias arguíveis de ofício estariam isentas da influência do contraditório,
de maneira que o juiz se encontraria liberto de ouvir, apreciar e considerar as
manifestações das partes a respeito delas. Não há, todavia, racionalidade alguma
nesse argumento. Matérias apreciáveis de ofício são aquelas às quais o juiz está
autorizado, sem provocação das partes e por iniciativa própria, a encaminhar
(indicar, apontar) aos autos do processo. No entanto, a autoridade do juiz restringese a essa condução da matéria ao processo, jamais lhe sendo lícito julgá-las sem antes
abrir oportunidade para as partes se manifestarem; somente depois, já imbuído
pela influência do contraditório em sua feição substancial, cumpre-lhe, aí sim,
decidir.7 Dito de outro modo: o poder de agir de ofício suscitando matérias de
art. 128) e dentro daquilo que lhe foi postulado (adstrição aos pedidos – CPC, art. 460). É
omissa a sentença que aprecia menos (citra) do que foi postulado, e nula quando conceder
além (extra) ou coisa diversa (ultra) daquilo que foi pedido”.
7 Provimentos jurisdicionais que seguem hoje rumo oposto não apenas lesam os arts. 128, 460
e 515 do Código de Processo Civil, mas igualmente atingem diretamente o contraditório,
sobretudo por surpreenderem as partes (sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça já
se manifestou inúmeras vezes, embora segundo análise particularizada ao princípio da
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ordem pública presente no Projeto do novo CPC é distinto daquele previsto no
CPC em vigor, e sobretudo distinto da prática hoje frequente no dia a dia do foro.
3.acesso à justiça como obrigação de não fazer endereçada ao legislador
Ainda preso à sua perspectiva formal, avance-se um pouco mais para realçar
que a garantia de acesso à justiça dirige-se por igual ao legislador, que não está
autorizado a tergiversar a ponto de restringir, mediante imposições legais, a esfera
de atividade do Judiciário e assim excluir de sua apreciação particulares lesões ou
ameaças a direito.
Resulta desse significado a rejeição da chamada “instância administrativa
forçada” (ou “jurisdição condicionada”), de modo que ninguém está obrigado
a esgotar primeiro as vias administrativas para, só depois, buscar socorro no
Judiciário, restrição que já foi franqueada no Brasil por força da Emenda
Constitucional 7/77 à Constituição de 1967.
É tal, de resto, a plenitude da incidência do aludido direito fundamental,
que apenas uma ressalva a ele hoje se admite quanto ao condicionamento
congruência: REsp nº 1.169.755, REsp nº 623.704, RMS nº 18.655, REsp 746.622, REsp
nº 380.143). Se o juiz, quando de seu pronunciamento judicial, perceber a necessidade de
elaborá-lo segundo ponto de vista alheio à dialética processual, cumpre-lhe, antes, intimar as
partes e conferir-lhes oportunidade de manifestação e de influência na construção da decisão
– basicamente este o sentido que se extrai da Ordenança Processual Civil (ZPO) alemã e do
Nouveau Code de Procédure Civile da França, como bem mostra Dierle José Coelho Nunes
(2008, p. 153-160): “Na França, o art. 16 do Nouveau Code de Procédure Civile impede o
juiz de fundamentar a sua decisão sobre aspectos jurídicos que ele suscitou de ofício sem ter
antecipadamente convidado as partes a manifestar as suas observações. Assim, a garantia
opera não somente no confronto entre as partes, transformando-se também num deverônus para o juiz que passa a ter que provocar de ofício o prévio debate das partes sobre
quaisquer questões de fato ou de direito determinantes para a resolução da demanda. Na
Alemanha, o conteúdo da cláusula estabelecida no texto do art. 103, §1º, da Lei fundamental
da República Federal da Alemanha como ‘direito de ser ouvido pelo juiz’ (Rechliches Gehör)
possui um alcance similar ao francês face à interpretação do Tribunal Constitucional Federal
(Bundesverfassungsgericht), não só operando seus efeitos no confronto entre as partes, mas sim
convertendo-se também num dever para o magistrado, de modo que se atribui às partes a
possibilidade de posicionar-se sobre qualquer questão de fato ou de direito, de procedimento
ou de mérito, de tal modo a poder influir sobre o resultado dos provimentos. Ao magistrado
é imposto o dever de provocar o debate preventivo, com as partes, sobre todas as questões a
serem levadas em consideração nos provimentos”.
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a jurisdição no Brasil. O único caso consentido pelo direito pátrio refere-se à
“Justiça Desportiva”, e isso porque a própria Constituição impõe o antecedente
esgotamento das instâncias administrativas que lhe são próprias, no caso de ações
relativas à disciplina e às competições desportivas (CRFB, art. 217, §1º). Não
obstante, para evitar procrastinação no trâmite dos feitos e, por conseguinte,
impedimento (indireto) de acesso ao Judiciário, o constituinte, sabiamente,
inseriu um prazo máximo de sessenta dias para a manifestação final dessas
instâncias administrativas (CRFB, art. 217, §2º).
4. acesso à justiça como igualdade de todos per ante
o judiciário
O acesso à justiça denota também acesso igualitário a todos perante o Judiciário,
ou seja, a hipossuficiência econômica não há de ser empecilho ao direito a uma
tutela jurisdicional adequada. A novidade aqui é que o Estado saiu de sua zona
de conforto, deixou de lado aquela posição de passividade característica de uma
filosofia estatal liberal burguesa e adotou postura mais ativa, intervencionista, de
maneira que não apenas proclamou a igualdade, mas foi além e assumiu o dever
de assegurá-la no palco jurisdicional mediante a própria atuação do Judiciário.
Por isso, aliás, assegura-se constitucionalmente – outro direito fundamental
– a assistência jurídica integral e gratuita àqueles que efetivamente comprovarem
insuficiência de recursos (CRFB, art. 5º, LXXIV), um conceito mais abrangente
se comparado à assistência judiciaria prevista na Constituição anterior, que
abarca a consultoria e a atividade jurídica extrajudicial em geral (assistência
aos necessitados no que tange a aspectos legais, prestação de informações sobre
comportamentos a serem seguidos diante de problemas jurídicos, proposição de
ações e apresentação de defesas). (NERY JUNIOR, 2009, p. 176)
Há uma observação importante, entretanto. Ainda hoje cabe a vetusta Lei
1.060/1950 regular a concessão de assistência judiciária aos necessitados.8 Se8 É a Lei n.º 1.060/1950 que regula a gratuidade da justiça (muito embora tenha se preferido
ali utilizar sobejamente a expressão “assistência judiciária”, muitas vezes incorretamente) no
plano infraconstitucional. Logo em seu artigo inaugural reza que cumpre aos poderes públicos,
federal e estadual – independentemente da colaboração que possam receber dos municípios
e da Ordem dos Advogados do Brasil – a concessão de assistência judiciária aos necessitados.
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gundo seu art. 4o, a parte gozará dos benefícios da assistência judiciária mediante
simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de
arcar com as custas processuais. Não obstante, tal legislação é anterior à Constituição
Federal e, ao menos nesse ponto, não foi por ela recepcionada.9
Basta perceber que a Carta Magna exige a comprovação da insuficiência de
recursos para que o interessado possa obter o benefício da assistência jurídica
gratuita: “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que
comprovarem insuficiência de recursos” (CRFB/88, art. 5o, LXXIV). Se a Carta
Magna exige a comprovação (= provar, demonstrar, revelar) da insuficiência
de recursos, não pode a lei infraconstitucional, a toda evidência, dispensar
tal prova. E por certo não se pode atribuir valor à chamada “declaração de
pobreza”, documento elaborado de próprio punho, alheio ao devido processo
legal e assinado pelo interessado, artifício utilizado para burlar a imposição
constitucional e inverter o ônus probatório, favorecendo justamente aquele a
quem cumpre produzir a prova a fim de obter o favorecimento estatal. Superar
os limites semânticos do dispositivo aludido via “interpretação criativa” nada mais é
que adotar um protagonismo judicial atentatório à separação de poderes, que frauda
o próprio trabalho do constituinte originário.10
O CPC projetado traz toda uma sessão sobre a gratuidade da justiça e, ao
que parece, tem a pretensão substituir a Lei 1.060/1950. Mas o faz segundo
o ponto de vista predominante em doutrina e jurisprudência, vale dizer,
dispensando a comprovação da insuficiência de recursos por parte daquele
Sem embargo do que afirma o seu art. 2.º, e mediante uma interpretação conforme, tanto
nacionais como estrangeiros, residentes ou não no País, gozam do direito de obter os benefícios
desta legislação, sempre que necessitarem acionar a jurisdição. Tais benefícios correspondem
concretamente a algumas isenções, como a de taxas judiciárias, de emolumentos e custas,
de publicações (CPC, art. 232, III), indenizações de testemunhas, honorários e mesmo de
despesas com a realização do exame de código genético (DNA), honorários de advogado e
peritos, depósitos previstos em lei para a interposição de recursos, ajuizamento de ações e
demais atos oficiais
9 É outra, contudo, a orientação do Supremo Tribunal Federal ao decidir que o art. 5o, LXXIV
(assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos)
não revogou a garantia de assistência judiciária gratuita da Lei 1.060/1950 e que, para sua
obtenção, basta a declaração, feita pelo próprio interessado, de que sua situação econômica
não permite vir a juízo sem prejuízo de sua subsistência (RE 205746/RS, Relator Ministro
Carlos Velloso, julgamento em 26/11/1997, 2a Turma, disponível em: <www.stf.jus.br> ).
10 Sem ingenuidades com relação ao que seja “limites semânticos”. Não se pode confundir os
autores com os exegetas do século XIX (STRECK, 2014b, passim).
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que pretende o benefício. Tanto assim que presumirá verdadeira a alegação de
insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural – com relação a pessoa
jurídica será exigida prova da hipossuficiência, fazendo o CPC Projetado coro
com o entendimento prevalecente na atualidade no âmbito jurisprudencial –,
em desrespeito absoluto ao dispositivo constitucional supra mencionado (CPC
projetado, art. 99). O que há aí enfim é a manutenção da sistemática atual,
com a inversão do ônus probatório, que transfere, via lei infraconstitucional, a
demonstração da insuficiência de recursos do interessado para a contraparte.11
É afinal corolário do acesso à justiça o comando que obriga – não só o
legislador, mas também o próprio juiz – a adotar medidas que contornem
obstáculos econômicos e, deste modo, permitam ao hipossuficiente o acesso
ao Judiciário e, sobremodo, a obtenção real e concreta de uma adequada tutela
jurisdicional, desde que, cumprido o comando constitucional, demonstre sua
condição de miserabilidade.
5.acesso à justiça como direito fundamental ao
controle difuso de constitucionalidade
Manteve a Constituição de 1988 a fórmula de controle misto de
constitucionalidade (controle direto, “abstrato”, incidental, concreto), agregando
11O CPC Projetado traz, sem dúvidas, avanços, mas relacionados sobretudo à aspectos
procedimentais. Importante inovação trazida pelo CPC Projetado refere-se à pormenorização
e simplificação do procedimentos adotados, seja para pedir a gratuidade da justiça, seja para
impugnar a decisão que o deferiu. Abaixo, as principais mudanças: i) o pedido deverá ser
formalizado preferencialmente na primeira manifestação do requerente (petição inicial,
contestação, petição de ingresso de terceiro), ou, em momento posterior, mediante simples
petição, sempre nos autos principais e sem a sua suspensão (art. 99, caput); ii) havendo
elementos contrários nos autos, poderá o juiz indeferir o pedido, mas não antes de oportunizar
ao requerente a possibilidade de comprovar o preenchimento dos requisitos (art. 99, §1º); iii)
para o fim de contrapor o deferimento do pedido não mais haverá necessidade de um incidente
específico. A impugnação será oferecida na contestação, na réplica, nas contrarrazões de recurso
ou, nos casos de pedido superveniente ou formulado por terceiro, por meio de petição simples,
a ser apresentada no prazo de quinze dias, nos autos do próprio processo, sem suspensão do
seu curso (art. 100); iv) contra a decisão que conceder ou revogar a gratuidade da justiça será
cabível agravo de instrumento, ou mesmo apelação, caso a questão seja resolvida em sentença
(art. 101). O recorrente fica dispensado de recolher as custas até decisão preliminar do relator
do recurso (art. 101, §1º), o qual poderá dispensar ou determinar seu recolhimento em 5 dias,
sob pena de não conhecimento (art. 101, § 2º). As alterações e inovações ora tratadas ensejarão
a revogação expressa dos arts. 2º, 3º, 4º, caput e §§ 1º a 3º, 6º, 7º, 11, 12 e 17 da Lei nº 1.060,
de 5 de fevereiro de 1950, conforme previsto no art. 1.086, do Projeto de Lei 8.046, de 2010.
110
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a ação de inconstitucionalidade por omissão, inspirada no constitucionalismo
português e iugoslavo (de antes da desintegração da federação), a arguição de
descumprimento de preceito fundamental – ADPF e a ação declaratória de
constitucionalidade – ADC, introduzida pela EC 3.12
A modalidade de controle difuso com remessa ao Senado permanece no texto,
atravessando, pois, as Constituições de 1934, 1946, 1967 e 1969. Pelo controle
difuso de constitucionalidade, permite-se que, no curso de qualquer ação, seja
arguida/ suscitada a inconstitucionalidade da lei ou de ato normativo, em âmbito
municipal, estadual ou federal. Qualquer das partes pode levantar a questão da
inconstitucionalidade, assim como também o Ministério Público e, de ofício,
o juiz da causa. Afinal, não há questão de ordem pública mais relevante que a
inconstitucionalidade de um texto normativo.
Desse modo, ao contrário do que ocorre na maioria dos países da Europa13
– que a partir do segundo pós-guerra estabeleceram Tribunais Constitucionais
com a tarefa de controlar a constitucionalidade, onde a questão da inconstitucionalidade é julgada per saltum (exceção feita a Portugal, que manteve, ao
lado do controle concentrado, preventivo e sucessivo, o controle difuso) –, no
Brasil qualquer juiz de direito de primeira instância pode deixar de aplicar uma
lei, se entendê-la inconstitucional.14
12 A ADPF, no texto originário, estava prevista no parágrafo único do art. 102. Com o advento
da EC 03/1993, passou a figurar no § 1o. do referido artigo.
13 De ressaltar que esse modelo de Tribunais Constitucionais foi seguido, mais recentemente,
por países que faziam parte da ex-URSS.
14 Note-se que o juiz singular não declara a inconstitucionalidade de uma lei, apenas deixa de
aplicá-la, isso porque somente na forma do art. 97 da CF é que pode ocorrer a declaração
de inconstitucionalidade. Essa questão pode suscitar discussões, em face da confusão que
pode ser feita entre “declarar” e “deixar de aplicar”. Tecnicamente – e o direito é alográfico,
porque as palavras têm significado próprio –, não se trata da mesma coisa. Nem poderia.
A declaração da inconstitucionalidade é reservada aos plenários (full bench). Controle
difuso é apenas o caminho para chegar a esse desiderato. Isso porque, se o juiz “declarasse”
a inconstitucionalidade, esse ato deveria ter efeitos correlatos à declaração objetiva. Se ele
“declarasse”, sua decisão teria de ter efeito ex tunc ou deveria ele “modular” esses efeitos.
Evidentemente que o modelo adotado pelo Brasil (e por Portugal) não se coaduna com a tese
de que “declarar” é o mesmo que “deixar de aplicar”. Trata-se de uma questão de legitimidade
democrática. Se um juiz pudesse declarar a inconstitucionalidade, os demais juízes, de algum
modo, deveriam ser afetados por esse ato “declaratório”. O que ocorre – e esse é o busílis da
questão – é que o controle difuso tem, na sua ratio, sempre uma questão prejudicial. E essa
questão prejudicial tem a ver com o conteúdo de uma ação. Tanto é que o próprio Supremo
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i encontro de internacionalização do conpedi
A relevância do controle difuso é aferida mormente tendo-se em vista que,
por meio da defesa de interesses subjetivos, dá-se por igual a defesa da própria
Constituição, e isso desde a judicatura de primeira instância. Em outros termos:
inexistente judicial review, o acesso à justiça estaria seriamente prejudicado,
na medida em que, frente a restrições aos direitos fundamentais oriundas
de algum ato estatal, somente por meio do controle difuso é possível corrigir
a inconstitucionalidade e preservar o direito fundamental – não é por outra
razão que as partes estão sempre autorizadas a invocar a inconstitucionalidade
de qualquer texto normativo, inclusive das súmulas vinculantes. (STRECK;
ABBOUD, 2011, p. 107 e 119-120)
É, portanto, perfeitamente correto advogar um direito fundamental ao judicial
review cuja valorização e alcance institui: i) a garantia a todos de meios jurídicos
para fazer valer seus direitos (expressa ou implicitamente) constitucionais, motivo
pelo qual eventual inércia dos entes legitimados a propor as chamadas “ações
constitucionais” não se mostra em tese prejudicial ao cidadão, porque ele próprio
está autorizado a provocar o controle difuso – e, acrescente-se, se não o fizer, haverá
o juiz de realizá-lo assim mesmo – para ver respeitado seu direito fundamental de não
ser obrigado a cumprir ato normativo inconstitucional (CORRÊA DE ARAÚJO;
PINHEIRO BARROS, 2006); ii) cada cidadão tem o direito fundamental a não ter
seu direito afastado em face de ato normativo inconstitucional; iii) o impedimento
de que o controle difuso de constitucionalidade seja obstado por restrições de cunho
legislativo (lato sensu); iv) a impossibilidade de o Judiciário desdenhar o controle
difuso de constitucionalidade15, sobretudo pelo recrudescimento das decisões de
efeito vinculante do Superior Tribunal de Justiça; e v) no termos do MS 24.268/04,
Tribunal Federal já decidiu que, quando do controle difuso se tratar, não de uma questão
prejudicial, mas de apenas diretamente da inconstitucionalidade, esse ato não terá guarida no
sistema de controle. (STRECK, 2013, p. 527)
15 O controle de constitucionalidade há de ser utilizado para todas a produção normativa
interna do país, inclusive sobre súmulas vinculantes: “(...) A impossibilidade de controlar a
constitucionalidade das súmulas vinculantes, perante o caso concreto, não só afrontaria o
judicial control e o direito de ação, como ainda confrontaria a independência judicial, posto
que ‘a independência do tribunal ou do juiz manifesta-se como garantia de que a sentença
judicial pode valer como emanação do direito e não simplesmente como ato decisionista do
Estado’” (STRECK; ABBOUD, 2011, p. 107 e 119-120). Também admitindo o controle de
constitucionalidade das súmulas vinculantes: NERY JUNIOR; ANDRADE NERY, 2012,
p. 667.
112
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i encontro de internacionalização do conpedi
Rel. Min. Gilmar Mendes – embora historicamente venha impedindo a análise de
recursos extraordinários que invoquem o aludido princípio – o Supremo Tribunal
Federal dá sinais sazonais da incorporação da democratização do processo,
fazendo-o com base na jurisprudência do Bundesverfassungsgericht, é dizer, a
pretensão à tutela jurídica corresponde à garantia consagrada no art. 5°, LV, da CF,
contendo os seguintes direitos: (a) direito de informação (Recht auf Information),
que obriga o órgão julgador a informar a parte contrária dos atos praticados no
processo e sobre os elementos dele constantes; (b) direito de manifestação (Recht
auf Äusserung), que assegura ao defensor a possibilidade de manifestar-se oralmente
ou por escrito sobre os elementos fáticos e jurídicos constantes do processo; (c)
direito de ver seus argumentos considerados (Recht auf Berücksichtigung), que exige
do julgador capacidade, apreensão e isenção de ânimo (Aufnahmefähigkeit und
Aufnahmebereitschaft) para contemplar as razões apresentadas. O mesmo acórdão
da Suprema Corte brasileira incorpora a doutrina de Dürig/Assmann, sustentando
que o dever de conferir atenção ao direito das partes não envolve apenas a obrigação
de tomar conhecimento (Kenntnisnahmeplicht), mas também a de considerar, séria
e detidamente, as razões apresentadas (Erwägungsplicht) (STRECK, 2014a).
Por tudo isso, é preocupante a tendência (equivocada) de o Supremo Tribunal
Federal buscar a equiparação entre controle concentrado e controle difuso,
circunstância que pode ser observada a partir, especialmente da Reclamação
4335-4/C. Não pode o controle difuso existir desacompanhado de qualquer
mecanismo de extensão dos efeitos das decisões. Ou seja, se o Supremo Tribunal
Federal sufragar, em definitivo, a tese constante nos votos dos Ministros Gilmar
Mendes e Eros Grau na Reclamação 4335/AC, de fato o controle difuso deixará
de ter especificidade própria, pois estará, na prática, equiparado ao controle
concentrado.
A questão é que o controle difuso diz respeito à vigência de lei e o controle
concentrado à retirada da validade de um ato normativo. Isso porque, convivendo
acoplado a um amplo sistema de controle concentrado, o controle difuso de
constitucionalidade pode representar um importante instrumento de filtragem
constitucional. Em outros termos: o controle difuso de constitucionalidade, mantido até hoje inclusive em países como Portugal, retira do órgão de cúpula do Poder
Judiciário o monopólio do controle de constitucionalidade, servindo de imporvolume
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i encontro de internacionalização do conpedi
tante mecanismo de acesso à justiça e, consequentemente, à jurisdição constitucional. A importância do mecanismo do controle difuso mostra-se absolutamente
relevante, uma vez que permite que juízes de primeiro grau e tribunais em suas
composições plenárias, mediante incidente de inconstitucionalidade devidamente
suscitado, realizem a filtragem constitucional, que vai desde a simples expunção
de um texto inconstitucional até a correção de textos através dos institutos da
interpretação conforme a Constituição e da inconstitucionalidade parcial sem
redução de texto. (STRECK, 2013, p. 525 e ss.)
6.acesso à justiça como direito fundamental ao
controle difuso de convencionalidade
A eficácia interna das normas de um diploma internacional no País está
condicionada à referenda por parte do Congresso Nacional por meio de um
decreto legislativo, cuja publicação deve ocorrer no Diário Oficial da União.16 Uma
vez internalizado na ordem interna, ocupará ele, de regra, posição hierárquica de
lei ordinária, situação que se mantém desde a aurora do período republicano.
Não obstante, com o advento da Emenda Constitucional n.º 45/2004, sempre
que o enunciado legal, oriundo de tratado internacional do qual a República
Federativa do Brasil seja parte, se referir a um direito fundamental e for aprovado
em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos
dos respectivos membros, seu ingresso no ordenamento jurídico se dará com status
(material e formalmente) constitucional – a Constituição lhe atribui equivalência
à emenda constitucional – e não meramente à lei ordinária (CF/88, art. 5º, §3º).
Questão mais dificultosa, todavia, é a de definir o status normativo de diplomas
internacionais sobre direitos humanos não aprovados com as formalidades
predicadas pela Constituição. Segundo orientação prevalecente no Supremo
16 A doutrina divide-se em duas correntes ao tratar dos conflitos entre normas provenientes
dos tratados e normas do sistema jurídico interno dos Estados. O monismo alberga a tese
de que o tratado internacional ingressa de imediato na ordem jurídica interna do Estado
contratante. No dualismo, as ordens interna e internacional têm coexistências independentes,
não se podendo, em princípio, falar da existência de conflitos entre elas. Esta última corrente
advoga o entendimento de que as normas internacionais apenas possuem validade na ordem
interna quando sofrerem um processo de recepção, destinado a transformá-las em norma
jurídica do sistema jurídico do Estado. No Brasil, vigem as diretrizes da teoria dualista.
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i encontro de internacionalização do conpedi
Tribunal Federal, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos
não submetidos às formalidades constitucionais (aprovação por três quintos
da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em dois turnos de votação),
anteriores ou posteriores à Emenda Constitucional n.º 45/2004, apresentam
eficácia supralegal, e assim se situam hierarquicamente entre a Constituição
e as leis infraconstitucionais (ordinárias e complementares, cuja distinção não
é hierárquica, mas apenas de quorum de aprovação e de matéria). Esta hierarquização, diferençando na ordem jurídica brasileira o grau de autoridade entre
leis ordinárias e tratados internacionais de direitos humanos, permite içar os últimos
ao patamar de parâmetro de controle de legitimidade das primeiras. Dito de outro
modo: os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos sempre
se encontrarão posicionados hierarquicamente em degrau superior à legislação
infraconstitucional, seja assumindo status constitucional (quando congregar
aspecto material, versando sobre direitos humanos, e aspecto formal, aprovado
de acordo com o procedimento legislativo constitucional), seja assumindo status
supralegal (quando trouxer consigo apenas aspecto de ordem material e, assim,
versar sobre direitos humanos), neste último caso pairando acima da legislação
infraconstitucional, mas em nível inferior à Constituição.
Aqui importa justamente esse caráter supralegal confiado a alguns desses
tratados pelo Supremo Tribunal Federal, a exemplo do Pacto de São José da Costa
Rica, incorporado à ordem jurídica brasileira em 1992.17 É que a emanação
de efeitos da legislação infraconstitucional depende de sua consonância não
apenas com a Constituição, mas por igual com o direito supralegal, que igualmente
representa parâmetro de controle. Enfim, a Emenda Constitucional 45/2004, com
a interpretação prevalecente no Supremo Tribunal Federal acima indicada, permite afirmar a existência de uma nova espécie de controle da produção normativa
doméstica no país: o chamado controle de convencionalidade.
17 O Pacto de São José da Costa Rica (ou Convenção Americana de Direitos Humanos), em
vigor desde 1978, foi incorporado à ordem jurídica brasileira em 1992, pelo Decreto 678, de
06 de novembro de 1992, e representa bom exemplo de fonte formal de normas processuais,
notadamente porque traz consigo uma série de garantias processuais. Uma delas é o direito
a um processo em tempo razoável, hoje, e em função da Emenda Constitucional n.º 45/2004,
devidamente inserido no texto constitucional (CF/88, art. 5º, LXXVIII) nos seguintes
termos: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do
processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
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i encontro de internacionalização do conpedi
Daí se afirmar que há também um direito fundamental ao controle de
convencionalidade, que igualmente dimana do acesso à justiça, em semelhança
ao que já foi tratado no tópico anterior sobre o judicial review. Havendo lesão ou
ameaça a direito oriunda de dispositivo contrário à ordem supralegal, cumpre ao
Judiciário atuar, mediante o competente controle (difuso de) convencionalidade,
até mesmo oficiosamente, respeitado naturalmente o contraditório, a fim de
compatibilizar as normas internas com as convencionais.
7. acesso à justiça como direito fundamental ao justo processo e à justiça da decisão
O acesso à justiça também relaciona-se à ideia de direito fundamental ao justo
processo e à justiça da decisão. E aqui é preciso trabalhar quatro pontos: i) o
respeito ao procedimento e às garantias processuais constitucionais; ii) a apuração
adequada dos fatos relevantes da causa; iii) o respeito à legalidade; e iv) a adoção
de teorias da interpretação jurídica e da decisão judicial adequadas à ordem
constitucional inaugurada em 1988.
7.1.o respeito ao procedimento e aos direitos processuais constitucionais
Não é possível pensar-se, num primeiro momento, em justo processo e/
ou em decisão justa sem que se atente ao procedimento e sobretudo aos
direitos fundamentais processuais que lhe conferem sustentação. Aqui importa
propriamente a legitimidade da decisão pela atenção ao devido processo legal,
que deve conformar todo e qualquer procedimento e cujas bases encontram-se
previstas no âmbito constitucional. Em outras palavras, o acesso à justiça também
é compreendido como direito ao due process, algo que inexoravelmente destaca
seu caráter dinâmico, além de sublinhar, até por implicação, a insuficiência da
empreitada de simplesmente abrir ao cidadão as portas da jurisdição, permitindo
que busque socorro sempre que lesado ou ameaçado em seu direito. A atividade
jurisdicional, de tal sorte, é legitimada e controlada mediante o processo,
submetida a uma espécie de filtragem constitucional vital e inevitável, cujo
propósito é o ajuste de todo o conjunto de atos praticados pelos atores processuais
116
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i encontro de internacionalização do conpedi
a um programa normativo-principiológico previamente descrito e positivado na
Constituição – os chamados direitos fundamentais processuais.
Estar-se-á a falar daquilo que fora denominado por Italo Andolina e Giuseppe
Vignera de modelo constitucional do processo, um sistema de importantes garantias
e direitos constitucionais hábeis para legitimar democraticamente e controlar
a própria atividade jurisdicional e os resultados dela provenientes. Em termos
diretos: todo e qualquer ato praticado no âmbito processual há de se pautar no
amplo acesso à justiça, afinado a todas as características que atribuem contornos
ao devido processo legal, isto é, no respeito ao contraditório e à ampla defesa,
ao juiz natural, à isonomia, à motivação e publicidade das decisões judiciais, ao
direito a um advogado e à prestação jurisdicional em tempo razoável.18
7.2. o direito à produção de provas
A instrução probatória, de outro lado, deve ser a mais abrangente possível,
respeitados naturalmente os limites de cada procedimento e os direitos
fundamentais considerados de forma geral. Nenhuma decisão será justa caso não
se efetive o direito de as partes provarem os fatos que dão consistência às suas
teses. Basta dizer que esses mesmos fatos que se prestarão ao convencimento do
juiz e, por conseguinte, à formação da decisão judicial.
O tema referente ao direito fundamental à produção de provas toca na
questão filosófica da verdade processual, ainda bastante tormentosa e que divide
estu-diosos em todo o mundo. Ao fim e ao cabo, a depender da perspectiva
adotada, se chegará a conclusões variadas. Há, por exemplo, aqueles filiados a
18 Leciona Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias: “o devido processo legal, principal alicerce do
processo constitucional ou modelo constitucional do processo, considerado este o princípio
metodológico constitucional de garantia dos direitos fundamentais, deve ser entendido como
um bloco aglutinante e compacto de vários direitos e garantias fundamentais inafastáveis,
ostentados pelas pessoas do povo (partes), quando deduzem pretensão à tutela jurídica nos
processos, perante os órgãos jurisdicionais: a) – direito de amplo acesso à jurisdição, prestada
dentro de um tempo útil ou lapso temporal razoável; b) – garantia do juízo natural; c) –
garantia do contraditório; d) garantia da ampla defesa, com todos os meios e recursos a ela
(defesa) inerentes, aí incluído o direito à presença de advogado ou de defensor público; e) –
garantia da fundamentação racional das decisões jurisdicionais, com base no ordenamento
jurídico vigente (reserva legal); f) – garantia de um processo sem dilações indevidas”
(CARVALHO DIAS, 2012, p. 129).
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corrente denominada garantismo processual, que entendem não ser a verdade –
inalcançável que é – um problema do processo, cuja missão básica é simplesmente
a de alcançar e manter a paz dos homens que convivem em um tempo e lugar
determinado (VELLOSO, 2006. p. 220 e ss.). De outro lado, a corrente
majoritária, encabeçada pelos simpatizantes do ativismo processual, advoga ser
o processo um método epistemológico voltado justamente à busca da verdade
(por correspondência), situando o juiz em posição privilegiada, com amplos
poderes instrutórios, na medida em que ele seria o único sujeito do processo apto
a desempenhar uma função propriamente epistêmica. (TARUFFO, 2012)
Como sublinhado, em doutrina (e em jurisprudência) é prevalente o
entendimento de que se deve incentivar um protagonismo judicial em matéria
probatória a fim de tornar mais efetivo e justo o processo, além de assegurar
a igualdade entre as partes. O próprio ordenamento processual brasileiro, aliás,
segue esse rumo (CPC, art. 130). Entretanto, há nesse raciocínio uma armadilha
muitas vezes não percebida: é que, ao introduzir provas no processo, o juiz, muito
sutilmente, deixa de lado (ou ao menos pode deixar de lado) a sua condição
de terceiro (impartialidad) e passa a operar, ainda que inconscientemente, como
verdadeira parte, ou como auxiliar de uma delas. E assim procedendo, atuando
como deveria laborar a parte beneficiada pela prova, vulnera o contraditório,
desequilibra o debate, tudo em prejuízo da contraparte, que agora terá que se
voltar também contra o próprio magistrado. (DELFINO; ROSSI, 2013)
A questão da verdade no processo é um tema sensível aos juristas. Sob os
aportes da Crítica Hermenêutica do Direito STRECK, 20140, a noção de
verdade não deve ser compreendida nem a partir da ontologia clássica (e suas
variações, como por exemplo, a noção de verdade como correspondência, com
algumas pitadas de modernidade) e nem fruto do subjetivismo do julgador (onde
se encaixa o solipsismo que vem desde Bülow). Um CPC adequado ao Estado
democrático deve levar em conta o paradigma da intersubjetividade. É por isso
que, por exemplo, o novo CPC corretamente abandonou o livre convencimento
e exige a coerência e a integridade na forma(ta)ção da jurisprudência.
7.3. o respeito à legalidade
Não há, entretanto, como pensar-se em processo justo apenas venerando
o procedimento e as garantias processuais constitucionais. Ainda que o
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procedimento e as garantias que o conformam sejam milimetricamente
respeitados, ainda que se respeite amplamente o direito de produção de provas,
é possível que a decisão judicial se apresente injusta. Daí um terceiro critério: a
legalidade constitucionalizada.
Para ser direto: não é justa decisão proferida com desdém ao ordenamento
jurídico, em desatenção à legalidade constitucionalizada (e supralegal). Não está
o juiz autorizado a julgar com base em elementos exógenos, alheios ao ordenamento
jurídico, calcados naquilo que para ele, em seu particular subjetivismo, se
apresente justo para a solução do caso concreto. Não lhe é lícito, por exemplo,
julgar por equidade – não obstante o ordenamento processual brasileiro em vigor,
e também o CPC Projetado, rezem de maneira diversa –, ou pautado em critérios
morais, religiosos, políticos ou econômicos.19
Possui o direito autonomia e esta deve ser preservada pelo Judiciário; a
ordem jurídica deve ser protegida de predadores externos que só fazem ferir a
Constituição e especialmente a nossa democracia.
7.4. a interpretação jurídica e a teoria da decisão
O último critério está relacionado com a interpretação jurídica e formação
mesma da decisão judicial. Pode-se afirmar que há um direito fundamental à
uma Teoria da Decisão. E, no que diz respeito a isso, a situação que se enfrenta
atualmente no Brasil é grave. É preciso que se trabalhe com mais afinco a
elaboração de teorias da interpretação jurídica e da decisão judicial ajustadas à
nova ordem constitucional. Afinal, o que se constata na prática, infelizmente, são
decisões que amiúde demonstram que cada julgador possui seu próprio critério
de decidir. Falta uniformidade.
19 Também são um mal em si mesmos os “predadores endógenos”, que por igual fragilizam o
Direito (v.g., protagonismos judiciais; discricionarismo positivista; inquisitivismo; carência
do dever de fundamentação; transformação dos julgamentos colegiados em decisões
monocráticas, a maioria baseada em “jurisprudência dominante”, cujo DNA não vem
demonstrado; a estandardização das decisões; o pamprincipiologismo, transformado em uma
espécie de terceiro turno do processo constituinte e paraíso do decisionismo/pragmatismo/
axiologismo); o crescimento da relativização da coisa julgada, entre outros). (STRECK, 2013,
p. 73-74).
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As decisões dos tribunais superiores, por exemplo, são frequentemente
desrespeitadas pelos demais órgãos judiciais, e isso sem qualquer fundamentação
que justifique a alternância de entendimento. E que talvez seja pior, eles próprios,
os tribunais superiores, desrespeitam suas próprias decisões.
Apenas para ilustrar, vale a lembrança de recente decisão monocrática – afeita
ao direito penal e ao direito processual penal, mas que serve para demonstrar o
ponto de vista ora suscitado –, da lavra do Ministro Joaquim Barbosa (STF),
negando a concessão de trabalho externo ao ex-ministro da Casa Civil, José
Dirceu – um dos condenados no famoso “processo do mensalão” –, sob a
justificativa de que o tal benefício é prerrogativa destinada apenas aos apenados
que cumpriram, pelo menos, um sexto da pena. Acontece que a jurisprudência
do Superior Tribunal de Justiça há mais de uma década admite a concessão de
trabalho externo independentemente do cumprimento de um sexto da pena
ou de qualquer outro lapso temporal. E daí as indagações que surgem à mente:
quer dizer que o STF não estaria obrigado a cumprir a jurisprudência do STJ
em questões relativas à legislação federal? O STF teria, portanto, poder de virar
as costas para jurisprudência pacífica construída pelo STJ a respeito do tema,
justamente o tribunal que a própria Constituição Federal incumbiu de dar a
última palavra a respeito da interpretação de lei federal. E poderia fazê-lo sem
sequer suscitar alguma inconstitucionalidade no entendimento já pacificado?20
Não é difícil imaginar o que essa decisão significará em termos práticos na Justiça
Brasileira: uma esquizofrenia total, juízes decidindo de um jeito ou de outro,
debates intermináveis.
Outra questão merece ainda ser lembrada. Para os que operam o direito não
é difícil perceber o que subjaz a prática jurídica: um relativismo quase absoluto.
Tudo é ou não é; tanto faz. Cada qual julgador atribui sentidos da forma que
melhor lhe for conveniente. Quando se deseja, o argumento é o respeito estrito à
lei; e quando também se deseja o que importa é só a vontade do intérprete, vale
mesmo a vontade de poder,21 a consciência individual do julgador. Ao utente cabe
20 Sobre um aprofundamento no estudo desse problema, conferir a coluna de Rafael Tomaz de
Oliveira (2014) na ConJur: Integridade do direito implica igualdade de tratamento e respeito
às mudanças.
21 Sobre o ativismo judicial, especialmente tratando da questão da vontade, esclarece Clarissa
Tassinari, com aporte nas lições de Lenio Streck, que “o apelo a algum tipo de vontade sempre
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se conformar com a situação inusitada, sem saber quando o Judiciário julgará
respeitando os limites semânticos da legislação, e quando julgará a partir de
argumentos outros, meta-jurídicos, ou com base em valores seja lá qual forem.
Uma total isenção de responsabilidade política, portanto.22
Veja-se que, quando se está tratando de responsabilidade política do julgador,
também se está fazendo referência à necessidade de coerência e integridade na
influenciou sobremaneira as formas de compreender a aplicação do direito, o que se dá, em
um primeiro momento, a partir de uma busca pela vontade da legislação e, posteriormente,
através da procura pela vontade do legislador. [...] Fazendo uma abordagem direcionada ao
problema do ativismo judicial, pode-se afirmar que, no âmbito jurídico, o uso da expressão
‘intepretação como ato de vontade’ remete a Hans Kelsen. De fato, embora este autor não
tenha amplamente problematizado a questão, a vontade aparece em seu texto como elementos
característico do ato de aplicação do direito, constituindo uma diferença fundamental
em sua obra [...] E conclui: “Desta divisão criada por Kelsen, convém mencionar que a
preocupação que surge com o problema do ativismo judicial é justamente o que o autor não
toma por prioridade em sua teoria pura. Isto é, em sendo o ativismo judicial uma questão de
hermenêutica jurídica, isto é, que envolve a discussão sobre como aplicar o direito, pode-se
dizer que tal debate não estava incluído como o centro da teoria kelseniana, cujo enfoque
é direcionado à construção da ciência do direito. É por este motivo que, na única parte em
que trata da decisão judicial (no capítulo oitavo), seu posicionamento é considerado como
‘fatalista’, sendo possível afirmar, inclusive, que ele acabaria por aceitar ‘a total irracionalidade
da interpretação feita pelos órgãos do direito.’” (TASSINARI, 2013, p. 57-58).
22 Acreditar que a decisão judicial é produto de um ato de vontade (de poder) nos conduz
inexoravelmente a um fatalismo. Ou seja, tudo depende(ria) da vontade pessoal (se o juiz quer
fazer, faz; se não quer, não faz). Logo, a própria democracia não depende(ria) de nada para
além do que alguém quer. A hermenêutica surgiu exatamente para superar o assujeitamento
que o sujeito faz do objeto A problemática relacionada à jurisdição e o papel destinado ao juiz
vem de longe, especificamente desde o século XIX: desde “Oskar von Bülow (...), a relação
publicística está lastreada na figura do juiz, ‘porta-voz avançado do sentimento jurídico do
povo’, com poderes para além da lei, tese que viabilizou, na sequência, a Escola do Direito
Livre. Essa aposta solipsista está lastreada no paradigma racionalista-subjetivista que atravessa
dois séculos, podendo facilmente ser percebida, na sequência, em Chiovenda, para quem a
vontade concreta da lei é aquilo que o juiz afirma ser a vontade concreta da lei; em Carnellutti,
de cuja obra se depreende que a jurisdição é ‘prover’, ‘fazer o que seja necessário’; também
em Couture, para o qual, a partir de sua visão intuitiva e subjetivista, chega a dizer que
‘o problema da escolha do juiz é, em definitivo, o problema da justiça’; em Liebman, para
quem o juiz, no exercício da jurisdição, é livre de vínculos enquanto intérprete qualificado
da lei. No Brasil, essa ‘delegação’ da atribuição dos sentidos em favor do juiz atravessou
o século XX, sendo que tais questões estão presentes na concepção instrumentalista do
processo, cujos defensores admitem a existência de escopos metajurídicos, estando permitido
ao juiz realizar determinações jurídicas, mesmo que não contidas no direito legislado, com
o que o aperfeiçoamento do sistema jurídico dependerá da ‘boa escolha dos juízes’ (...) e,
consequentemente, de seu — como assinalam alguns doutrinadores — ‘sadio protagonismo’”
(STRECK, 2010, p. 40-41).
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tomada de decisões. Nesse sentido, o projeto de novo CPC é alvissareiro, porque
une a ideia de estabilidade da jurisprudência – um conceito autorreferente, isto
é, estabelecido numa relação direta com os julgados anteriores – com as ideias
de integridade e coerência, que guardam um substrato ético-político em sua
concretização, vale dizer, são dotadas de consciência histórica e consideram a
facticidade do caso. Ou em outras palavras: coerência sig­ni­fic­ a dizer que, em casos
seme­lhan­tes, deve-se pro­por­cio­nar a garan­tia da iso­nô­mi­ca apli­ca­ção prin­ci­pio­ló­
gi­ca. Haverá coe­rên­cia se os mes­mos prin­cí­pios que foram apli­ca­dos nas deci­sões
o forem para os casos idên­ti­cos; mas, mais que isto, esta­rá asse­gu­ra­da a inte­gri­da­
de do direi­to a par­tir da força nor­ma­ti­va da Constituição. A coe­rên­cia asse­gu­ra
a igual­da­de, isto é, que os diver­sos casos terão a igual con­si­de­ra­ção por parte dos
juí­zes. Isso somen­te pode ser alcan­ça­do atra­vés de um holismo inter­pre­ta­ti­vo,
cons­ti­tuí­do a par­tir do cír­cu­lo her­me­nêu­ti­co. Já a inte­gri­da­de é dupla­men­te com­
pos­ta, con­for­me Dworkin (2008, p. 213): um prin­cí­pio legis­la­ti­vo, que pede aos
legis­la­do­res que ten­tem tor­nar o con­jun­to de leis moral­men­te coe­ren­te, e um
prin­cí­pio juris­di­cio­nal, que deman­da que a lei, tanto quan­to o pos­sí­vel, seja vista
como coe­ren­te nesse sen­ti­do. A integridade exige que os juí­zes cons­truam seus
argu­men­tos de forma inte­gra­da ao con­jun­to do direi­to. Trata-se de uma garan­
tia con­tra arbi­tra­rie­da­des inter­pre­ta­ti­vas. A inte­gri­da­de limi­ta a ação dos juí­zes;
mais do que isso, colo­ca efe­ti­vos ­freios, atra­vés des­sas comu­ni­da­des de prin­cí­pios,
às ati­tu­des solip­sis­tas-volun­ta­ris­tas. A inte­gri­da­de é uma forma de vir­tu­de polí­
ti­ca. A inte­gri­da­de sig­ni­fi­ca recha­çar a ten­ta­ção da arbi­tra­rie­da­de. (TOMAZ DE
OLIVEIRA, 2014)
8.conclusões
O objetivo deste texto foi promover desleituras (Bloom-Stein) a alguns dos
significados confiados ao acesso à justiça23 e que acabam por remetê-lo a um
conceito objetificado. É preciso romper com essa ideia e compreender que,
fundamentalmente, acesso à justiça quer dizer, em uma cultura democrática, que
não se pode depender do bom ou mau protagonismo judicial.
23 Não se pretendeu naturalmente esgotar o tema e apontar todos os significados que hoje
se acoplam ao acesso à justiça. Por exemplo, deixou-se de abordar o acesso à justiça como
direito fundamental à tutela jurisdicional adequada, cujos conteúdos abrangem as ideias de
adequação formal, duração razoável e efetividade.
122
volume
06
i encontro de internacionalização do conpedi
O texto, ao fim e ao cabo, pretende demonstrar que, a partir de uma leitura
substantiva sobre o tema, o aumento ou crescimento do acesso à justiça não
corresponde simetricamente à maximização das possibilidades de ajuizamento
de ações perante o Judiciário. Evidente que, se há mais processos tramitando,
significa isso maiores possibilidades de concretização de direitos. Mas o que
deve ficar claro é que o acesso à justiça representa um conceito que não está
condicionado a números, porque ele se concretiza na observação dos diversos
elementos (e outros mais) que foram elencados nesse texto.
Atualmente tramitam pelos tribunais brasileiros 93 milhões de processos.
É quase a metade do número de habitantes do Brasil. Corresponde mais ou
menos à população de países como a Etiópia, o Vietnã, o Egito ou a Alemanha.
É o equivalente a duas “Espanhas” ou a quase três “Canadás”. É um número
assustador, sem dúvida. Mas o que se tem feito para resolver esse problema?
Considerando que, para cada ação judicial corresponde um recurso de
embargos de declaração e/ou agravo(s), parece evidente que esse número é
ficcional, sem considerar o número crescente de demandas repetitivas ajuizadas
contra o Poder Público tratando de Previdência Social e ou questões relativas à
taxação e impostos. Deve-se considerar, ademais, um considerável percentual de
demandas no campo penal já prescrito e tantas mais tratando de crimes de bagatela. Coisas mínimas como a declaração da inconstitucionalidade (não
declaração da recepção constitucional) da Lei de Contravenções Penais já poderia
representar um considerável número de demandas que não mais chegaria ao
Judiciário. Não há números confiáveis apontando para um efetivo número de
demandas – sem esses elementos incidentais – tramitando nos Tribunais pátrios.
Não se pode deixar de frisar, nesse contexto, que, por exemplo, se alguém
ingressa com uma petição inicial e o juiz determina que essa peça seja emendada
e não explicite o locus da emenda, aí já estará uma “nova emenda”, que, por sua
vez, poderá resultar em mais uma, um agravo. E assim por diante. Leve-se em
conta até mesmo que, para interpor recursos aos tribunais superiores, é necessário
interpor embargos de “prequestionamento”. Um novo Código de Processo Civil
que não enfrente essas patologias parece não contribuir para um novo patamar
de acesso à justiça. Aqui, sem dúvida, parece relevante a discussão acerca do que
se pode compreender por efetividade qualitativa (STRECK, 2013, p. 925 e ss).
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06
123
i encontro de internacionalização do conpedi
A aposta atualmente é a defesa da conciliação sob o argumento de que se trata
de um meio simplificado, rápido e satisfatório de solucionar conflitos. Entretanto, não é possível evitar de perceber nessa aposta na conciliação a presença de um
comportamento paradoxal do Estado: num primeiro momento, investiu muitos
esforços para democratizar ao máximo o acesso à justiça, chegando por exemplo
ao disparate de atribuir legislativamente capacidade postulatória ao cidadão, como
ocorre por exemplo nos Juizados Especiais, que estabelece ser dispensável a figura
do advogado em causas de valor até 20 (vinte) salários mínimos; agora, numa
outra etapa, percebendo a incapacidade de o Judiciário dar conta do manancial
de demandas que lhe é dirigido dia-a-dia, mudou radicalmente discurso e avança
advogando a conciliação, que seria um expediente indispensável para reduzir a
invencível carga de trabalho que assola a Justiça brasileira.24
Não se nega, por certo, a importância da conciliação e de outras terapias de
solução alternativa de conflitos. O que se busca evidenciar é que soluções como essa
não podem servir para escamotear os reais problemas que atravancam a prestação
jurisdicional em terrae brasilis. Este é o ponto. E isso remete ao velho dilema
que envolve efetividades quantitativas e qualitativas. Problemas sociais, sobre os
quais o Judiciário vem sendo chamado a decidir, não se resolvem com decisões
apressadas e irresponsáveis. É preciso que haja, sobretudo, responsabilidade sobre
as decisões tomadas, o que implica o exercício qualificado do acesso à justiça.
Infelizmente, o Projeto de CPC parece assombrado pelo fantasma das efetividades
quantitativas.
A impressão que se tem é que o Estado resolveu adotar a perspectiva ética
dos estóicos, escola fundada em Atenas nos anos 300 a.c., na qual se vislumbrava
um forte determinismo e até um fatalismo. A noção de destino era muito cara
no estoicismo. Diziam seus defensores que o homem deve resignar-se a aceitar
os acontecimentos como predeterminados. Ou seja, cumpre a todos agir de
acordo com os preceitos éticos e fazer o que julgam devido, mas devem também
aceitar as consequências de suas ações e especialmente o curso inevitável dos
24 O Judiciário é e continuará a ser cobrado, os processos permanecerão sendo instaurados, os
recursos serão frequentemente interpostos... Esse demandismo, essa litigiosidade sem limites,
é um sintoma da nossa sociedade doente que ainda não amadureceu, decorre da ineficiência
do próprio Estado que não consegue implementar os direitos fundamentais do povo, em
especial aqueles de cunho social.
124
volume
06
i encontro de internacionalização do conpedi
acontecimentos. É como se todos nós devêssemos aceitar o triste destino de que o
Judiciário é isto mesmo que está aí, fatalmente é isto mesmo, e nada mais pode ser
feito para aperfeiçoá-lo, razão pela qual alternativa não há, senão exortar outras
fórmulas para solucionar conflitos e tentar assim minimizar o problema.
Melhor contudo é dizer não a esse fatalismo e fazer coro com aqueles que
empreendem verdadeira cruzada, às vezes indigesta, de sempre apontar o dedo e
mostrar onde realmente está o problema e, sobretudo, sublinhar quais os esforços
mais efetivos a serem realizados para resolvê-lo.
9.referências
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126
volume
06
i encontro de internacionalização do conpedi
políticas públicas de saúde par a
idosos com alzheimer em persperctiva
internacional e compar ada
Célia Barbosa Abreu1
Eduardo Manuel Val2
Resumo
Contemporaneamente, nota-se a ocorrência do envelhecimento populacional mundial, que é visto como um dos principais ganhos sociais do século
XX, mas também como um fator de risco para o desenvolvimento global.
Mundialmente, por conseguinte, percebe-se a imprescindibilidade de políticas
públicas voltadas para os idosos. Mais do que isso, com o atual e constante
crescimento da expectativa de vida da população, tem início a preocupação
relativamente ao número de pessoas afetadas por doenças relacionadas à idade,
como é o caso do mal de Alzheimer, o qual deverá aumentar drasticamente nos
próximos anos. Torna-se, pois, assunto da ordem do dia a discussão sobre as
políticas públicas de saúde para os idosos, com foco específico na questão da
doença de Alzheimer, principal causa de demência da pessoa idosa.
Palavras-chave
Políticas Públicas; Direito à Saúde; Idoso; Demência; Mal de Alzheimer.
Resumen
Actualmente, se observa el envejecimiento poblacional en el mundo, que es
considerado una de las principales conquistas sociales del siglo XX, pero al
1 Doutora e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro / UERJ.
Professora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Constitucional –
PPGDC / UFF. Professora Adjunta de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade
Federal Fluminense / UFF. [email protected] .
2 Doutor e Mestre em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
/ PUC RJ. Professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Constitucional
– PPGDC / UFF. Professor Adjunto de Direito Constitucional Internacional da Faculdade de
Direito da Universidade Federal Fluminense / UFF. Professor do Programa de Pós-Graduação
em Direito – PPGD / Universidade Estácio de Sá / UNESA. [email protected] .
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i encontro de internacionalização do conpedi
mismo tiempo también como un factor de riesgo para el desarrollo global. En
consecuencia pasamos a entender como son imprescindibles las politicas públicas
dirigidas a los mayores de edad. Aún más, con el actual y constante crecimiento
de la expectativa de vida de la población, también pasamos a preocuparnos con
el número de personas afectadas por enfermedades relacionadas a la edad, como
es el caso del mal de Alzheimer, el cual debe aumentar drasticamente en los
próximos años. La discusión sobre las politicas públicas para la tercera edad con
foco específico en la cuestión del Mal de Alzheimer, principal causa de demencia
en las personas de mayor edad es colocada como asunto central en la agenda de
policas públicas de salud.
Palabras clave
Politicas Públicas; Derecho a la Salud; Anciano; Demencia Senil; Mal de
Alzheimer.
1.introdução
Não são de hoje as tentativas de prolongar a juventude. Os esforços para viver
mais, no entanto, trazem consigo riscos próprios, sendo possível afirmar, de acordo
com a mitologia grega, que o risco pode vir a ser maior do que o ganho. Os mitos
trazem lições sobre o envelhecimento. Assim, por exemplo, sobre os riscos de viver
mais, interessante lembrar do mito de Eos e Tithonus, sem esquecer, por outro
lado, do mito das famosas fontes Mnemósine (memória) e Lethe (esquecimento),
onde os deuses e os mortais podiam se abeberar (Busse, 1992: 12).3
Assim, vive-se o envelhecimento populacional mundial, que, de um lado, é
visto como um dos principais ganhos sociais do século XX, mas, por outro, é
identificado como um fator de risco. Em cena, o perigo para o desenvolvimento
global. Mundialmente, percebe-se a necessidade de políticas públicas voltadas
para a saúde dos idosos, com foco na demência, doença bastante comum na
terceira idade. Nisso, destaca-se a imprescindibilidade de conferir atenção especial
ao mal de Alzheimer, principal causa de demência da pessoa idosa.
3 BUSSE, Ewald W.. O mito, história e ciência do envelhecimento. In: Psiquiatria geriátrica.
Org.: BUSSE, Ewald W.; BLAZER, Dan G. Traduzido por Maria Cristina Monteiro Goulart.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1992, passim.
128
volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
O objeto deste trabalho é tratar das políticas públicas de saúde do idoso com
Alzheimer. Tem-se por hipótese a visão de que a tutela deste idoso portador de
Alzheimer é mais ampla no Direito Internacional e Comparado do que no Direito
Interno. Como metodologia, é realizada a utilização do método dedutivo, com
uso de doutrina nacional e estrangeira, bem como das legislações pertinentes.
A respeito desta temática, desenvolve-se este trabalho, divido em quatro partes. A primeira cuida da questão do direito ao envelhecimento; a segunda analisa o
Alzheimer; a terceira traz um relato das políticas públicas de saúde internacionais
e nacionais destinadas aos idosos; a quarta trata das políticas públicas de saúde
internacionais e nacionais para idosos com Alzheimer. Na conclusão, se tem
o espaço para comentários e críticas dos autores relativamente ao quadro das
políticas públicas brasileiras de saúde dos idosos e à imperiosa urgência da adoção
de um plano nacional de combate ao Alzheimer.
2. do direito ao envelhecimento
O aumento da expectativa de vida da população mundial, nas últimas
décadas, tornou o envelhecimento um óbice universal. Este fato determinou
a necessidade de que, paralelamente, às modificações demográficas em curso,
ocorram transformações socioeconômicas profundas, a fim de se conquistar
a melhor qualidade de vida para os idosos, bem como para aqueles que estão
em envelhecendo. Nos países em desenvolvimento, esta meta está longe de ser
concretizada, uma vez que, além de serem economicamente dependentes de
outros países, detém uma estrutura socioeconômica arcaica, que privilegia uma
minoria em detrimento da maioria (Schoueri Junior; Ramos; Papaléo Netto,
2000:26).
Consequentemente, o Brasil necessitará fazer pesados investimentos na
área de saúde, em especial, para atendimento da população idosa. Importante
seguir a orientação da Organização Pan-Americana de Saúde, no sentido de se
empreenderem esforços para promover a “saúde entre os idosos”, ou seja, um
conjunto de ações que provoquem mudanças no estilo de vida, objetivando a
diminuição do risco de adoecer e morrer, estabilizando ou melhorando a saúde
dos indivíduos em sua totalidade, aliando à saúde física a sua complexidade social.
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i encontro de internacionalização do conpedi
Estratégias devem ser realizadas para atingir estas metas, nos campos psicossocial,
político e econômico. A promoção da saúde do idoso deve estar a cargo de uma
equipe multi, inter e transdisciplinar (Jacob Filho; Chiba, 2000: 400).
Normalmente, o termo envelhecimento vinha associado ao declínio da
eficiência/ desempenho, doenças e morte. Era comum o preconceito com o idoso.
Esquecia-se que o envelhecimento também pode expressar modos desejáveis
de amadurecimento. Algumas alterações etárias são benignas, contribuem
para o desenvolvimento humano, a satisfação de suas necessidades pessoais e a
manutenção de um lugar social (Busse, 1992:15).
Com o envelhecimento populacional passando a ser uma realidade, surgem
novas ideologias em torno do envelhecimento. Fala-se no envelhecimento “ativo”,
quando seria melhor pensar num envelhecimento “digno”. Mais desafiador que
acrescentar anos à vida começa a ser somar vida aos anos.
3. a demência e o mal de alzheimer
A demência é uma síndrome caracterizada pelo declínio de várias habilidades
intelectuais, transtorno do comportamento e restrições funcionais. Sua prevalência cresce exponencialmente de 2% entre pessoas com 65 anos de idade para 20
a 40% entre aquelas com 80 anos ou mais. Assim sendo, em razão do envelhecimento populacional mundial, estima-se que o número de idosos com demência
crescerá consideravelmente durante os próximos anos (Almeida, 2012:280).
De acordo com a American Psychiatric Association: Diagnostic and Statistical
Manual of Mental Disorders: DSM-IV-TR e com a Organização Mundial de
Saúde (da CID-10), para o diagnóstico de demência (quadro 20.1), o indivíduo
deve ser acometido pela deterioração da memória e de suas funções corticais
superiores. É preciso que a pessoa tenha um comprometimento suficientemente grave de suas habilidades intelectuais, ao ponto de restar prejudicada a sua
capacidade funcional. (Almeida, 2012:280).
A demência engloba várias patologias, tendo causas que podem ser divididas
em degenerativas, vasculares, metabólicas, tóxicas, inflamatórias/transmissíveis,
neoplásicas e mecânicas (quadro 20.5). Suas quatro causas mais comuns são:
o Alzheimer, a demência dos córpulos de Lewy, a demência frontotemporal
130
volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
e a demência vascular. Os fatores causais do Alzheimer ainda não foram
compreendidos. Afirma-se que seria uma decorrência da conjugação de fatores
de risco genéticos e não genéticos (Geller; Reichel, 2001:181).
A doença de Alzheimer é um transtorno neurodegenerativo de desenvolvimento lento. Os por ela acometidos perdem sua produtividade socioeconômica e o fardo familiar é profundo. O indivíduo apresenta dificuldades de
aprendizado. Progressivamente, é atingida a sua habilidade matemática, a sua
linguagem, a práxis, a percepção sensorial e as habilidades da visão espacial. São
sintomas característicos da doença: a amnésia, a afasia, a agnosia e a apraxia . Ao
avançar, a doença afeta as funções intelectuais (Almeida, 2012:284).
Passados cem anos da caracterização clínica e patológica do Alzheimer, o
seu diagnóstico precoce continua a representar um desafio na prática médica.
Um impasse contemporâneo é diferenciar as alterações cognitivas próprias do
envelhecimento normal das manifestações das fases iniciais dos transtornos
demenciais, particularmente do Alzheimer. Os diagnósticos realizados são
imprecisos. (Bourgeois; Seaman; Servis, 2012:346).
O manejo das alterações comportamentais se dá através de estratégias
farmacológicas, psicológicas e sociais, gerando gastos. Na maioria dos casos,
as intervenções restringem-se ao uso de medicamentos. Pessoas com sintomas
psiquiátricos totalmente distintos são tratadas como se fossem um grupo
homogêneo de “pacientes com transtorno de comportamento”, O tratamento
das pessoas com demência costuma se dar via antidepressivos, neurolépticos e
anticonvulsivantes. Os portadores de Alzheimer utilizam-se ainda dos inibidores
da acetilcolinestearase e da memantina, que retardam a progressão da doença.
Tratamentos experimentais vêm sendo aplicados aos pacientes com demência. Os
resultados iniciais são desapontadores. (Almeida, 2012:291).
A última declaração emitida pela OMS (Organização Mundial de Saúde)
em matéria de Alzheimer, em conjunto com a Associação Internacional da
Doença de Alzheimer, data de 2012, considerou a demência como uma crise
de saúde pública, prioridade mundial. O documento, intitulado: “Demência:
uma prioridade de saúde pública,” apresentou dados provenientes dos principais
estudos realizados na área, destacando as melhores práticas a serem desenvolvidas
na luta contra a doença, além de estatísticas de diversos países, inclusive daqueles
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i encontro de internacionalização do conpedi
de baixa e média renda Estimou-se que, a cada ano, surjam 7,7 milhões de novos
casos de demência. Sublinhou-se que o número total de pessoas atingidas deverá
quase que dobrar a cada 20 anos, podendo passar de 65,7 milhões em 2030 a
115,4 milhões em 2050.4
4. políticas públicas de saúde par a idoso: abordagem
internacional e compar ada
A expectativa de vida aumentou em decorrência dos avanços científicos e
tecnológicos, da melhora das condições socioeconômicas de vida, entre outros
fatores. O envelhecimento populacional surgiu como fenômeno mundial, que
ocorreu de forma lenta e gradual entre os países desenvolvidos e hoje atinge rápida
e intensamente os países em desenvolvimento. Nesse contexto, o envelhecimento
“digno” se tornou um desafio para as políticas públicas internacionais e nacionais
(Barboza, 2008:57).
A primeira assembleia internacional sobre o envelhecimento ocorreu em
Viena, em 1982. Dela, adveio um plano global de ação composto de 66
recomendações, voltadas para sete áreas especialmente: saúde e nutrição; proteção
ao consumidor idoso; moradia e meio ambiente; família; bem-estar social;
previdência social; trabalho e educação. O grande número de recomendações
adotadas para os estados membros signatários (dentre os quais estava o Brasil) não
foi, contudo, acompanhado de uma previsão de recursos respectiva (Camarano;
Pasinato, 2004:255).
Notava-se a importância da medicalização do idoso, que deveria ser inserido
no mercado de trabalho, alcançando meios físicos e financeiros para a sua
independência e autonomia. Era preciso reconhecê-lo como ator social, dotado
4 O relatório Dementia: a public health priority está disponível para download no site da
Alzheimer’s Disease International . Este relatório é documento fundamental, que, no plano
do direito internacional contemporâneo se insere na categoria de instrumento de soft law,
porque tem influenciado e ainda influenciará, decisivamente, o desenho das políticas de saúde
pública dos Estados Membros da OMS em geral, e particularmente, daqueles que se inserem
no mundo ocidental. Suas recomendações, parâmetros técnicos e standards conceituais
fundamentam as novas propostas dos planos nacionais de luta contra o mal de Alzheimer. O
site da OMS recomendado pelos autores para pesquisa é o da Organização Pan-Americana de
Saúde / Organização Mundial de Saúde.
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i encontro de internacionalização do conpedi
de necessidades e especificidades, que deveriam ser respeitadas por somarem valor
à economia e conduzirem ao desenvolvimento de um novo nicho de mercado
(Camarano; Pasinato, 2004:255).
Surgia a ideologia do envelhecimento “ativo”, com o discurso da inclusão
do idoso na vida socioeconômica. A imagem do idoso aposentado inserido no
mercado de trabalho seria algo natural e desejável, além de relevante para a
produtividade. Não se levava em conta que, muitas vezes, o indivíduo já tinha
em seu histórico de vida uma inserção precoce no mundo do trabalho, tendo sido
explorado e expropriado de seus direitos (Dantas e Silva; Souza, 2010:90).
A maior preocupação era com os países desenvolvidos, eis que nestes o
envelhecimento populacional já ocorria há tempos, como resultado do sucesso
das políticas do Welfare State nos anos 50 a 70. Isto, no entanto, não significa
dizer que também os países em desenvolvimento não estivessem atentos à questão, eis que paulatinamente incorporavam em suas agendas a atenção a este
fenômeno social. Na América Latina, alguns países chegaram a alterar suas
constituições, elaborando leis favoráveis à pessoa idosa. Servem de exemplo os
casos do Uruguai (1967), Paraguai (1992), Argentina (1994), Venezuela (1999),
Equador (2008) e Bolívia (2009).5
A Constituição da República do Uruguai não protege os direitos dos idosos
de maneira integral. A única menção a eles é sobre a seguridade social (art. 67).
Contudo, os direitos dos idosos são plenamente garantidos no Estado uruguaio
através da Lei de Promoção Integral aos Idosos, de nº 17.996. O art. 2º desta lei
declara como direito dos idosos: a integração ativa na família e na comunidade
e o desfrute de um tratamento decente, sem qualquer tipo de discriminação, em
todos os aspectos de sua vida; uma velhice digna na qual prevaleça o seu bem-estar
físico, psicológico e socioeconômico; os cuidados médicos e de saúde abrangente
e coordenada, incluindo dental; o acesso à educação, à moradia adequada, à
alimentação e abrigo suficientes; o acesso ao lazer, transportes e comunicações em
5 Com a finalidade de facilitar o acesso aos textos constitucionais eleitos pelos autores na
pesquisa de direito comparado, importante mencionar que a busca dos textos constitucionais
se centralizou sua consulta feita ao banco de dados da Georgetown University. Propositalmente
a referência e os comentários à Constituição Brasileira de 1988 foi deixada para análise mais
adiante do presente ensaio.
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i encontro de internacionalização do conpedi
todo o país; a segurança de sua integridade médica e intelectual em um contexto
de justiça e equidade.6
A Constituição da República do Paraguai apresenta apenas um dispositivo
sobre a terceira idade (art. 57), no sentido de que os idosos têm direito à proteção
integral. A família, a sociedade e as autoridades públicas devem promover o
seu bem-estar por meio de serviços sociais que atendam às suas necessidades de
alimentação, saúde, habitação, cultura e lazer. O Paraguai também possui uma lei
que regulamenta a pensão para idosos em situação de pobreza, a Lei n° 3728/2009.7
A Constituição da República da Argentina traz a proteção dos idosos, mas
sem forma específica. Há somente um dispositivo que faz menção direta ao idoso
(art. 75, linha 23). Este artigo apenas menciona como uma função do parlamento
constituído a de legislar e promover medidas de ação positiva em favor dos idosos
e outras minorias. Entretanto, há um vasto número de dispositivos, sejam de
direito interno ou tratado ratificado pela República da Argentina, que garantem
os direitos dos idosos. Especificamente, há um dispositivo na Constituição da
Cidade Autônoma de Buenos Aires (art. 41), que merece referência. O preceito
determina que a cidade assegura aos idosos igualdade de oportunidades e de
tratamento, bem como o pleno gozo dos seus direitos. A respeito da seguridade
social, cumpre registrar o art. 14 da constituição, garantindo que o Estado deverá
conceder os benefícios da seguridade social, em caráter integral e inalienável.
Em particular, a lei estabelece um seguro social obrigatório, que será fornecido
por entidades nacionais ou provinciais, com autonomia financeira e econômica,
administrado pelas partes interessadas, com a participação do Estado, podendo
ser sobrepostas contribuições, aposentadorias e pensões. O dispositivo estabelece
a proteção integral da família, a defesa do bem de família, a garantia dos abonos
de família e o acesso à moradia digna.8
A Constituição da República Bolivariana da Venezuela é mais exaustiva no que
tange aos direitos da terceira idade. Cabe mencionar um artigo deste diploma (art.
6 RUGUAI. Constituição da República. disponível em: http://pdba.georgetown.edu/
Constitutions/Uruguay/uruguay04.html acessado em 05.05.2014.
7 PARAGUAI. Constituição da República. disponível em: http://pdba.georgetown.edu/
Constitutions/Paraguay/para1992.html acessado em 05.05.2014.
8 ARGENTINA. Constituição da Argentina. disponível em: http://pdba.georgetown.edu/
Constitutions/Argentina/argen94.html acessado em 05.05.2014.
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80). O dispositivo prevê que o Estado deve garantir aos idosos o pleno exercício
de seus direitos e garantias. Estado, família e sociedade são obrigados a respeitar
a dignidade humana, a autonomia e garantir-lhes cuidados integrais e benefícios
de segurança social, a fim de melhorar e garantir a sua qualidade de vida. Na
Venezuela, também há uma Lei Orgânica de Seguridade Social, lei promulgada
por determinação do próprio art. 86 da constituição. Nessa lei, dispõe o capítulo
II sobre o regime de prestação de serviços sociais aos idosos e a outras categorias
de pessoas. O seu art. 59 dispõe que estes serviços compreenderão determinados
benefícios, programas e serviços, por ele elencados. Chame-se a atenção para
o funcionamento do chamado “combo para vejez” (combo para a velhice)
venezuelano, composto por salário mínimo, alimentação e medicamentos.9
A Constituição da República do Equador é um dos diplomas mais abrangentes no que tange à salvaguarda dos direitos dos idosos. A constituição dedica a
primeira seção do seu capítulo terceiro à terceira idade, composta por três artigos
(art. 36, 37 e 38). O art. 36 estatui que os idosos devem receber atenção prioritária
e especializada nos setores público e privado, especialmente nas áreas de inclusão
social e econômica, além de proteção contra a violência. Serão considerados
idosos aqueles que tenham atingido 65 anos de idade. O art. 37 traz um rol dos
direitos dos idosos, entre os quais consta o do atendimento gratuito e especializado
de saúde e o de acesso a medicamentos. O art. 38 estabelece que compete ao
Estado estabelecer políticas e programas de cuidados para as pessoas idosas, que
considerem as especificidades entre as zonas urbanas e rurais, as desigualdades de
gênero, etnia, cultura e suas próprias diferenças. Deverá promover o maior grau
possível de autonomia pessoal do idoso, garantida a sua participação na definição
e implementação dessas políticas. Em particular, o Estado deve tomar 9 medidas,
apontadas pelo dispositivo. Na 25ª disposição transitória da Constituição
Equatoriana, está o instituto da revisão anual da aposentadoria dos idosos e o
objetivo de alcançar o salário digno proposto pela Carta Magna.10
A Constituição da República Boliviana versa sobre alguns institutos
salvaguardando os direitos dos idosos, semelhantemente ao diploma do Equador.
9 VENEZUELA. Constituição da República Bolivariana da Venezuela. disponível em: http://
pdba.georgetown.edu/Constitutions/Venezuela/vigente.html acessado em 05.05.2014.
10 EQUADOR. Constituição da República do Equador disponível em : http://pdba.georgetown.
edu/Constitutions/Ecuador/ecuador08.html acessível em 05.05.2014.
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A seção VII do capítulo V do diploma é dedicada exclusivamente à garantia dos
direitos da terceira idade, merecendo referência três dispositivos (art. 67, 68 e
69). O art. 67 preconiza que, além dos direitos reconhecidos na constituição,
todas as pessoas idosas têm direito a uma velhice digna, qualidade e aconchego.
Além disso, o Estado proverá uma renda vitalícia para os idosos, de acordo com
o sistema de segurança social abrangente, com previsão em lei. O artigo 68 traz a
previsão de políticas públicas a serem desenvolvidas pelo Estado para a proteção,
o cuidado, a recreação, o lazer e o emprego social das pessoas idosas, de acordo
com as suas capacidades e possibilidades. Ficam vedadas, sendo passíveis de
sanção, todas as formas de abuso, negligência, violência e discriminação contra as
pessoas idosas. O art. 69 estabelece que os servidores da pátria são merecedores da
gratidão e do respeito de instituições públicas e privadas, bem como do público
em geral, sendo considerados heróis e os defensores da Bolívia, de modo que farão
jus a uma pensão estatal vitalícia, de acordo com a lei. Sobre a seguridade social,
vale citar o art. 45, III, que garante a atenção aos idosos, aos acometidos por
enfermidades e epidemias, incapazes e suas necessidades especiais, entre outros.11
Na década de 90, a imagem dos idosos como subgrupo vulnerável e
dependente foi sendo substituída pela de um segmento populacional ativo. Em
1991, foi realizada uma assembleia geral adotando o princípio das Nações Unidas
em favor das pessoas idosas, elencando 18 direitos relativos à independência,
participação, cuidado, auto-realização e dignidade. Em 1992, houve uma
conferência internacional sobre o envelhecimento, acolhendo a proclamação do
envelhecimento e declarando 1999 o ano internacional do idoso. Em 1995, foi
elaborado o Documento 50/114 da ONU focado em 4 parâmetros voltados a
construção de uma sociedade para todas as idades, sendo eles: a situação dos
idosos, o desenvolvimento individual continuado, as relações multigeracionais
e a inter-relação entre envelhecimento e desenvolvimento social (Camarano;
Pasinato, 2004:257).
A segunda assembleia mundial sobre o envelhecimento ocorreu em Madri, em
2002. Destacou-se que, embora a Europa e a América do Norte lidassem com a
questão do envelhecimento há décadas, era chegada a hora de se atentar para os
11 BOLÍVIA. Constituição da República Boliviana disponível em: http://pdba.georgetown.
edu/Constitutions/Bolivia/bolivia09.html acessado em 05.05.2014.
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países em desenvolvimento, eis que estes passariam a enfrentar um considerável
aumento da população idosa, com possível prejuízo para o desenvolvimento da
economia mundial. Foi previsto que, na Ásia e na América Latina, os idosos
teriam um crescimento de 8% para 15%, entre 1998 e 2025. Em 2050, o
percentual poderia chegar a 19%. O número de crianças cairia de 33% para 22%,
de modo que não tardaria para que o número de idosos e jovens viesse a se igualar
mundialmente (Dantas e Silva; Souza, 2010:88).
Foi elaborado um plano de ação internacional para o envelhecimento no
século XXI, com 35 objetivos e 239 recomendações, embasado em 3 princípios:
participação social ativa do idoso, desenvolvimento e luta contra a pobreza;
estímulo da saúde e bem-estar na terceira idade; criação de condições favoráveis
ao envelhecimento. Estratégias sugeridas e documentos elaborados foram vagos,
desconsiderando as diferenças regionais. Construiu-se um plano único/geral,
com recomendações condizentes com a realidade dos países desenvolvidos, nos
quais se tem um programa de bem-estar social avançado, que inexiste nos países
em desenvolvimento. Foi elaborado um plano internacional sem a previsão dos
recursos (Camarano; Pasinato, 2004:261).
Percebido o alto grau de generalização do plano de Madri, bem como as
diversidades regionais, tanto no processo de envelhecimento quanto nas condições
socioeconômicas e culturais existentes, os órgãos regionais das Nações Unidas
(Comissão Econômica para a Europa; Comissão Econômica e Social para a Ásia;
Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe; Comissão Econômica para
a Ásia Ocidental e Comissão Econômica para a África) estabeleceram estratégias
para seu funcionamento nas respectivas regiões, consideradas suas especificidades e
as de seus idosos. Redigiram-se 5 documentos. O documento da Europa norteouse na imprescindibilidade de assegurar a completa integração e participação social
dos idosos. O documento da América Latina focou-se nas necessidades básicas
para assegurar a dignidade da pessoa idosa: acesso à renda, cobertura integral
dos serviços de saúde, educação e moradia. O documento relativo à região da
Ásia e do Pacífico foi destinado ao acesso das novas tecnologias, como meio de
manter a autonomia e independência dos idosos, além de fazer referência a um
planejamento urbano amigável ao idoso e à importância de elaborar mecanismos
de apoio para o cuidador (Camarano; Pasinato, 2004:262).
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i encontro de internacionalização do conpedi
O Departamento de Assuntos Sociais e Econômicos das Nações Unidas está
à frente de novas avaliações e revisões do plano de Madri. Enquanto isso, outras
iniciativas internacionais podem ser citadas. Assim, por exemplo, ainda em
2002, em Berlim, foi realizada a Conferência Ministerial da UNECE (Comissão
Econômica das Nações Unidas para a Europa) sobre o envelhecimento. Em
2007, em Léon (Espanha), houve nova Conferência Ministerial da UNECE
sobre o envelhecimento. Em 2008, a UNECE criou um grupo de trabalho sobre
o envelhecimento. Em 2012, em Viena, ocorreu outra Conferência Ministerial
da UNECE sobre o envelhecimento. O ano de 2012 foi o ano europeu do
envelhecimento ativo e da solidariedade entre as gerações.12
Países da América Latina e Caribe, para o cumprimento das recomendações
do plano internacional sobre o envelhecimento de Madri, se comprometeram a
implantar políticas públicas e ações nessa matéria. Assim, em 2003, realizou-se, em
Santiago do Chile, a primeira conferência regional internacional governamental
sobre o envelhecimento na América Latina e no Caribe, sendo aprovada a
estratégia regional de implementação na América Latina e no Caribe do plano
internacional de Madri. Seguiram-se diversos eventos com o foco nas questões
do envelhecer, considerando-se as especificidades culturais, sociais e econômicas
de cada país. Em 2007, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe
(CEPAL), uma divisão da ONU, organizou, em parceria com o Brasil, em Brasília,
a segunda conferência regional intergovernamental sobre o envelhecimento
na América Latina e no Caribe, a fim de identificar as prioridades futuras de
aplicação da estratégia regional de implementação para a América Latina e o
Caribe do Plano Internacional de Madri. Foi elaborada a Declaração de Brasília,
em que se assumiram compromissos de promover e prestar serviços sociais e de
saúde básica, facilitando o acesso a eles, considerando as necessidades específicas
dos idosos. Em 2012, foi realizada a terceira conferência intergovernamental
sobre envelhecimento na América Latina e no Caribe, organizada pela CEPAL
e pelo governo da Costa Rica. Nessa ocasião, foi redigida a Carta de São José
12 No plano internacional, as políticas públicas de saúde, objetivando atender as pessoas de
terceira idade tem sido potencializadas em sua eficácia a partir do fortalecimento do espaço de
integração regional, como plataforma de produção normativa e técnica, de alta qualidade. Os
dados ora destacados foram coletados no site do GEP PORTUGAL (Gabinete de Estratégia
e Planejamento de Portugal).
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sobre os direitos dos idosos da América Latina e do Caribe. Em 2013, em São
José da Costa Rica, se deu a primeira reunião para dar continuidade à Carta de
São José, quando se privilegiou a discussão sobre os mecanismos de cumprimento
do estabelecido na terceira conferência regional intergovernamental sobre o
envelhecimento na América Latina e no Caribe.13
Cabe mencionar o Plano de ação sobre a saúde das pessoas idosas, incluindo
o envelhecimento ativo e saudável (Organização Pan-Americana da Saúde,
Washington, 2009). Nele, abordam-se as necessidades de saúde cada vez maiores
da população, que está envelhecendo rapidamente na América Latina e no Caribe.
Incentiva-se que os países membros da OPAS e os organismos de cooperação
internacional priorizem as políticas públicas atinentes à saúde dos idosos. Estas
deverão se voltar para equipar os sistemas de saúde e capacitar os recursos humanos
para satisfazer suas necessidades especiais, melhorando as condições destes países
de gerar a informação necessária para apoiar e avaliar as medidas empreendidas.
O Plano de Ação é uma resposta aos acordos internacionais e regionais, nele
definidas as prioridades de 2009-2018.14
É chegada a hora de analisar a questão do envelhecimento nas políticas públicas brasileiras. Começa-se por destacar que, enquanto signatário do primeiro
plano internacional sobre o envelhecer, é possível afirmar que a questão da inserção
13 Cabe esclarecer que não se trata de um caso de transplante jurídico nos termos em que
a doutrina clássica de direito comparado entende este conceito, mas sim um exemplo
dos efeitos benéficos da circulação internacional de pensamento jurídico e de diálogo
institucional. O direito da integração regional tem promovido, eficazmente, o princípio de
complementariedade entre o direito internacional e as ordens jurídicas nacionais, refletindo
este princípio a cooperação necessária para o aprimoramento das políticas públicas de saúde.
A Declaração de Brasília está exposta no site do Observatório Nacional do Idoso Fiocruz. A
Carta de São José sobre os direitos dos idosos da América Latina e do Caribe está disponível
no sítio da Secretaria de Direitos Humanos.
14 Esta resposta não implica em uma subordinação hierárquica, mas sim em um verdadeiro caso
de harmonização normativa e de políticas públicas. Não se pretende a busca de um modelo
uniforme, porém uma coerência pragmática num cenário normativo multi nível, seguindo a
denominação da doutrina alemã, que facilita o monitoramento e a avaliação permanente dos
modelos de gestão em saúde pública. O Plano de Ação da Organização Pan-Americana de
Saúde 2009-2018 está disponível para acesso no site: SISAP IDOSO (Sistema de Indicadores
de Saúde e Acompanhamento de Políticas do Idoso). O SISAP IDOSO é um sistema
desenvolvido por iniciativa da área técnica da saúde da pessoa idosa do Ministério da Saúde
e do laboratório de informação em saúde (LIS) do Instituto de comunicação e informação
científica e tecnológica (ICICT) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). As atualizações e
adequações são periódicas.
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do envelhecimento populacional na agenda das políticas públicas brasileiras não
é nova. Ao revés, ela pode ser percebida antes mesmo da Constituição de 1988,
a qual representa verdadeiro marco quanto à introdução da proteção social mais
abrangente, incorporando o tema do envelhecimento (Camarano; Pasinato,
2004:263).
Esta constituição trouxe considerável avanço para a proteção dos idosos
brasileiros. Foi inserido um conceito de seguridade social segundo o qual
a proteção social não está mais vinculada ao contexto estritamente socialtrabalhista, passando a ser uma expressão da cidadania. Garantiu-se o acesso à
saúde e à educação para toda a população e, ainda, a assistência social para os
necessitados. No título relativo à Ordem Social, tratou da família, da criança, do
adolescente e do idoso. Assegurou aos idosos a participação social, garantindo a
respectiva dignidade, bem-estar e direito à vida, que devem ser protegidos pela
família, sociedade e Estado. Estabeleceu que os programas de cuidado do idoso
serão prioritariamente desenvolvidos em suas residências. Assegurou a gratuidade
dos transportes coletivos urbanos para os maiores de 65 anos, em todo o território
nacional (art. 230). Vedou a possibilidade de estabelecimento de diferenças
salariais, exercício de funções e critérios de admissão pautados em razão de idade.
Incidiu, no entanto, em erro quando manteve a aposentadoria compulsória
nos regimes de previdência dos servidores públicos e privados, trazendo aí uma
discriminação no mercado de trabalho.
Critica-se a Constituição, sob a alegação de que ela é explícita quanto à
prioridade absoluta dos direitos das crianças e dos adolescentes, nada dizendo
quanto à prioridade dos idosos. Por outro lado, existem doutrinadores que reagiram
à inércia do constituinte, fazendo uma bem-vinda interpretação sistemática do
texto constitucional. Afirma-se que, de acordo com a Constituição de 1988, a
pessoa humana surgiu como um dos fundamentos do Estado Democrático de
Direito, tendo nela sido acolhida a cláusula geral de tutela da pessoa humana, da
qual se extrairia a consagração do princípio do melhor interesse do idoso, ao qual
é garantida a proteção integral (Barboza, 2008:57).
A partir da década de 90, diversos dispositivos constitucionais relativos às
políticas setoriais de proteção dos idosos foram regulamentados. Políticas e
programas nacionais de saúde foram adotadas. Algumas destinadas especificamente
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aos idosos, outras direcionadas à toda a população, mas que igualmente a eles
interessaram. Tais políticas dialogam entre si, abrangendo questões como: renda
(aí inseridas: a previdência e a assistência social); a saúde; os cuidados de longa
permanência e integração social. Foi produzida extensa legislação.15
O problema é complexo e a verdade é que a eficácia social efetiva das legislação
não aconteceu. Sob o rótulo de idosos, estão indivíduos relativamente jovens,
em torno de 60 anos ou pouco mais, bem como outros extremamente mais
velhos, com 90, 100 ou mais. Surge a necessidade se lidar com o “envelhecimento
do envelhecimento”. Trata-se de um grupo bastante heterogêneo e que exige a
adoção de políticas públicas de saúde atendendo as suas necessidades especiais. As
diretrizes desconsideram essa heterogeneidade entre os idosos.
Condições econômicas, culturais e regionais, acesso à rede de serviços básicos,
tais como: saúde, educação, saneamento básico e lazer, constituem elementos
capazes de influenciar na boa qualidade de vida ou não de um indivíduo, seja ele
idoso ou não. Não se pode pretender identificar os idosos como um segmento
homogêneo, com idênticas necessidades, tendo, pois, peculiaridades próprias
a serem consideradas na elaboração das políticas públicas respectivas (Dantas e
Silva; Souza, 2010:85).
Uma mostra disso advém da análise do padrão da chamada morbimortalidade (o impacto das doenças e das mortes nos idosos), que neles é distinto do
restante da população. Certo o argumento de que o idoso demanda uma política
especial de saúde própria e com atenção voltada para as enfermidades crônicas
(como o Alzheimer), que, comumente, os acometem. Estas últimas exigem um
número considerável de consultas médicas, internações, exames e medicamentos,
entre outras medidas. Atender aos interesses dos idosos com doenças crônicodegenerativas ainda é um grande desafio em matéria de Políticas Públicas.
É preciso fomentar a organização da saúde do idoso, em especial daquele com
demência (sobretudo o acometido pelo Alzheimer), o que resultará na redução
dos custos. As políticas públicas de atenção aos idosos devem se pautar no dever
15 Os interessados no exame da vasta legislação produzida devem conferir a relação das leis,
políticas e portarias trazida pelo site: SISAP IDOSO (Sistema de Indicadores de Saúde e
Acompanhamento de Políticas do Idoso).
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i encontro de internacionalização do conpedi
de solidariedade, que tem previsão constitucional (art. 3º, I). Embora se fale em
políticas públicas de saúde para o idoso, sua abordagem deverá ser intersetorial e
as melhorias desde a infância (Moraes, 2001:168).
5.políticas públicas de saúde par a idosos com alzheimer: um exercício de complexidade e especificidade
Em face da Declaração da OMS (2012), no sentido da necessidade de se
declarar a demência uma prioridade mundial de saúde pública, e dos dados
estatísticos apresentados acerca da numerosa quantidade de pessoas, ao redor do
mundo, afetadas por demências, passa a ser de interesse inequívoco a realização
de estudos sobre políticas públicas adotadas em saúde para os idosos, que são a
camada mais comumente por elas atingidas, especialmente pelo Alzheimer. Dentre as pesquisas, torna-se oportuno examinar quais as respostas dadas mundialmente
ao verdadeiro chamado ao planeta feito pela OMS.
Começa-se abordando a iniciativa europeia em matéria de Alzheimer e outras
formas de demência. Nisso, merece menção: o relatório A7-0366/2010 da
Comissão do Ambiente, da Saúde Pública e da Segurança Alimentar, apresentado
pelo Parlamento Europeu, em 09.12.2010, que, após debates e votação, resultou
na aprovação do texto P7-TA (2011)0016, que compreende a resolução do
Parlamento Europeu, de 19.01.2011, sobre a iniciativa europeia relativamente
a estas doenças. O relatório trouxe uma proposta de resolução do Parlamento
Europeu que se pautava: na necessidade de adoção de medidas de luta contra
as doenças neurodegenerativas associadas à idade, em especial o Alzheimer,
reconhecidas em recomendação do Conselho Europeu; nas conclusões do projeto
EuroCoDe da organização Alzheimer Europe (colaboração europeia sobre
demência) (2006-2008); no relatório mundial de 2010 sobre o Alzheimer; no
objetivo estratégico da União Europeia de promover a saúde numa Europa que
envelhecia e se encontrava em face da necessidade de intensificar a investigação no
interesse dos cuidados paliativos e de uma melhor compreensão de tais patologias.
Segundo o relatório (2010), as estimativas eram de que, em todo o mundo, 35,6
milhões de pessoas sofriam de alguma forma de demência, sendo possível prever
que este número deveria praticamente duplicar a cada 20 anos, podendo chegar
a 65,7 milhões em 2030, de acordo com Relatório de 2010 da organização
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Alzheimer’s Disease International, estando o número de doentes de Alzheimer
subavaliado, em razão de dificuldades na realização de um diagnóstico precoce.
Naquela ocasião, o número de europeus com demência ficava em torno de 9,9
milhões, sendo o Alzheimer responsável pela vasta maioria dos casos.16
Cem anos depois que Alois Alzheimer descreveu pela primeira vez os sintomas
da doença que viria a receber o seu nome, a Alzheimer Europe e suas organizações
membros apelaram à União Europeia, à Organização Mundial de Saúde, ao
Conselho da Europa e aos governos nacionais para declararem o Alzheimer um
problema maior de saúde pública e desenvolverem programas internacionais,
nacionais e europeus específicos para esta forma de demência, como prioridades
políticas. Foi aprovada a Declaração de Paris (2006).17
A Alzheimer Europe realizará a 24 Alzheimer Europe Conference, em Glasgow, Reino Unido, entre os dias 20-22 de outubro de 2014. Está prevista a
abordagem dos direitos da pessoa com demência e a troca de informações sobre
estratégias e políticas nacionais de demência. Pessoas com demência estarão
envolvidas em atividades e projetos, em caráter de fundamental prioridade.18
Dados fornecidos pela Alzheimer Europe, em 24.02.2014, estimam a
existência hoje de, aproximadamente, 8,7 milhões de pessoas com demência nos
16 O direito comunitário europeu tem se consolidado como um feliz exemplo do sucesso da
colaboração entre as instituições e a sociedade civil organizada. Esse êxito se projeta não
só na autoridade técnica da ordem normativa especializada, como também na aderência
da comunidade como resultado de sua participação no processo de produção legislativa.
O relatório A7-0366/2010 apresentado pelo Parlamento Europeu, bem como o texto P7TA (2011)0016 estão disponíveis para visualização no Sítio Web do Parlamento Europeu.
Verifique-se em: http://www.europarl.europa.eu/ acessado em 06.05.2014.
17 Ao falar da iniciativa europeia em matéria de Alzheimer, não pode ficar sem referência o
trabalho desenvolvido pela Alzheimer Europe, que é uma organização não governamental
e sem fins lucrativos, destinada a realizar a sensibilização em torno de todas as formas de
demência, mediante a criação de uma plataforma europeia comum, através da coordenação
e cooperação entre as organizações de Alzheimer em toda a Europa. A Alzheimer Europe é
também uma importante fonte de informações sobre todos os aspectos da demência. Além
disso, representa os interesses não só das pessoas com demência, mas também o de seus
cuidadores. O site da Alzheimer Europe traz estudos comparativos dos estágios de evolução
dos Programas de Luta contra o Alzheimer nos 28 Estados-Membros que compõem hoje a
União Europeia. Traz também a Declaração de Paris, disponível em: http://www.alzheimereurope.org/ acessado em 06.05.2014.
18 Veja-se, a respeito, o Site Alzheimer Europe disponível em: http://www.alzheimer-europe.
org/ acessado em 05.05.2014.
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28 Estados membros da União Europeia e 0,5 milhões de pessoas com demência
na Suíça, Noruega, Islândia, Jersey e Turquia. Não se pode ter dúvida de que,
com o atual aumento constante na expectativa de vida da população da Europa, o
número de pessoas afetadas por doenças relacionadas à idade, como o Alzheimer
e doenças associadas irá crescer dramaticamente nos próximos anos.19
A partir de informações da Alzheimer Europe, vê-se que nem todos os países
membros da União Europeia tem um Plano Nacional de luta contra o Alzheimer,
porém muitos, de forma diferenciada, já adotaram medidas relativas à questão.
Seria interessante fazer um levantamento dos países que tomaram essa iniciativa,
não só na Europa como no mundo. Sem a pretensão de uma listagem completa,
serão vistas algumas nações que acolheram ou estão acolhendo esta estratégia.20
Na França, o Alzheimer também aparece como a forma mais comum de
demência, representando cerca de 60 a 70% dos casos de sua incidência. Ainda
não há a possibilidade de cura ou de modificar sua evolução. Surgem novos
tratamentos, em diferentes estágios de pesquisa. Diante disso, são empreendidos
esforços para o desenvolvimento de medidas para dar cabo de demências como o
Alzheimer e problemas assemelhados. Existem planos nacionais quinquenais de
luta contra o Alzheimer, tendo o penúltimo se desenvolvido no período de 2008 a
2012 e, estando em curso um plano iniciado em 2013 e que terminará em 2018.
O Plano Alzheimer 2008-2012 compreendeu a adoção de 44 medidas, tendo sido
destacados 11 objetivos a serem atingidos.21
Há vários anos a Alzheimer Portugal defende a necessidade urgente da criação
de um Plano Nacional para as demências. Em 2013, quando o número de pessoas
19 Leia-se, sobre o assunto, o Site Alzheimer Europe disponível em: http://www.alzheimereurope.org/ acessado em 05.05.2014
20Para consultar e conferir simetrias e assimetrias nos Planos Nacionais de luta contra
o Alzheimer, os autores sugerem o acesso ao banco de dados que consta no site: www.
maldealzheimer.wordpress.com. Mais precisamente, examine-se: www.maldealzheimer.
wordpress.com/2012/-centreforhealthybrainageing.com acessado em: 05.05.2014.
21 O planejamento das políticas públicas em saúde permite o seu periódico ajuste para atingir
a correta adequação à dinâmica de transformações características da relação entre sociedade
e saúde. Caso haja interesse na análise do Plano Nacional quinquenal de luta contra o
Alzheimer adotado na França, no período de 2008 a 2012, o documento pode ser encontrado
no site: sante.gouv.fr do Ministère des Affaires Sociales de la Santé. A este respeito, veja-se:
disponível em: http://www.sante.gouv.fr/le-plan-alzheimer-2008-2012,972.html acessado
em 07.05.2014.
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acometidas por demência no país girava em mais de 153.000, dos quais mais de
90.000 com Alzheimer, o Presidente do Conselho Nacional de Saúde Mental,
António Leuschner, teria afirmado que finalmente, em 2014, este Plano seria
uma realidade. Trata-se de uma resposta aos sucessivos convites do Parlamento
Europeu e da Comissão Europeia aos governos nacionais para que criem Planos
ou Estratégias Nacionais para as demências, não se podendo negar também as
iniciativas realizadas a nível nacional pela Alzheimer Portugal e pelo próprio
Parlamento Nacional.22
Os EUA admitiram a necessidade de uma estratégia nacional de luta contra
o Alzheimer, uma das enfermidades mais temidas e custosas nesse país, sendo
a sexta causa principal de morte entre os americanos. Em 2010, o Congresso
aprovou, por unanimidade, o Projeto de Lei Nacional Alzheimer (PL 111-375),
que instituiu o Departamento de Saúde e Serviços Humanos para desenvolver
um plano específico para a doença. Atualmente, existe um Plano Nacional de
Alzheimer, que é atualizado anualmente. Em 2014, os custos de atenção foram
estimados em 172 milhões de dólares, com a previsão de um gasto superior a 1
trilhão de dólares em 2050. Ainda neste ano, foi introduzido o Accountability
Act de Alzheimer, visando garantir que o Congresso estará equipado com a
melhor informação possível para definir as prioridades de financiamento e
alcançar a meta do Plano Nacional de Morada Doença de Alzheimer, voltado
para o propósito de que a prevenção e o tratamento da doença se deem de forma
eficaz até 2025. O Accountability Act Alzheimer autoriza os Institutos Nacionais
de Saúde a apresentarem julgamentos profissionais, justificando a necessidade de
financiamento da pesquisa crítica do Alzheimer.23
No Canadá, em 2014, seriam 747.000 canadenses afetados pelo Alzheimer
ou doenças aparentadas. As estimativas são de que, se nada for feito a este
22A parceria entre instituição pública e organizações privadas tem se mostrado fértil no
desenvolvimento e disseminação dos modelos de políticas públicas, no setor de saúde. Países
de menor desenvolvimento econômico e social relativo, como é o caso de Portugal, têm
aproveitado esse contexto para se equipararem com Estados tradicionalmente pioneiros na
implementação de políticas públicas, nesta área. A este respeito, é válido conferir as notícias
do site da Alzheimer Portugal. Sugere-se a leitura do sítio: http://www.alz.org/news_and_
events_alzheimers_accountability_act.asp acessado em 05.05.2014.
23 Este instrumento facilita a alavancagem financeira da pesquisa científica, na área de saúde,
prioritariamente da terceira idade. Estas notícias estão disponíveis no site da Alzheimer’s
Association.
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respeito, tais patologias vitimarão 1,4 milhão de canadenses em 2031, chegando
os custos econômicos a 293 milhões de dólares em 2040. Segundo declaração
da Société Alzheimer Society, o plano nacional de combate ao Alzheimer e
doenças aparentadas deve fazer parte das prioridades do orçamento federal. A
chefe da direção da Société Alzheimer Canadá, Mimi Lowi-Young, demandará ao
governo 3 milhões de dólares para a formação de uma parceria canadense contra
o Alzheimer e doenças assemelhadas, reunindo líderes de opinião, governantes e
os porta-vozes e setores da saúde, pesquisa, academia e indústria para conseguir
implementar um Plano Nacional contra o Alzheimer.24
Na Argentina, estima-se que aproximadamente 500.000 pessoas tenham
Alzheimer, acreditando-se que haverá um aumento exponencial deste número
nos próximos anos, sendo o problema entendido como uma questão a ser
observada pelos setores de saúde pública. No Chile, em 2012, a Corporação
Profissional Alzheimer e outras demências e a Sociedade Neurologia,
Neurocirurgia e Psiquiatria iniciaram uma campanha de recolhimento de
assinaturas para sensibilizar as autoridades e pedir-lhes o desenvolvimento de
um plano de políticas públicas de atenção aos doentes com Alzheimer. Esta é a
quarta causa de morte neste país, afetando diretamente 180.000 pessoas e seus
núcleos familiares. Em notícia da Alzheimer’s Internacional, datada de 2013, se
teve conhecimento que uma lei peruana teria dado início a um Plano Nacional
de Demência, sendo o Peru o primeiro país da América Latina a adotar uma
estratégia deste tipo.25
24 Os dados acima foram obtidos no site da Société Alzheimer Society. Leia-se: Dados da
Société Alzheimer Society disponíveis em: http://www.alzheimer.ca/~/media/Files/national/
Media-releases/asc_release_01152014_pre-budget_f.ashx acessado em 05.05.2014.
25 O levantamento de dados e as informações sobre os avanços recentes na luta contra o mal de
Alzheimer na América Latina foi realizado a partir de consultas realizadas pelos autores, no
período de março, abril e maio de 2014, nos sites da Corporación Profesional Alzheimer y otras
demencias (COPRAD), da Revista Chilena de Salud Publica, da Revista Argentina Alzheimer
y otros trastornos cognitivos e da Alzheimer’s Disease International. Mais precisamente nos
sítios: Site Corporación Profesional Alzheimer y otras demencias (COPRAD) disponível em:
http://neurologiacognitiva.cl/coprad/plan-nacional/ acessado em 05.05.2014; Site Revista
Chilena de Salud Publica disponível em: http://pt.scribd.com/doc/144665136/RevistaChilena-de-Salud-Publica-Vol-17-No-1-2013 acessado em 06.05.2014; Site Revista Argentina
Alzheimer y otros trastornos cognitivos disponível em: www.alzheimer.org.ar/revista15.pdf
acessado em 05.05.2014, Notícias Alzheimer’s Disease International disponíveis em: http://
www.alz.co.uk/news/national-dementia-plan-confirmed-for-peru acessado em 07.05.2014.
146
volume
06
i encontro de internacionalização do conpedi
Sobre a realidade dos idosos na América Latina, estudos apontam a presença
da desigualdade social em saúde, tais diferenças seriam associadas à diversidade
no estágio e na velocidade da mudança demográfica e nos indicadores
socioeconômicos dos respectivos países. Os resultados refletem as diferenças no
nível de desenvolvimento e no processo de transição demográfico verificadas
entre países latino-americanos, bem como a desigualdade de renda observada a
nível nacional. (Noronha; Andrade, 2004:12).
Diante do contexto sociocultural da América Latina, afirma-se que o
fenômeno do envelhecimento populacional assume características distintas
daquelas que vem ocorrendo nos países mais desenvolvidos. Nos países latinoamericanos, a situação social, política e econômica resulta em perigo para a
qualidade do atendimento dos idosos, sendo insuficiente o suporte fornecido
(Bulla; Tsuruzono, 2010:104).
O Mercosul possui motivações sobretudo econômicas, a despeito do que
determina o art. 4º da Constituição Brasileira em matéria de integração regional
na América Latina. No entanto, é possível afirmar existirem realizações em
diferentes políticas públicas. Dentre elas, as da área de saúde, que é uma temática
para a qual são destinados dois foros específicos: a Reunião de Ministros de Saúde
(RMS) e o Subgrupo de Trabalho 11 Saúde (SGT 11 Saúde). Seus temas de
trabalhos são os assuntos considerados prioritários e os interesses em comum. A
ótica prevalentemente comercial faz com que temas relativos às políticas sociais se
desenvolvam lentamente e subordinados à eliminação de barreiras e à circulação
de produtos (Queiroz; Giovanella, 2011:188).
Em 2012, países do Mercosul criaram sua primeira rede de investigação em
biomedicina. O projeto terá duração de três anos e aborda de forma coordenada os
aspectos biológicos, epidemiológicos e sociológicos de doenças degenerativas da
região. Parte do financiamento advém do Fundo para a Convergência Estrutural
do Mercosul (Focem), órgão voltado para a redução das assimetrias regionais.
Tomarão a frente da experiência: a Fiocruz (Brasil); o Instituto de Investigação
em Biomedicina de Buenos Aires (Conicet-Max Plank, Argentina); o Instituto
Pasteur de Montevidéu; o Laboratório Central de Saúde Pública do Ministério
da Saúde do Paraguai (LCSP) e centros associados (Instituto de Investigações
em Ciências de Saúde/Universidade Nacional de Assunção e o Centro para
volume
06
147
i encontro de internacionalização do conpedi
o Desenvolvimento da Investigação Científica). Dentre as doenças a serem
estudadas, está o Alzheimer.26
O Brasil surge como país que está envelhecendo e necessitando se preparar
com políticas públicas de atenção aos idosos. Aqui, não é diferente do
que se viu em outros países, pelo menos no que tange à afirmação de que o
crescimento populacional é acompanhado pela incidência significativa de casos
de enfermidades crônico-degenerativas, como o Alzheimer. Os direitos do idoso
aparecem garantidos por leis, porém não na prática. Ainda é precário o suporte
dado aos idosos, com problemas de saúde e acometidos de demência.
Em média, 25% dos idosos presentes, em entidades asilares brasileiras, é
composto por pessoas acometidas de demência. Necessário adotar estratégias
para proteger os interesses desses idosos. Nesse particular, há quem difira o idoso
dependente do idoso frágil, sendo certo que a situação deste último surge como
ainda mais preocupante. Diz-se que, enquanto o idoso dependente é o que possui
algumas limitações para certas atividades básicas da vida diária, o idoso frágil seria
o que, pelas condições de vida ou sobrevivência, simplesmente não tem forças
para reagir relativamente a situações de perigo, como as de violência física ou
psicológica (Bulla; Tsuruzono, 2010:108).
As famílias, tradicionalmente as cuidadoras desses idosos, sofreram mudanças.
A inclusão da mulher no mercado de trabalho, a redução de tamanho das
residências e o ritmo do cotidiano das cidades contribuíram para que não se
saiba quem cuidará do idoso. Pensa-se em institucionalizá-lo, numa instituição
de longa permanência. Com isso, não se afastará a responsabilidade da família,
cuja participação é de fundamental importância, ainda mais em se tratando de
um idoso dependente (ou frágil). A situação é complexa, havendo grande stress
familiar daqueles que cuidam do idoso, o que pode vir a ensejar a união da
26 O nosso bloco sub regional, o mercado comum do sul, tem avançado, recentemente, na
integração das redes de investigação em ciência, confirmando uma tendência global, como
já foi anteriormente explicado. Para mais informações sobre a Rede de Investigação em
Biomedicina constituída pelos países do Mercosul, os autores sugerem se examine o site da
Agência Fiocruz de Notícias. Recomenda-se a leitura no sítio: AGÊNCIA FIOCRUZ DE
NOTÍCIAS disponível em: https://www.agencia.fiocruz.br/semin%C3%A1rio-fiocruzaviesan-novos-caminhos-para-tratamento-de-alzheimer-parkinson-e-depress%C3%A3o
acessado em 05.05.2014.
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volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
família para dar cabo do problema ou, ao revés, a desagregação familiar. Muitas
vezes, opta-se pelo cuidador não familiar, solução cercada de alto custo. (Bulla;
Tsuruzono, 2010:106).
No que tange às instituições de longa permanência, normalmente, não têm
estrutura física e operacional especializada para cuidar dos idosos com demência.
São desprovidas da licença autorizadora do Ministério da Saúde para a prestação
de serviços mais abalizados. Os cuidados prestados se dão de forma abnegada,
com os recursos que possuem, sem auxílio metodológico e recursos humanos da
gestão de saúde do Poder Público. Há o fato de que, conforme maior o estado
de dependência/fragilidade do idoso, mais caros os gastos. As entidades asilares
sequer possuem a quantidade mínima necessária de cuidadores.
Nesse contexto, a Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei nº10.216/2011)
é desrespeitada, em especial o seu artigo 3º, de acordo com o qual é da
responsabilidade do Estado o desenvolvimento de uma política de saúde mental,
assistência e promoção de ações de saúde aos portadores de transtorno mental,
com a devida participação da sociedade e da família, a qual será prestada em
estabelecimento de saúde mental, isto é, instituições ou unidades que ofereçam
assistência em saúde. A Lei de Política Nacional do Idoso e o Estatuto do Idoso
também são desrespeitados, atentando-se contra a dignidade humana dos idosos.
A discussão sobre a implantação de políticas públicas para idosos com
demência e portadores de Alzheimer, em especial, ainda é residual. Sugere-se
que o poder público brasileiro projete e construa centros geriátricos de saúde
mental, com dois regimes: o de internato e o de centro-dia, a fim de se dar o
tratamento adequado e especializado a essas pessoas, aí incluídas as que estão
institucionalizados e as que ainda possuem vínculos familiares, plenos ou
fragilizados. As entidades asilares poderiam melhorar o ambiente dos idosos
residentes, que teriam maior tranquilidade, sendo menor a sobrecarga de trabalho
para os funcionários. Argumenta-se que as políticas públicas de proteção social
especial aos idosos devem levar em conta esta realidade, sendo preciso buscar
a maior intersetorialidade entre a assistência social e a saúde. As universidades
brasileiras deveriam investir nos estudos deste segmento de idosos com demência
(Stucchi, 2013:2).
Destaca-se a importância de serem destinados mais recursos humanos no trato
da questão. Salienta-se a necessidade de empreender esforços na capacitação das
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06
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i encontro de internacionalização do conpedi
equipes de saúde, que deverão passar a considerar questões relevantes como a
história de vida do idoso em tratamento e o respeito à diferença. Mais espaços de
reflexão sobre o problema são também pensados. Além disso, como os diagnósticos das doenças neurodegenerativas (inclusive do mal de Alzheimer) costumam
ser imprecisos e, dada a vantagem que adviria se houvesse um diagnóstico mais
precoce da doença, acredita-se que é preciso um plano de ação voltado para a
questão do diagnóstico. Este deverá considerar fatores como as singularidades do
idoso, interpretando suas falas e avaliando a conduta dos familiares, identificando
problemas e necessidades específicas (Bulla; Tsuruzono, 2010:108).
No Brasil, existem programas e serviços de atendimento ao idoso, porém
é fato que, comumente, a demanda ultrapassa a possibilidade de oferta pelo
poder público. O funcionamento das distintas modalidades de serviço requer
a realização de gastos econômicos consideráveis, sendo necessário ainda que
haja uma criteriosa avaliação prévia do caso antes da indicação do serviço,
além da já citada imprescindibilidade de uma formação de recursos humanos
profissionalmente mais preparados. A situação é de urgência, sobretudo para
o idoso com demência (em especial, pelo Alzheimer), apesar serem imperiosos
tempo e interesse para se conferir a atenção digna e respeitosa à terceira idade
(Bulla; Tsuruzono, 2010:110).
Embora as doenças crônico-degenerativas afetem cada vez mais os idosos
brasileiros, ainda não se tem uma resposta social à altura do problema. O que
se pode notar são iniciativas isoladas. Em meio a estas, está o Programa de
Assistência aos Portadores da Doença de Alzheimer (Portaria MS/GM nº 703, de
16 de abril de 2002), instituído no âmbito do Sistema Único de Saúde, devendo
ser desenvolvido de forma articulada pelo Ministério da Saúde e pelas Secretarias
de Saúde dos Estados, Distrito Federal e Municípios em cooperação com as
redes estaduais de assistência e centros de referência em assistência à saúde do
idoso. Os centros de referência integrantes da rede mencionada são tidos como
os responsáveis pelo diagnóstico, tratamento e acompanhamento dos pacientes,
bem como pela orientação a familiares e cuidadores e o que mais for necessário
à adequada atenção aos doentes com Alzheimer. Determinou-se que a Secretaria
de Assistência à Saúde estabelecesse o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas
para o tratamento do Alzheimer, incluindo os medicamentos utilizados no rol
150
volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
dos medicamentos excepcionais e adotando as demais medidas necessárias ao fiel
cumprimento desta Portaria.27
A Portaria MS/SAS nº 249/2002 aprovou as normas para cadastramento dos
Centros de Referência em Assistência à Saúde do Idoso, determinando que o
tratamento do Alzheimer devesse ser realizado conforme o Protocolo Clínico e
Diretrizes Terapêuticas publicados pela Secretaria de Assistência à Saúde. Este
protocolo só veio a ser regulamentado em 2010, pela Portaria MS/SAS nº 491.
Nele, consta o conceito geral de Alzheimer, critérios de diagnóstico, de inclusão
e de exclusão, tratamento e mecanismos de regulação, controle e avaliação. É
de caráter nacional e deve ser utilizado pelas Secretarias de Saúde dos Estados
e dos Municípios na regulação do acesso assistencial, autorização, registro e
ressarcimento dos procedimentos correspondentes. O protocolo preconiza o uso
de determinados medicamentos para tratamento de Alzheimer.28
Louvável, porém modesto, o projeto de lei 751/11, da deputada Flávia Morais
(PDT-GO), que propõe o aumento em 50% da aposentadoria ou pensão do
idoso dependente/frágil, que só receba até um salário mínimo e tenha necessidade
de ajuda cotidiana de terceiros.29
27 Ainda que possa ser considerada uma experiência isolada, o Programa de Assistência aos
Portadores da Doença de Alzheimer (Portaria MS/GM nº 703, de 16 de abril de 2002),
disponível no site SISAP IDOSO (Sistema de Indicadores de Saúde e Acompanhamento
de Políticas do Idoso), se fundamenta no conceito de rede para ganhar capilaridade e dar
conta da pluralidade de atores envolvidos na luta contra o mal de Alzheimer. Veja-se: a citada
Portaria disponível em: http://www.saudeidoso.icict.fiocruz.br/index.php?pag=polit acessado
em 06.05.2014.
28A abrangência do conteúdo desta norma revela como, mais recentemente, tem se
seguido a tendência de um olhar holístico na luta contra a doença do mal de Alzheimer,
incluindo não só os tratamentos como aspectos farmacológicos. Trata-se de um exemplo
de interdisciplinariedade. A Portaria MS/SAS nº 491/2010 está disponível no site SISAP
IDOSO (Sistema de Indicadores de Saúde e Acompanhamento de Políticas do Idoso).
Sugere-se a leitura da citada Portaria disponível em: Portaria MS/SAS nº 491/2010
disponível em: http://www.saudeidoso.icict.fiocruz.br/index.php?pag=polit acessado em
06.05.2014.
29 No mesmo sentido, ao se tratar de um fator transversal, também são considerados aspectos
próprios do direito previdenciário e da seguridade social. O PL 751/2011 pode ser encontrado na
íntegra no site da Câmara dos Deputados. O Projeto está disponível em: http://www2.camara.
leg.br/camaranoticias/noticias/TRABALHO-E-PREVIDENCIA/200672-PROJETOAUMENTA-APOSENTADORIA-E-PENSAO-PARA-IDOSO-DEPENDENTE.html
acessado em 06.05.2014.
volume
06
151
i encontro de internacionalização do conpedi
6.conclusões
Conclui-se que as políticas públicas, inclusive as de saúde, voltadas para o
idoso, não se originaram da efetiva preocupação com o ser humano e de um
sentimento de solidariedade social. Ao contrário, partiram de uma inquietação
provocada da percepção de que, com o envelhecimento populacional mundial,
adviriam relevantes impactos econômicos sobre setores como o sistema de saúde
e a previdência social. Por esse motivo, a solução encontrada foi a de recolocar
o idoso no mercado de trabalho, sob a bandeira do que se passou a chamar de
envelhecimento “ativo”, em detrimento de uma proposta focada no seu bemestar e condições pessoais, objetivando um envelhecimento “saudável” e “digno”.
Afirma-se que o retorno ao trabalho, após a aposentadoria, seria uma “terapia”, o
que é uma falácia, por trás da qual consta a preocupação mercadológica.
A produtividade econômica e social dessas pessoas, particularmente daquelas
que são vítimas do “envelhecimento do envelhecimento” se vê seriamente
comprometida pela deterioração da saúde. Nesse momento, elas se tornam
desinteressantes e até onerosas para a administração pública. Ao mesmo tempo,
é possível atribuir a demora na adoção de medidas, na área de saúde para a
terceira idade, e em especial, naquelas focadas em demência (como o mal de
Alzheimer) ao desinteresse político eleitoral, por parte da administração pública
e da representação legislativa.
Assim sendo, certos aqueles que afirmam que as atuais políticas internacionais
e nacionais de proteção social ao idoso configuram políticas que se encaixam no
pragmatismo individualista e ignoram o princípio da solidariedade. São políticas
de exploração do segmento idoso. Com elas, o que se tem em vista, em primeiro
lugar, é a defesa do capital e, apenas, num segundo plano, a tutela dos interesses
humanos. Insiste-se no conceito de envelhecimento “ativo”, abandonando
qualquer tentativa de trabalhar na chave do envelhecimento “digno”.
Basta pensar no fato de que sempre existiram idosos entre a população, mas
só agora, quando numericamente passam a representar um número expressivo de
pessoas, a elas foi conferida atenção, dado o risco que passaram a significar para
o desenvolvimento da economia mundial. Em outras palavras, com isso, tem-se
uma situação de verdadeiro desassossego para as sociedades capitalistas. A prova
de que não há uma efetiva preocupação com o ser humano do idoso está no fato
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i encontro de internacionalização do conpedi
de que, a despeito de existirem inúmeras e ótimas legislações, estas ainda surgem
como meras cartas de intenções, sem eficácia. Isto é mais uma demonstração de
que a atenção voltada para a terceira idade é originária da consideração de que o
envelhecimento populacional extremado virá a ser um óbice ao desenvolvimento,
na medida em que desviam recursos financeiros e humanos para um setor que não
oferece o retorno proporcionado em termos de produtividade econômica.
Outra evidência disso está no fato de que, no primeiro plano internacional
de ação sobre o envelhecimento, se concluiu no sentido da imprescindibilidade
de reconhecimento do idoso como ator social, “não eram desprezadas as suas
necessidades e especificidades”. Resta se perguntar até onde o discurso normativo
internacional é recepcionado na praxe da Administração Pública dos Estados,
condicionados por interesses pragmáticos e imediatistas, que otimizam a alocação
de recursos, fundamentalmente, para a promoção de interesses econômicos
privados.
Nessa situação, são extremamente preocupantes os dados que apontam para o
flagrante crescimento do número de casos de doenças crônicas como o Alzheimer,
entre os idosos. Trata-se de verdadeira epidemia, que atinge a população mundial
(aí incluída a brasileira), sem que as organizações internacionais e os governos
nacionais estejam preparados para resolvê-la. É premente a necessidade da adoção
de políticas públicas concretas focadas na eficiência operacional e na dignidade
do idoso. Esta, sem dúvida, é uma situação especial e que, por essa razão,
demanda uma política pública específica, com diretrizes próprias para solucionar
o problema.
Diante da incidência considerável do Alzheimer no Brasil, necessário adotar
medidas, destinando recursos, para melhor organizar a assistência aos doentes,
em todos os aspectos envolvidos. Assim sendo, a exemplo do que vem ocorrendo
em outros países, considera-se que seria muito importante que o Brasil elaborasse
um Plano Brasileiro de Combate ao Alzheimer, adequado às condições sociais,
políticas, econômicas e culturais da sociedade brasileira. Para tanto, seria de
fundamental relevância o apoio dos gestores federais, estaduais e municipais; da
Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAZ) e seus associados; das instituições
privadas e públicas; da sociedade brasileira. Este plano teria por objetivos juntar
forças para: reunir condições para um diagnóstico mais precoce; otimizar a saúde
volume
06
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i encontro de internacionalização do conpedi
física, cognitiva e o bem-estar do doente; a proteção e o tratamento de doenças
psíquicas concomitantes; a detecção e o tratamento de sintomas psicológicos e
comportamentais; a prestação de informações e apoio a longo prazo para aqueles
que prestam os cuidados. As grandes orientações desse plano seriam: o reforço
da dimensão ética no apoio aos acometidos pela doença; o desenvolvimento de
pesquisas médicas a seu respeito; a simplificação e a melhora do curso da doença
para aquele que é por ela afetado e para a sua família, em todas as dimensões
possíveis; a melhora das condições para um diagnóstico mais precoce da patologia.
Além disso, seria desejável que o Mercosul acelerasse sua cooperação na luta
contra esta patologia e empreendesse uma reação regional de combate ao Alzheimer
e demências associadas. Finalmente, considerando que o envelhecimento populacional é uma questão atual e global, tendo ficado evidenciado que, com o
envelhecer aumenta e muito a incidência destas doenças, almeja-se que uma
reação mundial efetiva para o problema ainda venha a ocorrer.
7.referências
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volume
06
159
i encontro de internacionalização do conpedi
quando as intenções não bastam:
a incongruência entre o discurso
parlamentar e o perfil do controle
concentr ado de constitucionalidade
no br asil
Alexandre Araújo Costa1
Alexandre Douglas Zaidan de Carvalho2
Resumo
Ponto frequente entre as análises dedicadas ao funcionamento da jurisdição
constitucional no Brasil tem sido a observação do gradual movimento de
concentração do poder de interpretar a constituição no Supremo Tribunal Federal,
atribuindo-lhe efeitos erga omnes e vinculante. Contudo, em geral, esse movimento
tem sido avaliado sob parâmetros focados na suposição de ampliação da segurança
jurídica e ganho de eficácia no contexto da crescente demanda do Poder Judiciário.
A partir da observação comparada entre os discursos empregados nos debates
legislativos que desencadearam alterações no texto constitucional expandindo os
efeitos das decisões do STF e dos dados levantados pela pesquisa “A quem interessa
o controle concentrado de constitucionalidade?”, este artigo busca analisar como
esse deslocamento pode ser compreendido menos como uma consequência
metodológica de racionalização da atividade judicial e mais como uma construção
histórica, cuja influência de fatores externos, especialmente políticos, levantam
dúvidas sobre o prevalecente argumento do ganho de racionalidade e eficácia do
1 Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Credenciado
nos programas de pós-graduação em Ciência Política e em Direito. Doutor em Direito (2008),
Mestre em Direito e Estado (1999) e Bacharel em Direito (1996) pela UnB. Coordenador do
Grupo de Pesquisa em Política e Direito.
2 Doutorando em Direito pela Universidade de Brasília/UnB, mestre em Direito Constitucional
pela Faculdade de Direito do Recife/UFPE (2011) e bacharel pela Universidade Católica
de Pernambuco (2003). Realizou estágio de doutoramento (doutorado sanduíche) no
Departamento de Direito da Universitat Pompeu Fabra (2014-2015). Tem interesse de
pesquisa na área do direito constitucional e da sociologia do direito, com enfoque na teoria
da constituição, direitos fundamentais, jurisdição constitucional, controle concentrado de
constitucionalidade e no funcionamento do sistema de justiça no Brasil. É integrante da
carreira de procurador federal (Advocacia-Geral da União).
volume
06
161
i encontro de internacionalização do conpedi
controle concentrado, além da justificativa frequentemente a ele associado: o da
defesa dos direitos fundamentais e do regime democrático.
Palavras-chave
Supremo Tribunal Federal; Controle Concentrado; Direitos Fundamentais.
Abstract
Common point between the analyzes devoted to the functioning of the
constitutional adjudication in Brazil has been the observation of gradual movement towards concentration of power to interpret the Constitution in the Supreme Court, by assigning the binding and erga omnes effects. However, in general,
this movement has been reported focused parameters under the assumption
expansion of legal certainty and gain efficiency in the context of the increasing
demand of the Judiciary. From the observation compared among discourses
employees in legislative debates that triggered changes in the Constitution
expanding the effects of the Supreme Court decisions and the data collected by
the research “Who cares concentrated control of constitutionality?”, This paper
analyzes how this shift can be understood less as a result of methodological
reasoning of judicial activity and more like a historical construction, whose
external influence, especially by political factors raise doubts about the prevailing
argument of gain rationality and effectiveness of concentrated control, beyond
the justification often associated with it: the defense of fundamental rights and
the democratic regime.
Key words
Supremo Tribunal Federal; Concentrated Control; Fundamental Rights.
1.introdução
Desde a implantação da representação por inconstitucionalidade, em 1965,
a jurisdição constitucional brasileira tem sido marcada por um gradual processo
de concentração decisória no Supremo Tribunal Federal. Ao longo desses quase
cinquenta anos, variadas mudanças constitucionais, legislativas e jurisprudenciais
alteraram as estruturas formais do controle de constitucionalidade, quase sempre
movidas pelo discurso de que era preciso enfrentar a crise decorrente de que o
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volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
poder judiciário precisava julgar um número de ações e recursos superior a sua
capacidade de processamento. Todas essas realizadas em nome de garantias de
eficiência e racionalização, mas a estratégia adotada em cada um desses momentos
foi sepre a mesma: concentrar poderes no STF, de modo a que menos decisões
pudessem solucionar mais processos.
Essa paulatina concentração enfrentou obstáculos em cada momento de
mudança, visto que o modelo concentrado tipicamente exige decisões judiciais
com efeito vinculante, o que sempre causou tensões com nossa tradição civilista,
em que o poder judiciário lidava basicamente com questões privadas e seus
provimentos tinham efeitos inter partes. Contrapondo-se a essa tradição, todo
movimento de centralização decisória implicou uma maior vinculatividade das
decisões do controle concentrado, mas o equilíbrio encontrado em cada momento
histórico tendia a restringir essa capacidade vinculante, harmonizando-a com
o sistema de civil law. Ao longo do tempo, contudo, essas resistências foram
cedendo e as decisões em controle concentrado conquistaram efeitos cada vez
mais amplos.
Elas começaram com efeito meramente declaratório, em uma sistemática na
qual os efeitos constitutivos adviriam apenas do ato do Senado que suspendia a
execução da norma julgada inconstitucional. Em 1977, essas decisões ganharam
efeitos erga omnes, pois se passou a entender que a norma declarada inconstitucional não precisaria ter sua execução suspensa pelo Senado. Em 1993 foi
introduzida a ADC com efeito vinculante, em 1998 a legislação conferiu ao STF
o direito de modular o efeito ex tunc das declarações de inconstitucionalidade,
em 2004 as ADIs adquiriram efeito vinculante e foram criadas as súmulas
vinculantes. Por fim, em 2013, o STF entendeu que as decisões de controle difuso
teriam efeitos erga omnes e atualmente está em curso uma mudança tendente a
reconhecer a possibilidade de modulação de efeitos também no controle difuso.
Esse movimento de ampliação dos efeitos foi acompanhado também por uma
transformação que ampliou os limites do controle concentrado, fortalecendo a
autoridade do STF para na fixação da interpretação constitucional e na seleção
dos casos que ele próprio deve julgar. A própria Constituição de 1988 reforçou
a concentração da jurisdição constitucional com a introdução de inovações que
ampliaram o acesso à ação direta de inconstitucionalidade e a ação direta por
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06
163
i encontro de internacionalização do conpedi
omissão e o mandado de injunção. Essa concentração foi bastante reforçada pela
introdução jurisprudencial do requisito de “pertinência temática”, que vedou a
atuação das entidades corporativas e dos governadores de estado e impediu que
elas atuassem em causas voltadas à garantia do interesse coletivo.
Tal processo se acentuou com a introdução, pela Emenda Constitucional
3/1993, da ação declaratória de constitucionalidade e da arguição por
descumprimento de preceito fundamental e com a gradual consolidação, na
década de 1990, da utilização do instituto de “interpretação conforme”, que
conferiu ao STF a possibilidade de definir interpretações vinculantes. Outros
marcos importantes desse processo foram a reforma do judiciário realizada
pela Emenda à Constituição 45/2004, que instituiu as súmulas vinculantes e a
repercussão geral, e também a mudança jurisprudencial que, no julgamento do
MI 607/ES, em 2007, adotou um maior ativismo no julgamento dos mandados
de Injunção.
Esse conjunto de modificações inclusive foi um dos motivos apresentados
na recente atribuição de validade erga omnes às decisões de controle difuso feita
no julgamento da Reclamação 4.335, em cuja decisão o min. Teori Zavaski
justificou a exclusão do Senado desse processo sob o argumento de que “está
se universalizando por força de todo um conjunto normativo constitucional e
infraconstitucional direcionado a conferir racionalidade e efetividade às decisões
dos Tribunais Superiores e especialmente à Suprema Corte” (STF, RCL 4.335).
Essa atribuição ao controle difuso de efeitos semelhantes aos do controle
abstrato tem sido interpretada como uma forma de abstrativização do controle
difuso, denominação que decorre do fato de que a jurisdição constitucional
brasileira tradicionalmente envolveu uma combinação de controle judicial
concentrado abstrato com efeitos erga omnes e controle judicial difuso concreto
com efeitos inter partes.
Tal combinação de concentração e abstração não é necessária e sequer é
típica, visto que o próprio modelo austríaco, paradigma do controle exercido
por Cortes Constitucionais, opera normalmente pela via concreta dos incidentes
de inconstitucionalidade (Kucsko-Stadlmayer, 2012). Tampouco é típica a
combinação de controle difuso e efeitos inter partes, visto que esse sistema foi
desenvolvido no sistema de common law, onde a regra do stare decisis confere
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volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
efeito vinculante para a decisão com relação à mesma corte e aos órgãos judiciais
de menor hierarquia.
No Brasil, a combinação de controle concentrado e abstrato foi uma forma
combinar o caráter inter partes das decisões de civil law com a necessidade de
efeitos gerais, mas sem introduzir elementos de vinculação jurisprudencial que
eram estranhos ao nosso ordenamento. Com isso, em vez de incluir uma regra
de stare decisis que conferiria efeito vinculante à decisão, optou-se por apenas de
entender que a decisão excluía a norma do ordenamento com efeitos ex tunc. De
toda forma, devemos diferenciar os movimentos de concentração, que tendem a
restringir a apreciação de constitucionalidade a um órgão, e os movimentos de
abstração, que tendem impugnar diretamente a validade das normas sem que elas
estejam inseridas no contexto de uma demanda concreto.
Feita essa distinção, parece mais adequado entender alguns dos processos
atuais de mudança na jurisdição constitucional a partir de quatro eixos de análise.
Em primeiro lugar, temos o eixo vinculante, cuja função seria estabelecer de
intensificar a vinculação às decisões do STF com relação aos os demais órgãos
judiciais e a Administração Pública, e está ligado especialmente à atribuição de
eveitos vinculantes às decisões em ADI e de efeitos erga omnes às decisões de
controle difuso. Além disso, temos o eixo concentrador, voltado a reforçar o papel
do STF, especialmente por meio da algutinação da demanda surgida dos casos
concretos para que eles sejam resolvidos conjuntamente por decisões do Tribunal,
evitando o trâmite de processos que tratem de assuntos sob julgamento do STF,
tendo em vista que em o instituto da repercussão geral acarreta o sobrestamento
das demandas. Há também o eixo abstrativante, que tem uma dimensão
concentradora (visto que o controle abstrato é sempre concentrado no Brasil),
mas que é marcado especialmente pelo reforço de estratégias de julgamentos
abstratos em processos com legitimidade restrita, como ocorreu com a criação da
Ação Declaratória de Constitucionalidade. O último eixo é o monocrático, que
tende a deslocar o julgamento dos processos para decisões monocráticas. Embora
as declarações de inconstitucionalidade dependam de quorum qualificado, o que
impede decisões monocráticas de procedência, as decisões de improcedência
muitas vezes são tomadas pelo relator, por causa (ou a pretexto) da possibilidade
de extinção monocrática de processos, que se acentuou a partir da década de
volume
06
165
i encontro de internacionalização do conpedi
1970, quando esta possibilidade foi ampliada pela edição de um novo Regimento
Interno do STF.
As manifestações desse movimento e suas consequências não constituem uma
novidade no ordenamento jurídico brasileiro. Vários eventos políticos se fizeram
refletir no modo de compreensão da função da jurisdição constitucional e do papel
do Supremo Tribunal Federal no arranjo das instituições incumbidas de interpretar
a Constituição. Ocorre que apesar de não se constituir propriamente numa
inovação, em geral, esse adensamento de competências tem sido avaliado apenas
sob os parâmetros da suposição de segurança jurídica e do ganho de eficácia que
tais instrumentos proporcionariam ao desempenho da Corte, naturalizando-se,
por outro lado, a hipótese de que o Poder Judiciário funciona tanto melhor quanto
mais padronizada e generalizante for a jurisprudência constitucional produzida
pelo STF. Nesse ponto, parece vigorar uma espécie de lógica intrínseca, cuja
promessa de êxito se justifica na segura aparência da redução de riscos e conflitos.
A partir da observação dos dados levantados pela pesquisa “A quem interessa
o controle concentrado de constitucionalidade?”3, este artigo buscará examinar
como as vertentes desse movimento de concentração do controle de constitucionalidade no STF podem ser avaliadas menos como uma consequência
metodológica de racionalização da atividade judicial e mais como uma construção
histórica, cuja influência de fatores políticos levantam dúvidas sobre o prevalecente argumento do ganho de racionalidade e eficácia do controle concentrado.
Orientando-se por uma perspectiva de observação das relações entre poder
e direito4, o propósito será o de destacar os discursos justificadores da criação
progressiva de tantos mecanismos de controle abstrato de constitucionalidade no
3 COSTA, Alexandre & BENVINDO, Juliano (2014). A Quem Interessa o Controle
Concentrado de Constitucionalidade? O Descompasso entre Teoria e Prática na Defesa dos
Direitos Fundamentais. Pesquisa financiada pelo CNPq. Brasília: Universidade de Brasília.
Relatório e gráficos disponíveis: http://fd.unb.br/images/stories/FD/Eventos_e_Noticias/
Relatório_Divulgacao_-_Pesquisa_CNPq.pdf
4 Esse é um ponto frequente na literatura sobre a legitimidade do exercício da função judicial
nas democracias constitucionais, acompanhado das observações sobre o crescente papel da
gestão burocrática da cidadania através da técnica juridica (GARAPON, 1996, p. 53) ou
de uma falsa autocompreensão metodológica do controle judicial das Cortes no pós-guerra,
que as levaria a uma concorrência com o papel do legislador (HABERMAS, 2012, p. 314 ss;
MAUS, 2000, p. 185 e 2010, p. 18).
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volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
Tribunal, considerando que esse deslocamento também implica a transferência
da autoridade das instâncias legislativa e executiva para um foro não submetido
à eleição periódica. Ou seja, que razões seriam estrategicamente articuladas para
que as esferas do poder político sujeitas ao influxo do voto popular reduzissem
sua própria discricionariedade, optando pela crescente judicialização de questões
políticas diretamente no Supremo Tribunal Federal.
Para tanto, o esforço será o de mapear os discursos empregados nos debates
legislativos que desencadearam alterações no texto constitucional no sentido
de expandir a jurisdição do Supremo, desde a adoção do primeiro instrumento
processual de objeção contra lei ou ato normativo por via direta (a representação
de inconstitucionalidade, introduzida pela EC 16/1965), até a Reforma do
Judiciário promovida pela EC 45/2004.
Do confronto entre os debates parlamentares e os dados colhidos na pesquisa,
pretende-se avaliar a adequação dessa mudança do perfil de atuação da Corte com
um discurso frequentemente a ela associado: o da defesa dos direitos fundamentais
e do regime democrático.
2.a emenda constitucional 16/1965 e a representação de inconstitucionalidade
O primeiro instrumento processual hábil à provocar a manifestação direta
do Supremo Tribunal Federal para fins de fiscalização normativa independentemente da apreciação de um caso concreto foi a representação de inconstitucionalidade criada pela Emenda Constitucional 16, de 26 de novembro de
1965. Essa dupla introdução do controle abstrato e do concentrado foi realizada
mediante uma modificação no art. 101, I, alínea k, da Constituição de 1946,
acrescentando entre as competências originárias do Supremo Tribunal Federal
o julgamento da “repre­sentação contra inconstitucionalidade de lei ou ato de
natureza normativa, federal ou estadual, encaminhada pelo Procurador-Geral da
República”. Além disso, foi estabelecida a possibilidade de o legislador estadual
instituir processo de competência originária dos Tribunais de Justiça para a
declaração de in­constitucionalidade de leis estaduais ou municipais em conflito
com a Constituição do Estado-membro.
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i encontro de internacionalização do conpedi
A alteração se deu no contexto da reforma judiciária promovida pelo Ato
Institucional 2 (AI-2), de 27 de outubro de 1965, um dos mais marcantes na
institucionalização do Golpe Militar de 1964 que, manteve a Constituição
Federal de 1946, as Constituições Estaduais e respectivas Emendas, “com as
alterações introduzidas pelo Poder Constituinte originário da Revolução de
31.03.1964”. O regime militar fez uma peculiar utilização da ideia de poder
constituinte, afirmando no AI-1, de 9 de abril de 1964, que “a revolução vitoriosa
se investe no exercício do Poder Constituinte”, mas de um poder constituinte
que não se limitava a estabelecer uma constiuição. Contrariando a tese de que
a revolução é realizada pelo povo, o AI-2 indica que o povo limitou-se a inspirar
a Revolução, que seria “um movimento que veio da inspiração do povo brasileiro
para atender às suas aspirações mais legítimas: erradicar uma situação e um Governo
que afundavam o País na corrupção e na subversão”. E de modo bastante peculiar,
o AI-2 afirmou que o regime instaurado era de uma revolução dotada de poder
constituinte permanente, uma revolução que “está viva e não retrocede” e que
não perdeu o caráter revolucionário pela instituição do AI-1, pois nesse ato “não
se diz que a revolução foi, mas que continuará. Assim, o seu Poder Constituinte
não se exauriu”.
Essa instituição de um poder constituinte permanente, que implica a afirmação de um governo revolucionário soberano é exatamente o oposto da afirmação constitucionalista de um povo soberano com um governo limitado. Portanto,
não se pode falar propriamente de controle de constitucionalidade naquele
período, pois a existência de uma revolução soberana afastava a possiblidade de
considerar suprema uma constituição que poderia ser alterada a qualquer tempo
pelo governo dito revolucionário. Destituído o governo anterior pela revolução,
“só a esta cabe ditar as normas e os processos de constituição do novo Governo e
atribuir-lhe os poderes ou os instrumentos jurídicos que lhe assegurem o exercício
do poder no exclusivo interesse do País”.
Essa afirmação de soberania do governo revolucionário era voltada a justificar
uma dura intervenção na organização dos poderes, que é o núcleo da noção de
constituição vigente desde a revolução americana. No que toca ao judiciário, o AI
02 aumentou o número de ministros do STF de onze para dezesseis; estabeleceu
que os juízes federais e os do antigo Tribunal Federal de Recursos seriam nomeados
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pelo Presidente da República; excluiu de apreciação judicial os atos praticados
pelo “Comando Supremo da Revolução e pelo Governo Federal”, assim como
os atos de cassação de mandato ou impedimento de parlamentares, governadores
e prefeitos; e por fim, ampliou a competência da Justiça Militar para estendê-la
aos civis na repressão aos crimes “contra a segurança nacional ou as instituições
militares”, prevalecendo sobre qualquer outra prevista em leis ordinárias.
Nese contexto de medidas de centralização política e de subordinação da
atividade judicial ao Executivo, não causa espanto que uma das medidas adotadas
na reforma constitucional que se seguiu ao AI-2 tenha sido justamente a de criar
um mecanismo de controle centralizado que somente poderia ser mobilizado
pelo Procurador-Geral da República, ou seja, pela autoridade indicada pelo
Presidente da República para atuar como chefe da advocacia pública federal.
Nesse documento, houve uma mudança de tom com relação ao AI-2, que alterou
a configuração do judiciário por meio de uma autoridade que era exercida por
investidura, e não por representação, e que não entendia ser necessário se justificar
a ninguém porque “se legitima a si mesma”.
Na justificativa apresentada pelo ministro da Justiça na apresentação do
projeto de emenda constitucional 06, que deu origem à EC 16/1965, a atuação
governamental passa a agregar também um elemento de justificação técnica por
indicar que a proposta estava baseada no trabalho de uma comissão de juristas,
entre eles: José Frederico Marques, Colombo de Souza, Orozimbo Nonato,
José Eduardo Prado Kelly e Dario de Almeida Magalhães, além de entidades
representativas da magistratura e da advocacia. Além disso, não se tratava de
redefinir a estrutura política do judiciário, mas de conferir eficiência a esta
instituição, sendo um dos pontos de destaque a preocupação com o acúmulo de
processos a exigir decisão do Supremo Tribunal Federal.
O trabalho da comissão orientou-se pela “necessidade, realmente imperiosa,
de apressar a solução dos litígios nas instâncias superiores”, conforme exposto no
projeto, que chegou a demonstrar a sobrecarga com estatísticas:
Na alta Côrte os recursos extraordinários já passam de 58.000;
os agravos, de 35.000; os mandados de segurança, de 15.000; os
habeas corpus, de 42.000; um acervo de 150.000 causas! Um
esfôrço despendido no julgamento delas excede as possibilidades
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06
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humanas, ao atingirem a cifra anual (como em 1964) de 7.849
feitos terá tocado a cada Ministro relatar cêrca de oitocentas
causas; e, dividindo-se êsse número pelos dias - menos de trezentos
- concluiremos que a média diária para o estudo individual foi
de três processos, nas escassas horas disponíveis antes e depois
das sessões. Os dados movem à surpresa, ao refletirmos que,
no período de um ano, a produção total da Côrte Suprema dos
Estados Unidos vai pouco além de mil decisões.5
O período dos cinco anos anteriores ao projeto é tomado aqui como referência
de análise6:
Ano
Distribuídos
Julgados
Saldo anual
1960
6.504
6.886
-382
1961
6.751
7.436
-685
1962
7.705
6.881
824
1963
8.216
7.849
367
1964
8.960
6.241
2.719
Total
38.136
35.293
2.843
Essas informações indicam há mais de 50 anos já existe o diagnóstico do
descompasso entre o número de processos ajuizados no STF e a capacidade de
julgá-los, o que desde então tem motivado reformas constitucionais e legislativas
dirigidas a enfrentar esse problema.
Além disso, as estratégias propostas também parecem recorrentes, inclusive
tendo sido implementadas na última década algumas das ideias propostas na
década de 60, pois uma das sugestões da comissão, que foi não acolhida na redação
final, era a instituição de uma comissão, na instância recorrida, responsável pela
análise de prejudicialidade dos recursos extraordinários, com competência para
certificar a “alta relevância da questão federal suscitada”. Uma espécie asseme5 BRASIL. Presidência da República. Mensagem nº 19, de 1965. Encaminha o Projeto de
Emenda Constitucional nº 6 ao Congresso Nacional.
6 Os dados estatísticos sobre o quantitativo da demanda utilizados neste tópico, assim como
nos tópicos 2 e 3, foram gentilmente fornecidos pela Central do Cidadão do STF.
170
volume
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lhada ao atual sistema da repercussão geral, com inspiração no writ of certiorari
norte-americano, mas não acatada pela consideração das distintas compreensões
sobre os métodos do common law e do formalismo processual de tradição romana,
da qual o Brasil foi herdeiro.
O receio da insegurança dos jurisdicionados à percepção de que o desfecho
dos casos não estivesse diretamente relacionado à lei, mas dependesse de “critérios
subjetivos, embora respeitáveis, mas sempre incertos e contingentes, na admissão
do último apelo”, foram as razões apontadas para a rejeição.
Outras alternativas foram cogitadas à época, como a subordinação do recurso
extraordinário ao prévio julgamento de ação rescisória7 que envolvesse violação à
lei federal ou tratado; a restrição do conhecimento dos mandados de segurança
aos que versassem sobre “questão federal de alta relevância”, além da transferência
da competência para julgamento dos crimes políticos ao antigo Tribunal Federal
de Recursos, salvo os casos de foro por prerrogativa de função.
No controle judicial de constitucionalidade, a principal inovação foi a
instituição da representação de inconstitucionalidade contra lei federal em tese,
de iniciativa exclusiva do Procurador-Geral da República, incorporando um
instrumento já utilizado contra leis estaduais para fins de intervenção8. A aliança
de dois argumentos estava presente na fundamentação daquela inovação: a ideia
de suplementar a representação interventiva, com o destaque do papel essencial
do Supremo Tribunal Federal como o “guardião da federação” e, em segundo
lugar, assegurar maior eficácia ao sistema, sob a retórica da economia processual.
Segundo relata a justificativa da PEC 06/1965, a iniciativa de criação da
representação de inconstitucionalidade, assim como a ideia de uma avocatória,
denominada “prejudicial de inconstitucionalidade”, suscitada pelo PGR ou pelo
7 A proposta foi feita pelo min. Orozimbo Nonato, mas rejeitada pelo Conselho sob o
fundamento de que tornaria mais caro o processo e retardaria o seu encerramento. Em sentido
semelhante, no ano de 2011, o Presidente do STF, Cezar Peluso, sugeriu a transformação
dos recursos especiais e extraordinários respectivamente em “ação rescisória especial” e “ação
rescisória extraordinária”, cabíveis no STJ e no STF contra decisões transitadas em julgado
na segunda instância (tribunais) e desde que reconhecida a repercussão geral da matéria. A
chamada “PEC dos Recursos” foi proposta pelo Sen. Ricardo Ferraço e está em trâmite na
Comissão de Constituição e Justiça do Senado, sob relatoria do Sen. Aloysio Nunes.
8 O art. 8º, parágrafo único, da Constituição de 1946, dispunha sobre a arguição de
inconstitucionalidade como medida prévia à decretação de intervenção federal nos estados.
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Tribunal em qualquer processo em curso, seja nos juízos de primeira instância ou
tribunais, foram propostas do próprio STF para o reforço de sua competência.
No ponto, estava presente o discurso do pragmatismo proporcionado pela
inovação, que teria “o mérito de facultar desde a definição da controvérsia
constitucional sobre leis novas, com economia para as partes, formando precedente que orientará o julgamento dos processos congêneres”, com procedimento
idêntico ao das representações interventivas (fundadas na violação dos princípios
constitucionais sensíveis da federação, art. 7°, VII CF/1946), seguindo uma lógica
centralizadora do processo constitucional.
Cabe ressaltar que o art. 21 da PEC nº 6/1965 chegou a prever a alteração do
art. 64, retirando do Senado Federal a competência para suspender a execução
da lei ou ato declarado inconstitucional, dispondo que caberia à Casa legislativa
apenas “fazer publicar no Diário Oficial e na Coleção de Leis, a conclusão do
julgado que lhe fôr comunicado”, o que foi rejeitado no parecer da Comissão
Mista no Congresso. A proposta foi resgatada recentemente por Gilmar Mendes
(2004), assim como na manifestação da citada Rcl nº 4.335/AC.
Curiosamente, o argumento utilizado para afastar a “avocatória”, o de que ela
“importaria em subtrair aos juízes das mais diversas categorias a faculdade, que
lhes pertence, no grau de sua jurisdição, de apreciar a conformidade da lei ou ato
com as cláusulas constitucionais”9 não serviu para afastar também a representação
de inconstitucionalidade, mesmo diante do reconhecimento explícito de que
entre nós não vigorava “o privilégio de interpretação constitucional por uma
Côrte especializada”10, deixando revelar um seletivo interesse na criação da
representação, mas não da avocatória.
A esse interesse, que ampliava a competência do STF, agregou-se uma
justificativa capaz de aliar-se ao discurso já presente: a necessidade de reduzir
a sobrecarga de processos na Corte. A alternativa encontrada foi a divisão da
jurisdição do Tribunal entre “contencioso da Constituição”, a cargo exclusivo do
plenário; e o “contencioso da lei federal”, assumido pelas turmas. Como o AI 2
tinha acabado de criar mais uma turma e, segundo Orozimbo Nonato: “o ponto
9 BRASIL. Presidência da República. Mensagem nº 19, de 1965. Encaminha o Projeto de
Emenda Constitucional nº 6 ao Congresso Nacional, p. 10.
10 Idem, p. 11.
172
volume
06
i encontro de internacionalização do conpedi
maior de estrangulamento do serviço não estava nas turmas, mas no Tribunal
pleno”, apresentada estava a justificativa, que não vedava, entretanto, o recurso
fundado em “questões constitucionais” para o plenário, a quem caberia sempre a
última palavra.
A discussão do projeto no parlamento ficou claramente prejudicada pelo
exíguo tempo de seu trâmite. Como o art. 21 do AI-2 tinha alterado o processo
legislativo para as emendas encaminhadas pelo Presidente da República, fixandolhe o prazo de 30 (trinta) dias, não houve tempo hábil para a apreciação e debate
em torno das inovações, que implicaram uma mudança substancial no modelo de
controle de constitucionalidade. A aprovação da proposta pela Comissão Mista se
deu em 16 de novembro de 1965, ou seja, a apenas 12 (doze) dias após o envio
da mensagem presidencial com o projeto.
Ainda que se considere a negativa do Congresso em conferir efeitos erga
omnes à de­claração de inconstitucionalidade pronunciada pelo Supremo Tribunal Federal na proposta aprovada, a EC 16/65 foi um passo fundamental no
sentido de concentrar o controle, que a partir daquele momento tornavase híbrido, e assim como reforçou11 as discussões acerca do papel do Tribunal
na apreciação em tese da compatibilidade das leis com a Constituição, sem
qualquer reforma ou adaptação no tradicional modelo concreto e difuso. Na
prática, contudo, a adoção da representação de inconstitucionalidade mostrouse severamente frágil porque esse processo somente poderia ser movido pelo
Procurador-Geral da República, cargo de confiança e exonerável ad nutum pelo
Presidente da República, restringiu a sua utilização seletivamente aos interesses da
chefia do Poder Executivo, ocupada pelos militares.
O caso paradigmático dessa fragilidade foi a decisão da Reclamação nº 849/
DF, rel. min. Adalício Nogueira, DJ 09.12.71, em que o STF reconheceu a
validade da decisão do Procurador-Geral de não dar seguimento a pedido do
MDB no sentido da inconstitucionalidade da lei que instituiu a censura. Nesse
julgmento, o único voto divergente foi do min. Adaucto Cardoso, que recebeu
11 Cabe aqui o registro de que mesmo antes da promulgação da EC nº 16/1965, os ministros já
debatiam a possibilidade de declaração em tese de inconstitucionalidade nas representações
interventivas. Nesse sentido: Representação nº 94, Rel. min. Castro Nunes, julgada em 17 de
julho de 1946, a de nº 95, rel. min. Orozimbo Nonato, julgada em 23 de julho de 1947 e a
Represen­tação nº 96, Rel. min. Goulart de Oliveira, julgada em 3 de outubro de 1947.
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06
173
i encontro de internacionalização do conpedi
o argumento da maioria “com o maior apreço, mas com melancolia”, afirmou
corajosamente que o STF “se esquiva de fazer o que a Constituição lhe atribui” e,
conforme nos relatou Victor Nunes Leal, renunciou à magistratura devido à sua
inconformação com o desfecho desse caso (1997, p. 196).
A extensão dos efeitos das decisões em sede de representação também
permaneceu sujeita à discrição do juízo político, por parte do Senado Federal,
a exemplo do que ocorria com as declarações de inconstitucionalidade nos
recursos extraordinários, o que elevou o número de resoluções expedidas para
suspender a execução de normas inconstitucionais (ALENCAR, 1978, p. 270). A
incongruência do modelo da representação de inconstitucionalidade com algumas
características processuais da jurisdição do STF, passou a ficar evidente com o
julgamento das primeiras representações. Nesse sentido foi o voto do ministro
Aliomar Beleerio, no AgrReg na Rep 700:
Essa coisa de, por um processo de representação encaminhado
pelo Procurador-Geral da República, segundo a Constituição
de 1946, poder o Supremo Tribunal Federal declarar a
inconstitucionalidade, em tese, de uma lei estadual e hoje, depois
da Emenda nº 18, uma lei federal, – para mim não é uma ação. [...]
Para mim não é uma ação, no sentido clássico, genuíno do Direito
Processual. Para mim é uma instituição de caráter político, à
semelhança do impeachment, que por mais que queiramos pôr
dentro do Processo Penal, não é processo penal. É uma medida
política, pouco importando que ela adote alguns dos integrantes
processualistas, como há exemplo do Direito Administrativo, que
se socorre de recursos do Direito Comercial ou Civil, a mesma
coisa fazendo o Financeiro em relação ao Direito Privado.12
Questões relativas à incompatibilidade do procedimento e dos efeitos das
decisões das representações, cujo parâmetro de então era o das representações
interventivas, também foram levantadas em outros julgamentos13, e foram sendo
tratadas pontualmente nos julgados do Tribunal.
12 STF. AgReg na Rep nº 700/SP, Rel. Min. Amaral Santos, julgado em 08.11.67.
13 Foi o caso da medida cautelar na Representação 933/RJ, rel. min. Thompson Flores, DJ
26.12.1976; Rep. 971/RJ, rel. min. Djaci Falcão, DJ 07.11.78; Rep 1.016/SP, rel. min. Moreira
Alves, DJ 20.09.79, todas analisadas em CARVALHO, 2012, p. 135-144.
174
volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
A reforma do judiciário empreendida pelo governo Geisel com “pacote de
abril” através da EC 7/1977 reforçou a concentração de atribuições no Supremo
Tribunal Federal, a exemplo da inclusão da competência para o julgamento de
representação, também ajuizada pelo Procurador-Geral da República, para fins
de interpretação de lei ou ato normativo federal ou estadual; e a instituição da
chamada avocatória, instituto que possibilitava a remessa direta de determinadas
causas à Corte Suprema, conferindo-lhe o exame integral da lide e po­deres para
suspender decisões de quaisquer juízos ou tribunais, ambas criadas por aquela
emenda constitucional.
Foi também em abril de 1977 que o Presidente do Supremo Tribunal Federal
à época, Ministro Carlos Thompson Flores, acolhendo proposta da Comissão de
Regimento, assinou despacho com a consideração de que “quando a declaração
de inconstitucionalidade de­fluir de ação direta (Representação, Constituição, art.
119, I, l), a solução está no desfecho constante do processo”, restringindo o envio de
comuni­cação ao Senado apenas nos casos em que a declaração inconstitucionali­
dade se verificasse em controle concreto-incidental. A decisão, tomada em
processo administrativo14, encerrou uma longa polêmica sobre a necessidade de
encaminhar ao Senado a decisão declaratória de inconstitucionalidade proferida
nas representações para fins de suspensão de execução da lei em todo território
nacional.
3. o debate sobre o stf e o controle judicial de constitucionalidade na constituinte
A configuração institucional que deveria ter o órgão responsável pela
interpretação da futura constituição ocupou grande parte da atenção da
subcomissão para o judiciário e o ministério publico. Composta por parlamentares eleitos para a legislatura ordinária do Congresso e não exclusivamente
para a elaboração da nova constituição, a Assembleia foi instalada na sessão de 1º
de fevereiro de 1987, e não se serviu do anteprojeto15 oferecido pela Comissão
14 Processo administrativo 4.477/1972, que contou com parecer do ministro Moreira Alves
nesse mesmo sentido. (MENDES, 2000, p. 44).
15
O
texto
(http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/constituinte/AfonsoArinos.pdf)
continha 436 artigos mais 32 disposições transitórias, e deveria servir como referência para
volume
06
175
i encontro de internacionalização do conpedi
Afonso Arinos, que tinha recebido sugestões dos ministros do STF no sentido de
manter a organização e as competências do Tribunal, conservando igualmente
os mecanismos difuso e concentrado de controle de constitucionalidade, sem
ampliar o número de legitimados para provocação direta da Corte (KOERNER
& FREITAS, 2013, p. 147).
Para o relator, Bernardo Cabral, os trabalhos da constituinte foram guiados
por uma “metodologia extremamente fluida e com acentuado potencial dispersivo” (CABRAL, 2008, p. 82), pois se tratava de uma tarefa atribuída a 8 comissões
temáticas, com 63 membros cada, divididas em 24 subcomissões responsáveis
pelas deliberações das sugestões formuladas pelos constituintes e recebidas em
função da ampla e diversificada participação da população, conforme dispunha
o primeiro regimento16 da assembleia nacional constituinte, aprovado em 19 de
março de 1987.
Segundo Leonardo Barbosa, foi exatamente o fato de os trabalhos da
constituinte não terem se guiado por um anteprojeto de natureza técnica, tal
como defendido por juristas como Manoel Gonçalves Ferreira Filho e Miguel
Reale, que a Assembleia de 1987/88 rompeu com o paradigma dos demais
processos constituintes brasileiros (BARBOSA, 2012, p. 146), tradicionalmente
circunscritos às instituições e dirigido pelos técnicos do governo.
Embora os detalhes do funcionamento da constituinte escapem o objeto
deste trabalho, a observação dos distintos momentos deliberativos da Assembleia
Nacional Constituinte merece destaque, por revelar como as aspirações
manifestadas pela maioria dos constituintes no ato de instalação não se
converteram17 no texto constitucional promulgado. Tratando-se de um ambiente
em que a capacidade para a tomada das decisões estava fragmentada entre diveros trabalhos da constituinte na elaboração do texto, porém, o anteprojeto acabou não sendo
enviado ao Congresso Nacional por decisão do Presidente José Sarney para evitar uma crise
com os constituintes, que o consideravam uma intromissão do Executivo em seus trabalhos.
16 BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Resolução 2, publicada em 25 de março de
1987.
17 Como aponta o texto de Sandra Gomes, baseado em pesquisas de opinião da época, 60%
dos constituintes preferiam a adoção de um texto constitucional conciso, o que não se
tornou realidade; 54,4% afirmaram ser partidários do parlamentarismo, entretanto, o
presidencialismo foi mantido; o voto distrital tinha apoio de 63% dos constituintes, porém
também nesse tema o status quo prevaleceu. Cf. GOMES, 2006, p. 194.
176
volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
sas correntes18, e destacando que uma das dimensões da constituinte é a escolha
de instituições e a definição de regras, inclusive sobre o seu funcionamento, não se
pode deixar considerar que os agentes politicos envolvidos no processo tinham em
conta a maximização de seus interesses na escolha daquele quadro institucional,
de modo que o procedimento adotado implica signficativos custos políticos para
a defesa das propostas em jogo.
Nesse cenário, o Supremo Tribunal Federal ocupava uma confortável e
destacada posição. Embora não explicitamente envolvido nas disputas internas do
pacto constituinte, foi mobilizado como árbitro da organização dos trabalhos por
parte da ala mais conservadora da constituinte19. O fato por si chama a atenção
por desmistificar o usual discurso jurídico que atribui à constituinte o caráter de
soberana ilimitada tal qual presente no conceito de poder constituinte da teoria
constitucional20.
Como mostram Andrei Koerner e Lígia Freitas, em 05 de fevereiro de
1987, opondo-se ao Regimento da Constituinte (Projeto de Resolução 1)21,
o Partido Liberal, através do constituinte Álvaro Valle, encaminhou consulta
ao STF para que este definisse se “os procedimentos vigentes de elaboração e
reforma constitucional deveriam ser observados até a promulgação da nova
Constituição”22.
18 A prevalência do PMDB, que tinha feito 303 parlamentares nas eleições de 1986 (54,02%
dos constituintes) contra 35 do PFL (24,15%), fez com que aquele monopolizasse o processo
decisório (CARVALHO NETO, 2007, p. 305), ocupando a relatoria de todas as comissões
temáticas (um contrassenso ao princípio da proporcionalidade consagrado no Regimento da
ANC). Porém, a heterogeneidade do ponto de vista ideológico e o desgaste entre constituintes
pemedebistas durante o processo, além da insatisfação de parlamentares da direita com
posições ditas progressitas aprovadas nas comissões dificilmente alteráveis no plenário, abriu
espaço para a coalizão de veto conhecida como “Centrão”, que contou com 43 constituintes
do PMDB e provocou a mudança no Regimento da constituinte (GOMES, 2006, p. 206)
19 Cf. KOERNER & FREITAS, 2013, p. 149.
20 Para uma discussão sobre os paradoxos implicados na ideia de poder constituinte ver: COSTA,
2011, p. 198-227.
21 A insatisfação em relação ao projeto do regimento estava nas previsões de que a ANC poderia
adotar resoluções constitucionais para alterar as normas vigentes, inclusive a duração do
mandato do presidente Sarney, os decretos-lei, as medidas de emergência e o decurso de
prazo.
22 Embora não tenha sido respondida, a consulta foi encaminhada pelo ministro Moreira Alves
ao PGR para parecer, com o pedido de urgência para que o tribunal pudesse apreciá-la como
arguição de inconstitucionalidade. Cf. KOERNER & FREITAS, 2013, p. 149.
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i encontro de internacionalização do conpedi
Outro ponto importante é que a Subcomissão do Poder Judiciário e do Ministério Público não era uma das prioridades as disputas partidárias. Durante os
trabalhos, recebeu cerca de duas mil sugestões enviadas pela população à constituinte, realizou onze audiências públicas com servidores da justiça, magistrados,
dirigentes das associações de juízes e promotores, juristas, ministros do STF,
reunindo cerca de sessenta horas de gravação desses depoimentos, para construir
um amplo diagnóstico da situação do sistema de justiça do país, o que culminou
com a elaboração do anteprojeto do constituinte Plínio de Arruda Sampaio.
Especificamente sobre os problemas enfrentados pelo STF as discussões
tiveram dois eixos: a sobrecarga de processos23, impeditiva da realização eficiente
das atribuições, e o papel do Tribunal como órgão responsável pela uniformização
de entendimentos jurídicos relacionados à lei federal e à interpretação da
constituição. Ao debate desses problemas foi agregado o objetivo de tornar o
judiciário mais democrático e aproximá-lo da população, chegando-se a discutir
a possibilidade de instituição de eleições majoritárias para os cargos de juízes e
ministros. Nos cinco anos que antecederam a constituinte, o volume de processos
distribuídos e julgados no STF foi o seguinte:
Ano
Distribuídos
Julgados
Saldo
1982
13.648
15.117
-1.469
1983
14.668
15.260
-592
1984
16.386
17.780
-1.394
1985
18.206
17.798
408
1986
22.514
22.158
356
Total
85.422
88.113
2.691
Pode-se notar que apesar do alto volume da movimentação, o Tribunal não
conservava uma acumulação de estoque para os anos seguintes, salvo em 1985 e
1986 e por uma pequena margem proporcional. Embora o número de processos
23 Foi mencionado que 91% do trabalho da Corte se encarregava do julgamento dos recursos
extraordinários.
178
volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
tenha dobrado com relação ao quinquenio 1960-1964, o saldo de processo não
julgados permaneceu bastante similar, sendo inclusive um pouco menor.
Como o número de causas e de julgamentos era bastante superior ao existente
antes da inclusão da representação de inconstitucionalidade em 1965, pareceria
razoável uma discussão acerca da eficácia daquela inovação no sentido de limitar
o número de processos e também, debate esse que seria importante para subsidiar
a decisão acerca da transformação do STF em Corte Constitucional ou a criação
de uma, que foi relevante na épica apesar de ter sido descartada essa proposta.
A descrição dos trabalhos da Subcomissão do Judiciário e Ministério Público
mostram que esse debate foi bastante limitado. O relatório e o anteprojeto que
saíram da Subcomissão basearam-se em três consensos sobre o poder judiciário:
o de que ele era moroso, inacessível aos mais pobres e ineficaz para uma série de
delitos.
Regisrou-se ainda a ausência de estudos sistemáticos, em termos sociológicos,
sobre o sistema de justiça e seu impacto social. Sobre a proposta de criação de
uma Corte Constitucional, duas foram as diretrizes debatidas e registradas24:
1) a proposta do relator, Plínio de Arruda Sampaio, instituía a Corte
Constitucional, com perfil político e competência exclusiva para o contencioso
de constitucionalidade, transformando o então Supremo Tribunal Federal e
sua composição em Superior Tribunal de Justiça, e 2) nos termos da emenda
apresentada pelo constituinte Michel Temer, criar uma “Sala Constitucional”
como parte do STF, mantendo o Tribunal e sua competência para os recursos
extraordinários, mas abrindo espaço para que uma de suas seções fosse composta
por membros escolhidos pelo parlamento,
As reuniões da Subcomissão contaram com exposições de juristas, que se
dividiram sobre a questão da criação de uma Corte Constitucional. Manifestouse a favor Lamartine Corrêa de Oliveira (fazendo referência ao modelo adotado na
Alemanha, Itália, Espanha e Portugal); contrariamente: Roberto Araújo de Oliveira
Santos (ressaltando a tradição do STF e de que o Tribunal já desempenhava a
função de Corte Constitucional), Raul Machado Horta (considerando que o STF
24 Informações extraídas das atas da Subcomissão para o Poder Judiciário e Ministério Público,
integralmente disponíveis nos Anais da Assembleia Nacional Constituinte.
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era um tribunal da federação e que lhe excluir a função de apreciar a lei federal
seria inadequado); e outros que não rejeitavam a ideia, mas faziam considerações
outras sobre a tradição do STF no modelo constitucional brasileiro e de que a
“importação” de instituições mereceria ser vista com cautela, como Luiz Pinto
Ferreira e Paulo Brossard, então Ministro da Justiça.
Entre os parlamentares, os pronunciamentos e as votações mostraram também
mostraram a divisão. Além de Plínio Sampaio, autor da proposta, defenderam a
criação de uma nova Corte os constituintes Vivaldo Barbosa, Leite Chaves, Michel
Temer (que também apresentara destaque) e Jairo Carneiro. Rejeitavam a inovação: Maurício Corrêa (um dos que mais defendeu a manutenção sem alterações
do STF), Paes Landim, Messias Góis e Adolfo Oliveira. Outros dois constituintes:
Ronaro Corrêa e Sílvio Abreu propuseram ajustes diferentes, como a manutenção
do STF, com a ampliação da representação de inconstitucionalidade25.
Quanto à ampliação da legitimidade para propor as ADIs, cerca de vinte e
oito anos mais tarde, em 28 de junho de 2005, em entrevista concedida a Ernani
Carvalho (CARVALHO NETO, 2007, p. 310), o ex-parlamentar relator da
proposta, Plínio Sampaio revelou o seguinte:
Na comissão o grande lobby, a grande dificuldade que eu tive aqui
foi o pessoal que estava ligado ao Supremo. O Supremo não queria
isso (um Tribunal Constitucional), ele queria essa coisa mista que
saiu, que eu acho que foi uma pena, eu fui derrotado nisso. A
figura mais forte era esse que depois foi Ministro do Supremo, o
Maurício Correia. Eles estavam preocupados com os artigos 101 e
102, o 103 eles deixaram passar [...] Eu fui ao Supremo conversei
muito com eles, mas eles não abriram mão. Através do Maurício
Correa fizeram as emendas e mudaram. Com o artigo 103 eles
não criaram o menor problema eles estavam interessados era nisso
(arts 101 e 102). Uma vez que eles ganharam o que eles queriam
eles não fizeram nenhuma força, então isso passou sem muita
dificuldade [...] Eu, na verdade, não verifiquei nenhuma pressão
para restringir e nenhuma pressão para pôr. Isso na verdade foi
fruto dos acadêmicos que me assessoraram com as novas teorias
da constitucionalidade, não houve uma pressão popular por isso,
nem uma contra-pressão política por isso.
25 Proposta que se saíram vencedoras no plenário, que converteu as representações em ações
diretas de inconstitucionalidade, com uma legitimação ativa mais ampla.
180
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[…] No Brasil ninguém acredita na justiça, também ninguém
deu bola, a turma estava mais preocupada com as coisas sociais. A
própria esquerda também não se preocupou muito e depois tinha
um deputado deles lá e eles tinham confiança. Foi um capítulo
tranqüilo, não houve rolo. O que eles queriam tirar tiraram. Ou
seja, eu tinha estatizado os cartórios, eles tiraram, eu tinha criado
uma Justiça Agrária, eles tiraram, eu tinha suprimido a Justiça
Militar, eles mantiveram, eu queria acabar com os vogais da
Justiça do Trabalho e também perdi. Depois que eles conseguiram
essas vitórias eles esvaziaram a sala, ficaram três gatos pingados
às duas da manhã para discutir a Justiça Agrária. Eu até fiz um
discurso dizendo está bem a imagem do povo brasileiro, os lobbies
poderosos vêm, conseguem as suas coisas e vão embora. O lobby
do povo, que são milhões, eram os três cidadãos lá. Todo mundo
ouviu o que eu disse, acharam muito grave, me derrotaram e foram
felizes para casa [...] Fora esses pontos, os outros os Deputados
topavam tudo. Não foi uma comissão dividida com debates
acalourados, não foi.
Também o constitucionalista José Afonso da Silva, que participou ativamente
assessorando membros da Subcomissão, concedeu entrevista (CARVALHO NETO,
2007, p. 314., oportunidade em que falou sobre aspectos do processo constituinte
que impactaram na configuração institucional do STF no texto promulgado:
Já existia o anteprojeto Afonso Arinos que tratava dessa
problemática. Na comissão Afonso Arinos lutou-se muito para
se estabelecer um Judiciário diferente. Mas o próprio Poder
Judiciário fez um lobby muito forte lá (na comissão) e na própria
constituinte e até o Supremo Tribunal Federal. Na comissão
Afonso Arinos eu propus a criação de uma Corte Constitucional,
por exemplo. Depois isso foi aceito (na comissão), os conservadores
bombardearam, depois foi proposto também na constituinte e
caiu no primeiro turno.
A partir dessas declarações é possível observer que, embora a Subcomissão
não tenha sido alvo das fortes disputas partidárias no que tange ao desenho
constitucional do Poder Judiciário e do Ministério Público, assim como sobre a
configuração do modelo de jurisdição contitucional a ser adotado, a preservação
do status corporativo dos grupos de interesse (CARVALHO NETO, 2007, p.
314) a que aquelas funções estavam relacionadas ocupou um papel decisivo nas
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i encontro de internacionalização do conpedi
escolhas da comissão de Subcomissão do Poder Judiciário e do Ministério Público
e, por sua vez, da Assembleia Nacional Constituinte.
4.as alter ações no controle de constitucionalidade posteriores à constituição
A ideia de coerência lógica do ordenamento jurídico brasileiro e de necessidade
de conferir segurança jurídica ao sistema de controle de constitucionalidade
em função das decisões judiciais conflitantes entre os mecanismos difuso e
concentrado aparece como principal elemento da construção teórica tanto da
ação declaratória de constitucionalidade quanto do efeito vinculante no Brasil,
conforme consignado no projeto de Emenda à Constituição 130/199226,
apresentado por Roberto Campos em suas justificativas:
Um dos problemas que mais tem preocupado o país, pelo prisma
da nova ordem constitucional, é a valorização dos juizados de 1ª
instância – louvável conquista da cidadania – sem a contrapartida
de um instrumento processual de uniformização célere, omissão
incompreensível do constituinte na conformação do controle
difuso e concentrado de constitucionalidade. A força outorgada
aos juízes de 1ª instância, sem um instrumental adequado de ação
para os Tribunais Superiores, subverte a hierarquia necessária – e
mais do que isso – a tranquilidade para a preservação da ordem
jurídica, pois qualquer questão constitucional da maior relevância
pode ser decidida de forma satisfativa, desde que o Tribunal
imediatamente não suspenda a eficácia de decisões que garantam
benefícios ou direitos.27
A redação aprovada não contemplou a possibilidade de acesso direito ao STF
pelo cidadão em função da violação de algum direito fundamental ou ainda que
incidentalmente pela remessa ao Tribunal de um conflito normativo a partir de
uma discussão concreta28 sobre o alcance ou aplicação de direitos fundamentais,
26 Cabe aqui o registro de que a justificativa apresentada com o Projeto incorporou estudo sobre
o instituto na doutrina constitucional alemã, produzido à época pelo Subchefe para Assuntos
Jurídicos da Presidência da República, Gilmar Ferreira Mendes. (MENDES, 1999).
27 BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição n° 130, Diário do Congresso Nacional de 23
de setembro de 1992, p. 21693.
28 Esse é o modelo adotado em alguns dos países europeus que realizam exclusivamente o controle
de constitucionalidade. Os Tribunais Constitucionais da Alemanha, Áustria e Espanha
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cujo acesso ao Supremo permanecera apenas pela via recursal ou em eventual
reclamação constitucional, sujeitando o texto da EC 3/93 a críticas por ofensa aos
princípios do juiz natural e acesso à Justiça. Também o chamado déficit de eficácia
das decisões do STF em causas de grande repercussão jurídica e econômica, assim
como para os litígios de massa em que a efetividade dos julgados dependia da
atuação dos demais poderes, foram absorvidas como sinais da crise de segurança
jurídica, que aliada à morosidade, contribuíram para o descrédito do Judiciário
como instituição.
A evolução da atividades do STF ao longo da década de 1990 mostra que
houve nesse momento uma mudança muito grande no padrão dos julgamentos.
De 1990 a 1994, existe uma certa continuidade do padrão de ajuizamento
anterior: um grande número de processos distribuídos, mas com uma quantidade
compatível de julgamentos, em sua maioria extintos por decisões monocráticas,
tendo em vista o baixo índice de publicação de acórdãos. Esse pequeno número
de decisões colegiadas chama atenção especialmente nos anos de 1990 e 1991, em
que o número de acórdãos publicados volta aos patamares da década de 1940 e
passa a equivaler a cerca de apenas 10% da quantidade de julgamentos produzidos
pelo Tribunal.
A partir de 1995, existe um salto no número de acórdãos publicados, que
termina por se estabilizar em torno de 10.000 decisões por ano, uma mudança
substancial em relação aos períodos anteriores. Além disso, existe nos anos de
1997 a 2002 um grande incremento no número de ações ajuizadas, que saltam
de cerca de 30.000 por ano para alcançarem pela primeira vez em 2000 um
patamar superior a 100.000 processos por ano. Apesar desse grande salto, o
Tribunal conseguiu aumentar também o número de julgamentos, não havendo
em nenhum momento um desacoplamento entre os processos julgados e
os processos distribuídos. Além disso, fixou-se o padrão de que o número de
acórdãos publicados passou a corresponder a 10% do número de processos
julgados, mostrando a predominância de decisões monocráticas.
admitem a provocação direta em caso de ofensa a direito fundamental por autoridades
públicas. Em outro grupo que inclui aqueles três países mais Bélgica, França, Itália e
Luxemburgo os Tribunais Constitucionais recebem as chamadas questões constitucionais,
a partir das discussões judiciais em casos concretos, suspendendo o litígio enquanto não é
resolvida a constitucionalidade da lei Cf. COMELLA, 2009, p. 8.
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i encontro de internacionalização do conpedi
Essa evolução indica que as mudanças introduzidas pela EC/93 não tiveram
uma repercussão ampla nas decisões da Corte. O argumento da segurança
jurídica constituiu o principal fundamento da ideia de vinculação das decisões do
STF incluída na emenda, que trazia como referência os exemplos dos Tribunais
Constitucionais europeus como modelo para assegurar a aplicabilidade dos
direitos fundamentais a partir de um parâmetro de controle de constitucionalidade
pautado pela racionalidade, e que se revelava incompatível com a excessiva carga
de trabalho submetida à Suprema Corte brasileira. Outro passo, com a mesma justificativa, foi aprovação da Lei nº 9.868/1999,
que disciplinou o processo e julgamento das ações diretas na Corte, ampliando o
alcance das deliberações da Corte com a extensão do efeito vinculante à chamada
“interpretação conforme”29, tanto em relação aos demais órgãos do Judiciário
quanto à Administração Pública. Entre os fundamentos para a utilização da
interpretação conforme a Constituição, ainda sem previsão constitucional ou
legal, estava a exigência prática de suprir um eventual vazio no ordenamento
jurídico, resultante da declaração de inconstitucionalidade. Logo, a necessidade de
conferir ao Supremo a faculdade de proferir sentenças interpretativas articulavase com a conservação de atos jurídicos produzidos com base na lei questionada
em homenagem à segurança jurídica (SEGADO, 2002, p. 44), à semelhança das
sentenças interpretativas da Corte Constitucional da Itália.
A interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, como técnicas de decisão trazidas do modelo
de controle de constitucionalidade alemão (BARACHO JÚNIOR, 2006, p.
219), permitiram ao Tribunal Constitucional reconhecer a inconstitucionalidade
da lei, sem pronunciar a sua nulidade, caso vislumbre, na possibilidade de
29 A expressão “interpretação conforme a Constituição” aparece em julgados do STF ainda
antes da EC nº 3/93, em trecho do voto do Ministro Moreira Alves na ADI/MC nº 221: “Em
matéria de inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo, admite-se, para resguardar, dos
sentidos que eles podem ter por via de interpretação, o que for constitucionalmente legítimo
– é a denominada interpretação conforme a Constituição” julgamento em 29.03.90, DJ
22.10.93 e ADI/MC nº 1.344, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 14.04.96. E antes mesmo até a
vigência da Constituição de 1988, é o caso da Representação n° 1.417/DF, rel. min. Moreira
Alves, DJ 15.04.88. Também a “declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução
de texto” já era de uso corrente no Supremo Tribunal Federal, v. ADI/MC nº 491, rel. min.
Moreira Alves, DJ 25.10.91 e ADI nº 1.089, rel. min. Francisco Rezek, DJ 27.06.97.
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i encontro de internacionalização do conpedi
exclusão do texto legal, risco maior ao interesse público que o da manutenção da
lei inconstitucional no ordenamento.
Mesmo após a sua incorporação pela Lei 9.868/99, as nuances que cercam
a interpretação conforme a Constituição não passaram despercebidas, dada a
possibilidade de o Tribunal pretender “melhorar” o texto da norma impugnada,
desvinculando-se da literalidade da redação aprovada pelo Poder Legislativo para
sobrepor a interpretação dos magistrados à dos legisladores.
Mesmo diante da fluidez dos “limites” da interpretação conforme a Constituição, construídos doutrinariamente e pela jurisprudência, a constitucionalidade da sua previsão na Lei nº 9.868/99 foi reconhecida pelo plenário da
Corte30, o que consolidou o uso da reclamação constitucional como forma de
“amparo” aos eventuais prejudicados pela inobservância ao efeito vinculante, ao
tempo em que aprofundava a tendência concentradora da jurisdição constitucional
na Suprema Corte, acompanhada da fragilização do controle difuso.
Assim como em outras ocasiões relatadas, observa-se que a decisão da
Corte avançou no estabelecimento dos limites de suas próprias competências
constitucionais numa discussão lida pela comunidade jurídica como técnica, mas
que possui uma dimensão política da maior relevância, já que, caso observada
atentamente, põe em xeque duas premissas do constitucionalismo fundamentais à própria sustentação do controle de constitucionalidade: 1) a separação
30“É constitucional lei ordinária que define como de eficácia vinculante os julgamentos
definitivos de mérito proferidos pelo Supremo Tribunal Federal em ação direta de
inconstitucionalidade (Lei nº 9.868/99, art. 28, parágrafo único). Para efeito de controle
abstrato de constitucionalidade de lei ou ato normativo, há similitude substancial de objetos
nas ações declaratória de constitucionalidade e direta de inconstitucionalidade. Enquanto a
primeira destina-se à aferição positiva de constitucionalidade a segunda traz pretensão negativa.
Espécies de fiscalização objetiva que, em ambas, traduzem manifestação definitiva do Tribunal
quanto à conformação da norma com a Constituição Federal. A eficácia vinculante da ação
declaratória de constitucionalidade, fixada pelo § 2º do art. 102 da Carta da República, não
se distingue, em essência, dos efeitos das decisões de mérito proferidas nas ações diretas de
inconstitucionalidade. Reclamação. Reconhecimento de legitimidade ativa ad causam de
todos que comprovem prejuízo oriundo de decisões dos órgãos do Poder Judiciário, bem como
da Administração Pública de todos os níveis, contrárias ao julgado do Tribunal. Ampliação
do conceito de parte interessada (Lei nº 8.038/90, art. 13). Reflexos processuais da eficácia
vinculante do acórdão a ser preservado.” STF. Rcl nº 1.880 – AgRQO, rel. min. Maurício
Corrêa, julgamento em 07.11.02, DJ 19.03.04. Texto extraído do Informativo STF nº 340.
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i encontro de internacionalização do conpedi
de poderes, quando em risco a distinção da função da Corte em relação à do
legislador, colocando-os sob parâmetros de concorrência (HABERMAS, 2012, p.
324) na definição da escolha do próprio texto legal; 2) a imparcialidade judicial
(VERMEULE, 2012, p. 396), conduzida ao paradoxo de que, mesmo vinculada
ao dogma de não legislar em causa própria, a Corte passa a deliberar sobre as
condições institucionais do exercício da própria função.
Apesar da profundidade das mudanças introduzidas pela Lei 9.868/99 e do
seu grande impacto no padrão de julgamento das ADIs (especialmente na redução
drástica do número de liminares concedidas e dos julgamentos moncráticos), essa
lei não trouxe maiores repercussões nos padrões gerais de julgamento do tribunal,
que continuaram sua tendência de crescimento no ajuizamento equilibrada por
um incremento nas decisões monocráticas.
A última das alterações constitucionais com forte impacto para o controle de
constitucionalidade no país foi a EC 45/2004. Assim como em outras ocasiões,
a preocupação quanto ao exponencial crescimento de demandas submetidas ao
STF somou-se ao discurso sobre as funções da Corte como instituição encarregada
da guarda dos direitos fundamentais, que precisava se adequar às mudanças do
próprio Estado brasileiro, em busca de celeridade e eficiência quanto à realização
de despesas para sua manutenção, preocupações, em grande parte, motivadoras
da proposta de reforma do Judiciário.
De fato havia ocorrido um salto muito significativo no número de processos
distribuídos e julgados, que mais do que quadruplicaram durante o processamento do projeto de reforma do judiciário (PEC 96/92) apresentando por
Hélio Bicudo. Essa PEC recebeu inúmeras emendas tanto na Câmara quanto no
Senado, onde passou a ser relatada por Bernardo Cabral, sucedido por José Jorge. A
demora na tramitação e o grande número de alterações do projeto não significam,
contudo, que o tema tenha causado impasses ou polarizações mais fortes no
Congresso (CARVALHO NETO, 2007, p. 322). Só após treze anos, foi aprovada
a EC 45, publicada em 31 de dezembro de 2004, redesenhando algumas funções
da cúpula do judiciário, dentre elas: a transferência para o STJ da competência
para a homologação da sentença estrangeira e a concessão de exequatur às cartas
rogatórias, além do deslocamento da competência para o julgamento de recurso
extraordinário de decisão que julgar válida lei local contestada em face de lei federal
186
volume
06
i encontro de internacionalização do conpedi
do STJ para o STF, uma medida que se contrapôs ao discurso da sobrecarga do
Supremo, que era um dos móveis da reforma.
Também foi instituída a repercussão geral das questões constitucionais
discutidas no caso para o conhecimento do recurso extraordinário e a súmula
vinculante, inovações que consolidaram o processo de concentração do controle
de constitucionalidade no Brasil na Suprema Corte (CARVALHO, 2012, p.
198); condicionou a decretação da intervenção federal a provimento do STF e
criou o Conselho Nacional de Justiça.
Inicialmente, essa modificação não trouxe uma mudança substancial para o
julgamento dos processos no STF, mas a partir de 2007 nota-se uma mudança
muito grande na atuação. Houve, especialmente desde 2008, um aumento
do percentual de processos ajuizados que não são distribuídos e também um
número de julgamentos bastante superior às distribuições (e mesmo em relação
ao protocolo), o que indica uma forte diminuição nos estoques de processos
acumulados aguardando julgamento. A partir desse momento, houve uma
estabilização nos números de processos ajuizados e distribuídos, bem como no
número de julgamentos. E o número de acórdãos publicados, que alcançou um
pico de mais de 20.000 em 2007, reduziu-se nos anos posteriores até alcançar o
patamar de cerca de 10.000 a 15.000 acórdãos, que tinha sido mantido desde
meados da década de 1990.
A combinação desses dados indica que a evolução da carga de trabalho do
STF não parece ter sido tão grave quanto indicam alguns discursos. Em especial,
se compararmos a evolução dos números globais de ajuizamento/julgamento
do STF com a evolução populacional do Brasil, os dados se mostram menos
dramáticos. O resultado é de que na década de 50 houve um avanço relativamente
equilibrado de todos os indicadores, em uma intensidade maior do que o aumento
populacional. Já na década de 1960, houve uma manutenção do equilíbrio entre
esses números, que se alterou na década de 1970 em face de um incremento das
decisões monocráticas, que reduziram os números de publicação de acórdãos para
50% do número dos julgamentos totais. Esse quadro se acirrou na década de 1980,
com queda proporcional no número de acórdãos, mas a evolução da população
foi maior do que a dos processos do STF. Já nas década de 1990 a 2000, existe um
avanço do número de processos ajuizados e julgados em um ritmo muito maior
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06
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i encontro de internacionalização do conpedi
do que o populacional, mas fica mantida a imensa preponderância dos processos
julgados monocraticamente.
Assim, por mais astronômicos que sejam os números dos julgamentos de
processos pelo STF, percebe-se a exisência da relação entre acórdãos publicados e
o crescimento populacional, indicando que durante várias décadas a população
cresceu mais do que as decisões colegiadas. Além de que o nível alcançado na
década passada indica uma relação decisão/habitante semelhante à que existia em
1950.
Dessa maneira, fica claro que a grande sobrecarga de trabalho se concentra
hoje na apreciação e julgamento monocrático de milhares de processos que são
apreciados em termos de sua extinção por critérios formais ou por aplicação da
jurisprudênica dominante. Nesse contexto, as medidas que mostraram maior
impacto no funcionamento do tribunal não foram as Emendas Constitucionais
que alteraram os elementos do controle concentrado (que é minoritário), mas
as modificações legais e regimentais e aumentaram o poder dos relatores para
extinguir os processos.
Também tiveram impacto significativo as emendas que impediram o envio
ao tribunal de processos sobrestados pela pendência de julgamento de ação com
efeito geral, mas esse impacto deve ser analisado com cuidado, tendo em vista que
a diminuição de ajuizamentos no STF não significa que esses processos tenham
sido extintos, mas apenas que eles foram represados em outros órgãos judiciais.
De todo modo, esses resultados indicam que as estratégias que mais
influenciaram o perfil dos julgamentos foram as de seletividade ligadas ao
controle difuso, por meio das quais a concentração de poder dos relatores e as
decisões que negam repercussão geral. Já as estratégias de vinculação, concentração
e de abstrativização, ligadas a um fortalecimento do controle concentrado, não
parecem ter impactado esses números com igual vigor.
5.conclusões
A partir de 1965 tem se assistido quase que passivamente ao aprofundamento
da concentração de competências em torno do STF. A Constituição de 1988
ampliou o rol de agentes legitimados a postular a inconstitucionalidade de lei
188
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i encontro de internacionalização do conpedi
ou ato normativo federal ou estadual perante a Corte – atribuição que, até
então, era confiada exclusivamente ao Procurador-Geral da República. Além
disso, foram instituídos instrumentos outros, sejam eles voltados ao exercício
do controle de constitucionalidade por via direta, como a ação declaratória de
constitucionalidade e arguição de descumprimento de preceito fundamental; para
a efetivação de direitos fundamentais contra omissões dos poderes instituídos na
regulamentação do seu exercício, como o mandado de injunção e a ação direta de
inconstitucionalidade por omissão; para a preservação da competência e autoridade
das decisões da Corte, por via incidental, como a reclamação constitucional.
Tanto as modificações realizadas ainda no regime militar, como a representação de inconstitucionalidade quanto as alterações posteriores à Constituição de
1988, a exemplo da EC nº 3/93, que inseriu a ADC e o efeito vinculante; da Lei
nº 9.868/99 e a interpretação conforme, e, por último, a EC nº 45/2004, que
trouxe a repercussão geral e as súmulas vinculantes, estiveram apoiadas no mesmo discurso: o ganho de eficiência ao sistema de controle, prestando-se em ultima
instância à centralização da interpretação constitucional no âmbito do STF, o que
não deixou de produzir consigo uma significativa perda para a democratização do
acesso à justiça, no seu sentido qualitativo e não quantitativo.
Porém, o significado desse percurso em direção ao modelo concentrado
somente agora passou a contar com um olhar crítico a essa tendência e aos
argumentos que lhe proveram fundamentação. A partir da análise dos dados
e dos discursos que motivaram a construção do complexo sistema de controle
jurisdicional hoje existente, torna-se razoável considerar que foi edificado um
“castelo de areia” da segurança jurídica e economia processual. Nesse cenário,
as discussões sobre as iniciativas31 de reforma do perfil da Corte, assim como da
própria função da jurisdição constitucional no país, não podem deixar em segundo
31 Nesse ponto cabe anotar a proposta de emenda constitucional 342/2009, de Flávio Dino (PC
do B), que extingue a vitaliciedade e estabelece mandatos de 11 anos para os Ministros, que
passariam a ser escolhidos pelo próprio STF e pela Casas do Congresso após a formação de
listas tríplices elaboradas pelos Tribunais Superiores, Conselho Nacional de Justiça, Conselho
Nacional do Ministério Público, Conselho Federal da Ordem dos Advogados e pelas
Faculdades de Direito. Além da mais recente PEC 275/2013, de Luiza Erundina (PSB) que
cria uma Corte Constitucional no lugar do STF, aumentando a composição para 15 membros
com idade entre 40 e 60 anos, nomeados pelo Presidente do Congresso após aprovação pela
maioria absoluta das duas Casas. A nova Corte teria competência exclusiva para questões
constitucionais e deslocando todas as demais para o STJ.
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06
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i encontro de internacionalização do conpedi
plano uma avaliação institucional do comportamento STF nas últimas décadas,
que tem sido evidenciada pela pretensão de uma ampla vinculação normativa de
fatos valorados sob o seu estrito racionalismo auto-referente, cujo resultado tem
representado muito pouco para a garantia dos direitos fundamentais.
Após tantas reformas constitucionais e legislativas, o que se tem visto
o esgotamento do discurso de que a aperfeiçoar mecanismos processuais à
disposição do STF e ampliar ao máximo os efeitos de suas decisões são os meios
mais adequados para a efetivação dos direitos fundamentais. Esse discurso,
utilizado especialmente na justificação dos processos de concentração, vinculação
e abstrativização, aponta que é preciso ter uma corte mais eficiente para que ela
possa realizar o seu papel verdadeiramente constitucional, que é ligado muitas vezes
ao controle concentrado e abstrato de normas (FGV, Supremo em Números).
Porém, considerando o baixo número de decisões nas ADIs que asseguram esses
direitos após trinta anos de vigência da Constituição atestam que esse discurso,
apesar de bem intencionado, não encontra ressonância na prática judicial do
Tribunal (Costa e Benvindo, 2013). Além disso, percebe-se que as modificações
que alteraram mais profundamento o funcionamento do tribunal não foram
as que reforçaram o controle abstrato, mas aquelas que interviram no processo
de julgamento por meio da ampliação dos poderes dos relatores de decidir
monocraticamente. Mesmo as decisões que modificaram sensivelmente a atuação
do Tribunal mediante processos de concentração, reforçando a seletividade do
tribunal na escolha dos casos a serem julgados, relacionam-se com a estrutura
própria do controle concreto e não do abstrato, pois o critério de julgamento está
na repercussão geral de uma decisão concreta.
Essa é uma consideração relevante para uma análise mais cuidadosa das
propostas que alinham de forma necessária os procedimentos de concentração e de
abstração, cuja união não pode ser naturalizada, apesar do reconhecimento de que
ela é típica de nossa história constitucional. Além disso, uma avaliação consistente
do modelo de jurisdição constitucional brasileira deve levar em conta o custo
democrático de ter uma instituição de caráter contramajoritário, incumbida da
proteção dos direitos das minorias como condição do própria manutenção das
regras do jogo32, cuja concentração demasiada de poderes (especialmente por
32 Descrição tradicionalmente presente nas defesas teóricas do judicial review como função caras
à democracia. Cf. COMELLA, 2007, p. 172 e 182.
190
volume
06
i encontro de internacionalização do conpedi
meio de decisões em abstrato e de decisões monocráticas) afeta não só o seu próprio
desempenho, mas também tem o potencial de restringir iniciativas democráticas
da construção do sentido desses direitos ou dificultar a sua realização por outras
vias, que não a judicial.
Para finalizar, um registro importante: a oportunidade que se abre a partir da
análise dos dados empíricos levantados na pesquisa “A quem interessa o controle
concentrado de constitucionalidade?” e do comportamento da Corte, pode ser o
início da construção de um modelo que, afora seja capaz de reduzir a complexidade
e fornecer respostas, não crie mais mecanismos de cristalização jurisprudencial
em descompasso com a realidade. Afinal, tudo que a jurisdição brasileira não
precisa mais é da sobreposição de uma razão pautada pela convergência entre o
pragmatismo na redução da carga de trabalho e o interesse restrito às questões
formais ou corporativas, o que tornaria ainda mais escassas as possibilidades de
realização dos direitos fundamentais em situações concretas.
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volume
06
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i encontro de internacionalização do conpedi
reflexão epistemológica sobre
o estudo da constituição e do
constitucionalismo no br asil
Monique Falcão1
Ricardo Falbo2
Resumo
O constitucionalismo se constrói como doutrina do direito constitucional
segundo exigência teórica de interpretação das constituições. Esta exigência supõe
visão epistemológica questionadora da emergência da realidade constitucional
em relação a seu contexto político e social de formação. Assim, a natureza
conservadora ou inovadora do contexto histórico de produção das constituições
permite configurar o constitucionalismo segundo continuidades ou rupturas ou
mesmo segundo mudanças na linha da conservação. Daí a preocupação com
a caracterização do estágio atual do constitucionalismo no Brasil com base no
contexto histórico e social da positivação dos direitos fundamentais na Constituição
brasileira de 1988. Daí a preocupação com o contexto político, social e cultural
das mudanças constitucionais como forma de explicar o constitucionalismo
brasileiro, que não se reduz a construções doutrinárias deduzidas de forma
mecânica de normas constitucionais positivadas.
1 É doutoranda em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde também
concluiu seu curso de mestrado em Direito em 2011. Pratica pesquisa acadêmica nos seguintes
temas: direito constitucional, direito administrativo, efetivação de direitos fundamentais,
sociologia jurídica e do conhecimento e filosofia do direito. É professora de direito público e
coordenadora de pesquisa e extensão em Direito na USU. É professora visitante em MBA na
FGV e na Estácio. É advogada civilista e consultora jurídica; Foi professora de Direito Civil,
Consumidor e de Laboratório de Jurisprudência na UERJ; É Intérprete e Tradutora de língua
francesa de textos acadêmicos e da Justiça Federal do Rio de Janeiro.
2 Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1984), mestrado
em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (2002), mestrado
em Direito pela Universidade Gama Filho (1994), doutorado em Sociologia pelo Instituto
Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (2004) e pós-doutorado em direitos humanos
pela Université Paris 2. Atualmente, como adjunto da Faculdade de Direito da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, leciona sociologia jurídica na graduação e epistemologia das
ciências sociais na pós-graduação (mestrado e doutorado), em Teoria e Filosofia do Direito.
Tem experiência na área de Sociologia e Filosofia, com ênfase em DIREITOS HUMANOS,
atuando principalmente nos seguintes temas: criança e adolescente, cidadania e poder
judiciário, direitos humanos e multiculturalismo, movimentos sociais urbanos e quilombolas.
volume
06
195
i encontro de internacionalização do conpedi
Palavra-chave
Constitucionalismo; Substancialismo; Procedimentalismo; Direitos Fundamentais; Historicismo.
Résumé
Le constitutionnalisme est construit comme une doctrine du droit
constitutionnel sous la demande théorique de l’interprétation des constitutions. Cette exigence implique une approche épistémologique interrogeant
sur l’émergence de la réalité constitutionnelle par rapport à son contexte
politique et sociale de formation. Ainsi, la nature conservatrice ou innovante
du contexte historique de la production des constitutions permet de configurer
le constitutionnalisme selon ses continuités ou ruptures ou encore selon ses
changements dans des processus conservateurs. D’où la préoccupation de la
caractérisation de l’état actuel du constitutionnalisme au Brésil sur la base du
contexte historique et social qui explique la formalisation des droits fondamentaux
dans la Constitution brésilienne de 1988. D’où aussi la préoccupation sur le
contexte politique, social et culturel des changements constitutionnels comme
un moyen d’expliquer le constitutionnalisme brésilien, qui n’est pas réduit à des
constructions doctrinales déduites mécaniquement des normes constitutionnelles
reconnues par la Constitution.
Mot-clé
Constitutionnalisme; Substantialisme; Procéduralisme; Droits Fondamentaux; Historicisme.
1.introdução
Este trabalho parte da hipótese genérica segundo a qual a história teórica do
constitucionalismo é construída com base no contexto histórico empírico das
constituições e que ela define assim o historicismo como perspectiva para o estudo
das constituições e dos constitucionalismos. Assim, as características históricas
de constituições particulares em contextos específicos definiriam igualmente
de forma particular o constitucionalismo em sua trajetória histórica particular.
O caráter conservador ou inovador de determinada constituição configuraria
196
volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
historicamente o constitucionalismo segundo suas continuidades ou rupturas, ou
ainda segundo suas mudanças na linha da conservação, e traduziria a natureza do
contexto histórico-social da referida constituição.
No entanto, a articulação entre constitucionalismo e constituição segundo
perspectiva e contexto históricos não tem sido doutrinariamente estabelecida pelos
juristas no âmbito do direito constitucional. E isto ocorre não porque a unidade
de análise básica das constituições tem sido definida por categorias normativas
que estas constituições consagram e expressam, e sim porque tais categorias não
têm sido compreendidas de acordo a inscrição histórica das mesmas em contextos
e processos políticos e/ou sociais determinados. Quando muito, estes contextos
e processos figuram como construções retóricas no campo doutrinário do direito
constitucional.
A ausência da história real conduz o constitucionalismo brasileiro a produzir
uma visão dele mesmo como conjunto de construções doutrinárias deduzidas
de forma mecânica de normas constitucionais positivadas. É precisamente
a ruptura entre o “constitucionalismo real”, quanto a contextos históricos e
sociais em relação no século e que definem a crise da modernidade ocidental, e o
“constitucionalismo doutrinário”, quanto aos estudos específicos da Constituição
brasileira de 1988 segundo reflexão epistemológica de natureza teórico-metodológica, que tem produzido a redução do constitucionalismo brasileiro à análise
formal das normas constitucionais e impedido a compreensão do que tem sido
definido como “novidade” para caracteriza tanto a referida constituição como o
constitucionalismo que lhe serve de estudo. Fora da história não “é possível a
novidade, o salto dialético que permite realizar o passo de um nível de realizações
a outro, a emergência de formas inéditas de existência”. (BONDY, 1982: 130).
Este é o conjunto de ideias que define a hipótese específica deste trabalho. O
constitucionalismo brasileiro parece não considerar que o constitucionalismo se
constrói como doutrina do direito constitucional ou da constituição segundo
exigência teórica e metodológica que supõe a definição tanto de constituição como
de modelo teórico capaz garantir a interpretação do contexto ou processo político
e/ou social em que ocorre o fenômeno “constituição” (WOLKMER, 1989:13-15).
E este contexto, no século XXI, sinaliza o avanço não apenas do processo
de globalização social e econômica, mas também da globalização do direito.
volume
06
197
i encontro de internacionalização do conpedi
As diversas dimensões dos processos de globalização têm produzido formas
distintas de aproximação também entre as produções das constituições, os
estudos dos direitos constitucionais e os diferentes constitucionalismos. Sem
esta visão, o estudo da Constituição brasileira de 1988 e do constitucionalismo
a partir deste período será sempre conduzido de forma independente
das constituições latino-americanas e do próprio constitucionalismo da
América Latina. A ausência de reflexão epistemológica institucionaliza o
Constitucionalismo Brasileiro como o estudo naturalizado das constituições
que não garante compreender a natureza das mudanças nem das constituições
nem do próprio constitucionalismo quanto aos sentidos de sua trajetória
histórica, quer quanto ao Brasil, quer quanto à América Latina. O objetivo
prático deste trabalho é caracterizar e apontar esse quadro reificado e reificador
no campo da argumentação de constitucionalistas.
A metodologia descritiva desse tipo de investigação desloca do campo dos
juristas para o campo dos historiadores a condição de possibilidade de pensar
a trajetória do constitucionalismo no Brasil, reforçando a separação moderna
e artificial quanto aos campos de estudos fundamentada na especialização de
tarefas. No campo dos juristas, em particular dos constitucionalistas, a história
das constituições e dos constitucionalismos só poderia ser pensada como expressão
de fatos únicos e inquestionáveis, de acordo com um tempo linear e homogêneo,
como verdadeiros mitos fundacionais. Outra visão da história só seria possível no
campo historiadores, e fora do direito. Por um lado, a metodologia positivista tem
legitimado o uso de construções teórico-doutrinárias estrangeiras para explicar
mudanças no direito constitucional brasileiro que permanecem sem explicação.
Por outro lado, ela se orienta ainda no século XXI por rupturas clássicas instauradas
pela modernidade ocidental em crise desde o século XX e não garante problematizar nem a originalidade nem a singularidade do constitucionalismo brasileiro.
É este conjunto de ideias que permite demarcar de forma específica o campo
de argumentação neste trabalho e definir um de seus principais objetivos teóricos:
a caracterização do estágio atual do constitucionalismo no Brasil quanto à
positivação dos direitos fundamentais na Constituição brasileira de 1988 e de
normas voltadas para os direitos das minorias. E é também o conjunto de ideias e
hipóteses acima que legitima a problemática que este trabalho procura enfrentar
198
volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
quanto às seguintes perguntas: No estudo das normas constitucionais brasileiras, o
constitucionalismo nacional revelou mudança de paradigma quanto à importação
de ideias e teorias europeias ou norte-americanas de modo a reconhecer a influência
específica do contexto político e social, histórico e cultural brasileiro e/ou latinoamericano na produção e na compreensão da Constituição brasileira de 1988 e na
compreensão da própria trajetória do constitucionalismo? Em caso negativo, que
fatores ou processos podem explicar, na obra de constitucionalistas, a ausência
dessa influência na explicação da emergência da Carta de 1988 e principalmente
na do constitucionalismo brasileiro?
A condição de formulação das perguntas e hipóteses neste trabalho revela
a condição ausente nos trabalhos dos constitucionalistas brasileiros em geral,
qual seja: a problematização da crise modernidade tendo como referência o
Brasil e a América Latina. “É preciso antes de mais nada arrancarmos aquela
lógica pela qual nossas sociedades são irremediavelmente exteriores ao processo
da modernidade e a sua modernidade só pode ser deformação e degradação da
verdadeira” (MARTÍN-BARBERO, 2006: 23).
Do ponto de vista teórico-metodológico, este trabalho se orienta pela
apresentação, caracterização e definição de ideias e categorias de pensamento de
dois constitucionalistas e professores brasileiros de Direito Constitucional: Daniel
SARMENTO (2006, 2009) e Luís Roberto BARROSO (2004).
Sem lhes atribuir à qualidade de representantes nacionais de correntes
teórico-doutrinárias do constitucionalismo vigentes no Brasil, os referidos
constitucionalistas foram escolhidos como professores e representantes de
doutrinas constitucionais que estão na base da formação dos alunos de direito da
Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, faculdade essa
que é referência no Rio de Janeiro e no Brasil e onde os referidos constitucionalistas
se formaram. É com base descrição de fragmentos de obras desses autores
que tratam da Constituição brasileira de 1988 que será investigada a relação
que articula “constituição” (fato concreto, particular) e “constitucionalismo”
(doutrina, universal ou universalizável) no Brasil.
Justifica-se esta escolha em razão da constatação de existência de contradições entre prática profissional e discurso no campo doutrinário constitucional
brasileiro pós CR/88. Sarmento integra o Ministério Público Federal, num órgão
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i encontro de internacionalização do conpedi
de defesa de direitos coletivos; Barroso, o órgão de cúpula do Poder Judiciário, o
STF. A contradição mais significativa neste trabalho reside no fato de que ambos
os doutrinadores trabalham com o objetivo de solucionar casos concretos que
possuem peculiaridades estritamente brasileiras e que o fazem à luz de modelos
e concepções teórico-doutrinárias referidas uma realidade histórico-social que
estes mesmos autores constroem como universalistas, conforme parâmetro euroocidental adotado em suas obras. Isto significa que eles procedem produzindo as
mesmas abstrações e dicotomias legitimadoras da instauração e do desenvolvimento
da modernidade ocidental e de suas ideias e pensamentos universalistas.
Quanto ao pensamento de Sarmento, ênfase será dada principalmente à análise por ele feita de normas constitucionais sobre os direitos das minorias, bem
como à sua concepção de constitucionalismo e da Constituição brasileira de 1988.
Quanto às ideias de Barroso, a preocupação com os direitos fundamentais será
precedida da apresentação que ele faz dos antecedentes históricos e filosóficos do
constitucionalismo brasileiro contemporâneo. A comparação e o confronto entre
os dois constitucionalistas têm por objetivo não apenas estabelecer as semelhanças
e diferenças na explicação da relação entre constitucionalismo e constituição e
apontar as inovações em matéria constitucional, mas principalmente saber se e
em que medida é possível falar de mudança paradigmática como forma legítima
de reconhecimento da realidade histórico-social e do constitucionalismo latinoamericanos através do constitucionalismo brasileiro. Assim é definida a primeira
etapa deste trabalho.
A justificativa que fundamenta essa abordagem teórico-metodológica é
orientada pela distinção que faz Hokheimer entre teoria tradicional, descritiva da
realidade e referida à separação entre o indivíduo e a sociedade, e teoria crítica,
fundamentada no comportamento crítico, na apreensão da realidade fissurada
como contradição do próprio sistema social. Se aquela não produz emancipação,
esta gera transformação. Afinal, a teoria crítica “dispensa o caráter pragmático que
advém do pensamento tradicional como trabalho profissional socialmente útil”
(HOKHEIMER, 1980: 131).
A produção de espaço de pensamento segundo lógica que garanta a confrontação com as categorias tradicionais do pensamento ocidental constitui
condição epistemológica necessária para o reconhecimento da “novidade”
no constitucionalismo brasileiro com base nas inovações consagradas pela
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i encontro de internacionalização do conpedi
Constituição brasileira no contexto de mudança política e social no Brasil e também
na América Latina. Isto diz respeito à “máquina para a descolonização intelectual
e, portanto, para a descolonização política e econômica” (MIGNOLO, 2003:
76). Esse pensamento de fronteira permite enfrentar “a retórica emancipatória da
modernidade a partir das cosmologias e epistemologias do subalterno, localizadas
no lado oprimido e explorado da diferença colonial” (GROSFOGUEL, 2008:
138). Esta questão da fronteira quanto ao pensamento permite também pensar
em termos teóricos as questões deste trabalho quanto à relação histórica entre o
passado e o presente, entre o ontem e o hoje, frequentemente desprezada pelos
constitucionalistas brasileiros. Reconhecer que o presente é o “tempo-agora”
(BENJAMIN, 1989: 191) significa que o passado está sempre aberto e que assim
ele não está fechado nos fatos já produzidos. O passado não realizou tudo e resta o
que ser feito no presente. É este passado que é – ou deve ser – desestabilizador da
modernidade presente no Brasil e na América Latina e operar como condição da
produção de pensamento autêntico no campo do direito constitucional. Eis outro
objetivo teórico deste trabalho. Assim é definida a segunda etapa deste trabalho.
É com base nestes recortes e referenciais teóricos que se procura não apenas
enfrentar a problemática construída neste trabalho mas também apontar na
direção em que é possível para os constitucionalistas abordarem as peculiaridades
da constituição brasileira de 1988 e afirmar também as mudanças do constitucionalismo brasileiro quanto à forma de pensar e de explicar a própria
Constituição do Estado e da Sociedade. Assim é definida a terceira etapa deste
trabalho, como diálogo entre os autores e como análise crítica dos mesmos à luz dos
recortes teóricos anteriormente definidos e como preparação para a conclusão.
2.o atual constitucionalismo br asileiro e os direitos das minorias
Daniel Sarmento compreende a constituição de 1988 como o coroamento do
processo de transição do regime autoritário em direção à democracia. Ressalvando
mesmo a presença na Assembleia Constituinte de forças que deram sustentação
ao “regime autoritário”, ele reconhece que este fato não impediu a elaboração de
uma constituição com “profundo compromisso com os direitos fundamentais e
com a democracia” (DE SOUZA NETO, SARMENTO, 2012: 170). Ele aponta
ainda as influências que a constituição brasileira sofreu da constituição portuguesa
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i encontro de internacionalização do conpedi
de 1976, que superou o regime autoritário pela via revolucionária, e da espanhola
de 1978, que alcançou o mesmo resultado por uma transição pactuada.
Quando da sua promulgação, a Constituição de 1988 possuía 245 artigos no
corpo permanente e 70 no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Ela
surgiu, assim, como uma carta longa e analítica. O autor de Livres e Iguais define
ainda a constituição como compromissória, pois seu texto não representava a
“cristalização” de uma ideologia política pura e ortodoxa. O constitucionalista
brasileiro afirma que ela foi o resultado do compromisso possível entre diversos
interesses e forças políticas na Constituinte. Ele qualifica ainda a carta magna
brasileira como dirigente ou programática. Se ela “não se contenta em organizar
o Estado e elencar os direitos negativos” (DE SOUZA NETO, SARMENTO,
2012: 171), ela prossegue “prevendo direitos positivos e estabelecendo metas,
objetivos, programas e tarefas a serem perseguidas pelo Estado e pela sociedade”,
constata Sarmento.
A organização da Constituição de 1988 desperta atenção quando comparada
com constituições anteriores. O movimento constitucionalista anterior à segunda
guerra mundial se preocupou com a estrutura do Estado. No pós-segunda guerra,
ele passou a consagrar direitos e garantias fundamentais. Eles eram elencados nos
primeiros capítulos e só depois havia preocupação em “disciplinar a organização
estatal”. A Constituição brasileira, de 1988, não fugiu a essa inovação.
Ela tem seu ponto alto nos direitos fundamentais. Elencando direitos civis
e políticos, a Carta brasileira garantiu direitos sociais e agregou, nas palavras
de Sarmento, direitos de terceira dimensão. Para tanto, ela se preocupou com a
efetivação destes mesmos direitos, o que pode ser confirmado com a disposição
do art. 5º, § 1º3. Ainda segundo Sarmento, a Constituição normatiza voltando
seus olhos para os sujeitos mais vulneráveis da sociedade brasileira. Ela procede
“à defesa das mulheres, consumidores, crianças e adolescentes, idosos, indígenas,
afrodescendentes, quilombolas, pessoas com deficiência e presidiários” (DE
SOUZA NETO, SARMENTO, 2012: 173). Ao mencionar os artigos 215,
216, 231 e art. 68 do ADCT, o constitucionalista aduz que a constituição
3 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,
à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: § 1º - As normas definidoras
dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.”
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contemplou “alguma abertura para o multiculturalismo, ao incumbir-se da
proteção das diferentes identidades culturais e étnicas que compõem a Nação
brasileira” 4. Não obstante isto, ele reconhece que os constituintes conservadores
consideravam os direitos fundamentais da Constituição mais como “adereços
para o embelezamento” do que como direitos dotados de significação prática.
Quanto à organização dos três poderes, a Constituição ampliou os poderes
do Legislativo e do Judiciário - esperados para um regime que visa a superar o
período autoritário. O executivo foi fortalecido com a prerrogativa de edição de
medidas provisórias e com a manutenção do controle da “agenda parlamentar”.
No entanto, pela engenharia política, o Executivo depende sempre de maioria no
legislativo e assim de alianças para construir maioria parlamentar, o que alguns
constitucionalistas chamam de “Presidencialismo de Coalização”.
O Legislativo, em comparação com a limitação do Regime Militar, foi
reforçado quanto à produção de normas e à função de fiscalizador dos outros
poderes. No entanto, a mudança que mais tem gerado debate é a que diz respeito
ao poder judiciário.
Pelo arranjo adotado, que combina uma Constituição extensa
e invasiva, com inúmeros instrumentos de controle de
constitucionalidade, tornou-se difícil que alguma decisão política
mais relevante deixe de ser submetida ao Judiciário, que muitas
vezes decide contra a vontade dos demais poderes do Estado.
Tal fenômeno, que tem se tornando mais agudo nos últimos
anos, vem suscitando questões complexas sobre os limites
da legitimidade democrática da atuação do Judiciário,
uma vez que os seus membros não são eleitos, nem podem
ser destituídos pelo voto popular, e muitas vezes decidem
questões altamente controvertidas com base na exegese de
cláusulas constitucionais vagas e abertas, que se sujeitam a
diferentes interpretações (grifo nosso) (DE SOUZA NETO,
SARMENTO, 2012: 175).
Dessa forma, o debate que se abre é quanto à possibilidade das ponderações
entre princípios e valores constitucionais5.
4 Isto fica mais evidente quando se constata que até hoje o reconhecimento do direito ao
território das comunidades quilombolas no Brasil se tornou norma de pouca efetivação.
5 E a grande questão em torno do assunto é se o Poder Judiciário, que não tem seus membros
eleitos nem destituídos pela população, possui legitimidade para tomar decisões importantes.
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Fenômeno que se depreende de uma Constituição tão extensa quanto analítica
como a Constituição de 1988 é o que o Sarmento chama de “constitucionalização
do ordenamento jurídico”.
É praticamente impossível encontrar hoje um processo judicial em
qualquer área – civil, penal, trabalhista, etc. – em que a Constituição
não seja em algum momento invocada pelas partes do litígio e
depois empregada pelo juiz ou tribunal na fundamentação da
decisão. Mas não é só nos tribunais que este fenômeno se desenrola:
nos debates parlamentares, nas reivindicações da sociedade civil e
até mesmo na rotina tecnocratas, o discurso constitucional está,
em alguma medida, penetrado (SARMENTO, 2009:167).
Em suma, o que se tem constatado é que a Constituição de 1988, diferente
das constituições de outras épocas, está presente de variadas maneiras no diaa-dia das pessoas, nos principais eventos dos brasileiros e, principalmente, nas
reivindicações dos movimentos sociais6.
O que se extrai da obra do autor é sua filiação tanto à corrente substancialista
quanto à procedimentalista. Aquela impõe limites às deliberações políticas; esta
recusa limites ao sistema democrático da deliberação. 7
Jürgen Habermas, teórico da escola de Frankfurt, e um dos principais expoentes
da teoria procedimental, critica o papel do Tribunal Constitucional Alemão
quanto à sua visão de constituição como “ordem de valores”, apontando assim
o “caráter antidemocrático e paternalista” (DE SOUZA NETO, SARMENTO,
2012: 225) dessa concepção:
Ao deixar-se conduzir pela ideia da realização de valores materiais,
dados preliminarmente no direito constitucional, o tribunal
constitucional transforma-se em instância autoritária. No caso
de uma colisão, todas as razões podem assumir o caráter de
argumentos de colocação de objetivos, o que faz ruir a vigia mestra
introduzida no discurso jurídico pela compreensão deontológica
de normas e princípios do direito (...). Na medida em que um
6 E a questão que tem gerado mais debate é acerca de como serão aplicados os preceitos
constitucionais.
7 Sarmento tenta conciliar tais correntes em suas atividades profissionais.
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tribunal constitucional adota a teoria da ordem de valores e a
toma como base de sua prática a decisão, cresce o perigo de juízos
irracionais, porque, neste caso, os argumentos funcionalistas
prevalecem sobre os normativos (HABERMAS, 2003:321-322).
Em sentido inverso, o substancialismo sustenta a legitimidade de decisões
substantivas no que concerne aos direitos fundamentais. Nesse sentido, a obra
Uma Teoria da Justiça, de John Rawls, com a primeira publicação em 1971, pode
ser citada como paradigma na influência dessa doutrina:
Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema
total de liberdades básicas iguais que seja compatível com um
sistema semelhante de liberdade para todos; as desigualdades
econômicas e sociais devem ser ordenadas de tal modo que, ao
mesmo tempo: (a) tragam o maior benefício possível para os menos
favorecidos, obedecendo às restrições do princípio da poupança
justa, e (b) sejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos
em condições de igualdade equitativa de oportunidades (RAWLS,
1976: 3-4).
Conjugando as duas teorias, em apertada síntese, duas conclusões podem ser
deduzidas do pensamento do constitucionalista brasileiro. Primeiro: é legítimo
estabelecer limites para as maiorias de cada momento, principalmente quando
ligados à proteção de direitos fundamentais e do próprio acesso ao processo
democrático. Dessa forma, ele entende que a constituição atribui ao Poder
Judiciário o poder de fiscalizar esses limites (SARMENTO, 2009: 186). Segundo:
a Constituição não pode ser considerada como fonte capaz de oferecer respostas
a todos os problemas nacionais. “Uma teoria constitucional minimamente
comprometida com a democracia deve reconhecer que a Constituição deixa
vários espaços de liberdade para o legislador e para os indivíduos, nos quais a
autonomia política do povo e a autonomia privada da pessoa humana podem ser
exercitadas” (SARMENTO, 2009: 186).
Dessa forma, o autor de Direito Constitucional defende modelo constitucional
em que possa haver suficiente abertura para deliberações políticas “de cada
geração” e que evite os excessos do substancialismo na teoria constitucional para
não limitar o componente democrático. No entanto, ele reconhece a possibilidade
substancialista quando a proteção diz respeito aos direitos fundamentais de
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minorias contra as maiorias no processo democrático. Nesta hipótese, desempenha
papel importante o Poder Judiciário.
Nesse contexto, a interpretação dada pelo constitucionalista brasileiro ao
dispositivo constitucional que faz menção expressa ao direito à posse do território
quilombola se torna mais clara. Ele reconhece a possibilidade substancialista
quanto à proteção de minorias. Na concepção de Sarmento, o art. 68 do ADCT8
encerra um direito fundamental. Numa leitura teleológica que conjuga o art. 5º,
§ 1º e § 2º, da CF, o direito à terra dos quilombolas pode assim ser ligado ao
direito fundamental à cultura, de acordo com art. 215 da CF9, direito esse que se
liga à própria identidade cultural dos membros da comunidade.
Dessa forma, o art. 68 do ADCT tornaria os territórios das comunidades
quilombolas afetados aos poder público com finalidade pública específica, e
ele não diria respeito a um simples direito patrimonial, mas a uma garantia da
própria existência do grupo. Assim, os quilombolas poderiam valer-se de todos
os instrumentos processuais hábeis para defesa desse direito, em detrimento de
terceiros ou do próprio proprietário.10 Assim, o artigo 68 do ADCT se ligaria
8 Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.
9 Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes
da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações
culturais.
§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
§ 2º - A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os
diferentes segmentos étnicos nacionais.
§ 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao
desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à:
I defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro;
II produção, promoção e difusão de bens culturais;
III formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões;
IV democratização do acesso aos bens de cultura;
V valorização da diversidade étnica e regional.
10 Esta posição de Daniel Sarmento se encontra em seu parecer de 09 de outubro de 2006, a
pedido da 6º Câmara do Ministério público Federal, quanto à questão da garantia do direito
à posse dos remanescentes de Quilombos antes da desapropriação.
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diretamente ao princípio da dignidade da pessoa humana - norma axiológica que
fundamenta toda a constituição -, princípio esse que pretende, assim, preservar a
identidade e a cultura quilombolas.
Por outro lado, Sarmento utiliza a filosofia do reconhecimento para
fundamentar o direito de minorias na Constituição brasileira, especialmente a do
filósofo canadense Charles Taylor.
A partir dessa perspectiva antropológica mais adequada,
foi possível construir, por exemplo, a ideia do “direito ao
reconhecimento”, que reclama o respeito às identidades coletivas
dos grupos não hegemônicos, diante da constatação de que a
desvalorização social dos grupos tende a atingir profundamente
a dignidade de cada um dos seus integrantes. Quando, por
exemplo, a sociedade deixa de valorizar a cultura negra e
a importância do seu legado para o país; quando ela valoriza
apenas as contribuições europeias para a formação da Nação,
priorizando os seus valores e a sua estética, atinge-se diretamente
a autoestima das pessoas negras, o que pode até comprometer
a sua capacidade de formular e seguir autonomamente os seus
planos de vida, tão encarecida pelos liberais. A compreensão dessa
forma de exclusão, que não está necessariamente relacionada
à opressão econômica, e a busca de remédios para combatê-la,
estão por trás das chamadas “políticas do reconhecimento”, que
têm inequívoca dimensão emancipatória. A Constituição de 88
tem claras aberturas a este viés emancipatório do comunitarismo,
expresso em “políticas do reconhecimento”. É o que ocorre,
por exemplo, no art. 216, § 1º, da Constituição, que impõe
ao Estado o dever de proteger “as manifestações das culturas
populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos
participantes do processo civilizatório nacional” (DE SOUZA
NETO, SARMENTO, 2012 : 213).
Por fim, afirma o constitucionalista que dessa forma a constituição brasileira
demostra uma abertura para o comunitarismo. No entanto, ressalva que não se
deve confundi-la com uma Constituição “comunitária”. A Carta de 88 é uma
constituição social que “se ocupa da proteção e promoção da cultura nacional
(arts. 215 e 216 da CF) e consagra direitos transindividuais, de titularidade
coletiva” (DE SOUZA NETO, SARMENTO, 2012 : 214).
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3.antecedentes históricos e filosóficos do atual
constitucionalismo br asileiro e os direitos fundamentais
Barroso compreende o jusnaturalismo como corrente filosófica que define o
Direito fundamentado na existência de um direito natural. Reconhece assim que
há na sociedade “um conjunto de valores e de pretensões humanas legítimas que
não decorrem de uma norma jurídica emanada do Estado, isto é, independem do
direito positivo (BARROSO, 2004: 318).
E sua origem remontaria, segundo Barroso, a Hugo Grocio, filósofo que,
na primeira metade do século XVII, na Europa, desenvolveu a concepção de
que o direito natural é o conjunto de direitos que devem ser reconhecidos
como válidos por todos os povos, independentemente e desvinculadamente da
vontade divina e dotado de existência própria. Observa, em Grocio, o início da
aplicação do raciocínio tomista às ciências humanas. A influência de São Tomás
de Aquino é reconhecida por Barroso como “o mais influente” no que tange ao
sistema filosófico por ele desenvolvido durante a baixa idade média europeia,
delimitando fronteiras de atuação e raciocínio entre a fé e a razão: “Pregando ser
a lei um ato de razão e não de vontade, distinguiu quatro espécies de leis: uma
lei eterna, uma lei natural, uma lei positiva humana e uma lei positiva divina”
(BARROSO, 2004: 318). As influências do racionalismo se fazem sentir, na
prática, no reconhecimento de documentos escritos, de compiladores de normas
e como fonte de direito aplicável, exigível e executável. Trata-se de se resguardar o
Direito das interpretações metafísicas religiosas até então vigentes e exteriorizadas
pelas vontades dos governantes soberanos absolutistas.
O jusnaturalismo, para o constitucionalista brasileiro, apresenta, portanto,
como relevantes influências para o direito tanto moderno como contemporâneo
as rupturas promovidas em relação ao pensamento escolástico medieval. Como
influências para o direito moderno constitucional, afirma-se o reconhecimento
do ser humano como ente cuja existência e destino não se submetem mais aos
princípios, valores e normas metafísicos da religião. Associando-se ao iluminismo,
já no século XVIII, o jusnaturalismo traça a necessidade de o Estado ser
reconhecido enquanto ente abstrato com princípios e objetivos desvinculados do
governante.
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A Constituição é o documento que, por excelência, regula estes princípios
e objetivos do Estado, bem como delimita – descrevendo e limitando – as
relações entre Estado, governo e sociedade. Enquanto texto escrito, ela tem
o poder de esclarecer e vincular as atitudes do Estado, do Governo e de seus
cidadãos, prescrevendo-lhes consequências jurídicas precisas. Trata-se da Escola
da Exegese, que prioriza a fidelidade ao texto legal como forma de manutenção e
desenvolvimento da ordem socioeconômica vigente, deixando-a livre de eventuais
caprichos e arbitrariedades por parte, sobretudo, do governo.
Para o direito constitucional contemporâneo, o jusnaturalismo se apresenta
como o sistematizador da constituição enquanto instituto de obediência e de
vinculação entre Estado, Governo e Sociedade, o que viabilizou o desenvolvimento
do Estado Liberal, fundado numa economia e num contexto social em que a
autonomia da vontade não poderia sofrer interferências que não as previstas na
Constituição, o que, favoravelmente, limitava a atuação do Estado e do Governo
a cumprir preceitos constitucionais elaborados por uma Assembleia Nacional
Constituinte composta de representantes do povo, representantes esses de maioria
burguesa-industrial.
A tripartição de poderes, em sua forma clássica, segundo Montesquieu –
completa independência para se obter perfeita harmonia entre Legislativo,
Executivo e Judiciário –, teve como escopo a atribuição ao Judiciário do poder de
julgar não apenas conforme a lei, mas, principal e estritamente, conforme a letra
da lei, sem qualquer possibilidade de interpretação que não a gramatical, histórica
ou teleológica.
Esta aliança teórico-metodológica entre jusnaturalismo e escola da Exegese,
para Barroso, representa, também, a própria superação histórica do jusnaturalismo, porque a literalidade na interpretação e na aplicação das normas jurídicas
não permitiu qualquer possibilidade de valores externos penetrarem o direito: o
direito natural passou a ser considerado metafísico e anticientífico, sendo marginalizado em prol do movimento positivista vigente no século XIX, e o positivismo
se tornou, “nas primeiras décadas do século XX, a filosofia dos juristas”.
O positivismo jurídico, instrumentalizado pela escola da Exegese, se
apresentou como eficiente arma para manutenção da ordem socioeconômica
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estabelecida com a Revolução Francesa. Teve como base teórica o positivismo
clássico, de Auguste Comte, como fundamento filosófico o Tomismo, e como
base metodológica o iluminismo: “o homem chegara a sua maioridade racional
e tudo passara a ser ciência: o único conhecimento válido, a única moral, até
mesmo a única religião. O universo, conforme divulgado por Galileu, teria uma
linguagem matemática, integrando-se a um sistema de leis a serem descobertas,
e os métodos válidos nas ciências da natureza deviam ser estendidos às ciências
sociais” (BARROSO, 2004: 322). 11
O autor de Interpretação e Aplicação da Constituição compreende que o
auge do positivismo jurídico se deu com Hans Kelsen, tendo como principais
características: a) A aproximação plena entre Direito e norma; b) A afirmação
da estatalidade do Direito: a ordem jurídica é uma e emana do Estado; c) A
completude do ordenamento jurídico, que contém conceitos e instrumentos
suficientes e adequados para solução de qualquer caso, inexistindo lacunas; d)
O formalismo: a validade da norma decorre do procedimento seguido para
sua criação, independendo do conteúdo. Também aqui se insere o dogma da
subsunção, herdado do formalismo alemão.
O constitucionalista brasileiro afirma que, para os juristas do século XX,
a redução extrema à qual o direito foi levado, enquanto conjunto de normas
independentes num sistema fechado, não foi capaz de garantir a neutralidade dos
intérpretes na aplicação da lei. Muito pelo contrário: ele observou que o direito
11 Em sentido amplo o termo “positivismo” designa a crença ambiciosa na ciência e nos seus
métodos. Em sentido estrito, identifica o pensamento de Auguste Comte, que em seu
Curso de filosofia positiva desenvolveu a denominada lei dos três estados, segundo a qual,
o conhecimento humano havia atravessado três estágios históricos: o teológico, o metafísico
e ingressara no estágio positivo ou científico. Barroso compreende que as três premissas
fundamentais do positivismo filosófico são, in verbis:
“(i) a ciência é o único conhecimento verdadeiro, depurado de indagações teológicas
ou metafísicas, que especulam acerca de causas e princípios abstratos, insuscetíveis de
demonstração;
(ii) o conhecimento científico é objetivo. Funda-se na distinção entre sujeito e objeto e no
método descritivo, para que seja preservado de opiniões, preferências ou preconceitos;
(iii) o método científico empregado nas ciências naturais, baseado na observação e na
experimentação, deve ser estendido a todos os campos de conhecimento, inclusive às ciências
sociais.
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nunca deixou de ser uma criação destinada à manutenção de uma determinada
ordem. A crítica mais feroz ao positivismo jurídico apresenta assim uma base
teórica marxista, que trabalha o direito como instrumento de dominação criado
por uma classe social a fim de manter certa ordem socioeconômica desejável pela
classe dominante. E, para tanto, o mecanismo metodológico do positivismo
jurídico se apresenta bastante eficaz, na medida em que não permite influência
de nenhum outro valor, conhecimento ou parâmetro de moral na aplicação das
normas pré-estabelecidas.
Barroso aponta dois grandes movimentos políticos e militares como marcos
históricos para a decadência do positivismo jurídico: o fascismo italiano e o
nazismo alemão.
Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a ideia de um ordenamento
jurídico indiferente a valores éticos e da lei como uma estrutura
meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já
não tinha aceitação no pensamento esclarecido. A superação
histórica do jus naturalismo e o fracasso político do positivismo
abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de
reflexões acerca do Direito, sua função e social e interpretação. O
pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário
difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores,
princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica e a
teoria dos direitos fundamentais (BARROSO, 2004: 325).
Ele apresenta o neopositivismo como uma “volta aos valores, uma
reaproximação entre ética e direito” (BARROSO, 2004: 326), o que não
significa reincorporação da metafísica abstrata e subjetiva no direito. Trata-se de
resgate de valores jusnaturalistas que devem ser incluídos no sistema fechado de
interpretação e aplicação do direito positivo, desta vez com parâmetros éticos
objetivos fundados na dignidade da pessoa humana. A virada kantiana é sustentada
pelo autor como movimento sócio-filosófico de valorização do homem e de sua
natureza como centro de irradiação de validade, tanto do conteúdo de normas
jurídicas como da validade da interpretação e da aplicação de normas jurídicas no
caso concreto. A liberdade, a igualdade material e a vida do homem passam a ser
os vetores de validade, aplicação e interpretação de normas jurídicas, elevados à
categoria de direitos fundamentais, através da ressignificação da função jurídicovolume
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211
i encontro de internacionalização do conpedi
social dos “princípios jurídicos”. Tais vetores passam a ser, então, caracterizados
como princípios jurídicos, com eficácia de norma jurídica caso as regras jurídicas
existentes que disciplinam tais temas em certo ordenamento jurídico não sejam
suficientes para efetivar a dignidade da pessoa humana no caso concreto.
A novidade das últimas décadas não está, propriamente, na
existência de princípios e no seu eventual reconhecimento pela
ordem jurídica. Os princípios, vindos dos textos religiosos,
filosóficos ou jusnaturalistas, de longa data permeiam a realidade
e o imaginário do Direito, de forma direta ou indireta. (...) Os
princípios constitucionais, portanto, explícitos ou não, passam a
ser a síntese dos valores abrigados no ordenamento jurídico. Eles
espelham a ideologia da sociedade, seus postulados básicos, seus
fins. Os princípios dão unidade e harmonia ao sistema, integrando
suas diferentes partes e atenuando tensões normativas. (...) Na
trajetória que conduziu ao centro do sistema, os princípios tiveram
de conquistar o status de norma jurídica, superando a crença de que
teriam uma dimensão puramente axiológica, ética, sem eficácia
jurídica ou aplicabilidade direta e imediata. A dogmática moderna
avaliza o entendimento de que as normas em geral, e as normas
constitucionais em particular, enquadram-se em duas grandes
categorias diversas: os princípios e as regras. Normalmente, as
regras contêm relato mais objetivo, com incidência restrita às
situações específicas às quais se dirigem. Já os princípios tem maior
teor de abstração e uma finalidade mais destacada no sistema.
Inexiste hierarquia entre ambas as categorias, à vista do princípio
da unidade da Constituição. Isso não impede que princípios e
regras desempenhem funções distintas dentro do ordenamento
(BARROSO, 2004: 328).
E ainda:
A distinção qualitativa entre regra e princípio é um dos pilares
da moderna dogmática constitucional, indispensável para a
superação do positivismo legalista, em que as normas se cingiam
a regras jurídicas. A Constituição passa a ser encarada como
um sistema aberto de princípios e regras, permeável a valores
jurídicos suprapositivos, no qual as ideias de justiça e de realização
dos direitos fundamentais desempenham um papel central.
A mudança de paradigma nessa matéria deve especial tributo à
sistematização de Ronald Dworkin. Sua elaboração acerca dos
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volume
06
i encontro de internacionalização do conpedi
diferentes papéis desempenhados por regras e princípios ganhou
curso universal e passou a constituir o conhecimento convencional
na matéria (BARROSO, 2004: 328).12
Barroso se permite influenciar tanto pela distinção conceitual entre princípio
e regra feita por estes autores quanto pela distinção funcional, e entre eles, para
fins de efetivação dos direitos fundamentais, sobretudo no campo da colisão
de direitos fundamentais. Ele apresenta esta distinção a fim de considerar que
direitos fundamentais, uma vez normativamente classificados como princípios,
precisam ser eficazes, independentemente do caso concreto. Este raciocínio tem
por escopo impedir que, num caso concreto, um direito fundamental possa ser
afastado pela aplicação total e completa de outro, se fosse classificado como regra
apenas, nos termos estritos do positivismo clássico. O objetivo de caracterizar o
direito fundamental como princípio e como norma jurídica (pós-positivismo),
e não como regra, é reduzir o menosprezo pelo direito fundamental que seria
afastado.
As regras são disposições legais de conteúdo certo e determinado, com
destinatário específico sobre cujo caso concreto a regra deverá incidir mediante
subsunção do fato à norma ou não. Já os princípios, em função de sua alta
carga valorativa, possuem alta densidade jurídica e, portanto, são voltados a
destinatários cujos casos concretos só serão individualizados quando ocorrerem
no mundo real. Os princípios são genéricos, de conteúdo indeterminado e de alta
densidade jurídica porque podem incidir em diversos casos concretos, inclusive
podendo haver aparente colisão entre dois ou mais princípios incidentes no caso
concreto. Portanto, os princípios somente serão aplicados ao caso concreto depois
de terem seu conteúdo lapidado segundo as exigências sócio-jurídicas do caso
concreto cuja solução lhe for submetida.
Regras são proposições normativas aplicáveis sob a forma de tudo
ou nada (all or nothing). Se os fatos nela previstos ocorrerem, a
regra deve incidir, de modo direto e automático, produzindo seus
efeitos. (...) Princípios contêm, normalmente, uma maior carga
valorativa, um fundamento ético, uma decisão política relevante,
e indicam determinada direção a seguir. Ocorre que, em ordem
12 Taking rights seriously é a obra de Dworkin mais citada por Barroso.
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i encontro de internacionalização do conpedi
pluralista, existem outros princípios que abrigam decisões, valores
ou fundamentos diversos, por vezes contrapostos. A colisão de
princípios, portanto, não só é possível como faz parte da lógica
do sistema, que é dialético. Por isso a sua incidência não pode
ser posta em termos de tudo ou nada, de validade ou invalidade.
Deve-se reconhecer aos princípios uma dimensão de peso ou
importância. À vista dos elementos do caso concreto, o intérprete
deverá fazer escolhas fundamentadas, quando se defronte com
antagonismos inevitáveis, como os que existem entre a liberdade
de expressão e o direito de privacidade, a livre iniciativa e a
intervenção estatal, o direito de propriedade e sua função social.
A aplicação dos princípios se dá, predominantemente, mediante
ponderação (BARROSO, 2004: 329).13
Dworkin e Alexy, assim como Habermas, filiam-se à Escola. Habermas
compreende que princípios e valores são vetores que uniformizam demandas para
acesso ao procedimento democrático, de forma que os reivindicantes devem usar
os instrumentos procedimentais democráticos previstos na Constituição para
demandar reformas legislativas capazes de satisfazer suas demandas. Dworkin
(1977) e Alexy (2011) compreendem que os princípios são normas capazes de
solucionar casos concretos cujas regras jurídicas incidentes não ofereçam a solução
jurídica fundada na potencialização da dignidade da pessoa humana desejada
pelas partes e que tais demandas devem ser atendidas independentemente de
prévia modificação legislativa específica.
No direito brasileiro, a disposição de regras e princípios jurídicos presentes na
Constituição de 1988 se apresenta como um conjunto de “regras de baixo teor
13 “As regras veiculam mandados de definição, ao passo que os princípios são mandados de
otimização. Por essas expressões se quer significar que as regras têm natureza biunívoca, isto
é, só admitem duas espécies de situação, dado seu substrato fático típico: os são válidas e se
aplicam ou não se aplicam por inválidas. Uma regra vale ou não vale juridicamente. Não são
admitidas gradações. A exceção da regra ou é outra regra, que invalida a primeira, ou é a sua
violação. Os princípios se comportam de maneira diversa. Como mandados de otimização,
pretendem eles ser realizados da forma mais ampla possível, admitindo, entretanto, aplicação
mais ou menos intensa de acordo com as possibilidades jurídicas existentes, sem que isso
comprometa sua validade. Esses limites jurídicos, capazes de restringir a otimização do
princípio, são (i) regras que o excepcionam em algum ponto e (ii) outros princípios de mesma
estatura e opostos que procuram igualmente maximizar-se, impondo a necessidade eventual
de ponderação.”
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i encontro de internacionalização do conpedi
valorativo, que cuidam do varejo da vida”. O autor de Interpretação e Aplicação
da Constituição tece essa crítica a fim de valorizar a importância dos princípios
enquanto normas jurídicas na Constituição de 1988 e obter, mediante interpretação das normas jurídicas já escritas e positivadas, a aplicação – ou não
aplicação – de regras de forma “justa”, valorizando e efetivando direitos
fundamentais. Trata-se, segundo palavras de Barroso, de “nova interpretação constitucional” cujo objetivo é a conservação de conceitos tradicionais aliados a ideias
que anunciem novos tempos e acudam novas demandas (BARROSO, 2004: 346).
Estas novas demandas seriam aquelas frutos da pós-modernidade, que, segundo
o autor, é retratada como a individualização do indivíduo enquanto sujeito de
direito – e não mais objeto de direito – que precisa efetivar suas potencialidades
intelectuais, sociais e culturais. As regras positivadas, destinadas a casos concretos
específicos de uma era sociocultural positivista, e antes da globalização, não
solucionam essas “novas demandas”, porque contém fundamento teóricometodológico distinto. Portanto, diante da incapacidade de o Executivo e o
Legislativo proverem as necessidades representadas por estas “novas demandas”,
mediante regras e aplicação de regras, esses indivíduos – novos demandantes – se
veem obrigados a recorrer ao Judiciário para conseguir efetivar seus direitos. O
Judiciário, sobretudo mediante exercício do controle de constitucionalidade, é o
poder estatal legitimado a satisfazer tais demandas e o instrumento que lhe estaria
disponível seria justamente o uso de princípios de direitos fundamentais como
vetores de ponderação de normas principiológicas ou como vetores normativos
para justificar a não aplicação de regras prejudiciais à dignidade da pessoa humana
no caso concreto.
Trata-se de uso político do ordenamento jurídico a fim de efetivar direitos
até então não positivados. O ator principal não seria apenas o Poder Judiciário,
porque este recebe as demandas e tem o dever constitucional de prestar tutela
jurisdicional (princípio constitucional de irrestrito acesso à justiça) fundado
no caso concreto que lhe for submetido. E, como não conseguiria solucioná-lo
aplicando apenas regras, no método positivista clássico, se vê obrigado a aplicar
princípios, que servem de fundamento para as “novas demandas” O ator principal
é, então, o intérprete, porque esta categoria abrange todos os que descrevem
juridicamente casos concretos pendentes de resolução, incluindo não apenas os
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i encontro de internacionalização do conpedi
membros do Poder Judiciário, mas demais profissionais do direito e, sobretudo,
indivíduos, grupos sociais e movimentos sociais que identificam e individualizam
“novas demandas” perante o Estado.
Barroso enaltece a importância dos intérpretes na ordem constitucional de
1988, sobretudo o intérprete que atua junto ao Judiciário a fim de alcançar
resultados positivos em demandas que não encontram amparo legal em regras
positivadas. Isto porque, a função do intérprete, no caso concreto, é extrair do
princípio um núcleo essencial tão certo e determinado para o caso concreto com a
mesma força de delimitação de incidência normativa que a regra, a fim de garantir
sua efetividade e a eficácia enquanto norma solucionadora do caso concreto.
É claro que os fatos e o intérprete sempre estiveram presentes na
interpretação constitucional. Mas nunca como agora. Faça-se
uma anotação sumária sobre cada um: Os fatos subjacentes e as
consequências práticas da interpretação. Em diversas situações,
inclusive e notadamente das hipóteses de colisão de normas e de
direitos constitucionais, não será possível colher no sistema, em tese,
a solução adequada: ela somente poderá ser formulada à vista dos
elementos do caso concreto, que permitam afirmar qual desfecho
corresponde à vontade constitucional. Ademais o resultado do
processo interpretativo, seu impacto sobre a realidade não pode
ser desconsiderado: é preciso saber se o produto da incidência
da norma sobre o fato realiza finalisticamente o mandamento
constitucional. O intérprete e os limites de sua discricionariedade.
A moderna interpretação constitucional envolve escolhas pelo
intérprete, bem como a integração subjetiva de princípios, normas
abertas e conceitos indeterminados. Boa parte da produção
científica da atualidade tem sido dedicada, precisamente, à
contenção da discricionariedade judicial, pela demarcação de
parâmetros para a ponderação de valores e interesses e pelo dever
de demonstração fundamentada da racionalidade e do acerto de
suas opções (BARROSO, 2004: 360-361).14
14 O autor apresenta os seguintes casos concretos como exemplos de aplicação de princípios
em detrimento de regras: i) o debate sobre relativização da coisa julgada que contrapõem
princípios da segurança jurídica e outros valores como justiça, direitos da personalidade;
ii) debate sobre a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, envolvendo a aplicação das
normas constitucionais de efetivação de direitos fundamentais às relações privadas; iii) debate
sobre o papel da imprensa, liberdade de expressão e direito à informação em contrate com o
direito à honra, à imagem e à vida privada.
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i encontro de internacionalização do conpedi
O destaque político da função do intérprete é fundamentado por Barroso
a partir da Teoria da Argumentação, que, segundo recorte do autor, atribui ao
intérprete a função de investigar e defender qual dentre as diversas possibilidades
interpretativas é a mais correta, leia-se, qual é capaz de apresentar uma
fundamentação racional consistente para o caso concreto estudado (BARROSO,
2004: 363).
O constitucionalista apresenta os seguintes princípios constitucionais que
seriam instrumentais para a interpretação: superioridade jurídica das normas
constitucionais (BARROSO, 2004: 369) 15, natureza aberta e indeterminada da
linguagem constitucional16, conteúdo específico das normas constitucionais17 e o
caráter político (BARROSO, 2004: 369).18
4. o constitucionalismo dos constitucionalistas em
questão
A abordagem predominantemente doutrinária e retórica da relação entre
constituição e constitucionalismo nas obras jurídicas de Sarmento e Barroso
traduz principalmente preocupação de natureza prática com a interpretação e a
aplicação da constituição brasileira quanto à solução de conflitos submetidos à
apreciação do Judiciário. Neste sentido, os dois se afastam do constitucionalismo
enquanto doutrina ou pensamento que possuem preocupações quanto a
problemas de outra natureza. Por exemplo, eles não (se) questionam acerca da
singularidade do constitucionalismo brasileiro ou latino-americano quanto ao
fato de que o desenvolvimento dos mesmos opera segundo padrão e princípios
originários da razão cultural ocidental, o que implica negar nossa história. “Negar
15 Constituição tem superlegalidade em relação às demais normas do ordenamento jurídico,
tornando-se parâmetro de validade, isto é, paradigma pelo qual se afere a compatibilidade de
uma norma com o sistema como um todo.
16 Já retratado anteriormente neste texto.
17 Normas de organização, que contém decisões políticas fundamentais, instituições de poder
e competências; normas constitucionais definidoras de direitos, que identificam direitos
individuais, políticos, sociais e coletivos; normas programáticas, que estabelecem valores e
fins públicos a serem realizados.
18 “A Constituição é o documento que faz a travessia entre o poder constituinte originário – fato
político – e a ordem estatuída, que é um fenômeno jurídico. Cabe ao direito constitucional o
enquadramento jurídico dos fatos políticos”.
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i encontro de internacionalização do conpedi
nossas origens é próprio de uma maldição que atravessa nossa América Latina [e
também o Brasil]. Maldição que se assenta no critério (...) de modernizações sem
modernidade” (ROSENMANN, 2008, 09. Tradução livre).
Ambos os constitucionalistas reconhecem a importância e ampliação do
papel deste poder na efetivação de direitos quanto às mudanças consagradas pela
Constituição brasileira de 1988. Barroso aborda a questão das novas demandas,
individuais ou sociais, no contexto que ele denomina de pós-modernidade.
Sarmento revela preocupação quanto à fiscalização dos limites a serem definidos
na relação entre maiorias e minorias.
Este procura explicar a produção da Constituição segundo o eixo normativo
e o plano político. O texto constitucional brasileiro resultou tanto da influência
das constituições portuguesa e espanhola como de forças e interesses políticos
nacionais divergentes que conformaram a Constituinte.
Aquele trata de forma quase neutra a Constituição como “documento”
que faz a “travessia” entre fato jurídico - a ordem constituída - e fato político
- a Constituinte. Sarmento caracteriza esse “documento” como “compromisso
possível” entre forças e interesses antagônicos na Constituinte. A natureza
política da Constituição pode ser reconhecida quanto ao fato de que ela traduz
o “coroamento” da transição do regime autoritário para o regime democrático.
Para Barroso, a dimensão política referente à Constituição está associada à função
do seu intérprete, quanto à investigação e defesa da possibilidade interpretativa a mais correta.
No entanto, nenhum dos dois constitucionalistas considera o conhecimento
da realidade jurídico-constitucional situado entre o empírico e o crítico à luz da
crise da modernidade ou da pós-modernidade. Cada um deles como que produz
a interpretação ou modelo interpretativo ao qual ficam submetidos mecanicamente os fatos a serem analisados. “Definir sua localização [dos fatos no tempo],
sua capacidade de mudança, as determinações que tornam possível explicar sua
especificidade [dos fatos no tempo] não entra no campo das condições sobre as
quais deve iniciar-se a discussão para explicar seu funcionamento [dos fatos no
tempo].” (ROSENMANN, 2008, 18. Tradução livre).
A relação entre a Constituição e as pessoas de modo geral não é abordada
da mesma forma pelos dois constitucionalistas. Para o autor de Interpretação e
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i encontro de internacionalização do conpedi
Aplicação do Direito, o segundo termo dessa relação é representado pelas “novas
demandas sociais” e supõe o exercício do controle de constitucionalidade por parte
do poder judiciário, através do uso dos “princípios de direitos fundamentais”. Para
o autor de Livres e Iguais, ele transcende os limites dos processos na justiça para
alcançar reivindicações sociais, debates políticos, decisões técnicas, ainda que do
ponto de vista do discurso. É o que Sarmento chama de “constitucionalização do
ordenamento jurídico”. Mesmo que o tema da “universalidade” não desapareça
nos dois constitucionalistas, ele mais parece fundamentar preocupação com certo
tipo de atitude filosófica “mais preocupada com a ação eficaz do que com a teoria.
Uma filosofia que mostra as possibilidades desta ação e de suas possibilidades de
eficácia” (ZEA, 2005: 484).
Do ponto de vista do plano teórico, a fundamentação do constitucionalismo
na chave dos modelos de interpretação da Constituição brasileira constitui
terreno doutrinário onde é possível reconhecer as divergências entre Sarmento
e Barroso. Quanto a situações concretas e diferentes, Sarmento revela influência
e adesão tanto à concepção procedimentalista habermasiana como à formulação
substancialista rawlsiana no que diz respeito ao problema relativo à aceitação ou
não de limites às deliberações políticas de natureza democrática. Dworkin e Alexy
constituem as principais influências sofridas por Barroso. No entanto, conforme
se verá abaixo, nenhum nem outro procura discutir as áreas cinzentas e silenciosas
que separam o constitucionalismo brasileiro dos constitucionalismos ocidentais,
europeu e norte-americano, e aquelas que aproximam o constitucionalismo
brasileiro do constitucionalismo latino-americano. Nem tampouco eles ousaram
pensar que foi da América Latina que “partiu o processo histórico que definiu
a dependência histórico-estrutural da América Latina e deu lugar, no mesmo
movimento, à constituição da Europa ocidental como centro mundial de controle
desse poder.” (QUIJANO, 2006: 49).
Ao abrigar formulação substancialista na defesa dos direitos das minorias,
Sarmento assume a concepção conflitualista da sociedade e reconhece o papel de
fiscal do judiciário no contexto que opõe minorias e maiorias. Porém, a preocupação com a superação do utilitarismo e do perfeccionismo e a tese liberal rawlsiana
acerca da boa vida para os cidadãos e a defesa desta por estes mesmos cidadãos
sequer foram consideras por Sarmento. Por outro lado, o procedimentalismo
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i encontro de internacionalização do conpedi
habermasiano supõe a concepção de consenso social e a rejeição de limites definidos
por valores, principalmente materiais. Aqui, tal como Habermas, Sarmento pensa
os valores na chave do funcionalismo e os opõem a argumentos normativos e
não leva em conta o substancialismo de Dworkin quanto ao acesso à democracia
com base na continuidade histórica. Isto lhe permitiria dois resultados. De um
lado, admitir os princípios constitucionais como conteúdo substancial da ordem
constitucional, aptos a sanear “problemas empíricos” de desigualdades sociais,
com base na função pragmática do direito. De outro lado, distinguindo as formas
de substancialismo entre Rawls e Dworkin, fundamentar o procedimentalismo
habermasiano, que supõe a ruptura histórica capaz de explicar, de forma lógica,
a adoção de princípios constitucionais como resultando de “acordo ético” válido
para sociedades e Estados saídos de formas autoritárias e totalitárias de governo.
No entanto, nem Sarmento nem problematizam o funcionalismo nos moldes das
ciências sociais. A ideia de que a sociedade funciona bem, por exemplo, não é
questionada. Por outro lado, eles excluem as categorias e argumentos normativos
do campo e da análise funcionalistas. A ideia de que as normas operam acima e
fora da ordem dos valores, por exemplo, é aceita como princípio fundamental.
Quanto à questão referente ao procedimentalismo habermasiano, Barroso
retrata o movimento jus-filosófico pós-positivismo como decorrência teóricofilosófica da Teoria Crítica do Direito. Entretanto, ele amplia – ou ressignifica – a
aplicação da Teoria Crítica do Direito para considerar as influências teóricas de
Dworkin e Alexy. Ou, então, não se trata nem de ampliação nem de ressignificação,
e sim de mera importação de formulações teóricas de forma mecânica e passiva.
Não é claro o objetivo ou anseio de Barroso em aprofundar as rupturas teóricometodológicas entre Dworkin e Alexy e a Escola de Frankfurt. Seu principal
objetivo é descrever, justificar e argumentar favoravelmente sobre a caracterização
de princípios como normas jurídicas, como sendo tão ou mais eficazes que as
regras. Além disto, o autor de Direito Constitucional não problematiza nem a
natureza liberal e a concepção de sociedade individualista de Dworkin nem a
teoria dos direitos fundamentais de Alexy em sua referência à constituição alemã.
Barroso não se preocupa em explicar a recusa do procedimentalismo
habermasiano enquanto método de eficácia do direito. Tampouco demonstra
interesse em explicar as razões para a rejeição da contribuição jus-filosófica de
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Habermas para o neopositivismo e para o movimento neo-constitucionalista do
século XX.
Essa posição negativa em seu pensamento se explica por duas razões. Primeira:
a preocupação do constitucionalista em promover uma introdução históricofuncional do Direito, desde a concepção de Estado Moderno Constitucional,
com as Revoluções Americana e Francesa até o pós-2ª Guerra Mundial como
elemento que desencadeou a necessidade de transformações das funcionalidades
jurídico-normativas dos princípios para o sistema jurídico-social vigente no
Brasil do século XXI. Daí porque ele caracteriza a Teoria Crítica como um dos
fundamentos teóricos do movimento neo-constitucionalista. Segunda: Barroso
apresenta, através de concepção específica de pós-modernidade, a humanização e
a individualização das necessidades sociais como fundamentos sócio-filosóficos da
ampliação e aprofundamento da eficácia normativa de princípios constitucionais.
No entanto, quando se trata de reconhecer o “outro” e suas diferenças,
quanto à questão dos direitos das minorias, Sarmento como que abandona o
substancialismo de Rawls para afirmar o comunitarismo de Taylor. É este
deslocamento teórico que permite a Sarmento afirmar o caráter emancipatório e
a abertura para o comunitarismo da Constituição brasileira e reconhecer o papel
jurídico e social das políticas de reconhecimento dos governos democráticos.
Por outro lado, essa “virada comunitarista” não esconde a distinção que faz o
constitucionalista entre constituição comunitária e constituição social. Como
constituição social, a Constituição brasileira de 1988 visa à proteção e promoção
da cultura nacional, além de consagrar direitos transindividuais e de titularidade
coletiva.
A questão do universal e do particular é aborda diferentemente por Barroso.
Sua introdução histórico-funcional do Direito se fundamenta em dois aspectos:
as funcionalidades sócio-econômico-políticas do direito e das estruturas de poder
jurídico-estatais e as concepções teórico-filosóficas que as embasaram. Quanto
às funcionalidades do Direito e dos Poderes de Estado, elas são apresentadas,
de forma bastante profunda e ampla, como definidores do modelo do Estado
Liberal. Já as modificações funcionais por que passaram o Direito e os Poderes
de Estado durante o Estado de Bem-Estar Social são definidas de modo bastante
tímido. Em seguida, mais uma vez de forma bastante profunda, ele apresenta as
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i encontro de internacionalização do conpedi
consequências socioeconômicas da superposição destes modelos, associadas aos
efeitos da globalização econômica e social, para justificar sua concepção específica de pós-modernidade enquanto momento histórico de valorização do
indivíduo em suas potencialidades, atribuindo à pessoa humana um caráter
universalizante quanto à necessidade de sua proteção pelo Estado, e um caráter
individualizante quanto a suas peculiaridades que devem ser objeto de proteção.
Barroso e Sarmento compreendem que os princípios jurídicos devem ter seu
conteúdo e sua função sócio-jurídicos ressignificados do positivismo clássico
para o pós-positivismo. Esta constitui a condição ou pressuposto de efetivação da
dignidade da pessoa humana como vetor do sistema jurídico. No entanto, eles
divergem quanto à instrumentalização e a efetivação desse raciocínio.
Enquanto para Barroso, os princípios constitucionais “espelham a ideologia da
sociedade”, para Sarmento a Constituinte – e, por conseguinte, a Constituição,
suas regras e princípios – caracteriza-se pela ausência de “ideologia política pura
e ortodoxa”. Enquanto o argumento de Sarmento permite afirmar o caráter
“compromissório” da Constituição brasileira de 1988, o de Barroso garante
sustentar a eficácia dos princípios constitucionais, enquanto classificados
normativamente como direitos fundamentais, de forma independente de
situações concretas.
Neste sentido, o argumento de Sarmento é consentâneo com a visão segundo
a qual a Constituição brasileira revela o mesmo caráter emancipatório que
caracteriza a perspectiva comunitária, enquanto o argumento de Barroso traduz
preocupação com a neutralidade dos intérpretes constitucionais no contexto do
direito enquanto “conjunto de normas independentes num sistema fechado”. A
afirmação da “volta aos valores”, que permite a Barroso definir o neopositivismo
que aproxima ética e direito e afirmar uma “nova interpretação constitucional”,
e a negação da “ordem dos valores”, que permite a Sarmento, nas pegadas de
Habermas, afirmar o procidementalismo quanto à interpretação da Carta brasileira, conduzem os dois constitucionalistas a um mesmo resultado: a naturalização
das categorias constitucionais “direitos fundamentais” e “dignidade da pessoa
humana”. Nem o recurso ao comunitarismo de Taylor por parte de Sarmento nem
a preocupação com os antecedentes históricos do constitucionalismo brasileiro
por parte de Barroso produzem reflexão de natureza sociológica e histórica. Talvez
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a influência do caráter mais sistematizador e moderado da reflexão da Bobbio e
a descontextualização do pensamento de Taylor respondam pela dificuldade de
um e de outro quanto à necessidade de distinção de valor e de significado das
categorias “direitos fundamentais”, “direitos das minorias” e “dignidade da pessoa
humana” quanto aos planos jurídico e sócio histórico.
Seja como for, as investigações dos constitucionalistas brasileiros expressam
limites que traduzem a situação em relação à qual é preciso “ser vigilante e
desconfiado ao extremo, a fim de evitar – pela crítica e a consulta à realidade – a
recaída nos modelos alienantes de reflexão” (BONDY, 1982: 132. Tradução livre)
produzida pelo recurso a valores e conceitos importados.
5.conclusões
A preocupação de Barroso com os antecedentes históricos e filosóficos do
atual constitucionalismo brasileiro e o uso das categorias do pensamento de
Dworkin e Alexy não fazem o constitucionalista brasileiro produzir nem trabalho
histórico nem reflexão filosófica. A preocupação com o caráter comunitário
da Constituição brasileira e o recurso ao pensamento filosófico e político de
Taylor por parte de Sarmento não inscrevem os direitos das minorias no Brasil
em configuração histórico e social determinada. Donde o caráter mais tópico
e retórico de formulações dogmáticas dos constitucionalistas brasileiros que
traduzem preocupação de natureza prática, de caráter profissional, quanto à
resolução de conflitos no âmbito e através do direito constitucional.
A preocupação de Sarmento com a fundamentação da defesa e efetivação
dos direitos de minorias concretas conduz o constitucionalista a proceder de
forma tradicional. Teórica e metodologicamente, ele adota a perspectiva das
dicotomias clássicas e inscreve o procedimentalismo e o substancialismo no
campo das exclusões mútuas e recíprocas. Suas rupturas ontológicas talvez
sejam amenizadas como resultado de sua preocupação com a realidade concreta
dos direitos das minorais. Neste caso, ele como que estabelece princípios para
a interpretação e aplicação da Constituição na sociedade brasileira segundo a
associação que ele termina por fazer entre procedimentalismo e generalidade,
de um lado, e substancialismo e particularidade, de outro lado. Porém, talvez
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i encontro de internacionalização do conpedi
o constitucionalismo contemporâneo reclame abordagem quanto à questão
acerca da relação de integração quanto a essas duas perspectivas, e não quanto à
justificação desse tipo clivagem.
Já a preocupação de Barroso com a interpretação e aplicação da Constituição brasileira na sociedade leva o constitucionalista a se debruçar menos sobre
os direitos das minorias do que sobre a questão da dignidade da pessoa humana.
Procedendo de forma retórica e dogmática, ele faz uso da teoria da argumentação
e da distinção entre regras e princípios para definir os direitos humanos como
princípios fundamentais da Constituição brasileira com função normativa e assim
como critério de interpretação e aplicação do direito constitucional.
Assim, o estágio atual do constitucionalismo brasileiro na pena e nas ideias
dos constitucionalistas mobilizados é antes de tudo a resultante do processo
político e social que traduziu correlação de forças e interesses tão distintos quanto
contraditórios na sociedade brasileira, com participação de movimentos sociais e
diversos setores da sociedade civil, e que resultou na reunião da Assembleia nacional constituinte. Não obstante isto, tanto a Constituinte como “produto” como
as forças e interesses políticos e sociais como “processo” figuram principalmente
como retórica no universo ideológico dos dois constitucionalistas. Paradoxalmente, as mudanças no então chamado “direito constitucional” definem tanto as
rupturas políticas em relação ao autoritarismo militar com o avanço do processo
de democratização da sociedade brasileira como as continuidades teóricas, dogmáticas e metodológicas que definem os limites dos constitucionalistas brasileiros
quanto à dificuldade de incorporar em suas reflexões a realidade constitucional
e o pensamento constitucional latino americano. Evidentemente que o resultado
daí decorrente não impede a análise de conjuntura quanto a situações específicas
da realidade brasileira referentes ao “sujeito de direito” e ao “direito do sujeito” no
campo dos direitos das minorias e dos direitos fundamentais.
Porém, ele define os limites do constitucionalismo brasileiro em termos de
reflexão no contexto de qualquer preocupação com a teoria crítica do direito
voltada para o problema da emancipação e da transformação. Mesmo que
tais limites possam ser creditados à análise não da obra de pensamento de
seus autores como um todo, e sim a fragmentos das mesmas, o fato é que a
visão e o modo ocidentais e tradicionais de pensar e pesquisar o direito, sem
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volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
problematizar a relação que articula “objeto teórico” e “objeto real”, conduziram
os constitucionalistas brasileiros investigados a considerar a emergência da
Constituinte e da Constituição brasileiras de forma descontextualizada dos reais
processos políticos, sociais, econômicos e culturais de sua formação. Assim, a
Constituição brasileira foi abordada por Sarmento e Barroso como produto
retórico de raciocínio orientado por preocupação de natureza prática quanto à
solução de conflitos encaminhados à apreciação do judiciário. E o atual estágio
do constitucionalismo brasileiro termina sendo definido pelas mudanças
constitucionais naturalizadas no discurso dos constitucionalistas.
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226
volume
06
i encontro de internacionalização do conpedi
regularização fundiária e as favelas
cariocas. o caso de rio das pedr as
Antonio Renato Cardoso da Cunha1
Cláudia Franco Corrêa 2
Resumo
O presente estudo objetiva analisar alguns pontos históricos que estimularam
e favoreceram o aparecimento das favelas no Rio de Janeiro, bem como, a partir
deste contexto, explicitar sua propagação no espaço urbano carioca até chegar à
Favela de Rio das Pedras. O trabalho empreendido no referido aglomerado de
moradias, o terceiro maior do país, situado no município do Rio de Janeiro (RJ)
procura explicitar e problematizar a implantação de um projeto de regularização
fundiária e urbanização em uma favela com quantitativo populacional tão
significativo, levando em conta que Rio das Pedras possui aproximadamente
80 mil moradores, distribuídos em cerca de 30 mil residências. Trata-se de
um convênio firmado entre a Prefeitura do Município do Rio de Janeiro, uma
empresa privada dona dos terrenos no entorno da favela e o Núcleo de Pesquisa
do qual os autores são integrantes.
Palavras-chave
Direitos Sociais; Regularização Fundiária; Favelas.
Abstract
The study aims to analyze some historical points that encouraged and
facilitated the appearance of favelas in Rio de Janeiro, as well as, from this context,
explain its propagation in Rio’s urban space until you reach the Favela of Rio das
Pedras. The work undertaken in that agglomerate of houses, the third largest in
the country, located in the municipality of Rio de Janeiro (RJ) tries to explain
and problematize the implementation of a project for land regularization and
1 Doutor em Direito UGF/RJ e Mestre em Direito UCAM/RJ.
2 Doutora e Mestre em Direito pela UGF/RJ.
volume
06
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i encontro de internacionalização do conpedi
urbanization in a favela with quantitative population as significant, taking into
account that Rio das Pedras has approximately 80 000 inhabitants, distributed in
approximately 30 million homes. This is an agreement between the Municipality
of Rio de Janeiro, a private company that owns the land surrounding the favela
and the Research Center of which the authors are members
Key words
Social Rights; Land Regularization; Favelas.
1.introdução
A questão urbanística carioca revela nuanças sociais e jurídicas bem interligadas. De maneira especial, no Rio de Janeiro, percebemos contrastes reveladores
de uma lógica de distorção no que tange o acesso ao direito de moradia. São
décadas de desmandos e descuidos no sentido de promover acesso a uma moradia
digna àqueles que não possuem meios próprios de acessá-la.
Como será analisada, essa prática reiterada, permitiu um impacto devastador
no recorte urbanístico em uma das maiores cidades do Brasil e, de maneira
especial, a viabilização ao direito de propriedade também foi preterida a diversos
atores sociais, impedindo-os de experimentar maior segurança jurídica em suas
moradias. A lógica é perversa. Além da ausência de habitações seguras do ponto
de vista arquitetônico, pois estão em desajuste com os padrões de normas edilícias,
há também inexistência de um padrão jurídico que componha a regularização das
moradias, o que reputa também uma inoficialidade, assim, seus endereços não
são reconhecidos formalmente. São abstrações jurídicas ainda que fortemente
materializados socialmente.
Os dados da informalidade habitacional brasileira, traduzidos na formatação
das favelas assustam. São quase onze milhões de pessoas que moram em favelas,
segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (CENSO-IBGE,
2010), órgão estatal de pesquisa do país.
Portando, ainda que contextualmente, percebemos que a questão da
regularização fundiária é urgente e traz em si consistente problematização, seja no
campo jurídico, seja no campo social. Estamos falando de milhares de brasileiros
228
volume
06
i encontro de internacionalização do conpedi
que não possuem habitações seguras e estão alijados de qualquer reconhecimento
oficial de suas moradas.
Neste aspecto, é necessário perceber que, em decorrência da ausência histórica
de políticas públicas voltadas ao atendimento desse acesso, a favela se construiu
como um grande dilema, pois se de um lado se compõe como uma solução
viável de sobrevivência para certos segmentos da sociedade, também é vista como
causadora de inúmeros problemas para a cidade.
Essas contradições não são novas e, ao analisar a trajetória da ocupação
irregular, em especial na cidade do Rio de Janeiro, nota-se que os descuidos
dos agentes públicos, no que tange a uma cidadania igualitária, acabaram por
fomentar tais dilemas, que datam de mais de um século.
Desta forma, a lacunosa atuação estatal contribui sobremaneira para as reações
sociais que visam, sobretudo, à autoinclusão no espaço da cidade. Dessa maneira,
pode-se afirmar que as favelas são, antes de tudo, um esforço de resistência, posto
que raros foram os momentos em que o ente público articulou efetivamente
uma distribuição dos recursos e bens urbanos que visasse a população pobre, em
especial.
Também é fato que o Direito, historicamente, contribuiu para que esse
processo de alijamento fosse mantido, razão pela qual é possível constatar, nos
dias atuais, a presença de um robusto mercado imobiliário dentro das favelas.
Sem opção de inserir-se na estrutura da moradia legal, pois a aquisição do direito
de propriedade lhes é inacessível, os moradores de favelas constroem arranjos
sociais que lhes possibilitem participar de uma estrutura de circulação de riquezas
inoficial, mas que articula suas vidas cotidianas, ainda que diante da ausência do
Estado (CORRÊA, 2012).
Como forma de compreender melhor a importância de tais questões,
optamos por demonstrar um caso concreto, a partir de pesquisa de campo
em uma favela carioca, conhecida como Rio das Pedras, uma das maiores
do Brasil, a fim de trazer ao debate as implicações resultantes na tentativa
de agentes públicos e privados em urbanizar uma favela, o que perpasse
necessariamente na regularização fundiária, posto ser impossível pensar em
urbanização efetiva sem que haja o preenchimento de um pressuposto básico
volume
06
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i encontro de internacionalização do conpedi
que é a regularização das moradias, visto que a respectiva regularização se
mostra parte de um processo maior que é a urbanização em si. Isto significa
dizer que pensar em regularização fundiária é também pensar em um plano
maior de investimento público e, sob certo aspecto, também privado. Nessa
condição, implantar a legalização das moradias, requer antes de tudo,
regularizar os logradouros (ruas), para que haja um endereço legalizado,
algo inexistente nas comunidades faveladas atuais, o que gera infindáveis
transtornos para seus moradores.
Assim, o presente trabalho possui a pretensão de analisar algumas questões
históricas que impulsionaram e favoreceram o aparecimento das favelas no
Rio de Janeiro, bem como, em nível contextual, explicitar sua propagação no
espaço urbano carioca até chegar à Favela de Rio das Pedras, a terceira maior
do país, nosso locus privilegiado de pesquisa, de modo que se possa explicitar e
problematizar a implantação de um projeto de urbanização em uma favela com
contingente populacional tão significativo, levando em conta que Rio das Pedras
possui aproximadamente 80 mil moradores, distribuídos em cerca de 30 mil
residências, com um crescimento vertical, apontado pelos órgãos públicos, como
um dos maiores da cidade. Obviamente, que a implantação de um projeto de
tal porte, adotado em larga escala, engendrará situações inusitadas e complexas.
Nessa ordem, o presente artigo pretende demonstrar os resultados da pesquisa de
campo que se encontra em desenvolvimento e contrastá-los com bases teóricas
jurídicas voltadas para o assunto em destaque.
A importância do tema se revela consistentemente, pois é notório que a questão habitacional está associada à recepção dos direitos de cidadania no Brasil. É
de fácil percepção que há um desajuste entre o que está na lei e o que está na vida.
Desse modo, ainda que a Constituição Federal Brasileira declare que a moradia
se enquadre como um direito social e, portanto, merecedor de uma tutela mais
efetiva por parte do Estado, ainda se constata que milhares de brasileiros estão à
margem da cidadania, neste aspecto, posto a insistente sina de marginalizados
que pesa sobre tais pessoas. Observa ainda que a pesquisa em desenvolvimento
é resultado de uma das atuações de um núcleo de pesquisa existente há 07 anos
na favela em comento, onde diversos pesquisadores do direito tem desenvolvido,
através de pesquisa de campo, análise das diversas questões que se apresentam
230
volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
na seara habitacional em áreas favelizadas do Rio de Janeiro. O projeto mantém
parceria com a FAPERJ3 e a Columbia University4.
2.um breve contexto sobre a história das favelas
cariocas
Neste capítulo pontuaremos algumas nuanças históricas relevantes na
compreensão do fenômeno social e jurídico denominado de favela, como ponto
de partida na análise da importância do tema proposto, pois, há uma inteira
conexão entre o presente e o passado. O breve contexto que se desenvolverá tem
por objetivo constatar que os transtornos atuais são consequências de décadas de
inexpressividade na seara habitacional no que tange a politicas públicas nesse setor,
desfalcando a cidadania de inúmeros brasileiros no acesso ao direito de morar.
É fato que a inexistência de politicas públicas que visassem um cuidado maior
com o negro liberto no Brasil já assinalava que muitos problemas partiriam daí.
Com a decadência da escravidão, a aristocracia se viu obrigada a trocar a casagrande pelos sobrados urbanos, enquanto seus ex-escravos saiam das senzalas e,
por necessidade instalavam-se em moradias precárias e coletivas, também nos
centros urbanos, à procura de empregos formais ou informais (FREYRE, 2009),
sem contar com aqueles que já habitavam a cidade, pois no Rio de Janeiro havia
forte presença de negros, categorizados em escravos, escravos libertos e os que
“viviam sobre si”5. Para se ter uma ideia da quantidade negra na cidade, o censo de
3 Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ.
Projeto Cidadanias Vulneráveis no Estado do Rio de Janeiro: Saúde, Moradia, Educação e
Lazer. Subprojeto: Endereço Legal: a moradia e a cidadania no Rio de Janeiro. Um estudo na
Favela de Rio das Pedras. Edital 19/2012 - Pensa Rio - FAPERJ - PROCESSO NÚMERO
E-26/110.637/2012.
4 A parceria com a Universidade de Columbia ocorre na esfera interdisciplinar através da
interação com o Departamento de epidemiologia da Mailman School of Public Health e
Escola de Direito da Universidade Veiga de Almeida – UVA com o Projeto “A Rio das Pedras
Community Diagnosis”.
5 Espécie de escravos da Corte que viviam longe da casa do senhor, mas prestavam serviços,
mantendo-se, contudo, como objeto de domínio do senhor, fazendo parte de seu patrimônio
pessoal, mas possuíam autorização de “viver por si”, o que significava viver com certa
autonomia, o que possibilitava jornadas de trabalho extras, contribuindo com a vantagem de
constituir numerário suficiente para comprar sua alforria. Para o senhor a vantagem estava
principalmente na diminuição de gastos na manutenção do escravo, sem perder seu poder
dominial.
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i encontro de internacionalização do conpedi
população da corte e da província do Rio de Janeiro de 1821 contabilizou que a
população negra chegava a 60% da população total. Esse contigente desamparado
demandava por habitação, sem que houvesse, por parte do Estado, qualquer
política pública no atendimento de tal necessidade básica, o que permaneceria
por muito tempo, ensejando e contribuindo para a tortuosa trajetória de acesso
por moradias dignas para segmentos mais empobrecidos da população, o que
seria sentido, de modo especial, na cidade do Rio de Janeiro (CORRÊA, 2012).
No final do século XIX, com a ocorrência do fenômeno da multiplicação de
fábricas, o fluxo de migrantes aumentou consideravelmente no Rio de Janeiro.
Entre 1870 e 1890, o cenário carioca contou com aumento populacional de
4,06% ao ano (SILVA, 2005, p. 37).
O perfil mais industrializado que surgiu fez com que algumas casas e sobrados, situados no centro fossem substituídos por lojas, fábricas e prédios de
escritórios. Consequentemente, a necessidade de abastecer o centro da Capital
com serviços públicos que viabilizassem a nova realidade econômica e social da
cidade aparecem fortemente, o que consolidou forte presença de vida comercial,
tornando o Rio de Janeiro o principal centro de circulação de riquezas do país.
Entretanto, essas mudanças deram início a uma séria contradição: se por um
lado a modernidade urbanística se expressava na introdução de serviços públicos
a partir da década de 1850, o que aqueceria a vida comercial, por outro lado, a
concentração do mercado econômico e, portanto, o principal núcleo de trabalho
existente na cidade, tornaria o centro alvo principal na preferência das classes
trabalhadoras para estabelecer suas moradias (CORRÊA, 2012).
Tais feições sociais foram motrizes importantes para desencadear sérias
consequências sociais na cidade, principalmente para aqueles que por razões
econômicas, não puderam ajustar-se aos novos padrões de moradias que surgiam
na cidade. Assim, os negros subempregados ou desempregados que tiveram sua
mão de obra subutilizada ou não utilizada e os migrantes advindos do êxodo rural
pelo declínio da cafeicultura, principalmente no vale do Paraíba, em busca de
trabalho no Rio de Janeiro, ocuparam o centro da capital na busca de trabalho
formal ou informal6, que era apenas encontrado na área central.
6 Os termos formal e informal, serão utilizados comparativamente a jurídico e não jurídico,
no sentido de informal estar concebido por um não tutelamento de normas jurídicas postas,
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i encontro de internacionalização do conpedi
Esse contingente ao engrossar o elenco daqueles que necessitavam de um lugar
barato para estabelecer suas moradias, preferencialmente próximo ao centro,
passaram a ser clientes em potencial dos proprietários privilegiados de prédios ou
terrenos, que viam a possibilidade de considerável lucratividade ao construir ou
implantar em seus prédios ou terrenos as chamadas casas de cômodos (ou casasde-alugar-cômodos ou simplesmente cortiços), definidas como casas subdivididas
em cômodos com lavanderia, banheiro e cozinha de uso comum. Vaz (1984,
p. 30) faz referência a essa modalidade habitacional que surge a partir de 1850:
“Lotes e casas eram encortiçados e transformados em estalagens e casas-decômodos. Apesar de serem objetos arquitetônicos de formas diferentes, são iguais
em sua essência, não apenas por serem indistintamente chamados de cortiços”.
Nesse sentido, afirma Corrêa:
Na ausência de investidas públicas que organizassem o espaço
urbano levando em conta as novas feições da cidade e seus principais
atores sociais, os cortiços se tornaram uma alternativa acessível. A
ausência de qualquer política governamental que executasse acesso
à habitação para as classes trabalhadoras, a escassez de moradias que
contribuía para os altos preços dos alugueis, a reduzida ampliação do
transporte público, que permitiria a expansão da malha urbana em
outros sentidos da cidade; tudo isso tornou as moradias coletivas,
que se situavam no centro, a única forma de moradia alcançável a
considerável parcela da população à época, tornando-se habitação
coletiva típica do Rio oitocentista (2012, p. 61).
A disponibilidade limitada de moradias que abarcasse a população mais
empobrecida permitiu o apressamento do processo de estratificação social, já
presente na cidade no século XIX, consolidando a estrutura formal/informal
encontrada ainda nos dias atuais. Portanto, os cortiços que se validaram como
forma de proximidade de bens urbanos pela população pobre, ao se incluírem na
área privilegiada do centro, sem que isso refletisse um delineamento de fronteiras,
a partir do momento em o poder público a repele, seus moradores veem na subida
aos morros, no entorno do centro da cidade, uma maneira de poder desfrutar,
ainda eu indiretamente, de tais “privilégios”.
bem como relações sociais que , a despeito de estarem na vida cotidiana, não são reconhecidas
pelo Estado como direitos. Nessa mesma ordem: oficial e inoficial.
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Assim, a concepção das moradias populares precárias que eram admitidas na
formatação dos cortiços, mas guardavam certo nível de regularidade formal, porque
ocupavam espaços legais, com a desenfreada política de derrubada que marcou
vários períodos do final do século XIX e início do século XX, passa a representar
oficialmente uma feição de ilegalidade, O que contribuiu, significantemente, para
a transição de um modelo de habitação para uma concepção de área, um local
especificamente reconhecido como tal, sem amparo de legalidade que incidiria
na percepção do fenômeno favela, conduzindo a crer que a lógica empreendida
no processo de extinção dos cortiços foi a mesma que promoveu o processo de
expansão das favelas, razão pela qual se atribui ao cortiço o fato de ser a “semente
da favela” (VAZ, 2002).
Vários autores atribuem à origem do nome “favela” a ocupação do morro da
Providência no Rio de Janeiro. Já em 1897 o dito morro era conhecido como
morro da “Favela”7.
O morro da Providência se revela de considerável importância na historiografia da favela, e em como esta se portou relevante na estruturação do nome
favela como substantivo de conglomerados de moradias pobres, designando toda
e qualquer construção precária situada nos morros. Manifesta-se, igualmente
relevante a comprovação de que ao optar pela manutenção de suas moradias no
centro ainda que precariamente, a população pobre resistiu ao processo de expulsão das áreas centrais, o que levou à mantença das contradições na organização
sócio espacial, apresentando-se, entretanto, de forma diferente a partir do momento em que os cortiços subiram os morros. Dessa forma, as favelas consolidaram-se
como uma solução imediata de preservação da proximidade ao principal núcleo
de trabalho. Assim, a questão habitacional popular passou a ser associada, não
a uma forma de construção, que seria o cortiço, mas a identificar-se como uma
área – a favela (VAZ, 2002).
3. a favela de rio das pedr as – rio de janeiro
Sua história está atrelada ao fim do ciclo econômico local, de produção
açucareira, quando a Baixada de Jacarepaguá se encontrava entrecortada por vá7 Uma pequena árvore da família das leguminosas encontrada no morro da Providência.
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rias fazendas. Até meados da década de 1960, o entorno da Pedra da Panela, de
difícil acesso, apresentava uma modesta ocupação, o que incluía alguns barracos ao
longo do Rio das Pedras, mais próximos à Estrada de Jacarepaguá. Foi justamente
nessa área que se estabeleceu o núcleo inicial da favela, na margem direita do rio,
onde se instalou a primeira rua, denominada Rua Velha8.
Conforme já observado, a favela de Rio das Pedras é apontada como a terceira
maior do Brasil e a segunda do estado do Rio de Janeiro. São quase 100 mil
pessoas morando em uma área de aproximadamente 610.587m², segundo dados
da prefeitura do Rio de Janeiro9. O aglomerado de moradias localiza-se entre
os bairros de Jacarepaguá e Barra da Tijuca, bairros de classe média e alta, o
que viabiliza oportunidade no mercado de trabalho para seus moradores, que
nutrem esses bairros com sua mão de obra, principalmente em shoppings, bares,
restaurantes e residências. Destaca-se ainda que Rio das Pedras possui uma rede
comercial própria, são mais de 4 mil comerciantes que oferecem bens e serviços
que são usufruídos não só pela população local, mas, também pelos moradores
do entorno da favela10. O comércio de Rio das Pedras funciona 24 horas por dia!
De acordo com os dados de 2002 do Instituto Pereira Passos11, o crescimento
é quase dividido ao meio: para cada 100 novos moradores da parte urbanizada
surgiram 86 moradores de favela. Boa parte desse crescimento se deu, e se dá,
pela forma vertical. O crescimento constatado sugere que Rio das Pedras avança
de forma multidirecional; todos os seus “bairros” possuem nível significativo de
aumento de suas proporções, principalmente pela via vertical.
É dentro do território de Rio das Pedras que encontramos o maior crescimento
vertical em favelas no país. A favela cresce para o alto assustadoramente. São
inúmeros prédio de até 10 andares que compõe seu cenário tão peculiar. Essa
8 Nesse sentido também ver BURGOS (2004) e CORRÊA (2012).
9 FONTE: Rede Habitat – Estudo de Caso - coordenada pelo Observatório Ippur/UFRJ-Fase.
10 Em recente censo feito na favela, foram entrevistados cerca de 4 mil comerciantes, o que
demonstra uma dimensão comercial expressiva em termos de circulação econômica. 11 O Instituto Pereira Passos (IPP) é uma autarquia vinculada à Secretaria Municipal de
Desenvolvimento do município do Rio de Janeiro. Dentre suas atribuições destacam-se:
elaboração, planejamento e coordenação das diretrizes estratégicas para o desenvolvimento
econômico; - implantação de projetos estratégicos da prefeitura da cidade do Rio de Janeiro; produção de informações estatísticas, geográficas e cartográficas da cidade do Rio de Janeiro.
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realidade em suas construções permite constatar um intenso mercado imobiliário,
principalmente através do denominado localmente de “direito de laje”12.
Nesse sentido, salienta Corrêa:
A verticalização de moradias se apresenta como fonte de
rendimentos de aluguel para quem empreende a obra, seja o
comprador da casa primitiva ou seu próprio dono. Desse modo,
as várias modalidades em que o “direito de laje” se manifesta
contribuem para a vitalidade do mercado imobiliário local, cujas
transações “contratuais” de compra e venda ou de locação ficam
legitimadas na favela, pois atendem à demanda por moradia e, de
certo modo, permitem a realização do direito de acesso à moradia,
embora tais soluções permaneçam à margem do enquadramento
legal ora disponível (CORRÊA, 2012, p. 145).
Tais nuanças, ainda que contextualmente, levam a perceber que Rio das Pedras
é uma cidade dentro de outra e, a despeito de sua feição urbana maltratada, surge
não apenas como um lugar de moradia, mas, sobretudo, como forma criativa de
articulação de vidas humanas que buscam acessar meios de sobrevivência digna.
A favela possui também como peculiaridade ser conhecida como berço das
milícias que atuam no Rio de Janeiro, que consiste basicamente em grupos que
buscam empoderamento sobre atividades e relações estabelecidas pelos moradores
da favela13. Essas praticas ocorrem de maneira articulada e organizada: existe uma
pessoa responsável por cada área de sua atuação; cada segmento comercial explorado
possui um “coordenador”, seja na cooperativa de transporte, na distribuição
de pontos de TV a cabo, na distribuição de gás de cozinha, no empréstimo de
12 Conforme salienta Corrêa (2012), o “direito de laje” concede nova versão na arquitetura da
favela, configurando moradias verticais como pequenos edifícios, pois o morador que construiu
sua casa sobre uma laje pode vender a laje de cobertura de sua casa a outro comprador, o que
caracteriza mais uma modalidade de transação envolvendo o “direito de laje” do comprador,
que assim tem acesso a sua moradia. Outra modalidade em que se faz presente o “direito
de laje” ocorre quando o comprador de uma casa construída na superfície compromete-se a
construir um prédio com alguns andares, geralmente de 3 ou 4, cujos espaços são dispostos
em quitinetes destinadas à locação de unidades superpostas para moradia de terceiros, exceto
uma delas, que é destinada à moradia do vendedor da casa primitiva.
13 Cabe destacar que o termo empoderamento aqui usado traduz o processo pelo qual as pessoas
assumem o controle de serviços locais, criando e gerindo meios articuladores de domínio
local, inclusive usando o monopólio da força física, posto que o controle estatal encontra-se
ausente de várias atividades e serviços locais.
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dinheiro a juros (denominado de “parte financeira”, segundo um informante), na
permissão de construção, no loteamento do solo, no recolhimento dos “tributos”
cobrados aos comerciantes locais para empreender qualquer atividade ou mesmo
na eliminação de uma pessoa considerada persona non grata (CORRÊA, 2012,
p. 138). Esse poder político consegue administrar o território com mão de ferro
através de um rigoroso controle sobre toda a área, não só impedindo a invasão de
grupos de outras favelas, bem como mantendo pacífica e segura a circulação dos
moradores no espaço público da favela. (BURGOS, 2004).
O paradoxo habita exatamente no fato de que esta variável significa uma
valorização e procura de pessoas interessadas em morar em um ambiente livre
do comércio de drogas e traficantes, mesmo que outras vertentes da cidadania
fiquem em segundo plano.
O estudo de caso em Rio das Pedras deixa claro, que mesmo com a ausência
dos traficantes, no local habitado residem influentes mecanismos de controle da
sociedade, abarcando ainda a dicotomia entre garantir a segurança dos moradores
e ao mesmo tempo isolá-los da polis, em certos aspectos.
Após nosso contato com a favela percebemos que morar neste local significa
para a população uma ponte que interliga o estado de miséria com os serviços
públicos básicos como água, luz, telefone, transporte etc., ainda que oferecidos
com péssima qualidade. Ocorre que nos espaços não ocupados pelo Estado
surgem intermediários, novos atores que estabelecem a conexão com o Poder
Público como as entidades componentes do 3º setor (ONG´S, OSCIPS, O.S.,
Serviços Sociais Autônomos e Associações), ou mesmo o poder paralelo (tráfico
de drogas e as milícias).
Não raro, a Associação de Moradores já se colocou na condição de subordinação da milícia, permanecendo no papel de interlocutor com o poder público,
mas com forte interferência em sua gestão de tal grupo de empoderamento.
Essa realidade é facilmente percebida, em Rio das Pedras, no funcionamento da
Associação de Moradores como base política eleitoral de candidatos indicados
pela milícia ao abrirem espaços para que os candidatos indicados realizem
ações assistencialistas de cunho eleitoreiro, em virtude da facilidade do acesso
no atendimento de demandas pessoais. O resultado não poderia ser outro, nos
períodos eleitorais a prática da venda dos votos permanece vigente.
volume
06
237
i encontro de internacionalização do conpedi
Quanto à regularização fundiária pouco se tem efetivado em Rio das Pedras,
atualmente a prefeitura do Rio de Janeiro estabeleceu um projeto denominado
de POUSO (Posto de Orientação Urbanística e Social) que são postos descentralizados da Prefeitura do Rio de Janeiro, implantados nas comunidades beneficiadas
por programas de urbanização, que no caso de Rio das Pedras, se estabeleceu em
convênio com o núcleo de pesquisa que estão vinculados os pesquisadores autores
do presente artigo.
De modo a explicitar a amplitude do projeto em comento, iremos descrevêlo em capítulo próprio, permitindo uma melhor compreensão da complexidade
que se é viabilizar um processo de regularização fundiária, com toda sua carga de
burocracia e (não) vontade política.
4. rio das pedr as e seu processo de urbanização
Uma das importâncias do projeto POUSO estabelecido em Rio das Pedras,
além do resultado social esperado, se manifesta na oportunidade que se tem dado
a um grupo de pesquisadores do Direito em um processo tão complexo e vultoso
como este.
O Convênio entre o Núcleo de Cidadania de Rio das Pedras com a Prefeitura
do Município do Rio de Janeiro, firmado no ano de 2013 aumentou o desafio do
Projeto inicial. Antes, o objetivo era apenas a legalização dos endereços e talvez
das moradias de Rio das Pedras, agora busca também na formalização de grande
parte da favela com a transformação da mesma em um bairro, composto de todos
os aparelhamentos urbanos que lhe são peculiares.
Na realidade o convênio se dá a três: a Prefeitura, o núcleo de pesquisa e
uma grande empresa privada que é proprietária de áreas de terras situadas no
entorno da favela. A instalação deste posto objetiva uma aproximação da equipe
da Prefeitura à realidade local e a facilitação do trabalho com os pesquisadores do
Núcleo de Pesquisa.
Para o trabalho no Posto inicialmente a Prefeitura cedeu um arquiteto e um
engenheiro da Secretaria Municipal de Urbanismo – SMU, dando início a um
processo gradual de formalização da favela14.
14 Atualmente trabalham no POUSO de Rio das Pedras 4 arquitetos.
238
volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
A partir da transferência dos dados coletados pelos pesquisadores do
Núcleo os agentes da Prefeitura deram início ao processo de regularização dos
endereços objetivando a futura concessão de habite-se aos prédios da favela o
que, posteriormente viabilizaria a transformação de Rio das Pedras em um bairro
formal.
Inicialmente os pesquisadores e agentes da Prefeitura percorreram “in loco”
todas as ruas de Rio das Pedras com o intuito de fazer um levantamento de todas
as edificações dentro dos padrões urbanísticos passíveis de concessão de habitese previstos na Lei Municipal nº 2.818 de 1999 (que declara Rio das Pedras
como área de especial interesse social para fins de urbanização e regularização e
estabelece o padrão para a urbanização da respectiva área).
Trata-se de um projeto que objetiva o endereçamento oficial das ruas da favela
de Rio das Pedras. Tal projeto iniciou com o levantamento de todas as ruas e becos
da comunidade, uma espécie de radiografia territorial, onde os pesquisadores, em
boa parte mestres, doutores e graduandos em direito, levantaram todos os 330
becos e ruas, perfazendo um mapa efetivo da favela. Esse mapa tem sido utilizado
em outros projetos, visto que a Prefeitura não detinha um conhecimento local,
servindo-se do mapa para transitar na favela.
O ponto de partida, portanto, de todo projeto se deu através do mapeamento
da favela. Cabe pontuar que o referido mapeamento levou quase 06 meses, onde
os pesquisadores levantaram os nomes das ruas e becos dados pelos moradores e
identificando-os posteriormente nos mapas.
Nesse contexto, os mapas confeccionados pelo Núcleo estão sendo utilizados
pelos profissionais da Prefeitura para fazer uma mancha do crescimento vertical
da comunidade, estratificando setores que podem ser beneficiados inicialmente
pela Prefeitura com a concessão de habite-se, ou seja, aqueles com as unidades
habitacionais de até dois pavimentos e terraço.
Todavia, a favela em questão apresenta construções mais elevadas com até
dez pavimentos, o que excluiria a maioria das suas construções. Fato que não foi
esquecido pelos pesquisadores e pela Prefeitura cujo convênio inclui o esforço
conjunto para a posterior modificação da lei municipal, que será adaptada as
peculiaridades de Rio das Pedras incluindo as edificações mais altas.
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06
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i encontro de internacionalização do conpedi
O trabalho, ainda em desenvolvimento, dividiu Rio das Pedras em setores, a
partir dos mapas obtidos com o projeto de pesquisa e selecionou a primeira área
de interesse social a ser agraciada com a concessão de habite-se, a área central de
Rio das Pedras.
A utilização dos mapas juntamente com a legislação municipal nº 2.818
de 23 de junho de 1999, anteriormente regulamentada pelo artigo 141 da Lei
Complementar n.º 16, de 4 de junho de 1992, da Câmara Municipal do Rio
de Janeiro15, que dispõe sobre a política urbana do município, institui o plano
diretor decenal da cidade do Rio de Janeiro, e dá outras providências foi revogada
pela Assembleia Carioca e passou a ser regulamentada pela Lei Complementar
nº 111 de 01 de fevereiro de 2011 na Seção IV – Das Áreas de Especial Interesse
Social – AIES nos artigos 205 ao 209.
Segundo a legislação, consideram-se Áreas de Especial Interesse Social – AIES
aquelas especificamente destinadas a programas de urbanização e regularização
fundiária. Tais áreas são regiões favelizadas da municipalidade onde se pode
“adotar padrões diferenciados de exigências urbanísticas e de infraestrutura”.
Nesses espaços, o Poder Executivo Municipal objetiva desenvolver projetos
de regularização urbanística e fundiária respeitando as peculiaridades da região e
seguindo padrões urbanísticos de parcelamento da terra, uso e ocupação do solo.
Segundo Rafael Soares Gonçalves (2009, p. 240)
(...) A autoridade responsável pelo projeto de regularização,
normalmente a prefeitura, deve, primeiramente, delimitar o lugar
a ser regularizado, por meio de estudos topográficos e de fotos
15 Dispõe o artigo 141 localizado na Subseção Única – Das Áreas de Especial Interesse Social Lei Complementar n.º 16, de 4 de junho de 1992 da Câmara Municipal do Rio de Janeiro.
Art. 141 Lei de iniciativa do Poder Executivo delimitará como Área de Especial Interesse
Social os imóveis públicos ou privados necessários à implantação de programas habitacionais
e os ocupados por favelas, por loteamentos irregulares e por conjuntos habitacionais de baixa
renda, conforme previsto no art. 107.
§ 1º A declaração de especial interesse social é condição para a inclusão de determinada área
nos programas previstos no art. 146.
§ 2º A lei estabelecerá padrões especiais de urbanização, parcelamento da terra e uso e
ocupação do solo nas áreas declaradas de especial interesse social.
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volume
06
i encontro de internacionalização do conpedi
aéreas, assim como fazer um recenseamento das construções
e dos habitantes da favela. É necessário, igualmente, identificar
os proprietários das glebas onde se encontra a favela que será
regularizada, realizando um detalhado estudo fundiário.
Tomando como parâmetro o Decreto nº 25.777 de 16 de setembro de
2005 que estabeleceu as normas de uso e ocupação da Comunidade do Dique,
urbanizada pelo Programa Favela Bairro16 em 1997, percebe-se que para se
efetivar um projeto de regularização fundiária primeiramente se faz necessária
uma planta detalhada do local, além da coleta minuciosa de informações com
o preenchimento de um formulário para a concessão de habite-se contendo o
local da obra, a identificação do responsável pelo imóvel, as características da
obra e um quadro de áreas feito por um técnico. Além do preenchimento do
formulário, o responsável pelo imóvel deve assinar um termo de responsabilidade
civil por eventuais danos e indenizações de qualquer natureza em decorrência de
atos relacionados com a execução de obras no imóvel, onde se verifica se o imóvel
possui ou não luz e força, esgoto, água potável, gás canalizado e telefone.
Para a consecução das referidas informações, exemplificadas acima com o caso
da Comunidade do Dique, os funcionários da Prefeitura (um arquiteto e um
engenheiro), como foi acordado inicialmente, começaram a utilizar os mapas
cedidos pelo Núcleo de Pesquisa para preencher os requisitos legais e iniciar o
projeto de regularização fundiária de Rio das Pedras.
Esse processo, embasado no respeito às peculiaridades locais inicialmente
consistiu na familiarização dos funcionários da Prefeitura com a favela através
de incursões regulares, primeiramente com os pesquisadores do Núcleo (que
conhecem bem a favela em questão) e, posteriormente sozinhos.
16 O Programa Favela Bairro foi iniciado em 1994 pela Prefeitura do Rio de Janeiro representando
uma mudança de paradigma na política da municipalidade no tratamento das favelas, pois,
ao invés de removê-las começou a urbanizá-las. O programa tinha como objetivo integrar a
favela à cidade e foi financiado em parte pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento –
BID, que ovacionou os resultados do trabalho ao afirmar que o mesmo foi “o mais importante
programa de inclusão de comunidades carentes do mundo”. Além de obras voltadas para
urbanização e estruturação das favelas, o programa objetivava também a regularização
na prestação de serviços, como o postal, a construção de equipamentos públicos, como
maternidades, e a promoção de políticas sociais.
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i encontro de internacionalização do conpedi
Após a familiarização, o engenheiro e o arquiteto da Prefeitura fizeram um
mapa de densidade vertical dos prédios do centro da favela. Separando assim,
os prédios que irão ser beneficiados com a concessão do habite-se dos que não
receberão ou receberão posteriormente após a modificação da lei.
Quanto à legalização dos endereços de Rio das Pedras, esta é uma parte do
projeto que corre em paralelo, pois verificou–se que a maioria dos logradouros de
Rio das Pedras possui nomes iguais aos já existentes em outras ruas do Município
e a legislação carioca não permite nomes iguais para ruas diferentes.
As ações não podem ser impostas pela administração pública.
Devem ser pactuadas com os moradores, envolvendo a população
nas principais decisões, em uma relação de confiança, e não de
convencimento, tendo em vista os benefícios das intervenções
urbanísticas e das melhorias que a Regularização Fundiária trará
em prol dessa comunidade. (BARROS, 2007, p. 15)
Dessa forma, será necessária a modificação de quase a totalidade dos nomes
das ruas do aglomerado o que segundo a visão dos pesquisadores deve ser feito
da maneira menos invasiva possível com a necessária participação popular. Um
processo não invasivo e legitimado pela população que ainda está em andamento.
Neste aspecto, a participação do núcleo de pesquisa tem atuando em censo
dos moradores, de modo a colher dados que possam instruir melhor o processo
de regularização. Já foram entrevistados mais de 8 mil moradores (residências).
A meta é entrevistar 25 mil moradores (residências). Muito mais que uma
pesquisa quantitativa, o norte da pesquisa é também qualificar os dados, pois essa
contribuição se mostra significante na elaboração de estratégias para desenvolver
as parcerias que visam a urbanização geral da favela.
Por fim, o presente artigo quis, ainda que contextualmente, explicitar quanto
a possibilidade de efetivar-se melhorias em áreas populacionais carentes, através
de parcerias públicos privadas em sentido amplo.
5. objetivo da regularização fundiária
A Regularização Fundiária tem como objetivo primordial dar segurança à
posse daqueles que habitam os assentamentos informais, se consubstanciando
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volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
como um instrumento de acesso à cidadania urbana. Através da formalização
das áreas informais dá-se o primeiro passo em direção à integração do cidadão,
em estado de precariedade jurídica, ao ambiente urbano formal e aos direitos
políticos, civis e sociais advindos da sua inclusão na sociedade.
Estes cidadãos, devido à informalidade da região onde moram, não conseguem
exercer a cidadania na sua plenitude e não conseguem exercer os seus direitos
políticos, civis e sociais integralmente, divergindo do conceito de cidadão pleno.
(CARVALHO, 1999).
Para que a regularização fundiária seja possível é necessário obter um
conhecimento mais aprofundado do local, da sua população, necessidades,
infraestrutura etc., sendo imprescindível a construção de um Projeto de
Regularização Fundiária. Este plano deve ser construído tendo como base o
conhecimento das peculiaridades do local, obtido através de pesquisas elaboradas
em conjunto com a população.
Nesse contexto, os interesses dos moradores do local são levados em conta
através da sua integração ao processo, com o intuito de legitimar as ações
necessárias, pois o projeto visa criar uma consciência entre os moradores para
a necessidade de pertencimento local, com o intuito de criação de vínculos que
propiciem o desenvolvimento sustentável (BARROS, 2007).
A elaboração de um plano eficiente é condição essencial para que o projeto
seja coerente com a realidade local e identificado como uma conquista de
todos os moradores, afastando o sentimento normalmente associado com as
intervenções estatais em regiões informais, de imposição e coação do Estado
em face dos moradores. Para consecução deste objetivo torna-se interessante a
eleição de representantes comunitários que ajudem na deliberação de questões
fundamentais envolvendo a intervenção, como por exemplo, a mudança do nome
de ruas, remoção de casas em área de risco e o local de reassentamento das famílias
atingidas, dentre outras.
Desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 existe a
preocupação com o Direito à Moradia digna das pessoas, conforme previsto em
seu artigo 25:
Artigo 25, parágrafo 1º - Todo ser humano tem direito a um padrão
de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar,
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06
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i encontro de internacionalização do conpedi
inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e
os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de
desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de
perda dos meios de subsistência fora de seu controle. (grifo nosso)
Com o passar do tempo, a ONU verificou a necessidade de dar mais atenção
aos assentamentos humanos e promoveu em Vancouver (1976) uma Conferência
das Nações Unidas especificamente voltada a esse tema, denominada Habitat I.
Essa Conferência criou um órgão encarregado de harmonizar atividades dentro
do sistema das nações unidas. Tal ação visava à facilitação do intercâmbio nas
discussões sobre moradia pelo mundo, além propiciar debates sobre o tema.
A Convenção ONU HABITAT e o Relatório Global sobre Assentamentos
Humanos de 2011 indicam que as maiores taxas de população urbana se
encontram em países com baixo índice de urbanização (GIRALDO; GARCIA;
FERRARI; BATEMAN, 2009, p.348). Essa controvérsia agrava a situação dos
pobres que habitam esses locais e o estudo da ONU aponta a gravidade da
situação e possíveis soluções (políticas públicas) que os Estados-Membros podem
adotar para melhorar as condições dos cidadãos urbanos.
Dessa forma, a urbanização fornece as pessoas que moram em locais dotados
de baixo índice de urbanização, infraestrutura básica e necessária à vida urbana.
Esses cidadãos em sua maioria são pessoas pobres, pois os locais mais bem
estruturados são muito caros e inacessíveis a maioria da população.
A pesquisa realizada em Rio das Pedras verificou que as intervenções
estatais na favela nem sempre melhoram os serviços oferecidos à população.
Recentemente a Prefeitura do Rio de Janeiro proibiu a circulação de vans
no local, antes considerado uma referência em transporte alternativo, com
linhas diretas para diversos bairros na Zona Sul, Norte e Oeste da Cidade.
A alteração depreciou o serviço de transporte para os seus moradores que
agora contam apenas com os ônibus, demorados, em número insuficiente e
abarrotados de gente.
Considerando que a maioria das pessoas que habitam no aglomerado trabalha,
estuda e faz uso de serviços essenciais em outros lugares, a medida aumentou o
tempo de deslocamento na cidade. A atitude da Prefeitura ao invés de aumentar
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volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
as opções de transporte reduziu e dilapidou uma alternativa organizada que
atendia as demandas locais. Mais uma vez vemos o poder público na “contramão”
das políticas sociais propostas pela ONU, ações que deveriam ser voltadas para
implantação de projetos de mobilidade urbana sustentável.
Além dos problemas decorrentes da intervenção Estatal, a sua omissão também gera problemas. Durante a pesquisa em Rio das Pedras, verificamos que
alterações em nomes de ruas, atribuição que deveria ser do Estado, são promovidas
por líderes locais. Fato que chamou a atenção dos pesquisadores durante uma das
incursões na favela foi a divergência entre os moradores ao informarem o nome
das ruas onde moram. Tal incongruência, segundo um dos entrevistados, era
resultado de uma ação deliberada de um pastor evangélico que unilateralmente
substituiu as denominações originais por nomes de personagens bíblicos. Segundo
um morador, a Rua XXII havia sido alterada para Rua Abraão, fato que provocava
vários problemas aos moradores e no próprio desenvolvimento da pesquisa, pois
para consecução de um levantamento territorial é necessário o nome correto dos
logradouros.
Exemplos como esse, refletem a real necessidade de intervenção do poder
público que deverá, por meio de um plano de regularização fundiária, identificar
os logradouros públicos e seus respectivos lançamentos oficiais. É preciso mudar a
mentalidade estatal de cumprir estritamente o que está na lei ao intentar formalizar
os aglomerados habitacionais impondo soluções pré-moldadas, criando estruturas
voláteis que permitam a participação popular sem a vinculação de ações típicas
do coronelismo das ditas autoridades locais, como no caso do Pastor mencionado
acima.
Na elaboração do plano, normalmente dividido em três fases, que devem ter
ampla participação popular (diagnóstico, adequação urbanística e legalização
jurídica), busca-se integrar a região da ocupação informal já consolidada à cidade
formal e assegurar aos seus moradores a função social e a segurança das suas posses.
Permitir o acesso para bens e serviços constitui um elemento de democratização
das relações sociais. Estamos diante de uma previsão constitucional que estimula a
garantia do Direito de moradia, função social da propriedade, da posse, e garante
melhorias na qualidade de vida do cidadão.
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i encontro de internacionalização do conpedi
6.conclusões
Como constatado as políticas públicas desenvolvidas ao longo dos anos nestas
regiões é praticamente inexpressiva. As poucas ações promovidas são sempre
motivadas por fins eleitoreiros. Por outro lado a maioria dos moradores dessas
localidades são de diversas regiões do país, indivíduos que buscam nos centros
urbanos melhorias na sua condição de vida.
Sem o auxílio de organismos estatais, nosso trabalho partiu de uma iniciativa
científica, dotada de interesses empíricos, que pudesse demonstrar as constantes
violações aos direitos sociais que ocorrem no Rio de Janeiro nos dias atuais.
Nossa pesquisa busca traçar uma radiografia real do terreno, objetivando
explicitar que o crescimento desordenado na região não possui nenhuma
intervenção real do Estado. Somente agora o material desenvolvido pelos alunos
e professores do núcleo de pesquisa estão sendo utilizados pelo Município,
que pretende promover inicialmente a concessão de habite-se para as áreas já
pavimentadas.
Como pode ser percebido o trabalho para se regularizar e urbanizar áreas
favelizadas demanda muito tempo e esforço. Seu início ocorre no campo
com a identificação da área irregular e o levantamento de seu território.
Concomitantemente é necessário coletar dados que ajudem a caracterizar o
perfil socioeconômico dos moradores e da estrutura da favela (pavimentação,
saneamento básico, postos de saúde, escolas, áreas de lazer, coleta de lixo, serviços
básicos). Juntos, esses dados possibilitam uma avaliação da estrutura genérica da
favela e permitem aos pesquisadores direcionar as ações de regularização fundiária
sempre iniciando pelas áreas mais facilmente regularizáveis, como é o caso do
Centro de Rio das Pedras.
Percebemos desta forma, que as poucas mudanças sociais ocorridas concederam aos moradores destas áreas o acesso aos serviços públicos básicos como
saúde, educação e transporte. No entanto, não são suficientes para garantir diminuição das suas diferenças em relação aos demais habitantes das áreas já legalizadas.
A experiência demonstra que prosseguimos buscando alcançar o atendimento
da principal finalidade da Administração Pública, denominada Interesse Público.
No entanto, a omissão estatal fora dos períodos eleitorais obstaculiza a efetivação
de medidas saneadoras na questão fundiária dos aglomerados subnormais.
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i encontro de internacionalização do conpedi
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248
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i encontro de internacionalização do conpedi
solidarismo internacional e
globalização sustentável: análise da
viabilidade do intercâmbio acadêmico
na educação jurídica dos alunos da
universidade de palermo (itália) na
universidade de fortaleza (br asil)
Dayse Braga Martins1
Randal Martins Pompeu 2
Resumo
O artigo tem por fim analisar a viabilidade do intercâmbio na educação
jurídica, com enfoque na sustentabilidade entre crescimento econômico e
desenvolvimento humano, pautado no solidarismo internacional de cooperação
entre as nações. Para tanto, abordam-se temas como transnacionalidade do
direito, sustentabilidade e solidarismo necessário entre as nações no contexto da
globalização. Este artigo é fruto de pesquisa do tipo bibliográfica e documental, de
abordagem qualitativa com fins descritivos e exploratórios, consubstanciados pelo
estudo do caso do intercâmbio de alunos dos cursos de Direito da Universidade
de Palermo, na Itália, e da Universidade de Fortaleza, no Brasil. Neste sentido,
conclui-se que o fenômeno da globalização econômica não pode ter um fim em
1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade de
Fortaleza – Unifor (2013). Possui mestrado em Direito Constitucional (2003) e graduação
em Direito (1999), ambos pela Unifor. É professora assistente do Curso de Direito do Centro
de Ciências Jurídicas e da Pós-Graduação lato sensu da Unifor. Exerceu atividade de gestão
acadêmica, pelo mandato de dois anos cada uma, como Supervisora do Escritório de Prática
Jurídica, Assessora Pedagógica do Centro de Ciências Jurídicas e Coordenadora do Curso de
Direito, todos na Unifor, do ano de 2006 a 2012, respectivamente. Pesquisadora do grupo de
pesquisa “Relações Econômicas, Políticas e Jurídicas na América Latina”, da linha de pesquisa
“Educação Jurídica na América Latina”, cadastrados na plataforma do grupo do CNPq, sob a
coordenação e orientação da professora doutora Gina Vidal Marcílio Pompeu.
2 Doutor em Gestão pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (Utad), mestre em
Informática Aplicada pela Universidade de Fortaleza (Unifor), especialista pela Specialization
Course for Officers and Managers of Foreign Hydraulic Companies, na qualidade de
bolsista pelo Governo da Itália, e graduado em Engenharia Civil. Vice-reitor de Extensão e
Comunidade Universitária e professor do Programa de Pós-Graduação em Administração de
Empresas da Unifor.
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si mesmo, isto é, deve pautar-se na sustentabilidade social e econômica. Entendese como solidarismo a possibilidade de concretização dos interesses individuais
sem olvidar os interesses do outro, tanto no âmbito nacional como entre nações.
Identificou-se, por meio da análise do questionário aplicado aos referidos alunos,
que, mesmo com a diferença entre os ordenamentos jurídicos brasileiro e italiano,
esta experiência de intercâmbio ampliou os horizontes pessoais e profissionais do
discente ao fazê-los refletir sobre as ideias de justiça, solidariedade e cidadania,
o que, por sua vez, fez chegar ao resultado positivo do intercâmbio acadêmico,
que demonstrou ser um importante instrumento de sustentabilidade social e
econômica no contexto da globalização.
Palavras-chave
Solidarismo Internacional; Globalização; Sustentabilidade; Educação Jurídica; Intercâmbio Acadêmico.
Resumen
Esta investigación objetiva analizar la viabilidad del intercambio en la
educación jurídica, con énfasis en la sustentabilidad entre crecimiento económico
y desarrollo humano, centrado en el solidarismo internacional de cooperación entre
las naciones. Para tanto, se abordan temas como transnacionalidad del derecho,
sustentabilidad y solidarismo necesario entre las naciones bajo el contexto de la
globalización. Este trabajo resulta de investigación bibliográfica y documental,
de abordaje cualitativo con fines descriptivos y exploratorios, consubstanciados
por el estudio de caso del intercambio de alumnos de los cursos de Derecho de la
Universidad de Palermo, en Italia, y de la Universidad de Fortaleza, en Brasil. Se
concluye que el fenómeno de la globalización económica no puede tener fin en sí
misma, o sea, se debe guiar por la sustentabilidad social y económica. Se entiende
como solidarismo la posibilidad de concretización de los intereses individuales sin
olvidar los intereses del otro, tanto en el ámbito nacional como entre naciones.
Se ha identificado, a través de la análisis del cuestionario aplicado a los referidos
alumnos, que, aunque haya diferencia entre los ordenamientos jurídicos brasileiro
e italiano, esta experiencia de intercambio amplió los horizontes personales y
profesionales del discente al hacerlo reflexionar sobre las ideas de justicia,
solidaridad y ciudadanía, lo que, por su vez, hizo llegar al resultado positivo del
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intercambio académico, que ha demostrado ser un importante instrumento de
sustentabilidad social y económica bajo el contexto de la globalización.
Palabras clave
Solidarismo; Globalización; Sustentabilidad; Educación Jurídica; Intercambio Académico.
1.introdução
A globalização representa um fenômeno marcado pela otimização do lucro
da produção, por meio da exploração de mão de obra, matéria-prima, incentivos
fiscais e creditícios de cada local. Esta política econômica resultou no incremento
cada vez maior da tecnologia, o que, por sua vez, contrasta com a escassez da mão
de obra capacitada no Brasil.
Tal fato é resultado da velocidade da oferta de emprego das multinacionais.
Ritmo que não foi acompanhado pela oferta de educação formal, em especial
da educação superior. O Brasil, em sétimo lugar no ranking das dez maiores
economias do mundo (PNUD, 2013), necessita, é claro, de capital humano
para atender a esse crescimento econômico do mercado produtivo. Entretanto,
encontra-se atualmente em penúltimo lugar no ranking educacional (TERRA,
2013): “O Brasil ficou na penúltima colocação entre 21 nações em um índice
sobre a valorização dos professores divulgado nesta quinta-feira pela fundação
internacional Varkey Gems, sediada em Londres. O País está à frente apenas de
Israel no status dado aos seus educadores”.
É neste contexto de contradições internas do Brasil e sua relação não menos
díspare com outros países que será estudada a viabilidade do intercâmbio
acadêmico nos cursos de Direito. Para o desenvolvimento deste estudo,
desenvolveu-se pesquisa do tipo bibliográfico com análise de autores clássicos e
contemporâneos, e dos normativos inerentes ao assunto. Trata-se de pesquisa de
abordagem qualitativa com fins descritivos e exploratórios, visando investigar,
explicar e analisar os dados empíricos diagnosticados no questionário aplicado aos
alunos do curso de Direito de intercâmbio acadêmico Itália/Brasil, sob o prisma
da sustentabilidade e do solidarismo internacional.
volume
06
251
i encontro de internacionalização do conpedi
A pesquisa fundamentou-se na análise da Educação Jurídica, que é regida
pela Resolução CNE/CES nº 9, de 29 de setembro de 2004, que instituiu as
diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em Direito. O Conselho
Nacional de Educação (CNE) é o órgão colegiado integrante do Ministério da
Educação, instituído pela Lei nº 9.131, de 25 de novembro de 1995, com a
função de exercer atribuições normativas, deliberativas e de assessoramento ao
Ministro da Educação.
Após o estudo da educação jurídica no contexto da globalização, abordou-se a
necessária sustentabilidade entre o crescimento econômico e o desenvolvimento
humano por meio do solidarismo internacional, que tem como um dos
mecanismos o intercâmbio acadêmico, viável inclusive entre alunos dos cursos de
Direito, mesmo diante da diferença dos ordenamentos jurídicos.
2.a globalização e seus efeitos nas relações econômicas e sociais
O fenômeno da globalização caracteriza-se pela mundialização das empresas
por meio da produção internacional, que otimizou o lucro da produção com
a exploração de mão de obra, matéria prima, incentivos fiscais e creditícios de
cada local. Para Costa (2008), a globalização pode ser dividida em globalização
produtiva e globalização financeira, sendo a primeira referente ao processo de
produção, que por sua vez resulta na segunda, fomentada pela hegemonia do
sistema econômico, consolidada, por quatro fenômenos políticos e econômicos,
ocorridos a partir da década de 1970:
a) o fim dos Acordos de Bretton Woods (1930) nos EUA, que deixou de
indexar o câmbio do dólar ao ouro e passou à taxa de câmbio flutuante;
b) a crise do Welfare State e a contestação dos postulados keynesianos;
c) a política de aumento da taxa de juros para a estabilidade monetária,
que passou a ser um instrumento regulador da economia mundial (final
da década de 1970), representada pela política dos governos de Reagan
e Thatcher;
d)a política da desregulamentação da economia e da liberalização dos
mercados, representada pela política monetarista-neoliberal.
252
volume
06
i encontro de internacionalização do conpedi
O autor identifica quatro correntes sobre a interpretação do fenômeno da
globalização, filiando-se à última, que caracteriza a globalização como um
fenômeno contemporâneo e imperialista, mundializado e dominado pelos países
centrais (COSTA, 2008, p. 41):
1) os apologistas da globalização, para os quais este fenômeno
significa a redenção da humanidade e a retomada dos postulados
naturais da economia, interrompidos após a Segunda Guerra
Mundial (FMI; Banco Mundial; OMC);
2) aqueles que negam a globalização, afirmando tratar-se
não só de um mito, mas principalmente de uma forma que as
transnacionais encontraram para ampliar o domínio dos mercados
(Hirst; Thompson, 1998);
3) aqueles que afirmam ser a globalização um fenômeno
antigo, que vem desde os tempos das grandes navegações, dos
descobrimentos, sendo que alguns articulistas dessa corrente
creditam também a globalização ao início do sistema capitalista
(Petras, 1997; Amin, 2000);
4) e há ainda os que afirmam que a globalização é um fenômeno
do capitalismo contemporâneo e representa uma nova fase do
imperialismo, com a qual nos somamos. [grifos nosso]
Por mais que a globalização tenha suas raízes nos fatores econômicos de
produção, ou seja, na própria economia produtiva e financeira, seus efeitos
não ficam somente no âmbito da economia, atingem também as mais íntimas
relações sociais, já que o indivíduo faz parte do fator de produção e consumo
da sistemática de mercado. A globalização influenciou o aumentou da
concorrência e da produtividade e o contexto das novas tecnologias nos mais
diversos ramos das ciências, com destaque à biologia e à ciência da comunicação,
o que resultou em um mercado cada vez mais especializado. Obviamente, com
o incremento do mercado, sugiram inúmeras oportunidades e vantagens de
oferta de emprego.
A despeito de a lógica da globalização ser, a priori, a de mais oportunidades
de emprego, mais geração de emprego e renda e menos desigualdade social, a
realidade é outra. Tal qual ocorre no Brasil, persistem as desigualdades sociais, os
subempregos e os problemas decorrentes da seca no Nordeste. No contexto de um
volume
06
253
i encontro de internacionalização do conpedi
Estado que apresenta características liberais e práticas políticas sociais afirmativas,
o que se observa e se questiona é a incompatibilidade entre crescimento econômico e desenvolvimento social.
Assevera Bercovici (2006), ao abordar a crise da política econômica, que
não se pode pensar em economia política sem analisar as relações sociais ou os
conflitos sociais e sem estudar a historicidade dos fatos. Destaca a necessidade de
uma política econômica estrutural (social/de base), além da política econômica
conjuntural (produtiva e financeira). Diante da característica de Estado em
desenvolvimento, a Constituição Federal dirigente é necessária para que o
Estado encampe o projeto de desenvolvimento socioeconômico para satisfazer
as necessidades sociais e superar o subdesenvolvimento (BERCOVICI, 2006,
p. 582):
A constituição dirigente brasileira de 1988, portanto, faz sentido
enquanto projeto emancipatório, que inclui expressamente, no
texto constitucional, as tarefas que o povo brasileiro entende como
absolutamente necessárias para a superação do subdesenvolvimento
e para a conclusão da Nação, e que não foram concluídas. Enquanto
projeto nacional e como denúncia desta não-realização dos anseios
da soberania popular no Brasil, ainda faz muito sentido falar em
constituição dirigente.
Para a superação da crise conjuntural que acompanha o Brasil desde sempre,
deve ser pensada uma política econômica adequada à realidade brasileira,
compatibilizando-se os projetos de desenvolvimento econômico com o
desenvolvimento social, ou seja, a implementação de uma política econômica
conjuntural e estrutural, o que caracteriza a Constituição de 1988 como uma
constituição dirigente: estatal e social (BERCOVICI, 2006), ou ainda um Estado
regulador (POMPEU, 2012).
De acordo com os dados do Atlas Brasil 2013, no ranking do Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH), criado em 1990 e desde 1993 utilizado
no relatório anual do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD), o Brasil encontra-se em 85º lugar no ranking do IDH global de 2012,
com a pontuação de 0,730, de 0 a 1 (PNUD, 2013), com a seguinte classificação
no Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM):
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06
i encontro de internacionalização do conpedi
quadro 1: atlas br asil 2013 – r anking idhm 2010
POSIÇÃO
ESTADO
IDHM
IDHM
Renda
IDHM
Longevidade
IDHM
Educação
1º
Distrito Federal 0,824
0,863
0,873
0,742
17º
Ceará
0,682
0,651
0,793
0,615
27º
(último)
Alagoas
0,631
0,641
0,755
0,520
Fonte: Elaborado pelos autores do artigo. Adaptado de: PNUD, 2013.
Mesmo o Brasil estando em 85º lugar, entre os 188 Estados no ranking do
Índice de Desenvolvimento Humano, ocupa a 7ª posição entre as dez maiores
economias do mundo, com base no Produto Interno Bruto (PIB) do último
trimestre de 2012. Diante desses indicadores, reforça-se a máxima de que o Brasil
é um país de contradições. Entre os indicadores do IDHM (renda, longevidade
e educação), o que tem maior déficit é o da educação. Ressalte-se que o IDH
foi desenvolvido em 1990 pelos economistas Mahbub ul Haq e Amartya Sen
(PNUD, 2013).
Diante dos dados aqui descritos, observa-se que a educação deve ser sim posta
em pauta como política pública emergencial. É neste sentido que o governo federal
vem desenvolvendo políticas com metas de aumento das taxas educacionais tanto
na educação infantil e fundamental como no ensino médio, educação profissional
e tecnológica e superior. Essas políticas constam do Plano Nacional de Educação
de 2011, Projeto de Lei que tramita no Congresso Nacional (PNE, 2011), que
traz em seus dados que o investimento público em educação total em relação ao
PIB aumentou do ano de 2000, com 4,7 para 6,1 no ano de 2011, o que decerto
não vem sendo suficiente para elevar o Brasil no ranking do IDH e formar
cidadãos ativos e conscientes de seus direitos e de suas obrigações.
O programa nacional intitulado Mais Médicos, instituído pela Medida
Provisória do Poder Executivo nº 621 de 8 de julho de 2013 (BRASIL, 2013),
demonstra formalmente a necessidade do investimento na educação superior.
Trata-se de uma medida para convocar médicos brasileiros e estrangeiros para
trabalhar na atenção básica de municípios com elevado grau de vulnerabilidade
social. Faz-se uma ressalva a este programa quanto a sua transitoriedade. Essa é
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i encontro de internacionalização do conpedi
uma política emergencial e paliativa, pois o que realmente resolveria o problema
do déficit de mão de obra qualificada nessa área é o aumento da oferta de cursos
de graduação em medicina. E mais uma vez esbarramos na necessidade do
incremento da educação superior.
É neste cenário em que o Brasil se estabelece como a sétima potência econômica do mundo, mas com uma elevada dívida social, que se analisa o solidarismo e a responsabilidade social dos indivíduos, de maneira transfronteiriça,
como requisitos de sustentabilidade deste modelo de globalização econômica
capitalista.
3.solidarismo como pressuposto par a o desenvolvimento sustentável
Diante do contexto da globalização mundial, pautada na hegemonia da razão
econômica capitalista, que, sem dúvida, incrementa o crescimento econômico,
mas ignora o desenvolvimento humano, é que se verifica a necessidade de um
projeto de relações internacionais no âmbito educacional, respaldado em políticas
de solidarismo e responsabilidade social.
De acordo com a teoria do solidarismo defendida por Senise Lisboa (2012),
que estuda o solidarismo nos âmbitos internacional, constitucional e privado, não
se pode interpretar/aplicar o direito de liberdade ou os direitos sociais de forma
isolada e absoluta. O direito tem unidade e deve pautar-se em seus princípios
fundamentais da liberdade e da igualdade de forma solidária. O solidarismo
pressupõe uma liberdade solidária e uma igualdade solidária. A solidariedade
fundamenta-se no bem comum, no respeito ao outro. A teoria do solidarismo
vem, portanto, propor uma interpretação de ambos os fundamentos dos direito –
liberdade e igualdade – com base no solidarismo entre os indivíduos e os Estados
nação (LISBOA, 2012).
O solidarismo entre Estados está albergado na teoria do solidarismo
internacional, ora objeto de estudado. Esta teoria adequa-se perfeitamente às
incoerências resultantes da globalização econômica. Segundo o autor citado, Lisboa (2012), o solidarismo internacional é uma doutrina pautada na pacificação
social, com fundamento em uma sociedade globalizada, com seus valores conduzidos para o desenvolvimento da dignidade das pessoas, visando ao bem comum.
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i encontro de internacionalização do conpedi
Não há como olvidar o problema da desigualdade social e da pobreza no
mundo. Para minimizar estes problemas no âmbito internacional, o solidarismo
internacional preceitua a necessidade de cooperação entre as nações, com via ao
combate à pobreza, por meio do incremento do pleno emprego, da educação,
da saúde, etc. Tais preceitos têm previsão no Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, assinado em 1966, quando da XXI Assembleia
Geral das Nações Unidas, que consagra os direitos já então estabelecidos
na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, ao definir a
responsabilização internacional, ou seja, garantia a estes direitos até então sem
força normativa (BALERA; SILVEIRA, 2013).
Além dos documentos citados, o solidarismo é fundamento do Direito
Humano ao Desenvolvimento, que historicamente teve seu marco no período
de descolonização da década de 1960, e depois consubstanciado na Declaração
do Direito ao Desenvolvimento das Nações Unidas em 1986 e, depois prevista
na Conferência de Viena sobre Direitos Humanos de 1993. No ordenamento
jurídico brasileiro, a Constituição alberga o direito ao desenvolvimento como
direito fundamental inalienável, fundamento da República Federativa do Brasil,
princípio da ordem econômica, política e social (GRAU, 1990).
O direito ao desenvolvimento passou, portanto, por várias interpretações ao
longo da história, tanto no âmbito nacional como internacional. Vindo a ter a
sustentabilidade como pressuposto, notadamente pela Comissão Mundial sobre
Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhecida como Comissão Brundtland, em
1987, que depois se consolidou de maneira mais clara e definida na Conferência
na Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada em 1992,
no Rio de Janeiro. A definição de desenvolvimento sustentável no Relatório
Brundtland (RIO+20, 2014) reproduz o real significado do termo, ao definir que
desenvolvimento destina-se à satisfação das necessidades das presentes e futuras
gerações, incluindo-se a satisfação do desenvolvimento social e econômico.
Vê-se claramente que o desenvolvimento sustentável estabelecido no âmbito
do debate ambientalista vai além das questões restritamente ambientais,
albergando a sustentabilidade social, econômica, humana e cultural. Quanto à
sustentabilidade cultural, a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural
equipara a “diversidade cultural” à “biodiversidade”, o que por sua vez é tema
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257
i encontro de internacionalização do conpedi
central dos efeitos da globalização discutida no presente trabalho, intitulado
de aculturação. Aculturação é um processo de intercâmbio de valores, de
forma construtiva, sem acarretar a dominação e destruição de culturas, ou seja,
garantindo o multiculturalismo, mesmo diante da suposta hegemonia econômica capitalista globalizada.
O filósofo marxista Mészáros, húngaro formado pela Universidade de
Budapeste, seguidor de Lukács, professor da Universidade de Sussex, em sua obra
“A educação para além do capital” (2008), define o papel da educação como
libertadora. Libertadora da situação de opressão do trabalhador, imposta pela
globalização capitalista. Defende a revolução por meio da educação. Somente
pessoas educadas, com mentes abertas a reagir contra a lógica da dominação de
classes, poderia oferecer concretamente a libertação para todos. A educação para
Mészáros deve fomentar a consciência do papel do indivíduo na dimensão do
individual com o social, que denomina de “reciprocidade mutuamente benéfica”
(MÉSZÁROS, 2008, p. 97). E vê-se o solidarismo internacional em sua teoria,
quando afirma que:
[...] podemos perceber muito claramente a importância seminal
da educação – explicitada na forma de reciprocidade mutuamente
benéfica entre os indivíduos particulares e sua sociedade – na
relação com a mudança fundamental necessária para transformar as
práticas econômicas ora dominantes em um tipo qualitativamente
diferente (MÉSZÁROS, 2008, p. 97).
Acreditar que a ignorância, que a falta de educação cidadã, com
desenvolvimento de mentes acríticas, vai sustentar por muito tempo a lógica
perversa do crescimento econômico a qualquer custo é um erro. No contexto da
globalização também da informação, que tanto facilita a comunicação, a dialética
necessária ao desenvolvimento dos conhecimentos, a solução para superação
destas contradições próprias do capitalismo globalizado é a formação cada vez
mais qualificada dos indivíduos para o debate político. A despeito de uma lógica
social ou liberal para a sustentabilidade entre o crescimento econômico e o
desenvolvimento humano, salutar o incremento da educação, com destaque à
educação superior, pautada em uma formação humanística, que será estudado
neste trabalho em tópico posterior.
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i encontro de internacionalização do conpedi
4.educação como fundamento da sustentabilidade
do desenvolvimento e do crescimento econômico
em amartya sen
Após falar da necessária sustentabilidade do modelo de globalização econômica praticado atualmente, por meio do solidarismo, defende-se o incremento da
educação, sobretudo da educação superior, como fundamento da sustentabilidade
do desenvolvimento. Para tanto, aborda-se a teoria do desenvolvimento como
liberdade, do economista Sen (2010), que guarda coerência com as teorias até
então trazidas no tópico anterior, do solidarismo e da educação, além do capital
como fundamento do desenvolvimento sustentável social, econômico, cultural,
humano e ambiental.
O autor inicia a obra explicando seu objetivo: “o desenvolvimento pode
ser visto como um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas
desfrutam” (SEN, 2010, p. 16). E afirma que desenvolvimento não representa
para ele os dados econômicos objetivos, a exemplo do Produto Nacional Bruto,
mas sim o desenvolvimento baseado nas liberdades desfrutadas pelos indivíduos,
“como as disposições sociais e econômicas (por exemplo, os serviços de educação
e saúde) e os direitos civis (por exemplo, a liberdade de participar de discussões e
averiguações públicas)” (SEN, 2010, p. 16).
Quando se aduz que o autor aborda a temática liberdade de forma mais
ampla, é que a liberdade não fica restrita àquele clássico conceito de liberdade
do indivíduo, em face da postura negativa do Estado. Engloba-se também neste
conceito o que denomina de “principais fontes de privação de liberdade: pobreza
e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática,
negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de
Estados repressivos” (SEN, 2010, p. 16-17). E prossegue: “Às vezes a ausência de
liberdades substantivas relaciona-se diretamente com a pobreza econômica, que
rouba das pessoas a liberdade de saciar a forme, de obter uma nutrição satisfatória
ou remédios para doenças tratáveis, a oportunidade de vestir-se ou morar de
modo apropriado” (SEN, 2010, p. 17).
Ao contestar a teoria de Hayek (1994), a quem reputa ter ignorado os efeitos
ou usos da liberdade, Sen (2010, p. 371) destaca que a liberdade tem dois
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i encontro de internacionalização do conpedi
aspectos que devem ser considerados, a liberdade como processo e a liberdade
como oportunidade:
1) a importância derivativa da liberdade (dependente apensa de
seu uso efetivo) e 2) a importância intrínseca da liberdade (por nos
fazer livres para escolher algo que podemos ou não efetivamente
escolher). [...] O aspecto do processo da liberdade tem de ser
considerado conjuntamente com o aspecto da oportunidade, e este
precisa ser visto em relação à importância intrínseca e também
derivativa. Ademais, a liberdade par participar da discussão
pública e da interação social pode ainda ter um papel construtivo
na formação de valores e éticas. O enfoque sobre a liberdade
realmente faz a diferença.
Destaca-se o raciocínio do autor quanto à avaliação da relação entre as rendas
e as capacidades. Sen (2010) não nega que as pessoas com privação de capacidades
individuais estão fadadas, geralmente, a um baixo nível de renda, porém ressalta
que essa lógica possui mão dupla inversamente proporcional, sendo bem verdade
que o incremento da educação e da saúde repercuta na elevação da renda. Este
pensamento representa o cerne da tese do autor que defende que a privação de
capacidade responde negativamente no desenvolvimento de uma nação – leia-se
desenvolvimento humano e econômico.
Para fundamentar sua tese, Sen (2010) aborda os argumentos contra as
liberdades políticas e os direitos civis como exemplos sobre o crescimento
econômico em Estados com governos autoritários e da dificuldade de efetivar um
regime democrático no Terceiro Mundo, onde os indivíduos estão preocupados
em sobreviver. Por óbvio que o autor, para dar mais consistência à sua tese,
refuta-a cientificamente e demonstra com fundamentação que o desenvolvimento
de que trata vai além do desenvolvimento econômico. Essa tese demonstra que
o desenvolvimento econômico deve estar acompanhado do desenvolvimento
humano, ao qual denomina de liberdade, sob pena de falência da própria ordem
capitalista e da globalização econômica vigente.
Ao analisar e defender o desenvolvimento como um processo de expansão das
liberdades substantivas dos indivíduos, Sen (2010) relacionou o capital humano
e a capacidade humana. Destacou que o desenvolvimento do capital humano
destina-se ao aumento da capacidade de produção do indivíduo no contexto do
crescimento econômico, enquanto a capacidade humana é focada no fomento
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volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
do exercício da liberdade dos indivíduos. Ambas não deixam de ter relação,
pois o indivíduo capacitado também incrementa seu poder produtivo, porém o
objetivo do crescimento econômico não tem um fim em si mesmo, pois, segundo
o autor, os seres humanos não são meramente meios de produção, mas também
a finalidade de todo o processo. Nas palavras do autor (SEN, 2010, p. 372-373):
Por exemplo, por meio da educação, aprendizado e especialização,
as pessoas podem tornar-se muito mais produtivas ao longo do
tempo, e isso contribui enormemente para o processo de expansão
econômica. [...] A perspectiva da capacidade humana, por sua vez,
concentra-se no potencial – a liberdade substantiva – das pessoas
para levar a vida que elas têm razão para valorizar e para melhorar
as escolhas reais que elas possuem. [...] Se a educação torna uma
pessoa mais eficiente na produção de mercadorias, temos então
claramente um aumento do capital humano. Isso pode acrescer
o valor da produção na economia e também a renda da pessoa
que recebeu educação. Mas até com o mesmo nível de renda uma
pessoa pode beneficiar-se com a educação – ao ler, comunicarse, argumentar, ter condições de escolher estando mais bem
informada, ser tratada com mais consideração pelos outros etc. Os
benefícios da educação, portanto, excedem seu papel como capital
humano na produção de mercadorias. A perspectiva mais ampla
da capacidade humana levaria em consideração – e valorizaria –
esses papéis adicionais também. Assim, as duas perspectivas são
estreitamente relacionadas, porém distintas.
Eis a teoria do economista Sen (2010), que enxerga no desenvolvimento das
capacidades dos indivíduos a forma de efetivar suas liberdades e, consequentemente, o desenvolvimento. Infere-se, portanto, dessa teoria que a educação
para a formação inclusiva do indivíduo representa condição sine qua non para a
sustentabilidade da globalização econômica, ao se buscar a compatibilização do
desenvolvimento humano e do crescimento econômico.
5.a experiência do intercâmbio acadêmico itália/
br asil na universidade de fortaleza: uma ação de
solidarismo internacional
Diante do que se abordou na presente pesquisa até o momento, destaca-se a
premente necessidade de solidarismo, nos âmbitos nacional e internacional para
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i encontro de internacionalização do conpedi
fomentar a sustentabilidade entre o crescimento econômico e o desenvolvimento
humano no contexto do mundo globalizado. E, como instrumento de efetivação
de tais políticas, defende-se a cooperação universitária e a internacionalização da
Universidade, tendo como ponto de partida os intercâmbios acadêmicos. Retratase este entendimento pelas palavras da administradora do PNUD, Helen Clark,
quando do prefácio do Relatório do Desenvolvimento Humano 2013, intitulado
“A Ascensão do Sul: progresso humano num mundo diversificado” (PNUD,
2013), que ressalta que:
O PNUD está em posição de poder desempenhar um papel útil
como mediador de conhecimentos e catalisador de parceiros
– governos, sociedade civil e empresas multinacionais – para
o intercâmbio de experiências. Desempenhamos um papel
fundamental também na promoção da aprendizagem e da
capacitação. Este relatório proporciona uma visão extremamente
útil, com vista à nossa futura participação na cooperação Sul-Sul.
A Rede Latino-americana de Cooperação Universitária – RLCU (2014),
constituída em 1997, na Universidad de Belgrano, em Buenos Aires, Argentina,
onde mantém sua sede social, tem sido responsável pela implementação da política
de cooperação internacional entre as universidades do Sul, tanto de técnicas como
de recursos humanos. Tem como parceiros os seguintes países: Argentina, Bolívia,
Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Honduras, México, Nicarágua,
Panamá, Paraguai e Porto Rico como Estado Livre associado aos Estados Unidos
da América. A ambiência internacional de cooperação universitária é patente e
propicia o desenvolvimento das atividades de intercâmbio ora estudado.
No âmbito nacional, o Ministério da Educação, do Governo Federal, criado
há mais de 80 anos, tem como objetivo promover um ensino de qualidade, no
âmbito da educação básica, profissional e superior. O Conselho Nacional de
Educação (CNE) é o órgão colegiado integrante do Ministério da Educação,
instituído pela Lei nº 9.131, de 25 de novembro de 1995, com a função de
exercer atribuições normativas, deliberativas e de assessoramento ao Ministro da
Educação. E, no âmbito da educação jurídica, instituiu as diretrizes curriculares
nacionais do curso de graduação em Direito, por meio da Resolução CNE/CES
nº 9, de 29 de setembro de 2004.
262
volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
A Resolução CNE/CES nº 9/2004 estabelece as diretrizes de organização
curricular, com destaque ao perfil do egresso que deverá ser assegurado uma
“sólida formação geral, humanística e axiológica” e “valorização dos fenômenos
jurídicos e sociais” (art. 3º, caput). Para a formação integral do discente, ressalta
a capacidade de raciocinar criticamente e tomar decisões por meio de atitudes
coerentes com a dogmática jurídica com responsabilidade social. Sobre a temática
da responsabilidade social da universidade, Pompeu (2013, p. 253), em seu artigo
intitulado “As ações de responsabilidade social da Unifor para o desenvolvimento
social, formação do capital humano e capital social”, defende que:
A expansão da globalização e a concorrência crescente no mundo
econômico têm acelerado a utilização de novas tecnologias e
como consequência o aparecimento de novos postos de trabalho.
Delineia-se um novo perfil de profissional, flexível e dotado de
conhecimento amplo das necessidades da comunidade em que
atua e que seja capaz de assumir novas situações e envolver-se em
soluções de problemas da sociedade.
Para esta formação de um profissional crítico e apto a não somente se inserir
no mercado de trabalho, como também contribuir responsivamente de forma
solidária para o desenvolvimento, a Resolução CNE/CES nº 9/2004 prevê que o
currículo seja composto por três eixos de formação que contemplem conteúdos e
atividades de formação fundamental, profissional e prática. E, quando se fala de
conteúdo e atividades, vai além das atividades de ensino, exigindo-se atividades
pesquisa e extensão, in verbis:
Art. 5º O curso de graduação em Direito deverá contemplar, em seu
Projeto Pedagógico e em sua Organização Curricular, conteúdos
e atividades que atendam aos seguintes eixos interligados de
formação:
I – Eixo de Formação Fundamental, tem por objetivo integrar
o estudante no campo, estabelecendo as relações do Direito
com outras áreas do saber, abrangendo dentre outros, estudos
que envolvam conteúdos essenciais sobre Antropologia, Ciência
Política, Economia, Ética, Filosofia, História, Psicologia e
Sociologia.
II – Eixo de Formação Profissional, abrangendo, além do
enfoque dogmático, o conhecimento e a aplicação, observadas
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06
263
i encontro de internacionalização do conpedi
as peculiaridades dos diversos ramos do Direito, de qualquer
natureza, estudados sistematicamente e contextualizados segundo
a evolução da Ciência do Direito e sua aplicação às mudanças
sociais, econômicas, políticas e culturais do Brasil e suas relações
internacionais, incluindo-se necessariamente, dentre outros condizentes com o projeto pedagógico, conteúdos essenciais sobre
Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Tributário, Direito Penal, Direito Civil, Direito Empresarial, Direito do
Trabalho, Direito Internacional e Direito Processual; e
III – Eixo de Formação Prática, objetiva a integração entre
a prática e os conteúdos teóricos desenvolvidos nos demais
Eixos, especialmente nas atividades relacionadas com o Estágio
Curricular Supervisionado, Trabalho de Curso e Atividades
Complementares.
As normas jurídicas que orientam e determinam as diretrizes curriculares dos
cursos de graduação em Direito pautam-se, portanto, na formação integral do
discente, para que esteja apto a cumprir sua função socioeconômica, aliando teoria
e prática, conforme se depreende dos três eixos de formação descritos na Resolução
do Ministério da Educação, que vincula todos os cursos de Direito no Brasil. Na
Universidade de Fortaleza – Unifor, visualiza-se de forma bem definida o tripé da
educação superior: ensino, pesquisa e extensão. Pautada na missão de “contribuir
para a realização de ideais e sonhos, formando profissionais de excelência, mantendo
o compromisso com o desenvolvimento socioambiental, científico e cultural”, tem
seus fundamentos nos seguintes valores (UNIFOR, 2014):
- Respeito ao homem e à sua diversidade, aos princípios democráticos e
aos direitos humanos;
- Responsabilidade social e ambiental;
- Compreensão do ser humano como centro do processo educativo;
- Contribuição com as transformações científicas, econômicas, políticas,
sociais, culturais e tecnológicas;
- Compromisso com a ética, a arte e a estética.
A Unifor estrutura-se em três Vice-Reitorias: Vice-Reitoria de Ensino de
Graduação – VREGRAD; Vice Reitoria de Pesquisa e Pós Graduação – VRPPG;
264
volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
e Vice Reitoria de Extensão e Comunidade Universitária – VIREX. Esta última
atua no âmbito acadêmico, cultural e social e desenvolve suas atividades na
busca de proporcionar “o acesso ao conhecimento em suas mais diversas formas,
seja pela promoção de cursos, palestras, seminários, bem como pela realização
de exposições de arte, intercâmbios culturais, espetáculos teatrais e outras
manifestações artísticas” (UNIFOR, 2014).
Por sua vez, a VIREX contempla os seguintes departamentos: Divisão de Arte,
Cultura e Eventos, Divisão de Responsabilidade Social, Divisão de Atividades
Desportivas, Assessoria de Assuntos Internacionais, Escritório Education USA
e TV Unifor. A Assessoria de Assuntos Internacionais “busca expandir seus
horizontes em relação ao conhecimento, à pesquisa e à cultura”, por meio das
“políticas de intercâmbio acadêmico internacional” e da “cooperação acadêmica,
técnica, científica e cultural” (UNIFOR, 2014) entre universidades conveniadas
de todo o mundo.
O intercâmbio é facultado a alunos da graduação da Unifor que tiverem
concluído no mínimo 50% da carga horário de seu currículo, domínio do
idioma oficial do país de destino, média global (PMG) igual ou superior a 7,0 e
não estar cursando o último semestre3. O aluno é responsável pelo custeio com
despesas relativas a hospedagem, alimentação e demais gastos pessoais; despesas
relativas a passagens aéreas e/ou terrestres, para deslocamento até a universidade
de destino; despesas com visto e seguro viagem/saúde. As disciplinas cursadas
pelos alunos da Unifor na universidade estrangeira será objeto de avaliação para
fins de aproveitamento de estudo.
Para os alunos estrangeiros que a Unifor acolhe para fins de intercâmbio
acadêmico, há regras estabelecidas por meio de convênios firmados entre as
universidades, com regras estabelecidas entre ambas. É o caso do convênio firmado
entre a Universidade de Fortaleza (Brasil) e a Universidade de Palermo (Itália),
que recebeu seis alunos do curso de graduação em Direito. O perfil pessoal dos
discentes da Universidade de Palermo era de solteiros, de cor branca (intitulação
3 Estas normas podem ser flexibilizadas a depender do perfil acadêmico do discente, que
será analisado individualmente, caso a caso, pela Vice-Reitoria de Extensão e Comunidade
Universitária, com o fim último de propiciar a experiência ao aluno que realmente responda
positivamente às exigências para o intercâmbio acadêmico internacional.
volume
06
265
i encontro de internacionalização do conpedi
do próprio aluno), com renda familiar entre 1.000 e 4.000 euros. Cursaram
disciplinas de prática jurídica real e simulada, e desenvolveram atividades de
extensão no Núcleo de Mediação e Conciliação, com carga horária total de 24
h/a semanais.
A Universidade de Palermo (Itália) está implementando a clínica jurídica
no seu currículo. O intercâmbio acadêmico objetiva vivenciar a experiência
das disciplinas de prática jurídica, em especial a clínica jurídica, que realiza
atendimento ao público em geral, que resulta na elaboração de peças processuais
e o devido encaminhamento ao Judiciário. A relação com o Poder Judiciário se dá
por meio do Convênio da Unifor com a Defensoria Pública Estadual, que tem a
função constitucional de prestação da assistência judiciária gratuita.
A experiência exitosa da clínica jurídica na Unifor chamou a atenção dos
Italianos, que, respeitando as peculiaridades de sua realidade social, econômica
e jurídica, objetiva implementar esta metodologia de ensino aliada à prática no
currículo do seu curso de graduação em direito. Dos relatórios de entrevistas
pode-se inferir, portanto, que os resultados acadêmicos e pessoais do grupo de
alunos italianos foram positivos. Quanto aos aspectos acadêmicos do intercâmbio,
classifica-se em excelente, boa, regular e insuficiente. A partir das respostas dos
alunos, obteveu-se os seguintes resultados:
quadro 2: resumo dos resultados dos
relatórios de entrevista aplicados pelos autores
Conteúdo abordado nas disciplinas
BOM
Metodologia de ensino
REGULAR
Aproveitamento (desenvolvimento de
conhecimentos jurídicos)
BOM
Estrutura física da Universidade
EXCELENTE
Fonte: Elaborado pelos autores
Diante dos resultados acadêmicos, verifica-se que o aproveitamento acadêmico de forma geral foi positivo, mas tiveram dificuldade com a metodologia
de ensino empregada. Pela narrativa dos alunos estrangeiros, conclui-se que esta
266
volume
06
i encontro de internacionalização do conpedi
dificuldade é resultado da diferença entre os ordenamentos jurídicos italiano e
brasileiro. Ora, as disciplinas práticas são antecedidas de disciplinas dos eixos de
formação fundamental e profissional, que perfazem pouco mais de 90% da carga
horária total do curso de Direito da Unifor.
Quanto aos aspectos culturais de “hábitos pessoais”, “alimentação”, “vestuário”, “lazer”, “clima”, “custo de vida”, “a cidade” e “as pessoas”, foram coletadas
avaliações de natureza positiva e negativa de cada um destes itens. Em regra geral,
adaptaram-se bem aos novos costumes, ressaltaram a cordialidade das pessoas e os
hábitos saudáveis, e negativaram o trânsito, a ausência de monumentos e prédios
históricos, a desigualdade social e a indiferença da elite com este problema.
Ao avaliarem os resultados do intercâmbio em uma narrativa ao final do
questionário, onde se indagou sobre os impactos dos conhecimentos desenvolvidos com o intercâmbio para sua vida acadêmico profissional, pode-se concluir
pelo êxito do intercâmbio internacional, com destaque à continuidade do projeto
na Itália, onde irão desenvolver uma disciplina de prática jurídica tendo como
base a experiência vivenciada durante o intercâmbio, que resultará em um manual
de orientação para a Universidade de Palermo. E, para ilustrar, citam-se trechos
destes relatos extraídos dos Relatórios de três dos quatro alunos entrevistados, in
verbis:
Aluno(a) A: Em Fortaleza eu aprendi a importância da prática
jurídica quando ainda se estuda na Universidade, somente que
aquilo que aprendi aqui (por exemplo como escrever uma petição
inicial) não será útil para minha carreira profissional, sendo os
ordenamentos muito diferentes.
Aluno(a) A: Graças a esta experiência eu conheci um novo modo
de ensinar aos alunos, porque aqui as relações entre professores e
alunos são bem próximas.
Aluno(a) A: Em geral posso dizer que voltarei para a Itália mais
rica pessoalmente, porque conheci hábitos e pessoas diferentes que
me ajudarão nas próximas relações profissionais, mas, sobretudo,
pessoais.
Aluno(a) B: Viver no Brasil e ter mais conhecimento da sua
sociedade contraditória demais, fez crescer minhas ideias de
justiça, de solidariedade, de cidadania. Com certeza isso irá
ajudar-me na minha formação como operador do direito, com
volume
06
267
i encontro de internacionalização do conpedi
mais envolvimento nas questões sociais e com uma cultura mais
orientada para o desenvolvimento humano.
Aluno(a) C: [...] se uma pessoa fica sempre na sua cidade, no seu
estado, comas pessoas que pensam do mesmo jeito e que falam o
mesmo idioma, não pode achar que o próprio mundo é o mundo
todo. Mas não é assim: o mundo é cheio de diferenças e para
compreendê-las é necessário esquecer-se por um momento da sua
própria opinião e tentar pensar diferentemente. Isto só é possível
indo para o exterior.
Também se obteve resultado positivo em pesquisa junto a alunos da Unifor,
colegas de turma dos alunos de intercâmbio. Gostaram da experiência de
conviver com pessoas de culturas diferentes e demonstraram interesse em saber
as peculiaridades do ordenamento jurídico italiano, bem como demonstraram
interesse em conhecer o país e ter a mesma experiência de intercâmbio na
universidade visitante. Ou seja, efetivamente verifica-se uma troca de vivências
positivas para ambas as nações, que mesmo de forma pontual pode trazer efeitos
positivos em cadeia.
Não resta dúvida de que os alunos tiveram seus horizontes ampliados com o
convívio com outra cultura e com outras metodologias de ensino e aprendizagem,
e, sobretudo, com um ordenamento jurídico alienígena. A percepção de mundo
ampliou-se. E a globalização se mostrou de forma positiva, ao construir laços de
solidariedade entre indivíduos de nações e continentes diferentes e díspares em
seus aspectos culturais, profissionais e econômicos.
6.conclusões
Diante do contexto da economia produtiva e financeira globalizada, as
relações sociais vêm a cada dia transformando-se. Por relações sociais, entendamse todas as formas de relação entre os indivíduos: valores morais, relacionamentos
interpessoais, relações de trabalho, padrões de consumo, etc. Nesta conjuntura,
globalizam-se formas de produção, mercados financeiros, políticas neoliberais do
Fundo Monetário Internacional (FMI), sem se preocupar com as reformas de
base dos países em desenvolvimento.
Não se contesta a globalização e seus efeitos, mas sim se critica a adoção da
mesma política que se adota nos Estados Unidos, por exemplo, no Brasil, país com
268
volume
06
i encontro de internacionalização do conpedi
características díspares daquele. A realidade brasileira não comporta atualmente o
liberalismo extremo. O Brasil ainda está a pagar uma dívida social de anos de má
gestão da coisa pública. Depois de séculos de exploração é que se está a ver o início
do desmonte de grandes esquemas de corrupção, que fomentavam o continuísmo
político, de poucos, é claro. É um progresso, sem dúvida, ver esquemas como o do
mensalão desmontados ou a descoberta de um pretenso esquema dos auditores da
Prefeitura de São Paulo, que pode ter desviado mais de 500 milhões de reais dos
cofres públicos (GLOBO.COM, 2013).
A democracia é trabalhosa. E o Estado de Direito “incomoda muita gente”.
É cômodo e necessário para a manutenção do status quo uma sociedade com
cidadãos apáticos e ignorantes. Por que será que os governantes, sejam de qual
partido for, não resolvem o problema do déficit educacional? Será uma economia
em crise? Como? Se o Brasil ocupa o sétimo lugar entre as dez maiores economias
do mundo?
Como dito anteriormente, esta lógica da apatia dos indivíduos não tem mais
suporte no contexto de globalização também da informação e da comunicação.
Defende-se, portanto, uma educação transformadora que empodere os indivíduos
a se tornar parte beneficiada e ao mesmo tempo autora de seu desenvolvimento
e do desenvolvimento social, conforme defendido na teoria do solidarismo e do
desenvolvimento sustentável.
A tese do economista Amartya Sen adequou-se, portanto, ao que se defende
neste artigo. Ele aponta como liberdade não somente aquela negativa em relação
ao Estado, mas também a liberdade de viver com dignidade, de ter condições de
fazer escolhas. Escolhas de ser e de ter. Ao reputar à privação de capacidade como
problema central que representa obstáculo o desenvolvimento, pôde-se inferir
como essência de sua teoria a capacitação formal e cidadã dos indivíduos para
o desenvolvimento e o exercício de suas habilidades, competências e atitudes.
Ou seja, para a plena concretização das liberdades, os indivíduos devem ter
oportunidades de escolha.
Essa oportunidade de escolha (de fazer ou não fazer, de ser ou não ser, de
ter ou não ter), só é possível com a educação formal e inclusiva. Ao situar essa
superação das desigualdades sociais, ou, ainda, da falta de liberdades no contexto
da globalização econômica, identificou-se a necessidade de investimento no setor
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i encontro de internacionalização do conpedi
da educação superior, sem olvidar a necessidade de incrementar os investimentos
nos outros âmbitos do ensino (infantil, fundamental e médio).
Para a sustentabilidade entre o crescimento econômico e o desenvolvimento
humano, é salutar, portanto, o incremento da educação, com destaque à educação
superior, pautada em uma formação humanística e solidária. Neste sentido,
identificou-se uma ambiência internacional para cooperação universitária, por
meio do intercâmbio acadêmico, sob o aparato de dados estatísticos, relatórios
internacionais e redes de cooperação para seu fomento.
Em análise à experiência do intercâmbio acadêmico fruto do convênio firmado
entre a Universidade de Fortaleza (Brasil) e a Universidade de Palermo (Itália),
que recebeu seis alunos em seu curso de graduação em Direito, conclui-se que
os resultados obtidos foram exitosos. Os alunos demonstraram que efetivamente
obtiveram ganhos tanto no âmbito estritamente acadêmico/profissional como
no âmbito social e cultural. E, como apresentado ao longo do trabalho, o
desenvolvimento das habilidades e competências que se almeja ao egresso vai além
do conhecimento meramente tecnicista, albergando também o desenvolvimento
de consciência crítica, capaz de formar cidadãos ativos e conscientes de sua
responsabilidade social nos âmbitos nacional e internacional.
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i encontro de internacionalização do conpedi
técnicas de decisão na jurisdição
constitucional e a gar antia de direitos
fundamentais das minorias pelo stf
Ana Paula Oliveira Ávila1
Resumo
O objetivo deste artigo é examinar as técnicas de decisão no controle abstrato
de constitucionalidade realizado pelo Supremo Tribunal Federal. Distinguem-se
as técnicas conclusivas e alternativas empregadas na jurisdição constitucional,
observando que o uso de técnicas alternativas pode, em certos casos, expressar
manifestações de ativismo judicial. Em face disso, analisa-se como pode o STF
operar validamente essas técnicas em face das estruturas formais do Estado de
Direito (separação de poderes, democracia, legalidade e segurança jurídica) e do
seu fundamento material, que é a proteção do indivíduo, de sua dignidade e de
seus direitos fundamentais. Por fim, analisam-se dois casos paradigmáticos em
que o emprego de técnicas alternativas de decisão foi feito para proteger direitos
fundamentais de minorias sociais em face da inércia legislativa.
Palavras-chave
Jurisdição Constitucional; Interpretação conforme a Constituição; Declaração de nulidade sem redução de texto; Ativismo Judicial.
Abstract
This article focuses on the techniques that the Brazilian Supreme Court
employs on judicial review. Conclusive and alternative rulings are distinguished,
demonstrating that the use of these techniques may, in some cases, express the
judicial activism. Therefore, the article analyzes how can the Brazilian Supreme
Court rule through these techniques facing the formal principles which sustain
1 Professora Titular de Direito Constitucional dos cursos de Graduação e Mestrado do Uniritter
– Laureate International Universities. Mestre (2001) e Doutora em Direito Público (2007) pela
UFRGS.
volume
06
275
i encontro de internacionalização do conpedi
the Rule of Law (such as the separation of powers doctrine, democracy, and
legal certainty) and also its material foundation, that is, the protection of the
individuals, their dignity and their fundamental rights. Finally, the article analyzes
two cases ruled by the Supreme Court, in which the use of alternative techniques
was provided in order to protect fundamental rights of social minorities against
the “Parliament’s inertia”.
Key words
Judicial Review; Alternative Techniques; Brazilian Supreme Court; Judicial
Activism.
1. introdução
A Jurisdição Constitucional compreende a atividade desempenhada pelos
Tribunais Constitucionais na tarefa de defesa e interpretação da Constituição.
Quando contextualizada dentro dos parâmetros que identificam a adoção de
um Estado de Direito, surge, de um lado, a necessidade de se reconhecer as
competências e os limites a que estão adstritos os Tribunais Constitucionais nessa
tarefa e, de outro, a importante tarefa de colaborar, dentro de suas competências,
na realização dos direitos fundamentais dos cidadãos e dos objetivos previstos na
Constituição.
Dentre os parâmetros que permitem identificar o Estado de Direito, costumase apontar tradicionalmente a legalidade, a democracia, a separação dos poderes, e
a própria segurança jurídica, como princípios que dão as estruturas que conformam
a atividade do Estado. Os direitos fundamentais assegurados pela Constituição
complementam essa estrutura no aspecto da funcionalidade, ou seja, dispõem os
objetivos em razão dos quais devem funcionar aquelas estruturas.
Em vista disso, neste artigo procuro descrever o trabalho desempenhado pelo
Supremo Tribunal Federal no controle abstrato de normas e as técnicas empregadas na jurisdição constitucional para, logo em seguida, examinar como essas
técnicas foram empregadas para assegurar direitos fundamentais de grupos minoritários. Farei isso à luz de dois casos concretos: o reconhecimento da união estável
entre pessoas do mesmo sexo e do direito ao abortamento de fetos anencefálicos.
276
volume
06
i encontro de internacionalização do conpedi
O controle de constitucionalidade é a essência da Jurisdição Constitucional
e, sob certos aspectos, integra uma atividade comum do Poder Judiciário, que é
aplicar e interpretar as normas vigentes no ordenamento jurídico. Entretanto,
as decisões no controle abstrato de constitucionalidade podem apresentar certas
particularidades que são estranhas a uma atuação tipicamente judicial, qual
seja, fazer valer a lei nos casos concretos. O Supremo Tribunal Federal, órgão
responsável pelo controle abstrato de constitucionalidade, pode, com eficácia erga
omnes, através de diferentes técnicas de decisão, (a) implicar a negação de validade
a normas preestabelecidas pelo Legislativo, (b) garantir a validade e aplicação
incondicionada das normas cuja validade é posta em dúvida nos juízos inferiores,
(c) preservar as normas com uma interpretação diversa daquela imediatamente
atribuível ao texto, e, (d) não raras vezes, acabam inclusive alterando o significado
literal daquilo que está escrito no texto legislativo, permitindo que a norma se
mantenha vigente desde que com este novo significado.
Além disso, em casos extremos o tribunal, lançando mão dessas técnicas,
termina por implementar verdadeiras inovações na ordem jurídica, prática que,
se por um lado, restringe normas que suportam o Estado de Direito, por outro,
garante e efetiva outras normas constitucionais, notadamente as que preveem
direitos fundamentais, muitas vezes para assegurar que grupos minoritários
tenham seus direitos à igual e efetiva proteção por parte do Estado.
A tarefa judicial de negar validade às leis inconstitucionais insere-se no âmbito
dos freios e contrapesos que foram instituídos no sistema clássico de divisão dos
Poderes, como uma forma de evitar o abuso na produção legislativa pelo Poder
Legislativo, através da edição de normas em detrimento da Constituição. Daí que
se compare o Poder Judiciário a um legislador negativo, i.e., aquele que retira do
ordenamento as normas jurídicas inválidas, ao contrário do legislador positivo
[Poder Legislativo] que as cria e adiciona ao ordenamento jurídico.
Contudo hoje se observa na Jurisdição Constitucional o uso de técnicas de
decisão que podem colocar o Tribunal Constitucional numa posição de verdadeira
“intrusão” sobre as competências do Poder Legislativo, que continua sendo, em
nosso sistema, o representante diretamente eleito pelo povo. Por isso, ao tratar de
técnicas processuais, é preciso analisá-las do ponto de vista de sua conformação
e coerência com o Estado Democrático de Direito, sem desprezar a tarefa maior
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i encontro de internacionalização do conpedi
dos poderes estatais, que é assegurar a existência digna do indivíduo, através da
proteção de seus direitos fundamentais. Para tanto, proponho que essas técnicas
sejam examinadas em duas partes.
Na primeira parte, distingo essas técnicas segundo o tipo de julgamento
emitido em relação às normas submetidas ao controle de constitucionalidade:
o grupo das decisões conclusivas, em que se tem um juízo de constitucionalidade
ou inconstitucionalidade, e o grupo das decisões intermediárias, ou alternativas,
utilizadas nas zonas cinzentas, em que a norma pode ser considerada constitucional
ou inconstitucional, dependendo da interpretação que lhe seja atribuída, ou dos
casos em que a norma incida.
Na segunda parte, analisarei dois casos concretos julgados pelo STF, demonstrando como o emprego dessas técnicas restringe o alcance dos princípios
constitucionais formais do Estado de Direito (separação de poderes, democracia
e legalidade) para dar a maior efetividade possível aos direitos fundamentais, que
compõem o próprio sentido material do Estado de Direito. Cumpre, na conclusão
desta análise, esboçar uma justificativa jurídica que evidencie se existe uma
coerência entre essas decisões e o conjunto normativo da Constituição Federal.
2.tipos de decisões do stf no controle abstr ato de
constitucionalidade
Até pouco tempo, era possível afirmar que, diante da comparação entre uma
norma ordinária e uma norma constitucional, uma entre duas opções se impunha:
ou a norma vale, ou não vale. Ou bem é constitucional, ou é inconstitucional.
O quadro hoje é bem diverso. Percebe-se e existência de muitas situações que
ensejam a dúvida, e aponto alguns fatores que colaboram para esse quadro de
indeterminação:
a) Primeiro, hoje se sabe que a norma não equivale ao texto da lei (dispositivo). A norma é o resultado da interpretação do texto2. E a inter2 E o texto equivale a apenas um elemento parcial da interpretação, o “programa normativo”,
i.e., o enunciado linguístico que enuncia a norma. A interpretação compreende um segundo
momento, que é a análise do “âmbito normativo”, i.e., a análise dos elementos empíricos,
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volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
pretação, a seu turno, levará a um resultado condicionado por diversas
variantes: o sujeito que interpreta, o âmbito [fático] de incidência da
norma, o método escolhido e a categoria dos argumentos empregados. Mudando um desses elementos, pode alterar-se o resultado. Então
o fato é que, hoje, é possível que se reconheça a validade de apenas
uma das interpretações que possam ser atribuídas ao dispositivo, com
exclusão das demais (é o caso da chamada interpretação conforme à
Constituição), sendo também possível que se reconheça a invalidade
da incidência da norma apenas a um grupo de casos, permanecendo a
norma válida para os demais casos (declaração parcial de nulidade sem
redução de texto).
A diversidade de técnicas de decisão na jurisdição constitucional responde,
em grande parte, a essa primeira constatação. Mas deve-se reconhecer que
existem limites à interpretação jurídica. Sobretudo no campo da interpretação
constitucional, em que se opera sobre normas com densidades normativas3 variáveis, a doutrina predominante reconhece que não é possível uma interpretação
que leve à alteração do sentido literal do texto constitucional (mutação x
modificação constitucional)4. Quando as possibilidades do texto se esgotam,
surge o momento de nova deliberação do poder constituinte, evitando-se, assim,
dos dados da realidade recortada pela norma. A concretização constitucional consiste na
integração desses dois elementos, sendo o entendimento do primeiro orientado pelo segundo.
MÜLLER, Friedrich. Discours de la méthode juridique. Trad. Olivier Jouanjan. Paris: PUF,
1993, p. 168.
3 Nas palavras de CANTILHO, “a densidade da norma constitucional impõe-se: (1) quando
há necessidade de tomar decisões inequívocas em relação a certas controvérsias; (2) quando
se trata de definir e identificar os princípios identificadores da ordem social; (3) quando a
concretização constitucional imponha, desde logo, a conveniência de normas constitucionais
densas.” [...] “A abertura de uma norma constitucional significa, sob o ponto de vista
metódico, que ela comporta uma delegação relativa nos órgãos concretizadores; a densidade,
por sua vez, aponta para a maior proximidade da norma constitucional relativamente aos seus
efeitos e condições de aplicação.” (grifos do autor). Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito
Constitucional e Teoria da Constituição. 3.ed. Coimbra: Almedina, 1998, p. 1.105.
4 HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto
Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1991, p. 23: “o sentido da proposição jurídica estabelece o
limite da interpretação e, por conseguinte, o limite de qualquer mutação normativa. […] Se
o sentido de uma proposição normativa não pode mais ser realizado, a revisão constitucional
afigura-se inevitável. Do contrário, ter-se-ia a supressão da tensão entre norma e realidade
com a supressão do próprio direito.”
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malabarismos judiciais. Porém, em face da permanente necessidade de proteção
dos direitos do indivíduo, resta saber qual atitude do Judiciário seria aceitável
diante de omissão persistente do legislador em oferecer resposta às questões que
integram a agenda social. Isso examinarei mais próximo das conclusões.
b) Segundo, muitas questões concretas submetidas à Corte suscitaram o
emprego da técnica de modulação de efeitos à declaração de inconstitucionalidade. Com isso, coube à doutrina reconhecer que há graus de
maior ou menor inconstitucionalidade, ou, em outras palavras, há decisões que promovem melhor a ordem constitucional como um todo do
que outras [bloco de constitucionalidade5]. Dito de outro modo, além
de decisões que declaram a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de uma norma, o STF tem proferido soluções que podem ser
classificadas como mais ou menos constitucionais em face do conjunto
normativo da Constituição6.
Passo então ao exame das decisões que exprimem juízos conclusivos e, após, às
técnicas que lidam com as zonas cinzentas.
2.1. juízos conclusivos
2.1.1. Declaração de constitucionalidade
A declaração de constitucionalidade é a reafirmação, taxativa, da validade
presumida que a norma já possui. Pode resultar de uma Ação Declaratória de
Constitucionalidade procedente ou de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade
improcedente. Essa decisão garante a permanência da norma jurídica no
ordenamento e, por ter efeito vinculante, se torna um precedente obrigatório
para as instâncias inferiores ao STF no Poder Judiciário, bem como ao Poder
Executivo, sob pena de reclamação perante aquela máxima Corte (art. 28,
parágrafo único, da Lei n° 9.868/99, c/c art. 102, I, “l”, da CF/88). A extensão
5 FAVOREU, Louis; LLORENTE, Francisco Rubio. El bloque de la constitucionalidad.
Madrid: Civitas, 1991, p. 95-109.
6 AVILA, Ana Paula. A modulação de efeitos temporais pelo STF no controle de constitucionalidade.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 51.
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i encontro de internacionalização do conpedi
deste efeito vinculante das declarações de constitucionalidade, no entanto, já foi
objeto de delimitação em estudos doutrinários que aqui não cabe analisar7.
Deve-se observar que a declaração de constitucionalidade é emitida sob uma
espécie de cláusula rebus sic stantibus, pois obedece a um contexto jurídico e fático
dentro do qual a norma foi examinada. Não por outra razão, há quem considere
incompatíveis o efeito vinculante e a decisão declaratória de constitucionalidade,
pelo fato de que esta “petrifica o processo hermenêutico para o futuro.”8
Havendo alterações nessas condições fáticas e jurídicas, nada impede que uma
nova declaração, de inconstitucionalidade, atinja a norma em questão. Um bom
exemplo deu-se na Suprema Corte Norte Americana que, em 1896, considerou
compatível com a igualdade perante a lei (constitucional, portanto) a política de
segregação racial no caso Plessy v. State of Louisiana (instituindo a doutrina do
separate but equal). Sem que houvesse qualquer modificação normativa, esse juízo
de constitucionalidade foi alterado após mais de 50 anos, no famoso caso Brown
v. Board of Education, em que se firmou a segregação racial como atentatória da
proteção da igualdade na Constituição Norte Americana.9 Percebe-se a mesma
prática segregatória e a mesma Constituição, que ainda permanece vigente, mas
uma mudança radical nas condições empíricas exigiu uma alteração total no
precedente antes firmado pela Suprema Corte [overruling].
De pronto se percebe que a declaração de constitucionalidade não é [e nem
pode ser] uma decisão blindada pelo manto da imutabilidade. Nesse particular,
Marinoni tem razão ao observar que a coisa julgada é um instituto próprio dos
processos subjetivos, em que existem partes interessadas no desfecho de uma lide,
e que a coisa julgada é o instituto processual a garantir que, para aquelas partes,
a situação foi definida e não mais será objeto de alteração10. A declaração de
7 ÁVILA. Ana Paula Oliveira. A face não-vinculante da eficácia vinculante das declarações
de constitucionalidade: uma análise da eficácia vinculante e o controle concreto de
constitucionalidade no Brasil. In: ÁVILA, Humberto (Org.). Fundamentos do Estado de
Direito: estudos em homenagem ao professor Almiro do Couto e Silva. São Paulo: Malheiros, 2005.
8 Nesse sentido: STRECK, Lenio. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2002, p. 491.
9 Plessy v. Ferguson, 163 U.S. 537 (1896); Brown v. Board of Education of Topeka, 347 U.S.
483 (1954).
10 SARLET, Ingo; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito
Constitucional. São Paulo: RT, 2012, p. 975 e, mais adiante, p. 990.
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06
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i encontro de internacionalização do conpedi
constitucionalidade, assim, não recebe o manto da inalterabilidade eterna, pois
está atrelada a um determinado momento histórico e a determinados fundamentos jurídicos que, uma vez alterados, podem ser reexaminados.
Finalmente, importa relevar que nem o Poder Legislativo e nem o próprio
STF são atingidos pelo efeito vinculante de suas decisões e que essas decisões em
controle abstrato não fazem coisa julgada material em sentido próprio.
2.1.2. Declaração de inconstitucionalidade
A declaração de inconstitucionalidade, na doutrina e na jurisprudência
dominantes no Brasil, equivale a uma censura de nulidade atribuída à norma
ordinária que contraria a Constituição. Importa na exclusão da norma declarada
nula que, na linguagem do STF, é expulsa do ordenamento jurídico. O tratamento
análogo ao das nulidades é uma espécie de tradição nos julgados do STF, onde é
recorrente a menção ao “dogma da nulidade do ato inconstitucional”11.
Muitas reservas já foram dirigidas a este entendimento12, mas para os objetivos
deste trabalho, basta compreender que, por força da tradicional censura de
nulidade, a norma perde todos os seus efeitos retroativamente, inclusive os efeitos
revogatórios que tenha operado sobre norma anterior acaso existente, a qual
fica de imediato restaurada até que outra posterior expressamente a revogue13.
As relações jurídicas constituídas sob o império da lei declarada inconstitucional
poderão retornar ao stato quo ante, se as partes interessadas assim requererem.
Por conta de sua expulsão, nenhuma chance tem essa norma de voltar a ser
aplicada por qualquer órgão judicial, nem mesmo pelo próprio STF – porque,
11 STF, ADI-QO 652-MA, Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, j. 2/4/1992.
12 ÁVILA, Ana Paula. A modulação de efeitos temporais pelo STF no Controle de Constitucionalidade.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 31-36.
13 STF, ADI 652-MA (RTJ, 146:461, 1993), Pleno, Rel. Min. Celso de Mello. “A declaração de
inconstitucionalidade em tese encerra um juízo de exclusão, que, fundado numa competência
de rejeição deferida ao Supremo Tribunal Federal, consiste em remover do ordenamento
positivo a manifestação estatal inválida e desconforme ao modelo plasmado na Carta Política,
com todas as consequências daí decorrentes, inclusive a plena restauração de eficácia das
leis e das normas afetadas pelo ato declarado inconstitucional. Esse poder excepcional –que
extrai a sua autoridade da própria Carta Política—converte o Supremo Tribunal Federal em
verdadeiro legislador negativo”.
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i encontro de internacionalização do conpedi
em tese, a norma já não mais integra o plano da existência. Daí que o efeito
vinculante nessas decisões apresente seu grau máximo de intensidade, pois tornase impossível desafiar o entendimento da Corte e aplicar uma norma que não
mais existe.
Além disso, interessa observar que o efeito vinculante da declaração de inconstitucionalidade abrange não apenas o dispositivo da decisão, como também os
seus próprios motivos determinantes, razão por que se fala em transcendência dos
motivos determinantes das decisões do STF, a indicar a interferência da decisão
sobre os demais casos que, “embora não tratando da mesma norma, configuram
igual questão constitucional, a ser solucionada mediante a aplicação dos mesmos
fundamentos ou motivos que determinaram a decisão”.14
A situação da exclusão da norma do ordenamento jurídico interessa também
nas técnicas intermediárias, porquanto nelas também se opera um juízo de
exclusão. Não se trata contudo de um juízo de exclusão integral da norma, mas
apenas de aspectos a ela relacionados, eis que a norma permanece abstratamente
vigente no ordenamento jurídico. Veja-se, a seguir, em que consistem tais técnicas.
2.2.juízos intermediários ou alternativos
Para bem compreender esses juízos alternativos, é fundamental ter em mente o
princípio subliminar de que in dubio, pro norma. Segundo esse princípio, sempre
que possível a norma deverá ser preservada e ter sua permanência na ordem
jurídica garantida pelo Tribunal Constitucional.15 Esse princípio densifica outros
princípios estruturantes do Estado de Direito, tendo em vista que a norma geral
posta é uma decisão do Legislador (legalidade), representante diretamente eleito
pelo povo (democracia), e garante a previsibilidade e confiança necessárias para
o bom andamento das relações jurídicas (segurança jurídica). Por cristalizarem a
soberania popular, as presunções são sempre em favor das normas.
Tendo isso presente, aparecem situações de dúvida quanto à validade das
normas em contextos diversos que suscitam incidências diversas. Isso levou
14 SARLET, Ingo; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito
Constitucional. São Paulo: RT, 2012, p. 984.
15 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 4a Ed., São Paulo:
Saraiva, 2001, p. 188.
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i encontro de internacionalização do conpedi
os tribunais a desenvolverem técnicas que são verdadeiras alternativas entre
a opção radical de expulsar a norma do ordenamento, no caso da declaração
de inconstitucionalidade, ou de permitir sua aplicação irrestrita, no caso da
declaração de constitucionalidade16.
2.2.1. Interpretação conforme a constituição
A primeira técnica alternativa é a interpretação conforme a Constituição.
Através dela o STF faz uma espécie de declaração condicional de constitucionalidade [“a norma é constitucional, desde que...”], valendo apenas com o sentido
fixado pela Corte no julgamento. Isso importa na exclusão de outros sentidos que
possam ser atribuídos à norma e, em vista disso, o Min. Moreira Alves equiparou
a interpretação conforme a uma pronúncia de inconstitucionalidade17. Parece,
entretanto, que ante a dificuldade de se declarar a inconstitucionalidade de todas
as possíveis interpretações atribuíveis ao texto, melhor seria considerar a
interpretação conforme como equivalente a um juízo condicional de constitucionalidade. É esta a lição do Min. Gilmar Mendes: “na interpretação
conforme à Constituição se tem, dogmaticamente, a declaração de que uma lei
é constitucional com a interpretação que lhe é conferida pelo órgão judicial”18.
Um bom exemplo de julgamento empregando esta técnica está na decisão da
ADPF 46, a qual examinou a Lei n° 6.538/78. A lei estabelece o monopólio dos
serviços postais em favor da EBCT – empresa pública da União. Argumentou-se
que a lei instituidora do monopólio é anterior à CF/88 e não teria sido recepcionada
pelo art. 177 da CF, dispositivo em que estão fixadas, de modo taxativo e numerus
clausus, as atividades sujeitas ao regime de monopólio da União, sem incluir o
serviço postal. A Corte, por maioria, declarou que a lei é constitucional, desde que
16 MENDES, Gilmar; MARTINS, Ives Gandra da Silva. Controle de constitucionalidade. São
Paulo: Saraiva, 2001, p. 316.
17 Rp. 1.417, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 126/48. A dificuldade prática neste entendimento
é que, em se tratando de uma espécie de declaração de inconstitucionalidade, somente pode
ser pronunciada nos termos do art. 97 da CF, i.e., pela maioria absoluta dos membros dos
Tribunais ou do respectivo órgão especial, inviabilizando a utilização da técnica no controle
difuso de constitucionalidade nas instancias inferiores. MENDES, Gilmar. Controle Abstrato
de Constitucionalidade: ADI, ADC e ADO. São Paulo: Saraiva, 2012, 527.
18 MENDES, Gilmar. Controle Abstrato de Constitucionalidade: ADI, ADC e ADO. São Paulo:
Saraiva, 2012, 529.
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se entenda a expressão monopólio como “exclusividade ou privilégio”, que são os
termos compatíveis com as competências reservadas exclusivamente à União pelo
art. 21 da mesma Constituição Federal, para o desempenho de serviços públicos
(com é o caso do serviço postal), ao passo que “monopólio” é expressão reservada
para o desempenho de atividades econômicas em sentido estrito19. Deste modo,
manteve-se a lei impugnada e a reserva da atividade à EBCT, sendo a norma
considerada constitucional desde que permanecesse vigente com o significado
interpretativo fixado pela Corte, por correspondente à exclusividade prevista no
art. 21.
A decisão opera, assim, sobre o campo da interpretação dos elementos
normativos, que possuem seu significado integrado a partir da decisão do
tribunal. Algo diverso se passa com a declaração parcial de nulidade sem redução
de texto, em que a decisão opera não sobre elementos normativos, mas sim sobre
os elementos empíricos.
2.2.2. Declaração parcial de nulidade sem redução de texto
Esta é a técnica empregada nos casos em que uma norma pode ser considerada
abstratamente constitucional mas ter incidências inconstitucionais em algumas
hipóteses de aplicação concreta. Nesses casos, o dispositivo permanece vigente
e inalterado, sem redução de texto, mas haverá o bloqueio de sua incidência
sobre determinadas hipóteses concretas especificadas na decisão. Observe-se que
a censura não recai sobre o dispositivo, e sim sobre determinadas hipóteses de
aplicação20 - daí o nome nulidade sem redução de texto. Esta técnica serve à solução
da inconstitucionalidade concreta21 de norma abstratamente constitucional.
Inicialmente, a jurisprudência do STF entendia como equivalentes as técnicas
de interpretação conforme a Constituição e de declaração de nulidade parcial sem
redução de texto, conforme restou consignado nas ADIs 491 e 319, ambas de
relatoria do Min. Moreira Alves. Mais recentemente a jurisprudência do Tribunal
19 STF, Pleno, ADPF 46, Rel. p/ acórdão Min. Eros Grau, j. 05.8.2009.
20 MENDES, Gilmar. Controle Abstrato de Constitucionalidade: ADI, ADC e ADO. São Paulo:
Saraiva, 2012, p. 529.
21 ÁVILA, Ana Paula Oliveira. Razoabilidade, proteção do direito fundamental à saúde e
antecipação de tutela contra a fazenda pública. Revista AJURIS, v.86, p.361-374, 2002.
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i encontro de internacionalização do conpedi
passou a acentuar a distinção entre elas enquanto técnicas autônomas22, no
sentido de que a interpretação conforme opera a exclusão de sentidos normativos
que possam ser atribuídos ao dispositivo além daquele fixado pela Corte, ao passo
que a declaração de nulidade parcial sem redução de texto opera a exclusão de
hipóteses de aplicação do âmbito de incidência da norma.
Pode-se citar como exemplo a decisão que teve por objeto decreto estabelecendo aumento de IPI com vigência imediata (em detrimento da exigência
constitucional da anterioridade nonagesimal). O STF declarou a nulidade parcial
sem redução de texto para que o decreto presidencial que aumentou as alíquotas
do IPI sobre a importação de automóveis não se aplicasse às operações ocorridas
dentro dos primeiros 90 dias de vigência da norma.23
De qualquer modo, a Corte ainda não exerce maior rigor conceitual quanto a
essas técnicas e vacila em alguns julgamentos, como na decisão da ADPF n. 54,
pela qual restou autorizada a antecipação terapêutica de parto de feto anencefálico.
Em diversos votos foi consignada a necessidade de se fazer a interpretação do
Código Penal de “modo conforme a Constituição”, mas claramente operou-se a
declaração de nulidade parcial sem redução de texto, eis que a norma proibitiva
do aborto segue vigente e aplicável à generalidade dos casos, exceto às hipóteses
concretas em que restar configurado o diagnóstico de anencefalia confirmado por
junta médica.
3. questões suscitadas pelo emprego das técnicas alternativas e a proteção das liberdades individuais
O grande problema na utilização dessas técnicas é que, muitas vezes, ao
determinar sentidos interpretativos da norma ou excluir determinadas hipóteses
de seu campo de incidência, pode-se alterar o sentido normativo originalmente
fixado pelo Legislador, quando não mesmo inovar na ordem jurídica – tarefa que
a jurisdição típica deve normalmente evitar.
22 MENDES, Gilmar. Controle Abstrato de Constitucionalidade: ADI, ADC e ADO. São Paulo:
Saraiva, 2012, p. 531.
23 STF, ADI 4661-DF MC, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 20.10.2011.
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Por isso, é pacífico o reconhecimento de que a literalidade do texto apresenta
um limite claro à jurisdição constitucional. Isso significa que seria inadmissível
que, do emprego dessas técnicas, resultasse um sentido atentatório à expressão
literal do texto24 -- esse limite não se circunscreve à jurisdição constitucional, mas
à interpretação jurídica de um modo geral.
Não se pode negar, porém, que os Tribunais tem sido levados a utilizar essas
técnicas decisórias para proferir decisões limítrofes, atípicas portanto, quando seja
absolutamente inevitável para dar uma resposta satisfatória aos casos concretos
que se põem a exame. Surge com isso uma espécie de ativismo judicial, que tem
levado a doutrina de direito constitucional e examinar mais detidamente a atuação
das Cortes Constitucionais tanto na Europa, como nos EUA.
Nessas condições, percebe-se que o tribunal é levado a transitar entre duas
posturas opostas: as doutrinas do “judicial restraint” e do “judicial activism”. A
primeira doutrina, do “judicial self-restraint”, releva a deferência em face do Poder
Legislativo democraticamente eleito, sobretudo em razão do déficit democrático
na ausência de representatividade popular dos juízes das Cortes Constitucionais,
que não são diretamente eleitos pelo povo25. Como uma forma de compensação
da carência dessa legitimação democrática, os tribunais constitucionais não
devem se arvorar nas tarefas do órgão legislativo e as leis somente devem ser
declaradas inconstitucionais quando a contrariedade em face da Constituição seja
plenamente evidente26.
Já a doutrina do ativismo judicial, na apertada síntese de Guastini,
se inspira, seja no valor da congruência entre o Direito e a
‘consciência social’; seja em uma meta-ética utilitarista (a tarefa
dos juízes é favorecer a melhor distribuição dos recursos); seja no
24 BITTENCOURT, Carlos Alberto Lúcio. O controle jurisdicional da constitucionalidade das
leis. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 95. HESSE, Konrad. A Força Normativa da
Constituição, p. 23.
25 Entre as referências que bem analisam essa doutrina, cf.: ELY, J. H., Democracy and Distrust.
A Theory of Judicial Review. Cambridge, 1980; RIRSCHL, Ran. Towards Juristocracy – the
origins and consequences of the new constitucionalism. Cambridge: Harvard University Press,
2007. WALDRON, Jeremy. Law and Disagreement. Oxford: Clarendon Press, 1999.
26 GUASTINI, Riccardo. Teoría e ideología de la interpretación constitucional. Madrid: Minima
Trotta, 2010, p. 63.
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i encontro de internacionalização do conpedi
dever constitucional dos juízes de proteger os direitos dos cidadãos
(assim como os direitos das minorias) contra as maiorias políticas;
seja em outros valores difíceis de identificar27.
Para que este estudo se mantenha estritamente dentro do seu objetivo
inicial, que é apenas analisar como as técnicas de decisão do controle abstrato de
constitucionalidade operam entre as exigências formais e materiais do Estado de
Direito, não adentrarei o debate que divide a doutrina brasileira entre os adeptos e
os críticos do neoconstitucionalismo, movimento que defende, no Brasil, o ativismo
judicial. Sobre o tema, já existe extensa e consistente produção doutrinária para
que o leitor encontre a sua própria corrente28. Não se pode desprezar, contudo,
que esse debate subjaz às decisões que passarei a analisar.
Os casos abaixo selecionados servem, apenas, para demonstrar, de um lado,
a utilização dessas técnicas para garantir direitos não contemplados pela agenda
legislativa e, de outro, os cuidados necessários para que elas não venham a
substituir a deliberação parlamentar em caráter definitivo. A seleção dos dois
casos (ADPF 132 e ADPF 54) deu-se por conta de dois critérios: ambos (a)
utilizam técnicas alternativas de decisão e (b) tratam de questões polêmicas que
dividem as opiniões de diversos segmentos da sociedade (e, por consequência,
também a opinião dos membros do Congresso Nacional), mas tratam de direitos
de liberdade e de decisões individuais que não podem esperar eternamente uma
deliberação legislativa majoritária para que sejam efetivados.
3.1. adpf 132 – reconhecimento das uniões homoafetivas
Em 05 de maio de 2011 foi publicada a decisão unânime do STF, na ADPF
n° 132, reconhecendo a união entre pessoas do mesmo sexo como entidade
27 idem, p. 64. [traduzi]
28 Cf., entre outros, RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial - Parâmetros Dogmáticos. São
Paulo: Saraiva, 2010; COMELLA, Víctor Ferreres. Justicia constitucional y democracia.
Madri: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1997; BARROSO, Luis Roberto,
Fundamentos teóricos e filosóficos do Novo Direito Constitucional Brasileiro. RDA 225:537; ÁVILA, Humberto. “Neoconstitucionalismo”: Entre a “ciência do direito” e o ” direito da
ciência”. Revista Eletrônica de Direito do Estado n. 17. Jan/Fev/Mar 2009, 1-19; BREYER,
Stephen. Active liberty: interpreting our democratic constitution. New York: Alfred A. Knopf,
2005.
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i encontro de internacionalização do conpedi
familiar. A decisão levou em consideração um conjunto normativo que incluía
dispositivos do Estatuto dos Servidores Públicos do RJ (em particular, arts. 19,
II e V, e 33, I a X) que, se interpretados discriminatoriamente, negam às uniões
homoafetivas o mesmo regime jurídico dispensado às uniões estáveis; o art. 1.723
do Código Civil, que reconhece a união estável entre o homem e a mulher como
entidade familiar, todos cotejados em face dos arts. 5°, caput (liberdade, igualdade,
autonomia da vontade, segurança jurídica), 1°, IV (dignidade da pessoa humana)
e 3°, IV (proibição de preconceito em razão do sexo e qualquer outra forma de
discriminação).
Não há previsão expressa na ordem jurídica brasileira acerca do reconhecimento
da união estável entre pessoas do mesmo sexo. Existe apenas, em nível
constitucional (CF, art. 226, § 3°) e infra (CC, art. 1.723), a determinação de
que o Estado reconheça a união estável entre o homem e a mulher como entidade
familiar. Esse tipo de reconhecimento permite às partes o poder de deliberação
acerca de diversos aspectos patrimoniais e extrapatrimoniais concernentes à união
civil, sem falar, mais tarde, em questões sucessórias e benefícios previdenciários
aplicáveis às relação estáveis, de convívio duradouro em entidade familiar. O
não-reconhecimento pelo Estado da união homoafetiva impede aos participantes
dessa relação o poder de deliberação e disposição em face de todas essas questões.
A questão de fundo, como facilmente se percebe, é a proteção das minorias,
para que sejam assegurados aos homossexuais os direitos à manifestação da
autonomia da vontade e à autorregulação dos próprios interesses, direitos que
são indissociáveis da personalidade do indivíduo. O dever [estatal] de proteção
das minorias não passou despercebido pelo voto do Min. Gilmar Mendes, que,
constatando a existência de lacuna normativa quanto à matéria, asseverou em seu
voto: “a omissão da Corte poderia representar um agravamento no quadro de
desproteção das minorias, as quais estariam tendo os seus direitos lesionados”29.
O interessante é que neste caso o Supremo viu-se compelido a fazer uma
interpretação da própria Constituição conforme a Constituição. Dito de outro
modo, interpretou a parte conforme o todo. De fato, o STF teve de reconhecer
que uma interpretação restritiva do próprio texto constitucional que ampara a
29 ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto. STF, Pleno j. 05/05/2011.
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união estável entre homem e mulher (art. 226, § 3°) contrastaria com a dignidade
da pessoa e com o direito de igualdade previstos, respectivamente, nos arts. 1° e
5°, e com a proibição de preconceito em razão do sexo e de todas as formas de
discriminação, prevista no inc. IV do art. 3° da Constituição. Essa integração
entre as diversas normas constitucionais aplicáveis ao caso dá sentido à relevante
advertência de Eros Grau, muito difundida na jurisprudência do STF, de que
assim como jamais se interpreta um texto normativo, mas sim o
direito, não se interpretam textos normativos constitucionais,
isoladamente, mas sim a Constituição, no seu todo. Não se
interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços. A interpretação
de qualquer norma da Constituição impõe ao intérprete, sempre,
em qualquer circunstância, o caminhar pelo percurso que se
projeta a partir dela – da norma - até a Constituição.30 [grifei]
Procedendo, então, a uma interpretação extensiva (extensão analógica) do
art. 226, § 3°, a Corte entendeu que o fato de a Constituição determinar que
o Estado proteja a união estável entre homem e mulher não significa que tenha
excluído a possibilidade de união entre pessoas do mesmo sexo (“tudo aquilo que
não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido”).
Considerou haver, na espécie, uma situação de lacuna normativa31, que pode
ser superada pelo mecanismo da integração analógica, “decorrente da similitude
factual entre a união estável e a homoafetiva”. Porém, é por demais evidente que
o resultado prático desta decisão interpretativa ilustra, em tese, manifestação de
ativismo judicial pelo Supremo Tribunal Federal.
Por tal razão a decisão, que foi unânime, foi alvo de muitas críticas. Os críticos
registram que, ao proceder à extensão analógica, a Corte, na prática, terminou por
30 GRAU, Eros Roberto Grau, A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros
Editores, 14.ed. 2010, p. 69
31 Entre esses dois argumentos da decisão, o bom e velho KELSEN interviria para argumentar
que a teoria das lacunas do Direito “é errônea, pois funda-se na ignorância do fato de que,
quando a ordem jurídica não estatui qualquer dever de um indivíduo de realizar determinada
conduta, permite esta conduta. A aplicação da ordem jurídica vigente não é, no caso em que a
teoria tradicional admite a existência de uma lacuna, logicamente impossível. Na verdade, não
é possível, neste caso, a aplicação de uma norma jurídica singular. Mas é possível a aplicação da
ordem jurídica –e isso também é aplicação do Direito.” [grifei]. KELSEN, Hans. Teoria Pura do
Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1991, pp. 263-4.
290
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inovar na ordem jurídica, reconhecendo um tipo de união estranho ao Código
Civil e à própria Constituição, que somente contemplam a união estável entre
homem e mulher. Registram, ainda, que a decisão contrariou o próprio dispositivo
literal da Constituição Federal que dispõe, taxativamente, “entre homem e
mulher”, configurando a usurpação, pelo Poder Judiciário, da tarefa que incumbe
ao poder legislativo32. Em suma, o reconhecimento da união estável entre pessoas
do mesmo sexo concitaria a manifestação do legislador, não podendo o Judiciário
se impor ao espaço público e impedir a tomada de decisões pela via democrática33.
Pouco há que discordar em face desses argumentos quando se pensa nas
estruturas formais do Estado de Direito, que repousam, como dito no início deste
ensaio, nos pilares da separação de poderes, da democracia e da legalidade. Há no
entanto fundamentos materiais para o Estado de Direito, que estão enunciados
já no Título I da Constituição Federal e denotam um Estado comprometido com
a existência digna e a realização pessoal do indivíduo. Esse comprometimento
toca, por certo, a todos os poderes da República, de modo que cumpre verificar
qual a postura que se pode esperar do Judiciário quando constata a omissão
legislativa no que diz respeito com a realização de direitos fundamentais de que
são detentoras as minorias sociais. Como se sabe, a agenda legislativa nem sempre
coincide com a agenda de necessidades sociais, muito menos com aquela dos
grupos minoritários em situação de desigualdade e vulnerabilidade.
Mesmo alguns críticos tradicionais do neoconstitucionalismo (e, por
consequência, do ativismo judicial) reconhecem que a exigência de igualdade
permite ao intérprete da Constituição criar uma grande quantidade de normas
igualadoras e diferenciadoras, seja porque o legislador regulou apenas uma
categoria de casos, omitindo-se quanto aos demais, seja porque regulou a todos
genericamente, quando deveria ter feito distinções necessárias34. A hipótese aqui
32 A crítica de IVES GANDRA DA SILVA MARTINS está em http://ciencia.estadao.com.br/
noticias/geral,juristas-e-igreja-contestam-a-decisao-do-stf-sobre-uniao-homoafetiva,715497 ,
publicada em 05.05.2011, capturada em 13.06.2014.
33 STRECK, Lenio; BARRETTO, Vicente de Paula; OLIVEIRA, Rafael Tomaz. Normas
constitucionais inconstitucionais, artigo publicado no Consultor Jurídico do dia 19.07.2009,
por ocasião do julgamento da ADPF n. 132. Captado em: http://www.conjur.com.br/2009jul-19/confiar-interpretacao-constituicao-poupa-ativismo-judiciario
34 GUASTINI, Riccardo. Teoría e ideología de la interpretación constitucional. Madrid: Minima
Trotta, 2010, p. 29.
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i encontro de internacionalização do conpedi
versada é justamente aquela em que o legislador regulou uma categoria de casos
(união estável entre homem e mulher), deixando de fora outro grupo (união
estável homoafetiva), ensejando a atuação judicial corretiva através da aplicação
da norma da igualdade. Nesse sentido,
quanto maior for o grau de desigualdade, tanto maior deverá
ser o âmbito material de atuação no sentido de corrigi-la ou de
verificar os pressupostos para uma diferenciação válida. Só haverá
ativismo judicial se o exercício da função judicial comprometer a
igualdade geral das regras e a sua uniforme aplicação. [...] Não se
pode qualificar tout court a atividade judicial como ativista pelo
simples fato de ser extensa. Em algumas situações, o maior âmbito
material é imposto pelas normas constitucionais que devem ser
concretizadas, pelos direitos fundamentais que são restringidos
ou pela relação jurídica por meio da qual aquelas normas e esses
direitos são configurados.35
Com efeito, em algumas situações o Poder Judiciário deverá atuar dentro
de um âmbito material mais amplo, porque a conformação material do Estado
de Direito assim exige. Isso ocorre quando o Legislativo deixa de apreciar e
conformar, através da elaboração das leis que lhe compete, os princípios ou direitos
fundamentais que cumpre ao Estado garantir e proteger. Tal é o caso do direito
de liberdade do indivíduo para constituir união estável com alguém do mesmo
sexo, usufruindo da proteção do Estado e todas as repercussões patrimoniais e
extrapatrimoniais decorrentes.
Por isso, tenho dúvidas de que esta decisão seja mesmo uma expressão de
ativismo judicial. Ela mais parece o centro de convergência de diversas normas
constitucionais, inclusive daquelas normas que coordenam a distribuição de
competências aos diferentes órgãos estatais. É que, ante a ausência de exercício das
competências constitucionalmente atribuídas, a própria Constituição estabelece
uma solução genérica às lesões decorrentes da inércia estatal ao estabelecer que
nenhuma lesão ou ameaça de lesão escapará da apreciação do Poder Judiciário.
Nesse caso, pois, o Judiciário não se furtou a uma função que é, ao fim e ao cabo,
eminentemente sua.
35 AVILA, Humberto. Ativismo Judicial e Direito Tributário. In Rocha, Valdir de Oliveira
(Coordenador) Grandes questões atuais de direito tributário. Vol. 15. São Paulo: Dialética,
2011, p. 154-5
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i encontro de internacionalização do conpedi
Embora esse tipo de decisão deva se cercar dos maiores cuidados do ponto
de vista da fundamentação, que deve estar sempre amparada em norma
constitucional, o certo é que o juízo fixado pelo Supremo Tribunal Federal é válido
até que o Legislativo promova as alterações legais ou até mesmo constitucionais
necessárias, restabelecendo a soberania popular – alteração essa que deve ser
realizada dentro dos parâmetros constitucionais de igualdade e da garantia dos
direitos fundamentais, sob pena de nova censura de inconstitucionalidade.
3.2.adpf 54 – antecipação ter apêutica do parto de fetos anencefálicos
Outro julgamento bastante polêmico deu-se na ADPF 54, que autorizou a
antecipação terapêutica do parto de fetos com anencefalia. Dito de outra forma,
o Supremo autorizou a prática de abortamento em uma situação específica
(anencefalia do feto), ainda que não contemplada taxativamente como causa de
exclusão de ilicitude do tipo de aborto previsto do Código Penal.
Em uma síntese tão breve quanto possível do processo, a arguição foi proposta
pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS, apontando
como violados os preceitos dos artigos 1º, IV – dignidade da pessoa humana –,
5º, II – princípio da legalidade, liberdade e autonomia da vontade –, 6º, caput,
e 196 – direito à saúde –, todos da Constituição Federal e, como ato do Poder
Público causador da lesão, o conjunto normativo ensejado pelos artigos 124, 126,
caput, e 128, incisos I e II, do Código Penal – Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de
dezembro de 1940.
O pedido principal foi pela declaração de que os artigos 124, 126, 128, I
e II, todos do Código Penal, se interpretados de modo a punir tal antecipação
terapêutica de anencéfalo, são inconstitucionais. Requereu-se o emprego da
técnica da interpretação conforme a Constituição para que apenas o feto com
capacidade potencial de ser pessoa possa ser sujeito passivo do crime de aborto.
A ação foi julgada procedente, por maioria. O voto do relator, Min. Marco
Aurélio, lançou premissas que foram explicita ou implicitamente adotadas pelos
demais ministros que votaram pela procedência da arguição, as quais apresento
aqui de forma brevíssima. Antes de mais, tece considerações importantes acerca da
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i encontro de internacionalização do conpedi
laicidade do Estado brasileiro, realizando uma digressão histórica sobre a presença
da religião católica no então Império brasileiro, e o momento em que a laicidade
foi alçada a princípio constitucional pela Constituição de 1891. Esse caráter laico
segue consagrado na atual Constituição de 1988, em seu art. 19, inciso I, razão
por que as concepções morais religiosas não podem guiar as decisões estatais,
devendo permanecer circunscritas à esfera de intimidade do indivíduo. Fica,
assim, estabelecida a premissa de que a decisão referente ao presente processo não
pode ser examinada sob os influxos de orientações morais ou religiosas.
O relatório refere, inicialmente, que não cabe invocar o direito à vida dos
anencéfalos. Isso porque, nas palavras do relator, “anencefalia e vida são termos
antitéticos”36, porquanto o anencéfalo não tem expectativa, nem é ou será
titular do direito à vida. Neste contexto, portanto, não se pode falar em aborto,
este sim crime contra a vida. Refere-se que “a interrupção da gestação de feto
anencefálico não configura crime contra a vida – revela-se conduta atípica”. A
decisão põe em relevo aspectos psíquicos relativamente à saúde física e moral da
mulher, evidenciando que cabe à mulher, e não ao Estado, valorar sentimentos
que são de ordem privada. Neste sentido, reconhece-se o direito da mulher de
autodeterminar-se em caso de absoluta inviabilidade de vida extrauterina.
O julgado consigna, finalmente, que a imposição estatal da manutenção
da gravidez diante do diagnóstico de anencefalia do feto vai de encontro a
princípios basilares do sistema constitucional, precisamente à dignidade da pessoa
humana, à liberdade, à autodeterminação, à saúde, ao direito de privacidade e
ao reconhecimento pleno dos direitos sexuais e reprodutivos de milhares de
mulheres.
O voto do Ministro Luiz Fux acrescenta o exame da proporcionalidade à
discussão e propõe uma “releitura das excludentes de ilicitude à luz das novas
necessidades científicas e sociais”. Para a Ministra Rosa Weber,
a tendência do uso semântico do conceito de vida no Direito
está relacionado com critérios voltados às ideias de dignidade,
36 ADPF 54/DF, Rel. Min. Marco Aurélio. STF, Pleno, j. em 12.04.2012. Todas as expressões
entre “aspas” que se seguem no texto correspondem a trechos da decisão publicada na ADPF
54. Como serão referidos no corpo do texto os Ministros a quem se atribui cada expressão,
deixo de fazer a nota de rodapé correspondente a cada uma dessas citações diretas, por
remeterem à mesma fonte aqui citada.
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i encontro de internacionalização do conpedi
viabilidade de desenvolvimento e presença de características
mentais de percepção, interação, emoção, relacionamento,
consciência e intersubjetividade e não apenas atos reflexos e
atividade referente ao desenvolvimento unicamente biológico.
Diante disso, é de se reconhecer que merecem endosso os
posicionamentos de não caber a anencefalia no conceito de aborto.
O Ministro Gilmar Mendes, em que pese considerar que a atipicidade do
aborto nesta hipótese é incorreta, ante a evidente proteção jurídica que se confere
ao nascituro, entende que a situação enseja uma interpretação evolutiva do
Código Penal, elaborado num momento em que não se dispunha da tecnologia
de diagnóstico hoje acessível a todas as gestantes. Julga procedente a ação,
“para dar interpretação conforme a Constituição, com efeitos
aditivos, ao art. 128 do Código Penal, para estabelecer que, além
do aborto necessário (quando não há outro meio de salvar a vida
da gestante) e do aborto no caso de gravidez resultante de estupro,
não se pune o aborto praticado por médico, com o consentimento
da gestante, se o feto padece de anencefalia comprovada por junta
médica competente, conforme normas e procedimentos a serem
estabelecidos no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)”.
Entre os votos contrários, o Ministro Lewandowski funda seu voto na antiga
Escola da Exegese para reafirmar que “quando a lei é clara, não há espaço para
a interpretação”. Afirma que os integrantes do Poder Judiciário não podem
promover inovações no ordenamento normativo como se parlamentares eleitos
fossem. Lançando mão de argumentos ad terrorem, ele lembra que continua em
vigor o texto da legislação penal que não admite, em nenhuma circunstância, o
aborto eugênico, e que
“uma decisão judicial isentando de sanção o aborto de fetos
portadores de anencefalia, ao arrepio da legislação penal vigente,
além de discutível do ponto de vista ético, jurídico e científico,
diante dos distintos aspectos que essa patologia pode apresentar
na vida real, abriria as portas para a interrupção da gestação de
inúmeros outros embriões que sofrem ou venham a sofrer outras
doenças, genéticas ou adquiridas, as quais, de algum modo, levem
ao encurtamento de sua vida intra ou extra-uterina”.
Na mesma trilha segue o Ministro Peluso, para quem “embora não tenha
ainda personalidade civil, o nascituro é, anencéfalo ou não, investido pelo
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i encontro de internacionalização do conpedi
ordenamento, segundo velha e fundada tradição jurídica, na garantia expressa
de resguardo de seus direitos, entre os quais se conta a fortiori o da proteção da
vida, como dispõe hoje o art. 2º do Código Civil. Pode, daí, por exemplo, receber
doação, desde que aceita por seu representante legal (art. 542 do Código Civil)”.
Neste sentido, observa que “o aborto de anencéfalo e a eutanásia aproximam-se
de maneira preocupante”, levando a uma “ameaça eugênica”.
No entanto, por maioria, o Tribunal realizou a interpretação conforme a
Constituição para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a
qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos
124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal brasileiro. Quanto à técnica
empregada, a decisão refere a técnica da interpretação conforme, mas parece
mais correto entender que houve, na verdade, uma declaração parcial de nulidade
sem redução de texto. Isso porque, diferente da interpretação conforme, em
que se faz um juízo condicional de constitucionalidade, no sentido de se aceitar
somente uma determinada interpretação entre várias que possam ser atribuídas à
norma com exclusão das demais, a decisão na ADPF 54 operou sobre o âmbito
normativo da norma, i.e., sobre as hipóteses fáticas compreendidas no seu campo
de incidência. Com efeito, o que fez o tribunal foi excluir um grupo de casos (o
de gestantes de fetos anencefálicos) do campo de incidência da normas punitiva
do aborto, permanecendo ela válida e eficaz para garantir a criminalização dos
demais casos.
Por tratar de um assunto sensível à sociedade, como é a discussão do aborto,
esta foi uma das questões mais polêmicas levadas ao STF. Aqui apresentei
brevíssima síntese dos fundamentos do longo julgado, mas o fato é que no resultado está implícito o recurso ao postulado da proporcionalidade para ponderar
fatores que não podiam ser considerados pelo legislador ao tempo da elaboração
do Código Penal (1940), como o diagnóstico certeiro de inviabilidade de vida
em fetos anencefálicos. Isso altera completamente a lógica da proibição do
aborto nesta hipótese. Explico: é claro que a Constituição protege o direito a
vida, e é este o fim que anima a conformação dada pelo Legislativo à matéria ao
criminalizar o aborto e proteger o nascituro. Mas a restrição da liberdade da mãe
pela criminalização do aborto não leva ao fim na hipótese de gestação de feto
anencefálico. Isso torna a restrição à liberdade de escolha da mãe inadequada, desne296
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cessária, ipso facto excessiva, porque, mesmo obrigando-a a levar a gestação a
termo, o fim que justifica a restrição, que é o bem vida, não será de modo algum
atingido.
Embora o raciocínio pareça simples, melhor seria se ele fosse desempenhado
pelo Poder Legislativo, como não deixou de registrar o Ministro Gilmar Mendes
em seu voto. Na prática, a decisão termina por criar uma nova causa de exclusão
de ilicitude do crime de aborto, não prevista expressamente no art. 128 do Código
Penal. Trata-se, à toda evidência, de inovação legislativa em matéria penal pelo
Supremo Tribunal Federal através do emprego de técnica alternativa de decisão.
O direito penal, por lidar com a restrição de um dos bens mais fundamentais
do indivíduo – a liberdade—, é um campo tradicionalmente submetido ao
princípio da reserva legal. Isso implica a submissão da matéria a procedimento
legislativo próprio, exigindo a deliberação e consenso dos representantes do povo.
A criação de novos tipos penais não é, via de regra, admitida por intervenção
do Executivo ou do Judiciário, pois nesta matéria o Legislativo é soberano, sob
pena de inconstitucionalidade. Entretanto, o caso aqui tratado versa a exclusão
de ilicitude, algo que opera in bonam partem, ao contrário da criminalização. E
coloca em relevo um direito fundamental de liberdade da mulher que sofre a
restrição do sistema penal desnecessariamente, num tema que o Legislativo, até o
momento, não demonstra querer discutir.
Estabelecer qual a medida da intervenção do Judiciário no desempenho de
sua função de apreciar a lesão ou ameaça de lesão a direitos (art. 5°, inc. XXXV)
dessas mulheres é algo que põe em evidência a divisão de poderes, a democracia
e a legalidade. E nenhuma intervenção colocaria em evidência a lesão a outras
normas igualmente fundamentais da Constituição, que protegem a dignidade
da pessoa, a liberdade, a autonomia da vontade, a integridade física e moral e a
própria proibição de excesso.
Mais uma vez está-se diante de situação em que o Poder Judiciário se utiliza das
técnicas alternativas da jurisdição constitucional para atuar dentro de um âmbito
material mais amplo, porque a proteção do indivíduo contra os excessos do Poder
Público e a efetivação dos seus direitos fundamentais (que são o fundamento
e fim último do Estado de Direito) assim exigem. O tema compreende outra
questão que ficou de fora da agenda legislativa, geralmente omissa quanto a
discussões que desafiam suscetibilidades, questões morais e também religiosas.
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i encontro de internacionalização do conpedi
Deste modo, quando o Legislativo deixa de tomar as decisões normativas que
lhe competem, os direitos fundamentais do indivíduo que cumpre ao Estado
garantir permanecem carentes da solução que impende ao Poder Judiciário –por
expressa disposição constitucional (CF, art. 5°, XXXV). Tal é o caso do direito de
liberdade da gestante de feto anencefálico, que não pode, desnecessariamente, ser
obrigada pelo Estado a levar a termo uma gestação que não alcançará o bem vida
à sociedade.
4. conclusões
Através deste ensaio, pretendi examinar as técnicas de decisão utilizadas
pelo Supremo Tribunal Federal no controle abstrato de constitucionalidade.
Registrei que, além das técnicas conclusivas de declaração de constitucionalidade
e inconstitucionalidade, outras soluções são possíveis, as intermediárias ou
alternativas. “Alternativas” porque conferem ao Tribunal uma opção que permite
a permanência da norma no ordenamento jurídico através de adaptações quanto
ao significado atribuído ao enunciado linguístico da norma (programa normativo) ou ao recorte empírico sobre o qual incide a norma (âmbito normativo).
Com isso, apresenta-se uma alternativa entre a exclusão total da norma do
ordenamento (inconstitucionalidade, com efeito vinculante) ou sua aplicação
irrestrita (declaração de constitucionalidade, com efeito vinculante).
Observei que, embora o STF nem sempre faça uma distinção clara entre a
interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de nulidade sem
redução de texto, as duas técnicas operam sobre elementos distintos da norma.
Assim, a interpretação conforme se circunscreve à definição, entre diferentes
interpretações que possam ser abstratamente atribuídas à norma, daquela que
é compatível com o texto constitucional, operando-se a exclusão em relação aos
demais sentidos.
A seu turno, a declaração parcial sem redução de texto opera em consideração
às particularidades evidenciadas em certos casos concretos que venham a ser
atingidos pela norma em questão. Isso é necessário porque, embora a norma,
abstratamente considerada, não suscite qualquer problema em face do texto
abstrato da Constituição, muitos casos compreendidos pelo seu campo de
incidência apresentam vicissitudes que tornam a aplicação da norma inviável
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para determinadas questões, pelo prisma da Constituição. Um exemplo bastante
singelo desta situação em que a norma, em abstrato, é válida, mas pode ter
algumas incidências inválidas (inconstitucionalidade em concreto), está no
art. 1° da Lei n° 9.494/97 que proíbe a antecipação de tutela contra a Fazenda
Pública. Esse dispositivo foi declarado abstratamente constitucional pelo STF
na ADC n° 4, contudo o mesmo tribunal reconhece, pacificamente, em diversas
reclamações ajuizadas perante aquela Corte, que no caso de antecipação de tutela
de medicamentos indispensáveis que devem ser prestados pelo Estado em caráter
de urgência, sob pena de dano irreversível à saúde, o dispositivo deve ter sua
incidência bloqueada por lesar o direito à saúde e à existência digna, garantidos
na Constituição.
Fica evidente que essas técnicas alternativas são mecanismos de adaptação que
servem ao escopo de garantir a permanência das normas editadas pelo Legislativo,
sob o manto do respaldo popular, apesar de alguns de seus aspectos suscitarem
controvérsias constitucionais. Servem, portanto, ao princípio democrático. No
entanto, dependendo do resultado hermenêutico atingido através do uso das
técnicas, pode-se promover justamente o inverso. Isso porque, como visto, delas
podem decorrer inovações na ordem jurídica que muitas vezes atentam contra o
próprio texto de proposições normativas aprovadas pelo Poder Legislativo.
As decisões judiciais que, sem declarar uma norma inconstitucional, alteram
a fixação de seu sentido a ponto de desfigurar a conformação legislativa original,
manifestam o que muitos denominam de ativismo judicial. No entanto, há
que distinguir os vários tipos de atuação judicial, para que se possa harmonizar
algumas dessas situações com o conjunto normativo da Constituição. Esse parece
ser o caso das decisões judiciais proferidas nas ADPFs 54 e 132, em que as técnicas
alternativas foram utilizadas para solucionar casos de omissão e iniquidade,
envolvendo direitos fundamentais de minorias sociais sem representatividade
suficiente para fazer mover a máquina legislativa. Não se trata, portanto, de mera
disputa entre Poderes para ver quem “pode mais” na República37, e nem de saber
37 E é deste modo que designo uma discussão lateral do HC 82.959/SP, Rel. Min. Marco
Aurélio, em que se propôs o reconhecimento da “mutação constitucional” do art. 52, X, da
CF, para entender dispensável a competência do Senado de suspender a execução das normas
declaradas inconstitucionais por decisão definitiva do STF. Com isso, as decisões do STF em
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i encontro de internacionalização do conpedi
quem tem condições de deliberar “melhor” acerca de determinada matéria, pois,
como visto nos casos tratados, o tribunal operou em face da falta de regulação
normativa específica que atendesse aos direitos sub judice.
Trata-se, sim, da realização efetiva do fundamento material do Estado de
Direito, que é a proteção do indivíduo e de sua dignidade em face das omissões
do Poder Legislativo em regulamentar questões sociais relevantes e urgentes –
malgrado já se tenham passado 25 anos desde a promulgação da Constituição.
Ressalvo, contudo, que toda atuação judicial nesse sentido deve amparar
racionalmente os seus fundamentos nas normas constitucionais e concretizar
disposições preexistentes, dando coerência e consistência ao conjunto normativo
da Constituição, inclusive daquelas normas que coordenam a distribuição
de competências aos diferentes órgãos estatais. E, na falta do exercício de
competências constitucionalmente atribuídas aos órgãos legislativos, que se
façam valer as soluções constitucionalmente válidas, como é o exercício da
jurisdição no restabelecimento de direitos lesados ou ameaçados. O refinamento
das técnicas decisórias na jurisdição constitucional deu-se no firme propósito de
preservar as normas do Legislativo, tanto quanto possível, mas também para que
o Judiciário possa garantir direitos em situação de vulnerabilidade e não se furte
a uma tarefa que é, ao fim e ao cabo, eminentemente sua.
5.referências
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i encontro de internacionalização do conpedi
tr atados internacionais:
sober ania versus indivíduo
Luís Renato Vedovato1
Daniel Francisco Nagao Menezes2
Resumo
O presente artigo pretende debater se os Tratados Internacionais, na atualidade, sofrem um processo de mutação em seu objeto de proteção. Historicamente, os Tratados Internacionais eram uma afirmação de compromisso do
soberano, sendo por tal razão, um ato de Estado. Com o passar do tempo, os
Tratados Internacionais deixam de proteger interesses dos Estados e passam a
proteger interesses dos indivíduos, aproximando-se portanto, em atos de governo
(atos ordinários). Por trás desta aparente proteção do indivíduo com esta mutação
dos Tratados Internacionais, encontramos a possibilidade de expansão do sistema
econômico capitalista, o qual, defende a primazia do indivíduo, porém, sem
trazer qualquer proteção a este indivíduo.
Palavras-chave
Tratados Internacionais; Individualismo; Decisão de Estado.
Abstract
This article aims to discuss whether international treaties, in actuality, undergo
a process of mutation in their object of protection. Historically, international
1 Professor do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Nove de Julho. Também
é professor doutor na UNICAMP, lecionando na Faculdade de Ciências Aplicadas e no
Instituto de Economia.
2 Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas,
especializações em Direito Constitucional e Direito Processual Civil ambos pela PUCCampinas, Especialização em Didática e Prática Pedagógica no Ensino Superior pelo Centro
Universitário Padre Anchieta, Mestre e Doutor em Direito Político e Econômico pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor Universitário da Faculdade de Direito da
Universidade Presbiteriana Mackenzie, campus Campinas e, das Faculdades de Campinas FACAMP
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i encontro de internacionalização do conpedi
treaties were an affirmation of commitment of the sovereign, and for this reason,
an act of state. Over time, international treaties fail to protect the interests of
States and shall protect the interests of individuals, thus approaching in acts of
government (ordinary acts). Behind this apparent protection of individuals with
this mutation of International Treaties, we find the possibility of expansion of
the capitalist economic system, which defends the primacy of the individual,
however, without providing any protection for this individual.
Key words
International Treaties; Individualism; Decision of State.
1.introdução
De acordo como REZEK (2011, p. 35), os Tratado Internacionais fazem parte
do cotidiano da vida em comunidade, desde antes de Cristo. Independentemente
do modelo de Estado, sempre existiram acordos entre povos, sejam acordos de
não agressão, como também os de cooperação, tendo como exemplo clássico, as
cidades estados gregas.
Estes simples atos internacionais da antiguidade3 – que eram entendidos
como compromissos pessoais dos soberanos, até os atuais e complexos acordos
multilaterais, tem um ponto em comum, a defesa dos interesses do Estado,
quando muito da Nação. Toda a estrutura de formação, negociação, redação e
aplicação dos Tratados Internacionais (entendidos aqui como gênero de todos os
tipos de atos internacionais) é conduzida por um ente soberano que, atua em seu
interesse.
Porém, no contexto da pós-modernidade, a finalidade de defesa dos interesses
do Estado é colocada em xeque. No atual momento histórico há um resgate
do individualismo e a elevação desde ao centro dos interesses da sociedade,
3 O tratado mais antigo de que se tem notícia data de 3000 A.C, firmado entre cidades da
Mesopotâmia chamadas Logash e Umma, tratando da fixação de fronteiras, recorrendo-se à
arbitragem do rei de uma terceira cidade, Kish, para a solução da questão. Deste tratado se
pode inferir um certo desenvolvimento de algumas instituições de direito internacional, neste
caso a arbitragem. Após este tratado, tem-se um período de 1000 anos até o surgimento de
outro de que se tenha prova.
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i encontro de internacionalização do conpedi
transformando a realidade social em algo fluído, baseado no interesse mutável de
cada pessoa.
Como ficam os Tratados Internacionais, que originariamente possuem a
missão de defender interesses nacionais diante da valorização do indivíduo?
Como o indivíduo é protegido em um contexto de proteção do interesse do
Estado? Estas são as questões centrais a serem discutidas no artigo.
2.evolução dos tr atados
Para a existência de Relação Internacionais é necessária a ocorrência de dois
fatores simultâneos: a existência de grupos humanos autônomos e, comunicação
entre estes grupos. A partir da existência do grupo e, de um canal de comunicação
surge a partir da ação política do Estado (grupo humano) a sua relação com outro
grupo nas mesmas condições e com interesse na comunicação.
A forma jurídica como os acordos (obrigações) pactuados a partir da ação
política dos Estados é o que atualmente denominamos Tratados Internacionais.
A evolução história dos Tratados pode ser dividido em três momentos históricos
distintos:
a) Período da unidade (característico da Idade Média):
Tem início ainda no Império Romano e busca como característica central
manter a unidade do Império, voltando-se os tratados aos interesses de Roma.
Após a queda de Roma, passa a ser utilizado pela Igreja Católica a fim de manter
a unidade do povo cristão, o qual é considerado “um só” independentemente do
território que habitam.
b) Período do equilíbrio (próprio da Idade Moderna)
A principal pretensão internacional de cada Estado de neutralizar a expansão
de cada um dos outros, a fim de manter o status quo político e territorial. Não há
mais neste período a força unificadora do Império Romano e, com a pulverização
do território romano em pequenos feudos sem uma autoridade central, era
necessária negociação constantes entre os vários feudos (reinos) para evitar a
aniquilação ou incorporação, criando uma política de compensações territoriais
que sobrevive até a II Guerra Mundial.
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i encontro de internacionalização do conpedi
c) Período da Organização Internacional (Atualmente)
Entende-se, especialmente após o final da II Guerra Mundial que assuntos
como a segurança, a paz, qualidade de vida, direitos humanos, só são possíveis
mediante a colaboração de todos os Estados membros. Uma instituição estável
e idônea e pelos deveres dos Estados membros, contando com um sistema
juridicamente regulado e de caráter permanente, garantia o alcance dos ideais
acima transcritos.
Na contemporaneidade, como já colocado estamos diante de um período que
prima pela existência de organismos multilaterais, o que acaba por formar o que
denominamos Sociedade Internacional, formada pelos Estados, pelos organismos
internacionais e pelos indivíduos isoladamente, apresentando as seguintes
características (BREGALDA, 2007, p. 04):
“(a) Isonomia: deve haver igualdade entre os sujeitos;
(b) Descentralização: pois vários são os criadores e destinatários das
normas de direito internacional. Ainda permanece, mas não como
uma verdade absoluta, já que existem hoje órgãos completamente
centralizados;
(c) Universalidade: deve abranger o máximo possível de integrantes;
(d) É Aberta: como corolário lógico da característica anterior, é aberta
a novos integrantes.
(e) Com direito originário: visam criar um âmbito normativo novo.”
Reiterando o que já fora colocado acima, a forma como os membros desta
Sociedade Internacional negociam seus interesses na atualidade, são, em sentido
genérico, os Tratados Internacionais, os quais, surgem, como se pode observar,
como um ato de soberania, tanto é que nos dias atuais, o Poder Legislativo
(representando do poder soberano – povo) também participa dos atos de
celebração dos Tratados Internacionais.
“Tradicionalmente, a competência do Executivo para a política
externa estatal sempre foi reconhecida, mas a atuação do Legislativo no
processo de conclusão dos tratados é reputada uma conquista recente,
que foi patrocinada pelas revoluções burguesas do século XVIII. Isto é,
costuma-se considerar que a partir das referidas revoluções a atuação
306
volume
06
i encontro de internacionalização do conpedi
do Executivo na esfera internacional teria sido limitada pela ação do
Legislativo.
Entretanto, embora historicamente a negociação dos tratados tenha
sido constantemente julgada atribuição do Poder Executivo, não é
correto considerar que em tempos remotos a decisão sobre a vinculação
a um tratado também fosse uma área de amplo arbítrio do governante,
de forma que a vontade da unidade política em obrigar-se por um
tratado fosse formada exclusivamente pelo seu dirigente.” (TOLFO,
2013, p. 1.731)
Ainda que o Tratado tenha participação do Poder Legislação, seja na sua
aprovação seja no procedimento de internalização, como determina o art. 49, I
da Constituição Federal, o Tratado Internacional, continua a ser uma decisão de
soberania de Estado.
3.tr atados internacionais como ato de estado e
não de governo
O Tratado Internacional é ato de Estado e não mero ato burocrático de governo, cabendo por isso, ao chefe de Estado, a sua celebração, independentemente
da aprovação posterior do Poder Legislativo.
Tanto é assim, que Carl Schmitt em seus escritos sobre Direito Internacional
nega traço universalista ou humanitário neste ramo do direito, traduzindo-o
como uma tentativa de regramento em um cenário de caos em que existem vários
atores disputando o mesmo espaço, em um cenário de desconfiança, atores os
quais, se valem da guerra4 como mecanismo real de relação entre as unidades.
Isto porque, os Estados soberanos permanecem portadores de vontades
autônomas, alheias a todo tipo de sujeição a uma ordem normativa que lhes seja
exterior. Se de um lado é certo que a convivência entre estes Estados não é “um
caos sem regras de vontades egoísticas de poder” (SCHMITT, 1979, p. 139), por
4 “É inadmissível designar de maneira indiferenciada todo recurso à violência na forma da guerra
como anarquia e considerar esta designação como a última palavra sobre a questão internacional
da guerra. Uma circunscrição [Einhegung] da guerra e não a sua abolição foi até hoje o autêntico
êxito do direito, foi até hoje a única realização do direito internacional.” (SCHMITT, 1979, p.
159)
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i encontro de internacionalização do conpedi
outro lado, sua ordem tampouco nos é apresentada como o produto de pactos e
compromissos a que cada uma das partes aceitaria se submeter.
A guerra é um meio racional e real do Estado buscar construir uma ordem
política interna e, portanto, é a força dos Estados Nacionais quem estabelece o
jogo de poder e estabilidade internacional, não podendo os Tratados, estipularem
contrariamente aos interesses do Estado5, os quais são, por sua vez, políticos e
mutáveis.
O conceito de Carl Schmitt, radical por um lado, demonstra claramente
que o Tratado Internacional nada mais é do que uma manifestação de vontade
do Estado, representado por seu chefe, responsável inclusive, pela guarda da
Constituição, para manter a linha de pensamento de Schmitt.
Assim, pretendemos neste capítulo, deixar claro que o Tratado Internacional,
é um ato de soberania, de interesse do Estado, e não de interesse da Nação, do
indivíduo ou de grupos de indivíduos, tanto é assim, que Tratados Internacionais
são pactuados nos países parlamentaristas, pelos chefes de Estado e não, por
chefes de Governo.
4. a individualização dos tr atados internacionais
Como discutido acima, os Tratados Internacionais têm um viés de defender
interesses do Estado e não de particulares. Porém, a evolução dos Tratados
Internacionais, ao passar a defender minorias, como o vem fazendo especialmente
após a II Guerra Mundial, passa a individualizar o objeto de atuação do Tratado
Internacional, fugindo da lógica originária de que os Tratados Internacionais são
uma extensão da política interna.
Atualmente, com a ascensão do período de prevalência das Organizações
Internacionais, as quais, além de plurais, são setoriais, isto é, tratam de assuntos
específicos, a forma de negociação dos Tratados Internacionais se altera. Agora,
diante deste quadro de Organizações Internacionais, passa a existir um interesse
5 “a força vinculatória de uma obrigação de Estados soberanos em termos do direito internacional,
não pode residir na problemática autovinculação dos soberanos que se mantém livres, mas no
pertencimento comum a um espaço circunscrito [umhegten], isto é, baseia-se no efeito abrangente
de uma ordenação concreta do espaço.” (SCHMITT, 1979, p. 198)
308
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i encontro de internacionalização do conpedi
global, e não somente dos países envolvidos levando, consequentemente, a
mecanismos de adesão mais abertos (a qualquer tempo), diminuindo a tensão no
momento de negociação dos Tratados Internacionais.
Uma visão geral sobre a evolução dos tratados Internacionais é elaborada por
VASQUEZ (2006, p.42):
“Está se produzindo uma verdadeira quebra do esquema clássico
contratual do tratado, para se converter em um instrumento de
legislação internacional: a despersonalização dos negociadores, a
multiplicidade/variedade dos sujeitos, as alterações fundamentais
nos procedimentos de formação do tratado, a extensão do efeito dos
mesmos a terceiros.
Observando a realidade político-internacional, verificamos que os
mais importantes tratados, são realizados de forma multilateral. No
século XIX os conflitos internacionais surgiam entre grupos de estados,
daí que o esquema contratual bilateral não atendia mais.
(...)
Por outro lado surge a questão das reservas: o Estado que fazia as
reservas, não participava da Convenção Multilateral se os outros não
aceitassem as reservas: na teoria clássica era necessária a unanimidade
dos estados (depois se adotou o sistema Panamericano).
Nos tratados contemporâneos temos a adesão aos tratados multilaterais
abertos, aonde não necessariamente se vincula a um grupo de estados
(pela não ratificação ou renúncia), e também temos a possibilidade de
obrigar a outros que não participem diretamente (Ex. Cláusula da
Nação mais favorecida).”
Elaboramos uma pequena lista dos principais Tratados Internacionais dos
últimos cem anos a fim de demonstrar a hipótese do artigo de que, os Tratados
vem deixando de abordar questões de Estado para proteger interesses individuais
e de minorias.
1. Organizações Internacionais e Instituições Regionais
1.1. Pacto da Sociedade das Nações (1919)
1.2. Carta das Nações Unidas (1945)
1.3. Estatuto da Corte Internacional de Justiça (1945)
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i encontro de internacionalização do conpedi
1.4. Carta da Organização dos Estados Americanos (1948)
1.5. Tratado de Cooperação Amazônica (1978)
1.6. Protocolo de Emenda ao Tratado de Cooperação Amazônica (1998)
2. Desarmamento e Segurança Coletiva
2.1. Protocolo de Genebra (1925) – Proibição do emprego na guerra de gases
asfixiantes, tóxicos ou similares e de meios bacteriológicos de guerra
2.2. Tratado de renúncia à Guerra (1928) – Pacto de Paris ou Briand-Kellog
2.3. Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (1947) – Pacto do Rio
2.4. Tratado de Proscrição das Experiências com Armas Nucleares na Atmosfera,
no espaço cósmico e sob a Água (1963)
2.5. Tratado sobre a Não-Proliferação de Armas Nucleares (1968)
2.6. Tratado para Proscrição de Armas Nucleares na América Latina e no Caribe
(1967) – Tratado de Tlatelolco
2.7. Convenção para Prevenir e Punir os Atos de terrorismo configurados em
delitos contra pessoas e a extorsão conexa, quando tiverem eles Transcendência
Internacional (1971)
2.8. Tratado de Proibição Completa dos Testes Nucleares (1996)
2.9. Protocolo ao Tratado de Proibição Completa dos Testes Nucleares (1996)
2.10. Convenção Internacional sobre a Supressão de Atentados Terroristas com
Bombas (1998)
2.11. Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional
(2000)
2.12. Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime
Organizado Transnacional, Relativo ao combate ao tráfico de migrantes por via
terrestre, marítima e área (2000)
2.13. Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime
Organizado Transnacional, relativo à prevenção, repressão e punição do tráfico de
pessoas, em especial mulheres e crianças (2000)
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3. Relações diplomáticas e consulares
3.1. Convenção de Viena sobre relações diplomáticas (1961)
3.2. Convenção de Viena sobre Relações Consulares (1963)
4. Asilo territorial e diplomático
4.1. Convenção sobre Asilo Territorial (1954)
4.2. Convenção sobre Asilo diplomático (1954)
5. Direito dos Tratados
5.1. Convenção de Havana sobre Tratados (1928)
5.2. Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (1969)
5.3. Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados entre Estados e Organizações
Internacionais ou entre Organizações Internacionais (1986)
6. Espaços marítimos
6.1. Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (1982) – Convenção
de Montego Bay
6.2. Lei 8.617, de 4 de janeiro de 1993 – Dispõe sobre o mar territorial a zona
contígua, a zona econômica, exclusiva e a plataforma continental brasileiros, e dá
outras providências.
6.3. Acordo relativo à implementação da Parte XI da Convenção das Nações
Unidas sobre o Direito do Mar (1982)
7. Espaço aéreo
7.1. Tratado sobre Princípios Reguladores das Atividades dos Estados e na
Exploração e Uso do espaço cósmico, inclusive a lua e demais corpos celestes
(1967)
7.2. Convenção relativa às infrações e a certos outros atos praticados a bordo de
aeronave (1963)
7.3. Convenção sobre Responsabilidade Internacional por danos causados por
objetos espaciais (1972)
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i encontro de internacionalização do conpedi
8. Zonas polares
8.1. Tratado da Antártida (1959)
8.2. Protocolo ao Tratado da Antártida sobre Proteção ao Meio Ambiente (1991)
8.3. Convenção sobre a conservação dos recursos vivos marinhos antárticos
(1980)
9. Proteção Internacional dos Direitos Humanos
Declarações de Direitos Humanos aprovadas pelo Brasil
A) Sistema Global
9.1. Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948)
9.2. Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento (1986)
9.3. Declaração e Programa de Ação de Viena (1993)
9.4. Declaração de Pequim adotada pela quarta conferência sobre as mulheres:
ação para igualdade, desenvolvimento e paz (1995)
B) Sistema regional interamericano
9.5. Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948)
Tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil
A) Sistema global
9.6. Convenção para Prevenção e a Repressão do crime de genocídio (1948)
9.7. Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951)
9.8. Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados (1966)
9.9. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966)
9.10 Protocolo Facultativo relativo ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos (1966)
9.11. Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966)
9.12. Convenção Internacional sobre Eliminação de todas as formas de
Discriminação Racial (1965)
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i encontro de internacionalização do conpedi
9.13. Convenção Internacional sobre Eliminação de todas as formas de
Discriminação contra a Mulher (1979)
9.14. Protocolo Facultativo à Convenção Internacional sobre Eliminação de todas
as formas de Discriminação contra a Mulher (1999)
9.15. Convenção contra a tortura e outros Tratamentos ou Penas cruéis,
desumanas ou degradantes (1984)
9.16. Convenção sobre os Direitos das Crianças (1989)
9.17. Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança referente à
venda de criança, à prostituição infantil e à pornografia infantil (2000)
9.18. Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo ao
envolvimento de crianças em conflitos armados (2000)
9.19. Convenção das Nações Unidas contra corrupção (2000) – Convenção de
Mérida
B) Sistema regional interamericano
9.20. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969) – Pacto de San José
da Costa Rica
9.21. Estatuto da Corte Interamericana de Direitos Humanos (1979)
9.22. Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em
matéria de direitos econômicos , sociais e culturais (1988) – Protocolo de San
Salvador
9.23. Protocolo à Convenção Americana sobre Direitos Humanos referentes à
abolição da pena de morte (1990)
9.24. Convenção Interamericana para prevenir e punir a Tortura (1985)
9.25. Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência
contra a Mulher (1994) – Convenção de Belém do Pará
9.26. Convenção Interamericana sobre Tráfico Internacional de Menores (1994)
9.27. Convenção Interamericana para a Eliminação de todas as formas de
discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência (1999)
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i encontro de internacionalização do conpedi
10. Comércio Internacional
10.1. Acordo Constitutivo da organização Mundial do Comércio (1994)
11. Direito Internacional Ambiental
11.1. Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
(1992)
11.2. Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima (1992)
11.3. Protocolo de Quioto à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre
Mudanças do Clima (1997)
11.4. Convenção sobre Diversidade Biológica (1992)
12. Direito Penal Internacional
12.1. Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (1998)
13. Nacionalidade e cidadania
13.1. Tratado de Amizade, Cooperação e consulta entre a República Federativa
do Brasil e a República Portuguesa (2001)
13.2. Lei 6.815 , de 19 de agosto de 1980 – define a situação jurídica do estrangeiro
no Brasil, cria o Conselho Nacional de Imigração e dá outras providências
13.3. Decreto 86.715, de 10 de dezembro de 1981 – regulamenta a Lei 6.815, de
19 de agosto de 1980, que define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, cria
o Conselho Nacional de Imigração e dá outras providências
13.4. Declaração constitutiva da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
(1996)
13.5. Estatutos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (1996)
14. Mercado Comum do Sul – MERCOSUL
14.1. Tratado para constituição de um Mercado Comum entre a República
Argentina, a República Federativa do Brasil, a República do Paraguai e a República Oriental do Uruguai (1991) – Tratado de Assunção
14.2. Protocolo Adicional ao Tratado de Assunção sobre a estrutura institucional
do Mercosul (1994) – Protocolo de Ouro Preto
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14.3. Protocolo de Buenos Aires sobre Jurisdição Internacional em Matéria
Contratual (1994)
14.4. Protocolo de Defesa da Concorrência no Mercosul (1998)
14.5. Acordo de Extradição entre os Estados Partes do Mercosul (1998)
14.6. Protocolo de Olivos para Solução de Controvérsias no Mercosul (2002)
14.7. Acordo-Quadro sobre Meio Ambiente do Mercosul (2001)
14.8. Acordo de Admissão de Títulos e Graus Universitários para o Exercício de
Atividades Acadêmicas nos Estados Partes do Mercosul (1999)
15. Direito Internacional do Trabalho
15.1. Constituição da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e seu Anexo
(1946) – Declaração de Filadélfia
16. Direito Internacional Privado
16.1. Convenção de Direito Internacional Privado (1928) – Código de
Bustamante
16.2. Estatuto da Conferência de Haia de Direito Internacional Privado (1951)
16.3. Decreto-lei 4.657, de 4 de setembro de 1942 – Lei de Introdução às normas
do Direito Brasileiro (antiga Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro –
alterada pela Lei nº 12.376, de 2010)
16.4. Estatuto Orgânico do Instituto Internacional para Unificação do Direito
Privado (UNIDROIT) (1940)
16.5. Interpretação do artigo VII-A do Estatuto Orgânico, aprovada na XI Sessão
da Assembleia-Geral (1953)
16.6. Convenção sobre a Prestação de Alimentos no Estrangeiro (1956)
16.7. Convenção Interamericana sobre Obrigação Alimentar (1989)
16.8. Convenção sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais
Estrangeiras (1958)
16.9. Convenção Interamericana sobre Cartas Rogatórias (1975)
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i encontro de internacionalização do conpedi
16.10. Protocolo Adicional à Convenção Interamericana sobre Cartas Rogatórias
(1979)
16.11. Convenção Interamericana sobre Arbitragem Comercial Internacional
(1975)
16.12. Convenção Interamericana sobre Normas Gerais de Direito Internacional
Privado (1979)
A escolha pela divisão em temas serve para reforçar a afirmação de que os
Tratados Internacionais estão a deixar de possuir um caráter de interesse de Estado
para passar a possuir um interesse do indivíduo.
5. a proteção do indivíduo
Historicamente o indivíduo sempre possui proteção jurídica e, modernamente, possui as consagradas “garantias” do homem e do cidadão6. A figura do
indivíduo, embora sempre sido discutida do Direito ao longo dos tempos, desde
a Revolução Francesa, ocupa um papel central na estrutura jurídica mundial.
A filosofia do individualismo ganha força no século XVIII e se torna parte
fundamental de uma série de ramos do conhecimento, como a história, a
economia, a sociologia e, também o próprio Direito.
A Revolução Francesa é importante pois alça o indivíduo ao centro de todos
estes ramos do saber, em especial do Direito. Na economia, os meios de produção
feudais são substituídos pelos meios de produção capitalistas, baseados na
propriedade individual dos meios de produção; na filosofia, há um afastamento
das doutrinas teocráticas, colocando-se o homem no centro do conhecimento; na
sociologia idem, o homem passa a ser o centro da organização social.
Não se trata de pensar o indivíduo fora do mundo, aquele que renuncia a
convivência social, mas sim, organizar a sociedade a partir de um indivíduo que
6 “A noção de direitos inerentes à pessoa humana encontra expressão, ao longo da história, em
regiões e épocas distintas. A formulação jurídica desta noção, no plano internacional, é, no
entanto, historicamente recente mormente a partir da adoção da Declaração Universal de
Direitos Humanos de 1948. As raízes que hoje entendemos por proteção internacional dos
direitos humanos remontam, contudo, a movimentos sociais e políticos, correntes filosóficas,
e doutrinas jurídicas distintos, que florescem ao longo de vários séculos em diferentes regiões
do mundo” (CANÇADO TRINDADE, 1997, p. 17)
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i encontro de internacionalização do conpedi
está presente no mundo mas, age com base no seu interesse particular, afastandose do interesse comunitário ou coletivo.
Individualismo torna-se assim, um conceito que sintetiza a liberdade do
indivíduo frente a um grupo, à sociedade e ao Estado, estruturando a sociedade a
partir da competição e na ação individual.
Não poderia ser diferente no Direito. Aqui, soma-se o individualismo com
o positivismo, que nada mais é do que a racionalização das ações individuais na
sociedade, resolvendo assim as “patologias” sociais.
Assim que o Direito atua, uma regra de conduta para o indivíduo inserido
na sociedade, que ao mesmo tempo normaliza a sua ação e por outro a protege
de ingerências indevidas. Todo o Direito positivo, cujo melhor exemplo é o
Código Civil napoleônico, é a tentativa de proteção do indivíduo em todos os
seus aspectos.
A proteção jurídica do indivíduo, que está consolidada na legislação ordinária,
após a II Guerra Mundial é constitucionalizada, isto é, passa a integrar as
Constituições de inúmeros países pelo mundo, especialmente frente a onda de
novas constituições com o término da guerra.
O atual momento de reformas legais está a ocorrer no Direito Internacional.
Desde a Declaração Universal de Direitos, considerado o marco legal inicial do
atual momento do Direito Internacional, este vem individualizando, isto é, sendo
mais específico, nas regulamentações.
Não bastasse os Direitos Humanos já possuírem por si só uma estrutura
individualista, este sai de uma busca pela universalização de procedimentos e
passa, para regulações cada vez mais localizadas. Da Declaração Universal de 1948,
passamos na década de 60 e 70 para discussões vinculadas a procedimentos de
conduta, como direitos civis e desenvolvimento econômico e; na atualidade (final
da década de 80), encontramos na pauta política dos organismos internacionais
proteções a grupos específicos, como negros, mulheres e pobres, crianças e,
portadores de necessidades especiais.
A proteção à dignidade humana, é a última esfera de proteção que o Direito
pode conceder a um indivíduo. Não mais a integridade física e patrimonial do
indivíduo é protegida, mas sua dignidade.
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i encontro de internacionalização do conpedi
“A dignidade da pessoa humana constitui um valor que atrai a
realização dos direitos fundamentais do Homem, em todas as suas
dimensões; e, como a democracia é o único regime político capaz de
propiciar a efetividade desses direitos, o que significa dignificar o
Homem, é ela que se revela como seu valor supremo, o valor que o
dimensiona e humaniza.” (SILVA, 2007, p. 63)
Isto vem fazendo que as regras de internalização do Direito Internacional venham desaparecendo a cada dia, havendo a tendência que as normas internacionais e nacionais protetivas da dignidade humana se equiparem em termos
de validade7, sendo um grato exemplo, o art. 5º, § 3º da Constituição Federal,
levando inclusive alguns doutrinadores a afirmar a existência de um novo ramo do
Direito, o “Direito Internacional dos Direitos Humanos”, cujo principal mérito
até o momento foi transformar o indivíduo em sujeito de direito internacional.
6. estudo de casos – a hier arquia dos tr atados de
direitos humanos no br asil
Por mais que a discussão entre monistas e dualistas8 nos últimos anos tenha
caído no desuso9, entende-se que ela é de suma importância (CHAUMONT,
1970, p. 129; BROWNLIE, 1990, p. 210) para se compreender exatamente o
procedimento para sua revogação, podendo-se, em última análise, até mesmo,
dizer-se que, nos países monistas, a desvinculação do país de um tratado
internacional é pressuposto para que a norma dele proveniente seja revogada.
7 O Secretário Geral das Nações Unidas, Boutros-Ghali, em seu discurso na plenária de
abertura da II Conferência Mundial de Direitos Humanos (realizada em Viena, em 14 de
junho de 1993), afirmou que, “par leur nature, les droits de l’ homme abolissent la distinction
traditionnelle entre l’ordre interne et l’ordre international. Ils sont créateurs d’une perméabilité
juridique nouvelle. Il s’agit donc de ne les considérer, ni sous l’angle de la souveraineté absolue, ni
sous celui de l’ ingérence politique. Mais, au contraire, il faut comprendre que les droits de l’ homme
impliquent la collaboration et la coordenation del États et des organisations internationales”
(ONU, Communiqué de Presse n. DH/VIE/4, de 14.06.1993, p. 10)
8 Não é objeto do presente trabalho a análise do ordenamento jurídico brasileiro e sua adequação
à teoria monista ou dualista. Parte-se do pressuposto de que é monista. Nesse sentido o meu
pensar sobre o caso exposto em Luís Renato VEDOVATO (2008).
9 “Jiménez de Aréchaga, por sua vez sustenta que a discussão entre monistas e dualistas não afeta
outro ponto, mais essencial para aferir-se a eficácia e validade dos tratados nos ordenamentos
internos. Importa mais é analisar a hierarquia que os tratados ocupam nas legislações internas,
crucial para definir-se qual das normas prevalece em caso de conflito”. (STEINER, 2000, p. 65)
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i encontro de internacionalização do conpedi
Dentre os países monistas, entretanto, há diversas posições, determinando que
o tratado se incorpora no nível de lei ordinária, lei complementar ou, até mesmo,
regra constitucional. Cumprindo dizer que só há monismo com supremacia do
direito internacional, sendo as demais correntes apenas falsos monismos.
Ressalte-se, quanto a essa última hipótese, o caso espanhol, que determina
a alteração constitucional antes que haja a vinculação a um tratado contrário a
uma disposição da mesma (MENÉNDEZ, 1995, p. 503; PASTOR RIDRUEJO,
1993).
Invariavelmente, entra em discussão a possibilidade de violação da soberania
do Estado quando se levanta a hipótese de prevalência do tratado sobre a
Constituição (DELBEZ, 1964, p. 85). Mas, deve-se ter presente que o Direito
Internacional tem como principal característica o consentimento, ou seja, nenhum
país se vincula, em tese, a um tratado se assim não desejar (MALANCZUK,
1998, p. 03). Assim, o cumprimento de um tratado pode ser entendido como
exercício de soberania e não sua violação.
Além disso, especificamente no que diz respeito aos direitos fundamentais, a
sua internacionalização pode evitar exageros totalitários10 ou pressões econômicas
internas. Realmente, a internacionalização da proteção dos direitos fundamentais
traz benefícios incomensuráveis aos indivíduos, criando mais uma fonte de
proteção contra atos ou, como no presente caso, omissões do Estado.
Posicionamentos importantes para o tema devem ser analisados, principalmente o proferido pelo Supremo Tribunal Federal, que é o que soa mais forte e
vai no sentido de que o Tratado Internacional assume a hierarquia de lei ordinária
sendo válida a regra de que lei posterior revoga lei anterior (RE 80.004), tornando
possível, assim, que um tratado seja revogado por uma lei ordinária, desde que
posterior. Além do posicionamento recente sobre tratados sobre direitos humanos,
que teriam hierarquia supralegal.
10 “O valor atribuído à pessoa humana, fundamento dos direitos humanos, é parte integrante da
tradição, que se viu rompida com a irrupção do fenômeno totalitário.” (LAFER, 1988, p. 118).
No mesmo sentido também encontrados Fábio Konder COMPARATO (2001, p. 16). “O que
importa dizer, antes de mais nada, do sistema de direitos humanos, é que ele representa o principal
elemento de integração do direito interno ao direito internacional, representado assim o núcleo
pré-constitutivo da mencionada ‘sociedade universal do gênero humano”.
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i encontro de internacionalização do conpedi
No julgamento do Recurso Extraordinário 466.343-1- SP, o Min. Gilmar
Mendes assim votou: “O status normativo supralegal dos tratados internacionais
de direitos humanos subscritos pelo Brasil, dessa forma, torna inaplicável a legislação
infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de
ratificação.” Colocando os tratados de direitos humanos em posição supralegal,
o que demonstra que a humanização do direito internacional se coloca diante da
soberania do Estado, por conta da celebração de tratados internacionais.
Celso LAFER (2005, p. 15), apesar de se referir apenas aos tratados anteriores
à CF/88, defende que:
“Com efeito, entendo que os tratados internacionais de
direitos humanos anteriores à Constituição de 1988, aos
quais o Brasil aderiu e que foram validamente promulgados,
inserindo-se na ordem jurídica interna, têm a hierarquia de
normas constitucionais, pois foram como tais formalmente
recepcionados pelo § 2° do art. 5° não só pela referência nele
contida aos tratados como também pelo dispositivo que afirma que
os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ele adotados.” (grifo do
autor).
Vai além o Min. Celso de Mello, reconhecendo, em voto proferido no
HC 87.585-8 – TO, hierarquia materialmente constitucional aos tratados
internacionais de direitos humanos aos quais o Brasil se vinculou:
“Após muita reflexão sobre esse tema, e não obstante anteriores
julgamentos desta Corte de que participei como Relator (RTJ
174/463-465 – RTJ 179/493-496), inclino-me a acolher essa
orientação, que atribui natureza constitucional às convenções
internacionais de direitos humanos, reconhecendo, para efeito de
outorga dessa especial qualificação jurídica, tal como observa
CELSO LAFER, a existência de três distintas situações concernentes
a referidos tratados internacionais [...] (grifo do autor).”
Dessa maneira, mesmo não tendo sido aprovados pela forma determinada
no art. 5º, parágrafo 3º (inserido pela EC 45), os tratados de direitos humanos
recebem hierarquia superior, apesar de ainda ser possível classificar o Brasil como
dualista, pela exigência de decreto presidencial para dar ao acordo pertença
320
volume
06
i encontro de internacionalização do conpedi
ao ordenamento jurídico brasileiro, conforme decidido pelo STF no Agravo
Regimental em Carta Rogatória n. 8279-4.
A soberania do Estado mudou, assim como mudou o Estado, muitos são os
fatores que demonstram que a soberania não pode mais ser entendida como já
foi no passado. A globalização e o avanço tecnológico, certamente, fazem parte
desses fatores.
Como assevera STIGLITZ (2003, p. 87), a globalização tem transformado
as relações jurídicas internacionais. Atividades antes confinadas ao espaço interno das fronteiras nacionais passam a ter consequências internacionais de escala
e impacto ainda desconhecidos; no entanto, apesar de opiniões contundentes,
favoráveis ou não, sobre a globalização, ela continua a ter significados variados
(STIGLITZ , 2007, p. 32).
Um dos usos mais comuns do termo globalização se concentra no comércio
internacional, empregado para se referir tanto aos benefícios econômicos de livre
intercâmbio comercial, trabalhista e ambiental quanto aos perigos decorrentes
da retirada da proteção fronteiriça (SOLIMANO, 2010). E é inevitável que os
outros campos recebam as consequências dessas mudanças.
7.conclusões
A análise feita no capítulo anterior demonstra o quanto fora alegado
anteriormente, ou seja, que os Tratados Internacionais cada dia mais deixam de
possuir uma natureza de soberania e, cada dia mais passam a defender direitos
individuais.
A formação das atuais “Cortes Internacionais” corrobora o estudo de caso
apresentado. Cada vez mais casos particulares são submetidos a julgamentos em
organismos internacionais.
Se por um lado a “individualização” é boa pois acaba por aperfeiçoar os
direitos fundamentais (MENEZES, RIBEIRO, 2014) protegendo as minorias
através da imposição do respeito à dignidade humana; por outro lado, abre-se a
possibilidade de imposição de um valor chave “ocidentalizado”, que é o valor do
individualismo.
volume
06
321
i encontro de internacionalização do conpedi
Por trás da proteção cada vez maior do “indivíduo” devemos atentar ao fato de
que há uma série de valores e posições, até mesmo econômicas, que acompanham
este movimento de aumento de proteção ao indivíduo.
Isto porque, por detrás da liberdade que o indivíduo vê protegida pela atuação
do Direito Internacional está a expansão de uma matriz econômica que tem o indivíduo por elemento central, porém, utiliza e esgota este mesmo indivíduo, descartando-o quando necessário, causando assim, mais malefícios do que benefícios.
8.referências
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06
i encontro de internacionalização do conpedi
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volume
06
323
i encontro de internacionalização do conpedi
uma “boa” jurisdição constitucional
Cibele Fernandes Dias1
Andrea Abrahão Costa 2
Resumo
O trabalho analisa o fenômeno da jurisdição constitucional e seus desafios
no atual estágio de desenvolvimento dos Estados Democráticos. Se, na cultura
jurídica ocidental, democracia e justiça constitucional são realidades de impossível
dissociação, é preciso encontrar um ponto de equilíbrio entre eles para que se possa
levar adiante o projeto de edificação de uma organização política democrática,
submetida ao império da Constituição. O deslocamento de questões políticas
da esfera representativa para o campo interpretativo de um Poder não eleito,
como o Poder Judiciário, suscita questionamentos no tocante à legitimidade e
discricionariedade judicial. Sem pretender solucionar a tensão entre democracia
e garantia judicial da supremacia constitucional, propõe-se a observância de um
dharma da justiça constitucional, orientado para o repúdio tanto da sua falta
(passivismo judicial) como do seu excesso (ativismo judicial).
Palavras-chave
Controle jurisdicional de constitucionalidade; Democracia; Interpretação
constitucional.
Abstract
The paper analyzes the phenomenon of constitutional jurisdiction and its
challenges in the current stage of development of democratic states. If, on the
1 Advogada. Mestre e Doutora em Direito Constitucional (PUC/SP). Professora da Escola da
Magistratura Federal do Paraná. Professora da Escola da Magistratura Estadual do Paraná.
Professora da Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná. Professora da
Universidade Tuiuti do Paraná (UTP). Professora de Direito Constitucional (FESP/PR).
[email protected]
2 Advogada. Doutoranda em Direito (PUC/PR). Mestre em Direito Econômico e
Socioambiental (PUC/PR). Pós-graduada em Sociologia (UNICAMP). Professora de Direito
Civil (FESP/PR). [email protected]
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i encontro de internacionalização do conpedi
western legal culture, democracy and constitutional justice are impossible realities of dissociation, one must find a balance between them so that one can carry
out the project of building a democratic political organization, subject to the
empire of the Constitution. Shifting political representative for the interpretive
field of a Power Ball unelected, as the Judiciary, raises questions regarding the
legitimacy and judicial discretion. Without wishing to resolve the tension
between democracy and judicial constitutional supremacy, it is proposed to
observe a dharma of constitutional justice, walked to the repudiation of both
failing (judicial passivism) as its excess (judicial activism).
Key words
judicial review; Democracy; Constitutional interpretation.
1.introdução
O exercício da jurisdição constitucional é uma das temáticas mais sensíveis
no contexto de desenvolvimento dos Estados democráticos e a necessidade de
sua não degeneração ou corrupção é o objeto do presente estudo.
A reflexão perpassa o debate acerca dos limites e possibilidades da interpretação constitucional judicial diante do princípio democrático e do primado
do Legislador. Para tanto, sem o intuito de esgotar o tema, parte-se da ideia de
que um moderado exercício da jurisdição constitucional depende, sobretudo,
embora não exclusivamente, da difusão e desenvolvimento de um “dharma”,
buscando-se sistematizar, inicialmente, sete3 regras orientadas pela razão prática4,
imprescindíveis ao manejo adequado dos poderes inerentes ao exercício da
jurisdição constitucional.5
Nesse sentido, defende-se o argumento de que uma “boa” jurisdição
constitucional somente pode ser exercida se forem enfrentados dilemas como
3 Para Pitágoras, sete é número da perfeição. O mundo foi criado em sete dias, são sete cores do
arco-íris. Simbolicamente, são elencadas sete qualidades de uma boa jurisdição constitucional.
4 Conforme aponta QUEIROZ (2009, p. 402), sabedoria prática que “se revela como uma
mistura de educação e experiência.”
5 Colocações relacionadas à razão prática (phronesis ou prudência), aquela, nos termos de
Aristóteles, que “busca a excelência, o que se deve fazer aqui e agora, ou seja, o bem agir, a
decisão melhor, ocupando-se dos particulares e do contingente, e é própria dos juízos éticos e
políticos.” (JÚNIOR, 2012, p. 639).
326
volume
06
i encontro de internacionalização do conpedi
o do juiz-legislador, o ativismo judicial, a legitimidade democrática dos juízes
constitucionais, a necessidade de deferência aos representantes do povo reunidos
no Poder Legislativo.
2.o “dharma” e as sete regr as par a o exercício da jurisdição constitucional
Dharma significa para os hindus dever. É o que melhor corresponde à noção
ocidental de direito. Segundo aponta GILISSSEN (2008, p. 102):
o dharma é o conjunto das regras que o homem deve seguir
em razão de sua condição na sociedade, isto é, o conjunto de
obrigações que se impõem aos homens, por derivarem da ordem
natural das coisas. O dharma compreende, portanto, regras que,
segundo a nossa óptica, relevam umas da moral, outras do direito,
outras ainda da religião, do ritual ou da civilidade.
O moderado exercício da jurisdição constitucional depende, sobretudo,
embora não exclusivamente, da difusão e desenvolvimento de um “dharma”, ou
seja, de um código de conduta que contribua para evitar sua corrupção. Tratase de munir a própria justiça constitucional de garantias contra o seu inevitável
processo de degeneração, ou seja, desenvolver institutos contra o abuso no
exercício dos poderes (o tyrannus quoad exercitium) e o déficit de legitimação (o
tyrannus absque titulo).
Trata-se de buscar um regime “reto” de jurisdição constitucional, que,
conduzido pelo saber (sofos), realize a virtude política por definição - a justiça
(JÚNIOR, 2012, p. 637). Cumpre, nessa linha de ideias, elencar, de forma
exemplificativa, sete regras orientadas por uma razão prática, imprescindíveis à utilização adequada dos poderes inerentes ao exercício da jurisdição constitucional.
2.1.a primeir a regr a: a admissão do erro judicial e a
cultur a da responsabilidade dos juízes
A primeira regra é aceitar que a Corte ou Tribunal Constitucional erra ou
pode errar. Como sustenta STRECK (2012, p. 1), a doutrina precisa assumir
uma postura crítica em relação à jurisprudência de forma a efetivamente constatar
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06
327
i encontro de internacionalização do conpedi
e diagnosticar erros cometidos pelo Poder Judiciário e, notadamente, pela mais
alta Corte.
Admitir que até o Tribunal Constitucional ou a mais alta Corte do país, como
no Brasil, o Supremo Tribunal Federal, pode errar é um gesto republicano. Do
contrário, estar-se-ia retrocedendo ao princípio monárquico da irresponsabilidade
do Rei. Implicaria substituir o “the king can do not wrong” pelo “the supreme court
can do not wrong”.
A possibilidade de superação dos precedentes mostra que a justiça constitucional pode errar e deve corrigir seus erros. No caso Loving versus Virginia
(1967), revogando Pace versus Alabama (1883), a Suprema Corte norteamericana declarou a inconstitucionalidade da Lei da Virginia de 1924 que
vedava o casamento inter-racial por ofensa ao princípio do “equal proteccion of
law”. Reconheceu uma ofensa velada ao princípio da igualdade, pois o legislador,
ao proibir a miscigenação racial, fomentava a superioridade da raça branca.
O mesmo erro histórico se pode dizer em relação ao caso Dred Scott versus Sanford (1857). Dred Scott ajuizou uma ação declaratória de reconhecimento de homem livre, fundamentando seu pedido numa Lei Federal (Missoure Compromise
Act) que assegurava a liberdade dos negros nascidos naquele território federal
em situações específicas e também na Declaração de Independência segundo
a qual “todos os homens nascem livres e iguais”. A Suprema Corte declarou a
inconstitucionalidade da lei federal abolicionista, sob o argumento que o Congresso
Nacional não tinha poderes para banir a escravidão mesmo em território federal
tendo em vista o direito fundamental de propriedade dos donos de escravos. A
Suprema Corte também decidiu que Dred Scott não poderia ser considerado
cidadão americano, já que os negros não faziam parte do povo americano. O
precedente foi um dos estopins para a Guerra da Secessão de 1861 a 1865.
Em 1865, a 13ª Emenda à Constituição norte-americana corrigiu o erro
histórico abolindo a escravidão e reconhecendo a cidadania americana aos negros
nascidos nos Estados Unidos. O queria teria sido da história americana sem
Dred Scott? Teria ocorrido a Guerra da Secessão? Se não é possível responder
a essas perguntas, cabe sim perceber que as decisões judiciais não são neutras.
Revelam o conteúdo de opções políticas (a escravidão é permitida ou não pela
Constituição?), como também sinalizam o modus operandi da decisão em si (a
328
volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
abolição poderá ser realizada por lei, emenda, revolução?). Se a história política
também é escrita pela jurisdição constitucional, os seus erros e acertos interferem
na trajetória de uma nação.
A consciência da possibilidade do erro judicial pressupõe a própria consciência da humanidade dos juízes, da realidade de que não são heróis míticos
(Hércules). Como todos os seres demasiadamente humanos, nem sempre acertam.
Além disso, a doutrina tem o nobre dever de apontar o erro.
Deve-se, para tanto, absorver uma cultura de responsabilidade política dos
juízes constitucionais. Como sustenta DWORKIN (1978, p. 81-149), embora
juízes estejam em posição menos adequada para elaborar argumentos de política
do que representantes eleitos, há um espaço a ser decidido a partir de argumentos
de princípio. Estes são capazes de fazer o juiz responsável por sua decisão,
contornando assim sua suposta falta de legitimidade democrática.
A justiça constitucional, desde a sua origem, tem convivido com a acusação
de usurpar um espaço que não lhe haveria sido atribuído ou imaginado pela
Constituição, conforme aponta TAVARES (2007, p. 11). Há uma verdadeira
espada de dâmocles a pairar sobre a cabeça dos juízes: a dos juízes legisladores.
A defesa mais comum é aquela segundo a qual a Corte atua como “aristocracia
do saber”, contendo a degeneração da democracia em demagogia, fixando um
ponto firme para o desenvolvimento racional de uma sociedade – uma “ilha
de razão” diante do caos formado por opiniões contraditórias. Ou como um
Moisés secular que guia o povo no deserto conduzindo-o à terra prometida da
vida constitucional. Todavia, esta legitimação teológica poderia desvirtuar todo
o sentido da Corte. O risco, como adverte ZAGREBELSKY (2008, p. 99), é o
dos juízes se sentirem “super-legisladores”.
2.2.a segunda regr a: o dever de coerência e a legitimação da decisão judicial pela fundamentação
r acional
A segunda regra é aceitar que os juízes constitucionais devem ser coerentes
e suas decisões legitimadas pela racionalidade argumentativa, sensível às
tradições e à cultura política de uma nação. Como sustenta DWORKIN
(1999, p. 452), “o direito como integridade é sensível às tradições e à cultura
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i encontro de internacionalização do conpedi
política de uma nação, e, portanto, também a uma concepção de equidade
que convém a uma Constituição.” Neste sentido também explica QUEIROZ
(2000, p. 171) que “a ‘justeza’ ou ‘correção’ (richtigkeit) da decisão depende da
sua ‘aceitabilidade racional’. Esta, por sua vez, pressupõe um conceito ‘forte’ de
racionalidade procedimental (Verfahrenrationalität).” Sem fundamentação, não
há uma verdadeira interpretação jurídica, e sim uma “invenção”. Nesse contexto,
pertinente a crítica de SILVA (2011, p. 108) sobre a utilização do princípio da
proporcionalidade pela Suprema Corte brasileira:
Em decisão recente, no muito comentado caso Ellwanger, alguns
ministros recorreram à regra da proporcionalidade como se ela
fosse uma espécie de ‘varinha mágica’, capaz de resolver problemas
de colisão entre direitos, sem grandes considerações substanciais
sobre os direitos envolvidos e, mais do que isso, sem grandes
considerações substanciais sobre qual a concepção que o Supremo
Tribunal Federal e seus ministros têm sobre o papel dos direitos
fundamentais no sistema jurídico brasileiro.
Por essa razão, desconfia-se da tese de que a Constituição, a lei e os precedentes
forneçam limites fortes e suficientes para determinação da decisão judicial,
deixando de lado as considerações extranormativas (a pré-compreensão do
intérprete, seus valores, crenças, cultura e tradições). A propósito, já argumentava
CALAMANDREI (1960, p. 145) que:
Não quer isto dizer, porém, que a parte dispositiva seja dita ao acaso
e que a fundamentação tenha apenas o fim de fazer aparecer como
fruto de rigoroso raciocínio o que na realidade é fruto do arbítrio.
Apenas se quer dizer que, ao julgar, a intuição e o sentimento têm
frequentemente maior lugar do que à primeira vista parece. Não
foi sem razão que alguém disse que sentença derivava de sentir.
É certo que, muitas vezes, os juízes tentam ocultar suas convicções sobre justiça e política. Como adverte POSNER (2008, p. 25), é confortável ao julgador
pensar que suas decisões são obrigadas pela “lei”, algo externo às suas próprias
preferências e valores pessoais. Paradoxalmente, a tendência de escamotear a
natureza política da função de outorgar sentidos aos enunciados normativos constitucionais é mais acentuada na Suprema Corte. Precisamente por ser um Tribunal
político, seus membros estão inclinados a negar o que, verdadeiramente, são.
330
volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
Contudo, a decisão judicial não pode sugerir. Pelo contrário, deve explicitar
todo o caminho percorrido para a solução encontrada. Não pode haver atalhos.
Os juízes constitucionais têm o dever de coerência. Como representantes do povo,
a sua representatividade é “argumentativa”, o que exige não só a fundamentação
racional, a objetividade na argumentação jurídico-constitucional e a existência
de argumentos válidos ou corretos, como também a aceitação da decisão por um
número suficiente de cidadãos, tal como afirma ALEXY (2007, p. 163-165).
Afinal, como enfatiza QUEIROZ (2000, p. 36):
se a actividade desenvolvida pelo juiz, com as suas notas de
‘liberdade’, ‘flexibilidade’ e ‘mobilidade’ subjectivas, é de carácter
político, então necessita de ser fundamentada (: legitimada), não
se entendendo como suficiente o recurso ao costumado axioma
clássico segundo o qual todo o poder – e subsequentemente toda a
actuação política – emana da ‘vontade popular’.
Ademais, as práticas constitucionais e a própria linguagem do Direito Constitucional na atmosfera política da democracia devem refletir uma forma de
conduta política baseada na persuasão e na compreensão, que constituem, afinal,
o “telos” do constitucionalismo comparado com o sistema político autocrático,
fundado na ordem e obediência.6 Como sustenta CLÈVE (2012, p. 70), “uma
Constituição democrática é uma fonte valiosa de argumentos que podem ser
utilizados com o sentido de democratizar o direito.”
No caso brasileiro, note-se que em muitas decisões do Supremo Tribunal
Federal não se consegue encontrar a ratio decidendi. E isto ocorre, entre outros
motivos, por uma falha de nossa própria legislação, que exige, para a formação
do veredito, a maioria absoluta para o dispositivo e não para a fundamentação.7
6 Sobre o “telos” do constitucionalismo e da autocracia, cumpre salientar o pensamento de Karl
LOEWENSTEIN (1976, p. 53). Sustenta o autor que uma determinada forma de governo
pode ser reconhecida a partir das específicas técnicas que movem suas instituições. Por essa
razão, as técnicas autocráticas e constitucionalistas não se encaixam na estrutura teleológica
do sistema político oposto, e que quando transplantados a outro meio político não produzem
os resultados esperados.
7 Exemplo notório é o julgamento a respeito da união estável entre pessoas do mesmo sexo.
Trata-se de questionar se o direito à felicidade integra os seus motivos determinantes.
(BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 4277-DF. Ação direta de inconstivolume
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331
i encontro de internacionalização do conpedi
Caso recente e polêmico a ser citado é aquele objeto do Mandado de
Segurança 31816 Agr-MC/DF julgado em 27 de fevereiro de 2013. Trata-se de
writ impetrado por deputado federal contra ato da Mesa Diretora do Congresso
Nacional consubstanciado na aprovação de requerimento de urgência para exame
do Veto Parcial 38/2012, aposto pela Presidente da República ao Projeto de Lei
2.565/2011, que dispõe sobre a distribuição entre os entes federados de royalties
relativos à exploração de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos.
O writ objetivava impedir a deliberação pelo Congresso Nacional do Veto
Parcial nº 38/2012, sob o fundamento de que o art. 66, da CF exige a apreciação
cronológica dos vetos presidenciais e, por essa razão, a deliberação do Veto Parcial
n. 38/2012 somente seria possível após a análise dos 3.060 vetos pendentes.
A liminar foi concedida monocraticamente pelo Ministro Luis Fux em 17 de
dezembro de 2012 determinando a impossibilidade de apreciação e deliberação
do Veto Parcial n. 38/2012 em face da existência de 3.060 vetos pendentes,
adotando-se a interpretação segundo a qual o art. 66, §§ 4º e 6º, da CF exige
a observância da ordem cronológica de comunicação dos vetos para fins de
deliberação. A Mesa do Congresso Nacional interpôs agravo regimental, que por
maioria, foi concedido em 27 de fevereiro de 2013 para possibilitar a apreciação
do Veto Parcial 38/2012.
Os quatro votos vencidos do Ministro Luis Fux, Marco Aurélio, Celso de
Mello e Joaquim Barbosa, que mantinham a liminar concedida, foram pautados
no mesmo sentido: (i) no que diz respeito ao dispositivo em si da decisão – a
impossibilidade de apreciação do Veto Parcial 38/2012 enquanto houvesse vetos
pendentes com prazo constitucional expirado e (ii) nos seus motivos determinantes: a violação do devido processo legislativo e correlata inconstitucionalidade da deliberação aleatória dos vetos presidenciais pendentes de análise
legislativa, cuja simples existência subtrairia do Poder Legislativo a autonomia
para definição da respectiva pauta política (CF, art. 66, §6º), dada a obrigatória
tucionalidade. Relator: Ministro Carlos BRITTO. Julgamento: 05.05.2011. Tribunal Pleno.
DJe 198, divulgado em 13.10.2011, publicado em 14.10.2011, ementário volume 0260703, p. 00341. BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 132-RJ. Arguição
de descumprimento de preceito fundamental. Relator: Ministro Carlos Ayres Britto.
Julgamento: 05.05.2011. Tribunal Pleno. DJe 198, divulgado em 13.10.2011, publicado em
14.10.2011, ementário volume 02607-01, p. 00001).
332
volume
06
i encontro de internacionalização do conpedi
deliberação dos vetos presidenciais em ordem cronológica de comunicação ao
Congresso Nacional.
O mesmo, todavia, não ocorreu com os votos vencedores. Embora a maioria
dos seis Ministros tenha convergido no tocante ao dispositivo da decisão
(provimento do agravo regimental para possibilitar a apreciação do Veto Parcial
38/2012 mesmo havendo 3.060 vetos pendentes de apreciação), o mesmo não se
pode dizer em relação aos motivos determinantes.
Não há maioria na definição dos fundamentos da decisão majoritária: (1) o
Ministro Teori Zavaski votou no sentido da declaração de inconstitucionalidade
com efeitos ex nunc da prática até agora adotada pelo Congresso Nacional no
processo legislativo de apreciação de vetos, com exclusão das deliberações
tomadas, os vetos presidenciais apreciados e os que já tivessem sido apresentados,
mas pendentes de exame; (2) a Ministra Rosa Maria Weber votou no sentido
da impossibilidade do controle judicial da legitimidade da prática adotada
pelo Congresso, tratando-se de tema cujo exame encontra-se vedado ao Poder
Judiciário por se tratar de matéria interna corporis; (3) os Ministros Dias
Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Ferreira Mendes votaram no sentido da
constitucionalidade da prática do Congresso diante da inexistência de imposição
constitucional de ordem cronológica de votação dos vetos; (4) a Ministra
Carmem Lúcia entendeu que a manutenção da liminar poderia gerar conjuntura
mais gravosa ao Parlamento, à sociedade e ao Direito e não adentrou no mérito
da constitucionalidade do ato impugnado.
Com efeito, com a derrubada da liminar em sede de provimento de agravo
regimental e a apreciação posterior do veto presidencial, o mandado de segurança
perdeu objeto e a sociedade atônita ficou sem saber se o Congresso pode ou não
escolher os vetos presidenciais que quer apreciar ou se há uma ordem cronológica a
ser observada. O Supremo Tribunal Federal decidiu o caso concreto, mas eximiuse de decidir o caso constitucional sub judice: afinal, o devido processo legislativo
exige ou não a apreciação cronológica dos vetos presidenciais?
2.3.a terceir a regr a: a negativa do voluntarismo e do
decisionismo judicial
A terceira regra é refutar veementemente o voluntarismo judicial para não
ressuscitar-se o costume do Império Romano segundo o qual o que agrada ao
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333
i encontro de internacionalização do conpedi
príncipe tem força de lei - “quod principi placuit, legis habet vigorem”. Embora
o verdadeiro fundamento da legislação imperial fosse a auctoritas principis
(GILISSEN, 2008, p. 89), o real fundamento da jurisprudência constitucional
não pode ser a simples autoridade de um Tribunal Constitucional. Nesse contexto,
justa a advertência de STRECK (2012, p. 192):
Não se pode confundir, portanto, a adequada/necessária
intervenção da jurisdição constitucional com a possibilidade de
decisionismos por parte de juízes e tribunais. Seria antidemocrático.
Com efeito, defender um certo grau de dirigismo constitucional
e um nível determinado de exigência de intervenção da justiça
constitucional não pode significar que os tribunais se assenhorem
da Constituição.
Há um risco constante e inevitável de se tratar o texto da Constituição como
um espelho a refletir os volúveis humores dos intérpretes, o que importaria aceitar
a conversão de preferências ideológicas em jurisprudência constitucional.8
Não se pode ignorar o perigo de desintegração do texto constitucional
verdadeiro e próprio. De outro lado, o argumento da interpretação literal cede
quando a Constituição se utiliza de termos como justiça social, dignidade da
pessoa humana. O uso da palavra “dignidade” pode converter-se numa espécie de
“abracadabra”?9 Isso ocorre porque todo texto constitucional é, pela sua própria
8 O que implicaria adotar o “modelo atitudinal” (attitudinal model) de comportamento
judicial, segundo o qual os juízes dos tribunais superiores decidem simplesmente com base
nas suas convicções políticas pessoais (ROHDE e SPAETH, 1976; apud MAGALHÃES;
ARAÚJO, 1998, p. 13-14)
9 São as chamadas “cláusulas délficas”, termo usado analogicamente ao oráculo de Delfos que,
segundo GARCIA DE ENTERRIA (1981, p. 103), comportam-se como fórmulas vagas,
obscuras e misteriosas, impregnadas de significações possíveis. No mesmo sentido, LEAL
(2006, p. 79.) alude aos “preceitos enigmáticos”. Segundo este autor, o texto constitucional,
notadamente como o brasileiro, constitui um “manancial quase inesgotável de preceitos
enigmáticos”, ou seja, repleto de “formulações normativas de amplíssima textura que
admitem um infinito leque de vias interpretativas.” Advertia KELSEN (2003, p. 170) que
o uso de fórmulas vagas pela Constituição pode desempenhar um papel extremamente
perigoso. Assim, se um tribunal constitucional anula uma lei por ser injusta, a concepção que
a maioria dos juízes deste Tribunal tivesse da justiça poderia estar em total oposição com a
da maioria da população e com a concepção do Parlamento que votou a lei. Isto importaria
um evidente deslocamento de poder - do Parlamento para uma instância a ele estranha. “[...]
a Constituição deve, sobretudo criar um tribunal constitucional, abster-se deste gênero de
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volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
vocação, termômetro e medida da práxis, mais do que mero recipiente, tendo a
missão de guiar os diversos estágios políticos e civis, acolhendo somente a escolha
que o texto mesmo está em condições de aceitar, tendo em vista o próprio universo
de significados (AINIS, 2007, p.312).
A tentação do “narcisismo constitucional” não pode ser menosprezada. É o que
aponta BARROSO (2001, p. 46) quando afirma que “há no Brasil uma crônica
compulsão dos governantes de modificar a Constituição para fazê-la à imagem
e semelhança de seus governos. Uma espécie de narcisismo constitucional.” E
também COMPARATO (1998, p. 3) quando denuncia este comportamento
num discurso de protesto:
Não sejamos ridículos. A Constituição de 1988 não está mais em
vigor. É pura perda de tempo discutir se a conjunção “e” significa
“ou”, se o “caput” de um artigo dita o sentido do parágrafo ou se o
inciso tem precedência sobre a alínea. A Constituição é hoje o que
a Presidência quer que ela seja, sabendo-se que todas as vontades
do Planalto são confirmadas pelo Judiciário.
2.4.a quarta regr a: o repúdio do passivismo judicial
na judicialização dos conflitos políticos
A quarta regra é investir na efetivação do postulado da separação de poderes.
Separados e distribuídos, os poderes limitam-se reciprocamente num sistema
engenhoso de freios e contrapesos, o que evita o isolamento institucional,
notadamente da jurisdição constitucional. Como já ensinava MONTESQUIEU
(JÚNIOR, 2012, p. 655) “para instituir um governo moderado é preciso combinar
poderes, regulá-los, temperá-los, fazê-los agir. Adicionar a um, por assim dizer, o
lastro necessário para resistir ao outro.”
Nesse sentido (POSNER, 2005, p. 40), o juiz constitucional exerce uma
inegável função política.10 Afinal, a ele compete decidir os conflitos entre os
fraseologia, e se quiser estabelecer princípios relativos ao conteúdo das leis, formulá-los da
forma mais precisa possível.”
10 Para ZAGREBELSKY (1989, p. 522), uma função política exercitada de forma jurisdicional
ou, ao contrário, uma função jurisdicional exercitada de forma política são contradições que
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i encontro de internacionalização do conpedi
poderes, exercendo, tanto nas relações sociais como políticas, uma função
de chave ou fecho de cúpula, ou seja, como a pedra que equilibra as forças da
cúpula, evitando seu desmoronamento. Nas democracias contemporâneas, algum
tipo de politização dos tribunais constitucionais parece inevitável em virtude da
importância política de suas decisões. Isto se deve, entre outros motivos, pelo
enorme potencial do controle abstrato de constitucionalidade para influenciar a
formação das políticas públicas.11
Como defendem MAGALHÃES e COUTINHO (2000, p. 211; 218),
partindo do pressuposto que o Tribunal Constitucional necessita de litigantes
que lhes apresentem casos e questões de constitucionalidade, é preciso recordar
ainda que o papel político desempenhado por um Tribunal Constitucional
dependerá, em larga medida, de fatores externos, como os incentivos dos atores
políticos para judicializar os seus conflitos por meio da litigância constitucional.
As oposições judicializam os processos legislativos para ganharem aquilo que
normalmente perderiam nos processos políticos normais. Ou seja, os agentes
políticos usam a litigância constitucional para a prossecução de objetivos políticoideológicos. Referidos autores (1998, p. 9-10) lembram que
através da fiscalização abstracta, diversos tribunais constitucionais
europeus têm bloqueado ou modificado importantes iniciativas
políticas de governos e parlamentos, chegando mesmo a ditar
aos órgãos legislativos o modo como devem ser elaboradas certas
leis sob forma a recolherem a aprovação da justiça constitucional.
Deste modo, os tribunais constitucionais parecem ter constrangido
seriamente o poder das maiorias parlamentares.
se resolvem concretamente por meio da prevalência de um termo e a corrupção do outro ou
através de compromissos pragmáticos. Sublinhar o caráter jurisdicional da forma da justiça
constitucional significa um modo específico de concebê-la como função qualitativamente
diferenciada daquela exercida pelos órgãos constitucionais estritamente políticos e, portanto,
como função que, caso se queira dizer política (como certamente em um sentido particular
se pode dizer) deve, ao menos, distinguir-se daquelas que outros órgãos operam de forma
absolutamente diversa. Em sentido contrário, KELSEN (1995, p. 18) já lecionava ser errado o
pressuposto segundo o qual existe uma contradição essencial entre a função jurisdicional e as
funções políticas e que a decisão acerca da constitucionalidade e anulação das leis seriam atos
políticos e não mais justiça.
11 Embora referente à justiça constitucional europeia, as circunstâncias que circundam a
politização destacada pelos autores também ocorrem no Brasil.
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volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
É preciso, como quer RAMOS (2010, p. 129) repudiar o passivismo que está
radicado nas teorias interpretativistas do textualismo e originalismo, que levam
em consideração apenas o texto da constituição ou a intenção original dos seus
fundadores. Lembra DWORKIN (1999, p. 446-449) que os juízes passivos
mostram grande deferência para com as decisões de outros poderes do Estado,
revelam um ceticismo exterior sobre a moral política, como se não houvesse uma
resposta certa para as questões constitucionais, só respostas diferentes. Destaque-se:
os passivistas citam o caso Lochner e outros, nos quais a Suprema
Corte – erradamente, como hoje se pensa -, recorreu aos direitos
individuais para impedir ou frustrar programas legislativos justos
e desejáveis. Mas teríamos mais a lamentar se a Corte tivesse
aceitado irrestritamente o passivismo: as escolas do Sul poderiam
ainda estar segregadas, por exemplo. Na verdade, se fôssemos
reunir as decisões mais lamentadas da Corte ao longo da história
constitucional, acharíamos muitas outras nas quais o erro esteve
na falta de intervenção em momentos nos quais, como hoje
pensamos, os princípios constitucionais de justiça exigiam uma
intervenção. Os norte-americanos sentiriam mais orgulho de sua
história política se esta não incluísse, por exemplo, os casos Plessy
ou Korematsu. Nesses dois casos, a decisão majoritária do legislativo
foi profundamente injusta, e também, como muitos juristas hoje
acreditam, inconstitucional; lamentamos que a Suprema Corte
não tenha intervindo para fazer justiça em nome da Constituição.
2.5.a quinta regr a: a rejeição do ativismo judicial e
advertência do argumento contr amajoritário
A quinta regra é ter sempre em mente o argumento contramajoritário, ou
seja, qual a razão para que num Estado baseado no princípio democrático a
decisão de um reduzido conjunto de pessoas não eleitas pelo povo imponha-se
diante da vontade dos legítimos representantes?
É necessário não se deixar seduzir pelo ativismo judicial, entendido, segundo
RAMOS (2010, p. 129), como
o exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos
pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente,
ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições
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i encontro de internacionalização do conpedi
subjetivas (conflitos de interesse) e controvérsias jurídicas de
natureza objetiva (conflitos normativos). Há, como visto, uma
sinalização claramente negativa no tocante às práticas ativistas,
por importarem na desnaturação da atividade típica do Poder
Judiciário, em detrimento dos demais poderes.
E, contrariando os federalistas, a história demonstra que há um perigo real
de usurpação das funções legislativas pelo Poder Judiciário ou, conforme aponta
HAMILTON et al (2003, p. 476), “é preciso observar que o perigo tão receado
das usurpações do Poder Judiciário sobre o Legislativo é puramente imaginário.”
Assim, legítima a advertência de DWORKIN (1999, p. 452) no sentido de que
o ativismo é uma forma virulenta de pragmatismo jurídico.
Um juiz ativista ignoraria o texto da Constituição, a história de
sua promulgação, as decisões anteriores da Suprema Corte que
buscaram interpretá-la e as duradouras tradições de nossa cultura
política. O ativista ignoraria tudo isso para impor a outros poderes
do Estado seu próprio ponto de vista sobre o que a justiça exige. O
direito como integridade condena o ativismo e qualquer prática de
jurisdição constitucional que lhe esteja próxima.
Também, como assinala SAMPAIO (2001, p. 170),
o ativismo judicial se impõe assim como uma compensação a
essa falta de racionalidade da práxis política, como uma forma
de atenuar o hiato existente entre o ideal político e a realidade
constitucional ou de preencher o ‘vácuo (deixado) pela renúncia
do legislador do seu papel político próprio’ (Kutler. 1979: 523). A
Corte Constitucional é vista, sob esse ângulo, como ‘representante
do povo ausente’ (Ackerman. 1984: 1013) ou como ‘reserva do
autogoverno’, (Michelman. 1986: 65), conferindo legitimidade
ao sistema constitucional como um todo e à própria atividade
governamental em particular (Black Jr. 1991: 11).
2.6.a sexta regr a: o sepultamento do mito do juiz como or áculo vivo da constituição
A sexta regra é sepultar o mito de que todas as respostas estão pré-determinadas
na Constituição esperando para serem descobertas pelo juiz, o que dispensaria a
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i encontro de internacionalização do conpedi
atividade legislativa. Mesmo não concordando com a tese radical de WALDRON
(2003, p. 105-106), a respeito da defesa da abolição do controle judicial de
constitucionalidade, é prudente levar em consideração a sua advertência de que o
deslocamento do centro de decisões para o Judiciário, com a demissão consciente
e deliberada do Legislativo, significa abrir mão do compromisso fundamental
com a ideia de que a solução final das nossas discordâncias é um assunto nosso.
A doutrina do “judicial restraint”, segundo GUASTINI (2010, p. 214-215),
ou seja, da autolimitação judicial, inspira-se no valor da deferência do Judiciário
diante do legislador democrático, que impede o Judiciário de invadir ou usurpar
a competência do Poder Legislativo. Subjacente a esta doutrina, encontra-se a
concepção da Constituição como um conjunto de normas amplas e lacunosas,
que permite ao legislador, na ausência de um parâmetro seguro de legitimidade
constitucional, dispor livremente sobre o tema.
De outro lado, em casos difíceis, que envolvem dilemas morais, não se
pode dispensar um amplo debate público prévio à decisão judicial. O Tribunal
Constitucional não deve antecipar a decisão e sufocar o diálogo. Não só existe um
timing a ser respeitado como escolhas que vão além de uma pura interpretação da
Constituição porque dizem respeito a formas diferentes de viver, agir e acreditar.
Para tanto, os juízes constitucionais precisam desenvolver sensibilidade política.
A validade dessa atividade não está na possibilidade de se atingir a essência
dos valores constitucionais (paradigma do objeto), tampouco numa especial
qualidade dos magistrados para definir seu significado (paradigma do sujeito).
Diferentemente, a possibilidade de o Judiciário dizer o que significa uma norma
constitucional decorre da validade argumentativa, ou seja, da capacidade de os
fundamentos aduzidos na decisão cooperarem para a formação de consensos
sociais.12
12 Segundo RAWLS (2003, p. 45), não existe uma doutrina com a qual todos os cidadãos
concordem ou possam concordar para decidir as questões fundamentais de justiça política.
Todavia, é possível obter numa sociedade bem-ordenada um “consenso sobreposto razoável”.
Assim, “a concepção política está alicerçada em doutrinas religiosas, filosóficas e morais
razoáveis, embora opostas, que ganham um corpo significativo de adeptos e perduram ao
longo do termpo de uma geração para outra.” Este consenso atuará como a base mais razoável
da unidade política e social para os cidadãos em uma sociedade democrática. O consenso
constitui um ponto de vista comum a partir do qual os cidadãos podem resolver questões
concernentes aos elementos constitucionais essenciais.
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i encontro de internacionalização do conpedi
Explica BOBBIO (1992, p. 27) que o consenso consiste num modo de
justificar os valores. Um valor é tanto mais fundado quanto mais aceito.
Com o argumento do consenso, substitui-se pela prova da
intersubjetividade a prova da objetividade, considerada impossível
ou extremamente incerta. Trata-se, certamente, de um fundamento
histórico, e como tal, não absoluto: mas esse fundamento histórico
do consenso é o único que pode ser factualmente comprovado. A
Declaração Universal dos Direitos do Homem pode ser acolhida
como a maior prova histórica até hoje dada do consensus omnium
gentium sobre um determinado sistema de valores. Os velhos
jusnaturalistas desconfiavam – e não estavam inteiramente errados
– do consenso geral como fundamento do direito, já que esse
consenso era difícil de comprovar.
Duvida-se da tese de que a Constituição endossa o lema de “policy-making by
judges”. Como questiona SIFFERT (2002, p. 83), por que o povo iria preferir
que as decisões políticas e sociais fossem tomadas pelo Supremo Tribunal Federal
e não através de um processo democrático descentralizado? O mito desenvolvido
na common law de juízes vistos como “the depositaries of the law, the living oracles
of the law”13 aplicado no campo da jurisdição constitucional pode produzir
efeitos indesejáveis e desastrosos para a vida política de um país como o nosso que
engatinha em matéria de experiência democrática.14
Na realidade, o juiz constitucional precisa achar o delicado meio-termo entre
suas faltas e excessos.15 Como assinala SAMPAIO (2001, p. 190), “talvez a vida
13 A ideia é do famoso jurista inglês William Blackstone, segundo CRUZ E TUCCI (2004, p.
11).
14 Para WALDRON (2005, p. 361), defensor da tese anti-jurisdição constitucional, não há
nenhuma razão para pensar que o controle judicial de constitucionalidade melhora o debate
político participativo em uma sociedade. O autor acredita ainda que segue em aberto a
questão de se saber se o controle judicial de constitucionalidade tornou os Estados Unidos
mais justo (ou faria mais justa qualquer sociedade) do que seria sem sua prática.
15 Exemplo desta postura ponderada é o voto do Ministro Marco Aurélio no julgamento das
leis federal e estadual a respeito da regulação da exploração de amianto: “Considerou que, em
questões a envolver política pública de alta complexidade e com elevada repercussão social,
a Corte deveria adotar postura de deferência à solução jurídica encontrada pelos respectivos
formuladores. Não haveria excepcionalidade a justificar a atuação do STF, que teria
conhecimento limitado acerca dos efeitos e das políticas públicas a envolver o uso controlado
do amianto, bem como das consequências práticas de eventual decisão pelo banimento, a
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volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
real e a experiência histórica tenham ensinado a esse juiz que exceder-se, quando
possível, é até preciso, mas recuar, quando necessário, é sinal de maturidade ou
arma de sobrevivência”.
2.7. a sétima regr a: levar a constituição a sério
A sétima regra é levar a Constituição a sério.
Não pode haver trivialidade ou sensaboria no ato de interpretar, aplicar
ou emendar a Constituição. O Poder Constituinte derivado brasileiro estava
distraído quando elaborou o art. 2º da Emenda 52/2006? Como, em ano de
eleição, uma emenda que suprime a verticalização nas coligações partidárias prevê
“essa emenda entra em vigor na data de sua publicação aplicando-se às eleições
que ocorrerão no ano de 2002”? Ano de 2002? Uma emenda de 2006 pode ser
aplicada a uma eleição que ocorreu há quatro anos?
Da manutenção do “telos” da persuasão e compreensão na aplicação da
Constituição depende a própria sobrevivência de uma Constituição democrática.
SUNSTEIN (2001, p. 201) conta que quando a multidão perguntou a Benjamin
FRANKLIN o que os autores da Constituição tinham garantido aos americanos,
ele respondeu: “Uma república, se vocês conseguirem mantê-la.”16 A resposta de
FRANKLIN é uma expressão de esperança, mas também um convite a lembrar da
contínua obrigação de enfrentar este desafio. Uma república depende muito menos
da decisão dos fundadores, ou de um culto texto, de autoridades ou ancestrais,
mas da ação e do compromisso dos cidadãos a todo tempo. A manutenção de
uma república depende da criação de “arenas” nas quais os cidadãos com as mais
variadas experiências e projetos e diferentes pontos de vista sobre o que é bom e
certo, possam se encontrar e se consultarem. Assim, concorda-se com RAMOS
(2009, p. 141;146) para quem o sistema brasileiro é misto apenas no tocante ao
aspecto modal, permanecendo difuso quanto ao aspecto subjetivo ou orgânico.
exigir o predicado da autocontenção. Aquilatou que nem mesmo os órgãos da União seriam
uníssonos quanto à continuidade da exploração de amianto no Brasil.” BRASIL. SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL. ADI 3937/SP. Relator: Ministro Marco Aurélio. Julgamento:
31.10.2012. Informativo 686 do STF, de 29 a 31 de outubro de 2012.
16 Inegável, conforme BRITO (2004, p. 373), encontrar na expressão de Benjamin Franklin o
“momento maquiavélico” da República, isto é, a consciência da sua natureza finita.
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i encontro de internacionalização do conpedi
3.conclusões
Ambientes como o brasileiro, de um sistema misto17 de controle judicial,
que combina a herança do sistema de judicial review com o controle abstrato
concentrado, mostra-se propício para a investigação dos limites e possibilidades
da jurisdição constitucional.
Não se pode adiar a discussão sobre os parâmetros de legitimidade da atuação
dos juízes constitucionais para tal empreendimento, notadamente num regime
democrático que pressupõe a existência do pluralismo político. Não se trata
de uma questão meramente formal – de repartição de competências inerente à
separação de poderes – mas de fundo, da compreensão do que é a Constituição,
de como a sua identidade é concebida, da intensidade de sua força normativa.
Como questiona QUEIROZ, (2000, p. 165), “existe, na realidade, um segundo
texto constitucional”, resultado da interpretação constitucional judicial?
Outorgar a guarda precípua de um documento supremo a um dos poderes
do Estado (seja ele uma Suprema Corte ou uma Corte Constitucional) faz
dele um poder supremo. Não se pode ignorar o risco constante de conflitos
interinstitucionais, que afetam o delicado equilíbrio entre os poderes. O
relacionamento pode se converter, segundo BONAVIDES (1997, p. 268),
em uma disputa pelo poder de dizer a última palavra, dirigida sob o manto da
“vontade de poder”.18 A tensão entre a democracia e o constitucionalismo, que
não está de modo algum resolvida, converte-se numa tensão entre os poderes
constituídos, o Legislativo e o Judiciário, que disputam a condição de supremos
intérpretes da Constituição (LLORENTE, 2009, p. 25).
17 Concorda-se com RAMOS (2009, p. 141;146) para quem o sistema brasileiro é misto apenas
no tocante ao aspecto modal, permanecendo difuso quanto ao aspecto subjetivo ou orgânico.
18 Exemplo recente deste potencial conflito é a disputa pela “última palavra” concretizada na
discussão e votação da PEC (Proposta de Emenda Constitucional) 33/2011, que condiciona
o efeito vinculante de súmulas aprovadas pelo STF à aprovação pelo Poder Legislativo e
submete ao Congresso Nacional a decisão sobre a inconstitucionalidade de emendas à
Constituição. Caso emblemático e histórico de conflito entre poderes, como explica FILHO
(2002, p. 41) é a “vingança” do governo Roosevelt às decisões da Suprema Corte que persistia
na declaração de inconstitucionalidade das leis do New Deal com a apresentação, em fevereiro
de 1937, de um projeto de lei ao Congresso Nacional americano onde se prevê a reformulação
na justiça federal norte-americana e, principalmente, na composição da Suprema Corte, o que
conhecido como “Court-Packing Plan”. A base do plano democrata era acrescentar um novo
Justice a cada um daqueles membros que estivessem acima de setenta anos.
342
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i encontro de internacionalização do conpedi
A Constituição não é um produto acabado ou uma narrativa completada. O
valor de uma boa Constituição, adverte DWORKIN (2011, p. 613), traduz-se no
valor da perfomance dos atores constitucionais. Como assinala CAETANO (1996,
p. 349), se, na prática, os resultados da justiça constitucional não forem aqueles
esperados pela doutrina, “isso quer dizer que nenhuma instituição ou sistema
pode produzir os seus frutos numa sociedade se não for servida por homens
dignos, com autoridade moral, competência profissional e total devoção à tarefa
que lhes é confiada e se nessa sociedade não houver a convicção da necessidade
e da utilidade da instituição ou do sistema, traduzida em respeito geral e em
geral colaboração.” Espera-se, ainda nas palavras de DWORKIN (2012, p. 430),
que os juízes constitucionais criem algo mais, escrevam um subscrito para
sua mortalidade e transformem suas vidas e a da Constituição em “pequenos
diamantes nas areias cósmicas”19.
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BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 3937/SP. Relator: Ministro
Marco Aurélio. Julgamento: 31.10.2012. Informativo 686 do STF, de 29
a 31 de outubro de 2012.
19 Segue DWORKIN (2012, p. 430), “lembremos, também, que aquilo que está em jogo é mais
do que mortal. Sem dignidade, as nossas vidas são meros lampejos de duração. No entanto, se
conseguirmos viver uma vida boa, criamos algo mais. Escrevemos um subscrito para a nossa
mortalidade. Transformamos as nossas vidas em pequenos diamantes nas areias cósmicas.”
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343
i encontro de internacionalização do conpedi
_______. _______. ADI 4277-DF. Ação direta de inconstitucionalidade.
Relator: Ministro Carlos BRITTO. Julgamento: 05.05.2011. Tribunal
Pleno. DJe 198, divulgado em 13.10.2011, publicado em 14.10.2011,
ementário volume 02607-03, p. 00341.
_______. _______. ADPF 132-RJ. Arguição de descumprimento de preceito fundamental. Relator: Ministro Carlos Ayres Britto. Julgamento:
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i encontro de internacionalização do conpedi
uma nação entorpecida: os direitos
fundamentais das pessoas portador as de
deficiência psiquíca no br asil
Gabrielle Bezerra Sales1
Resumo
O presente estudo intenta analisar aspectos da história da loucura em algumas das principais fases da história da Humanidade para, mediante reflexão
sobre o panorama atual, oferecer hipóteses alternativas ao estigma, à ditadura da
normalidade e à exclusão. Essa pesquisa se posiciona a partir de um referencial
crítico para refletir sobre a realidade dos pacientes com transtornos psíquicos
no Brasil e, dessa maneira, compreender os efeitos da política antimanicomial
e seus desdobramentos para a afirmação dos direitos fundamentais dessa parcela
da população brasileira: os portadores de deficiência psíquica. Intenta igualmente
reafirmar esses direitos fundamentais para servir de instrumento de denúncia da
falta de políticas públicas efetivas e, principalmente, da falta de cuidado para
com a grande parcela dessa população que resta simplesmente negligenciada.
Ademais, intenta demonstrar a complementariedade dos diálogos pautados em
outras modalidades de lógica para a recepção de outras modalidades que incluam
mais do que excluam aqueles que estão além da sutil fronteira existente entre a
razão e a desrazão.
Palavras-chave
Deficiência; Tutela; Direitos Humanos; Direitos Fundamentais; Alienação.
Resumen
Este estudio trata de analizar aspectos de la historia de la locura en algunas de
las principales fases de la historia de la humanidad a través de la reflexión sobre la
1 Gabrielle Bezerra Sales é advogada, graduada e mestre em Direito pela UFC- Universidade
Federal do Ceará, doutora em Direito pela Universidade de Augsburg, Alemanha, professora
de Direitos Humanos e Fundamentais, coordenadora geral do curso de graduação em Direito
da Unichristus- Centro Universitário Christus e, atualmente, doutoranda em Bioética na
Universidade do Porto- Portugal.
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i encontro de internacionalização do conpedi
situación actual, ofrecer hipótesis alternativas a la estigmatización, a la dictadura
de la normalidad y a la exclusión. Esta investigación se encuentra desde un marco
crítico para reflexionar sobre la realidad de los pacientes con trastornos mentales
en Brasil y, así, comprender los efectos de la política anti-asilo y sus consecuencias
para la afirmación de los derechos fundamentales de esa porción de la población
brasileña: las personas con discapacidad psíquica. Tiene la intención de reafirmar
estos derechos fundamentales para servir de instrumento de denuncia de la falta
de políticas públicas eficaces y, sobre todo la falta de cuidado que torna la tutela
de la porción de esta población desatendida. Además, intenta demostrar la
complementariedad de los diálogos guiados por otras formas de lógica para la
recepción de otras modalidades que incluyan más que excluyan las personas que
están más allá de la frontera sutil que hay entre la razón y la sinrazón.
Descriptores
Discapacidad; Tutela; Derechos Humanos; Derechos Fundamentales; Alienación.
1.aproximações
O conceito de Deficiência vem sofrendo alterações substanciais ao longo
dos últimos séculos, sobretudo em razão das alterações culturais do final do
século XX. De fato, a concepção atual de deficiência pode ser considerada um
desdobramento do modelo social surgido na Inglaterra e nos EUA no inicio dos
anos 702.
Essa concepção se tornou paradigmática em razão da mudança no conceito
que, outrora era tido apenas na perspectiva biomédica e individual em uma
abordagem extremamente excludente e estigmatizante3, passando para a perspec2 DINIZ, Debora. O que é deficiência? São Paulo: Brasiliense, 2007, p. 09. “Essa foi a revolução
dos estudos sobre deficiência surgidos no Reino Unido e nos Estados Unidos nos anos 1970.
De um campo eminentemente biomédico confinado nos saberes medicos, psicológicos, e de
reabilitação, a deficiência passou a ser também um campo das humanidades. Nessa guinada
acadêmica, deficiência não é mais uma simples expressão de uma lesão que impõe restrições à
participação social de uma pessoa. Deficiência é um conceito complexo que reconhece o corpo
com lesão, mas que também denuncia a estrutura social que oprime a pessoa deficiente.”
3 SANDEL, Michael J. Contra a Perfeição: ética na era da engenharia genética. Ana Carolina
Mesquita (trad). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 64-65.
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i encontro de internacionalização do conpedi
tiva social em que há uma nítida busca pela inclusão e adaptação do cotidiano
às necessidades de todos, especialmente dos mais vulnerabilizados, ou seja, os
deficientes4.
Trata-se, portanto, de uma modalidade de percepção da deficiência a partir
de uma perspectiva sociológica, mas, igualmente como expressão de um conceito
eminentemente político5.
A ideia central do modelo social se pautava preponderantemente em dois
pontos: 1- A deficiência em si não poder justificar a desigualdade e a exclusão
que ainda se verifica em relação aos deficientes, condizendo, nesse sentido, com
a proposta de separação entre os conceitos de lesão e deficiência; 2 – Uma vez
que se trata de um conceito sociológico e igualmente politico, a abordagem
deixaria de ser individual, personalizada e biomédica no sentido de uma tragédia
pessoal ou de castigo divino para ser pensado na forma de objeto para a criação
de políticas públicas que visem a transformação de todas as espécies de padrões
sociais excludentes, transferindo a responsabilidade acerca da inclusão para o
Estado em parceria com a Sociedade civil6.
O que ocorre é que, ainda assim, após a nova percepção do conceito de
deficiência, subsiste na vida cotidiana a ideia de medicalização7 incessante da
sociedade e, principalmente, das pessoas deficientes em função da supremacia da
ditadura do ideal de normalidade8.
O modelo social buscou superar o chamado modelo biomédico da deficiência
que ainda insiste em processos que intentam curar, tratar, eliminar e, com isso,
torturam o corpo e a alma. E, desse modo, buscam moldar a pessoa deficiente a
um padrão social, mental e físico que é, de fato, uma grande idealidade. Mas, de
4 DINIZ, Debora. O que é deficiência? São Paulo: Brasiliense, 2007, p. 27-28.
5 RIOS, Roger Raupp. Direito da antidiscriminação e discriminação por deficiência. In:
Deficiência e discriminação. Debora Diniz e Wederson Santos(Org.). Brasília: LetraslivresEdunb, 2010, p. 73-96.
6 DINIZ, Debora. Modelo social da deficiência: a crítica feminista. Série Anis. Brasília:
Letraslivres, 1-8 julho, 2003, p. 02.
7 RODRIGUES, José Carlos. O Corpo na História. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999, p. 112.
8 DINIZ, Debora; SANTOS, Wederson. Deficiência e direitos humanos: desafios e respostas
à discriminação. In: Deficiência e discriminação. Debora Diniz e Wederson Santos(Org.).
Brasília: Letraslivres- Edunb, 2010, p. 09-17. “(…) Não há corpos naturalmente em
desvantagem, mas simplesmente uma ideologia da normalidade que os classifica como
inferiores a um ideal de produtividade, de independência e de vida boa.”
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i encontro de internacionalização do conpedi
todo modo, esse modelo biomédico recria e, especialmente, reforça as estruturas
de discriminação e de intolerância que já existem e que ainda disciplinam corpos
e mentes em nossas sociedades.
Com efeito, um dos legados mais importantes desse modelo social foi a
compreensão da deficiência em uma perspectiva coletiva que se projeta para a
pluralidade, para a igualdade, para a tolerância e para a diversidade com a qual
deve ser entendida nos dias atuais.
Outro legado foi a consciência de que cabe a todos, solidariamente, a retirada
das barreiras sociais, intelectuais, culturais e arquitetônicas que separam todas as
pessoas, deficientes ou não. Portanto, diz-se que houve a neutralização do aspecto
estigmatizante que se pensava estar ínsito à noção de deficiência.
2.do direito à igualdade ao direito à diferença: a
formação do caleidoscópio humano no br asil
A deficiência, no entanto, persiste como um dogma na sociedade ocidental,
especialmente nos dias atuais em que se busca cada vez mais ansiosamente pela
padronização de um ideal de perfeição9. Quanto mais se utiliza a medicalização
para conter, dominar, transformar o ser humano mais efeitos nocivos se detecta
para a ideia de inclusão dos diferentes.
Convém lembrar que a concretização do direito à igualdade somente se
aperfeiçoa na medida em que se contempla na mesma medida o direito à diferença
e, no que tange as pessoas deficientes, deve se falar igualmente do direito à
inclusão10.
Pois o direito à inclusão é, na contemporaneidade, a consequência natural do
amadurecimento da teoria dos direitos fundamentais e, dai, a sua afirmação deve
ser pluridimensional no intuito de alcançar a máxima efetividade.
Seguindo essa linha de raciocínio, cumpre ressaltar que o mais essencial
direito das pessoas deficientes pode ser traduzido, na atualidade, como direito
9 COSTA NETO, João. Dignidade humana: visão do Tribunal Constitucional Federal
Alemão, do STF e do Tribunal Europeu. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 113.
10 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITDIERO, Daniel. Curso de
Direito Constitucional. 2a. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 259-789
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de viver livre de toda e qualquer forma de discriminação, isto é, o direito à antidiscriminação11.
Entretanto, a ideologia da normalidade é tão perversa e tão insidiosa que a
discriminação advinda dela é silente, pois, não há uma nomenclatura para se
adjetivar a pessoa que discrimina alguém em razão da sua deficiência12.
Notória é a dificuldade de se combater uma discriminação dessa ordem,
vez que apela para sentimentos íntimos e até inconscientes, que por meio de
ações equivocadas, supostamente estariam buscando o bem daquelas pessoas, na
medida em que evocam atitudes que mesclam desde a violência13 propriamente
dita até ao paternalismo extremo.
“A verdade é que não sabemos descrever esse fenômeno, que
é multidimensional e perpassa todas as esferas da vida de uma
pessoa com deficiência. A deficiência não é descrita como
desigualdade imerecida e, portanto, injusta, mas como resultado
de um acaso que demarca diferentes pontos de partida para a
vida social. Nessa lógica excludente, uma pessoa com deficiência
mental é tida como alguém fora dos parâmetros da normalidade,
um julgamento de valor travestido de narrativa biomédica sobre o
normal e o patológico. Por isso, enfrentar a discriminação contra
as pessoas com deficiência exige um giro linguístico e normativo
em diferentes campos do conhecimento científico e simbólico,
como a biomedicina e as religiões. Não há corpos naturalmente em
desvantagem, mas simplesmente uma ideologia da normalidade
que os classifica como inferiores a um ideal de produtividade,
independência e vida boa14.”
A deficiência, via de regra, provoca reações apaixonadas, desde a repulsa até
o fascínio, o que, a principio, justificaria atitudes totalmente desproporcionais.
11 RIOS, Roger Raupp. Direito da antidiscriminação e discriminação por deficiência. In:
Deficiência e discriminação. Debora Diniz e Wederson Santos(Org.). Brasília: LetraslivresEdunb, 2010, p. 73-96.
12 DINIZ, Debora; SANTOS, Wederson. Deficiência e direitos humanos: desafios e respostas
à discriminação. In: Deficiência e discriminação. Debora Diniz e Wederson Santos(Org.).
Brasília: Letraslivres- Edunb, 2010, p. 10.
13 O ESTADO DE SÃO PAULO JORNAL. Aluno com retardo mental é torturado. www.
estadao.com.br/estadaodehoje/20090618/not_imp.389067,0.php. Consulta em: 10.abr.2012.
14 DINIZ, Debora; SANTOS, Wederson. Deficiência e direitos humanos: desafios e respostas
à discriminação. In: Deficiência e discriminação. Debora Diniz e Wederson Santos(Org.).
Brasília: Letraslivres- Edunb, 2010, p. 10.
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i encontro de internacionalização do conpedi
Desafiadora é, pois, a tarefa de construir um lugar no mundo que, após o
balanceamento dos interesses contrários e a superação do padrão biomédico, o
deficiente seja colocado em sua condição primordial e irrenunciável: a condição
de sujeito de direito15.
O silêncio acerca desse problema foi enfrentado pela Constituição Federal de
1988 no Brasil16. Mas, igualmente pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência aprovada pela ONU em 200617.
A abordagem dessa Convenção é, sobretudo ética, mas firma uma posição
como marco normativo no cenário internacional e se afirma como um dos
mais relevantes documentos na teoria dos direitos humanos na medida em que
demonstra a insuficiência da teoria dos direitos fundamentais, circunscritos aos
limites da soberania estatal, para abranger integralmente o fenômeno humano e
tutelá-lo de maneira adequada.
E assim, em uma perspectiva de interpretação autêntica, esse documento
tratou de definir a discriminação sofrida pelas pessoas deficientes como qualquer
diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência cujo resultado seja
toda e qualquer espécie de limitação de acesso a direitos e a garantias, bem como as
diversas formas de políticas de reconhecimento de sua singularidade e, inclusive, à
distribuição de bens e de recursos.
Portanto, a alteração do padrão comportamental excludente só poderá ocorrer se, como já foi afirmado, se for pautado em políticas públicas18 que objetivem
desde o esclarecimento, a educação até às intervenções mais radicais que propiciem
15 ELIA, Luciano. O conceito de sujeito. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 14-16.
16 RIOS, Roger Raupp. Direito da antidiscriminação e discriminação por deficiência. In:
Deficiência e discriminação. Debora Diniz e Wederson Santos(Org.). Brasília: LetraslivresEdunb, 2010, p. 78-79. “Essas questões se relacionam diretamente à dogmática constitucional
do princípio da igualdade no direito brasileiro. O direito brasileiro dispõe de uma
lista exemplificativa de critérios proibidos de discriminação e de extenso rol de direitos
fundamentais, ainda que não exaustivo. Juntos, tais critérios e direitos proveem proteção
contra discriminação fundada em condições pessoais (idade) e em escolhas e condutas
(convicção filosófica e expressão artística). Nesse quadro, o reconhecimento da proibição de
discriminação por deficiência é incontestável.”
17 In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm Consulta
em: 10.jun.2014
18 MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. 4a. ed. São Paulo: Atlas, 2013,
p. 289-326.
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alterações substanciais na vida cotidiana e nos marcos normativos afim de que as
pessoas deficientes possam definitivamente ter seus corpos e suas mentes livres das
pressões impostas pela ditadura da normalidade e, assim, gozem de seus direitos.
Para isso, a partir do diálogo com o teor dessa Convenção, se verifica a
necessidade de se adicionar ao legado do modelo social a contribuição feminista19. Partindo, então, dessa expansão, o texto da Convenção demonstrou
nitidamente a relevância da tutela específica para meninas e mulheres deficientes,
visando a efetividade real dessa tutela, pois dentre todas as condições de
vulnerabilidade, elas reúnem as mais cruéis condições de vulnerabilização20
quando, além de deficientes, são igualmente pobres. analfabetas e negras e se
encontram em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento como o Brasil21.
Dai, falar sobre toda e qualquer forma de deficiência somente é possível em
um contexto de aproximação com a teoria dos direitos humanos e em estreita
relação com o teor dos direitos fundamentais, na medida em que falar de
deficiência é tratar diretamente de igualdade, de liberdade, de dignidade e de
justiça estendidas para todos, indiscriminadamente.
E buscar, na medida do possível, oferecer alternativas de novos padrões sócioculturais que intentem ajustamentos que incluam as pessoas diferentes e as
tutelem contra todas as formas de opressão.
O Brasil ratificou com força de emenda constitucional essa Convenção em
2007 e, a partir dai, um Universo de dúvidas e de inquietações ainda restam a
serem analisadas com seriedade, tanto pela comunidade acadêmica quanto pela
sociedade, mas especialmente pelos poderes públicos.
Em um primeiro momento, pode se inferir que um dos maiores desafios é, em
uma perspectiva de justiça, retirar a questão da deficiência da esfera privada para
19 DINIZ, Debora. Modelo social da deficiência: a crítica feminista. Série Anis. Brasília:
Letraslivres, 1-8 julho, 2003, p. 03. A autora destaca a importancia do movimento feminista
para a valorização do cuidador e, assim, o estabelecimento de uma ética do cuidado.
20MONTEIRO, Geraldo Tadeu Moreira. Construção jurídica das relações de gênero: o
processo de codificação civil na instauração da ordem liberal conservadora no Brasil. Rio de
Janeiro: Renovar, 2003, p. 19.
21 SAFFIOTI, Heleieth L. B. Quantos sexos? Quantos gêneros? Unissexo/Unigênero? In:
Cadernos de Crítica Feminista. Ano III. N. 2. Dez-2009, Recife: SOS- Instituto Feminista
para a Democracia, p. 20-21.
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i encontro de internacionalização do conpedi
a esfera pública e, assim, forjar um novo padrão comportamental, mas sobretudo
normativo.
Segundo o último Censo cerca de 24 por cento da população brasileira sofre
algum tipo de deficiência, justificando, nesse sentido, a urgência de medidas que
possibilitem essa alteração22.
3. uma crise da normalidade ou a eterna solidão dos
alienados?
Dentre os diversos tipos de deficiência se destaca a deficiência psíquica
como aquela que tem sido mais negligenciada em termos de políticas públicas
inclusivas em razão do grande estigma que carrega, vez que a figura do louco
ainda agrega uma extrema carga de preconceito e, em certa medida, ainda coloca
em xeque radicalmente a ideologia da normalidade23.
Foucault, especialmente em História da Loucura, demonstrou que, desde o
período medieval os deficientes psíquicos tem sido alvo de discriminação por
meio do confinamento24.
Assim, percebe-se que após as epidemias de lepra que vitimaram a Europa na
idade média, a loucura passou a ser alvo das mesmas estratégias de medicalização
e de higienização utilizadas para combater aquele mal.
Com isso, a partir da noção de contágio e, sobretudo, por meio da estratégia
política de banimento dos inadequados, surgiram as famosas naus dos alienados
que serviam para afastar das cidades todos que eram desviantes, mas especialmente
os chamados alienados25.
A figura da barca serve, segundo Foucault, para mostrar o pavor que os
deficientes psíquicos causavam nos demais, vez que não aderiam aos padrões
22 Instituto fez análises com base nos dados do Censo Demográfico 2010. Migração, nupcialidade, fecundidade também estão no levantamento. http://g1.globo.com/brasil/noticia/20
12/04/239-dos-brasileiros-declaram-ter-alguma-deficiencia-diz-ibge.html. Consulta em: 10.
jun. 2014.
23 MUSSE, Luciana Barbosa. Novos sujeitos de direito: as pessoas com transtorno mental na
visão da bioética e do biodireito. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 01-05.
24 FOUCAULT, Michel. História da Loucura na idade clássica. José Teixeira Coelho(Trad). São
Paulo: Perspectiva, 2012, p. 45-78.
25 RODRIGUES, José Carlos. O Corpo na História. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999, p. 109-110.
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sociais e questionavam a autoridade estabelecida com seus comportamentos
desviantes e, de certa forma, classificados como destituídos de razão26.
A lógica binária, portanto, era o padrão utilizado para opor a razão à desrazão
tal qual se fazia em relação ao bem e ao mal, as trevas à luz, ao sagrado em relação
ao profano e, notoriamente, a saúde à doença.
Outro ponto importante demonstra que, a partir do medievo o Homem foi
confrontado com uma nova forma de contagem do tempo, pois a partir de então
deixava de usufruí-lo livremente para subjugá-lo ao principio da eficiência27.
Uma realidade que estabeleceu a vida humana como uma temporalidade em
função da salvação de sua alma e, pois, submetida a uma contagem de tempos que
seria mensurada ao final dos dias vividos na terra e, principalmente, em razão do
alcance do objetivo pressuposto.
Nesse sentido, a eficiência acabou por tornar a todos escravos de uma lógica
que, por meio da utilização do tempo para atingir à eficiência afastava todas as
outras formas as formas de gozá-lo, especialmente a naturalidade de apenas viver28.
Os tempos então passaram a ser entendidos como o tempo da vivência terrena
em busca da promessa da eternidade e do esforço humano para merecê-la. E,
assim, todas as demais formas de contá-lo e usufruí-lo deveriam ser extirpadas,
pois afetavam a ideia subjacente à própria vida humana e ao seu maior propósito:
a santidade29.
Tudo isso, além de outras circunstâncias, gerou para o ser medieval uma convivência pautada em padrões morais extremamente rígidos e, consequentemente,
excludentes. Com efeito, nesse cenário a população de desviantes só tinha motivos
para crescer30.
26 FOUCAULT, Michel. História da Loucura na idade clássica. José Teixeira Coelho(Trad). São
Paulo: Perspectiva, 2012, p. 03-44.
27 LE GOFF, Jacques. Para uma outra Idade Média: tempo, trabalho e cultura no ocidente.
Thiago de Abreu e Lima Florêncio e Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis, RJ: Vozes,
2013, p. 58-82.
28 RODRIGUES, José Carlos. O Corpo na História. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999, p. 87.
29 ROUDINESCO, Elisabeth. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos.
André Telles (Trad). Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 15-43.
30 RODRIGUES, José Carlos. O Corpo na História. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999, p. 116.
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“É preciso ter sempre em mente que o ritmo da transformação
quantitativa das cidades foi muito maior que o da metamorfose
das mentalidades e sensibilidades. E que os hábitos e as formas de
vida medievais, incompatíveis com as novas dimensões da cidade,
eram ainda plenamente operantes mais de três séculos depois do
fim da idade média- que, aliás, só terminou em 1453 por decisão
dos historiadores do século XIX. Ademais, as características
medievais doravante coexistem, sobretudo nas cidades de índole
industrial, com os odores também fétidos do carvão queimado,
das fumaças que escurecem o ar, dos gases gerados em larga escala
pela fermentação já industrial de cervejas, com a fabricação de
tijolos, com as poeiras levantadas pelas rodas dos veículos, com as
exalações sulfurosas das fábricas...31”
Com o aumento do número das barcas dos alienados e a recusa das cidades de
deixá-los desembarcar em solo firme, se optou pela estratégia do confinamento
em terra firme como forma de sanar as radicais impossibilidades de convivência
com aqueles que haviam sido banidos.
A figura da barca servia igualmente para demonstrar o louco como aquele ser
mais indesejado cuja existência havia sido atingida de forma abissal no momento
em que ocorria o diagnóstico, o julgamento moral de sua incapacidade e, por
obvio, de sua total inadequação para a vida social.
A ele deveria ser negada a condição básica de viver e conviver com os outros,
em razão da sua impossibilidade de seguir os padrões que lhe eram impostos e que
sobejavam em termos de subversão em relação até às mesmo práticas como a festa
dos mortos e o carnaval em que era permitida alguma espécie de flexibilização das
normas sociais.
“ O cargo de intendente-geral de polícia foi instituído na França
em 1665 e em 1757 se definiu um primeiro código de polícia,
cujo objetivo era fazer que as pessoas vivessem civilizadamente,
isto é, de modo cultivado, polido ou refinado, excluindo tudo o
que parecesse bárbaro, irracional ou governado pela confusão.
Polir (limpar), policiar (vigiar), ser polido (bem educado), politica
(poder) pertencem ao mesmo campo semântico e se entrelaçam no
mesmo processo histórico de vigiar, inspecionar, relatar, delatar,
31 RODRIGUES, José Carlos. O Corpo na História. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999, p. 114.
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alertar, controlar, regulamentar, proibir, intervir, constranger...
Não obstante, devemos considerar que contra mentalidades tão
fortemente enraizadas dificilmente há repressão eficaz a curto
prazo.”32
A modernidade, por sua vez, também reforçou a supremacia da ideia de
normalidade ao apontar para a entronização da razão no lugar outrora ocupado
por Deus. E, dessa forma, recrudesceu a exclusão na medida em que estabeleceu
como principal forma de abordagem da loucura o modelo hospitalocêntrico.
Medidas resultantes desse modelo, visando a higienização das populações se
tornaram frequentes e deram ensejo às práticas eugênicas que perduraram até o
início do século XX.
Por meio dessas práticas, as pessoas com deficiência psíquica não eram apenas
banidas, mas destituídas de todo e qualquer direito, vez que passavam a serem
vistas como uma subcategoria da Humanidade.
E, dessa forma, a partir desse legado da modernidade, se torna perceptível que,
dentre as diversas modalidades de deficiência, a psíquica é a que tem sido mais
negligenciada em termos de empreendimentos que propiciem a inclusão, vez que
é a que gera mais repulsa por colocar em xeque uma das mais arraigadas crenças
da Humanidade, ou seja, a do Homem como ser eminentemente racional.
4. o estado da arte no br asil
O Brasil herdou diretamente da colonização portuguesa a tradição
hospitalocêntrica para o tratamento da loucura. Os Hospícios e Manicômios
brasileiros, então, se tornaram celeiros de seres humanos amontoados, submetidos às degradantes condições, ou seja, eivados de qualquer vestígio de proteção
do Estado. A Sociedade civil, por meio de seus preconceitos, já havia sentenciado,
desde o Brasil colônia, abandono aos portadores de transtornos psíquicos e, de
fato, o Estado apenas tratou de empreender isso, institucionalizando-o.
Assim, o Brasil pode ser reconhecido como um dos locais em que houve maior
desrespeito à dignidade dos pacientes com deficiência psíquica, pois houve o
32 RODRIGUES, José Carlos. O Corpo na História. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999, p. 114.
volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
aprimoramento da noção excludente advinda do ponto de vista eurocentrista e a
solidificação de práticas de extrema crueldade em relação a esse tipo de paciente33.
Tratava-se da mesma modalidade segregacionista que se depreende da análise
dos Campos de concentração na Alemanha hitlerista e que igualmente pode ser
reconhecida nos episódios de horror que a história manicomial expressa no Brasil.
Pacientes submetidos a torturas, sem prontuários, sem registro civil, total
falta de higiene e de alimentação que geravam mortes em massa, cadáveres
abandonados ou vendidos para as direções dos cursos de medicina etc34.
Os anos 70, no entanto, trouxe mudanças, dentre elas a visita de Michel
Foucault ao Brasil que influenciou uma geração de estudantes de medicina e
de médicos que passaram a protestar por melhores condições de trabalho nas
Instituições psiquiátricas e por melhorias nas condições de vida dos pacientes e,
assim, a trabalhar pela desospitalização35.
Minas Gerais foi o locus da maior tragédia na história da loucura no pais em
razão das atrocidades no Hospital Colônia em Barbacena36. Mas, infelizmente,
esse panorama atroz de inúmeras violações de direitos foi replicado em todos os
estados brasileiros37.
Amontoados de anônimos e anônimas, pretos e pretas, em sua maioria pobres, analfabetos e analfabetas, sem face, em suma, abandonados. Esse panorama
dos manicômios no Brasil tão aviltante se estabeleceu como a composição de um
celeiro de indesejáveis e de inadequados à sociedade brasileira que, antes de ofertar qualquer tipo de tratamento, desejava punir e afastar essa parte da população.
Os anos 70 evidenciaram um novo discurso: a boética38 que, aliada a luta
antimanicomial, possibilitou o surgimento de nomes como Basaglia que, na Itália,
33 ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro. 4.ed. São Paulo: Geração Editorial, 2013, p. 48-67.
34 ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro. 4.ed. São Paulo: Geração Editorial, 2013, p. 71-83.
35 MUSSE, Luciana Barbosa. Novos sujeitos de direito: as pessoas com transtorno mental na
visão da bioética e do biodireito. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 01-05.
36 ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro. 4.ed. São Paulo: Geração Editorial, 2013, p. 94-95.
37 O caso Damião Ximenes e a condenação do Brasil por violação dos direitos humanos.
Carta-denúncia escrita pela irmã do paciente gerou a condenação emblemática na
área de saúde mental. In: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_
content&view=article&id=4407&secao=391 Consulta em: 10.jun.2014
38 DINIZ, Debora; GUILHEM, Dirce. O que é Bioética? São Paulo: Brasiliense, 2002, p. 10;
BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Saúde pública é bioética? São Paulo: Paulus,
2005, p. 58-61.
360
volume
06
i encontro de internacionalização do conpedi
propunha a abolição do sistema hospitalocêntrico, denunciando os horrores que
eram praticados em nome da razão. Basaglia, em sua visita ao Brasil, denunciou
igualmente o sistema psiquiátrico brasileiro e ajudou a mudar a realidade no pais.
O final da década de 70 então foi marcado pelo debate acerca do teor do
Decreto Presidencial de 1934 que permitia o recolhimento de paciente psiquiátrico
a hospital mediante simples atestado médico39.
Mas, foi com a promulgação da Constituição Federal de 1988, notadamente
a partir do que prescreveu em seus artigos 3o, IV; 7o, XXI; 23, II; 24, XIV; 37,
VIII; 203o, IV; 208o, III; 227o, § 1o, II, que se tornou possível as mudanças mais
efetivas na área da saúde mental.
Basicamente, a Constituição de 1988, com base nos princípios da dignidade
da pessoa humana e da igualdade, proibiu toda e qualquer forma de discriminação
e assegurou a diversidade como elemento constitutivo da sociedade brasileira no
sentido de que sua pluralidade esteja amparada pelo princípio da solidariedade.
A Constituição, portanto, assegurou a proibição de todas as formas de
discriminação, especialmente no tocante ao salário e aos critérios na admissão de
trabalhador deficiente; atribuiu competência comum da União, dos Estados e dos
Municípios para cuidar da saúde e da assistência pública, bem como da proteção
e da garantia das pessoas deficientes; atribuiu competência legislativa comum
à União, aos Estados e ao Distrito Federal quanto à proteção e à integração
social das pessoas deficientes; reservou cargos e empregos públicos para pessoas
deficientes na Administração pública; se obrigou à prestação da assistência social
para assegurar a habilitação e a reabilitação das pessoas deficientes e à promoção de
sua integração à vida comunitária; se obrigou a oferecer atendimento educacional
especializado às pessoas deficientes, preferencialmente na rede regular de ensino;
instituiu o dever da família, da sociedade e do Estado em favor da criança e do
adolescente, de criar programas de prevenção e de atendimento especializado para
as pessoas deficientes física, mental ou sensorial, visando favorecer a reintegração
social dessas pessoas mediante o treinamento para o trabalho e a convivência e,
desse modo, facilitar o acesso a bens e serviços coletivos com a eliminação de
preconceitos e de obstáculos arquitetônicos.
39 In: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-24559-3-julho-1934-515
889-publicacaooriginal-1-pe.html. Consulta em: 10.jun.2014.
volume
06
361
i encontro de internacionalização do conpedi
No caso da saúde mental, a repercussão desses preceitos constitucionais,
segundo dados do Ministério da Saúde, atingiram e continuam atingindo em
média a 12 por cento da população brasileira, vez que esse é o percentual da
população brasileira que necessita de algum tipo de atendimento psiquiátrico,
contínuo ou eventual40.
O fecundo debate acerca da saúde mental no Brasil do período pósConstituição de 1988, intentava uma série de reforma drásticas das práticas e da
assistência em saúde mental. Desse panorama, surgiu a Lei 10.216 em 200141.
Com a promulgação dessa lei eclodiu uma nova categoria de sujeitos, ou
seja, os pacientes psiquiátricos passaram a ser conhecidos como os novos sujeitos
de direitos. E isso em razão da espécie de exclusão crônica a que eles haviam
sido submetidos não somente no Brasil, mas em todas as fases da história da
Humanidade.
A ideia era então por meio do emponderamento, fortalecer a identidade e a
autonomia individual e de grupo dos pacientes psiquiátricos no Brasil para que
eles se tornassem protagonistas, construtores de sua própria cidadania, inclusive
das tratativas que intentavam a construção das diretrizes da Lei 10.216/ 2001.
Portanto, foi no cenário político propiciado pelo processo de redemocratização
do Brasil que, nos anos 90, ocorreu um amplo debate que envolveu diversos
setores da sociedade civil sobre os direitos fundamentais das pessoas deficientes
e, especificamente, dos deficientes psíquicos. Dentre as exigências, se destaca a
necessidade do reconhecimento da autonomia ético-jurídica para essas pessoas.
São deficientes psíquicos, os indivíduos, de ambos os sexos, independentemente de sua faixa etária, classe social, profissão de fé, de cor, de raça ou de
etnia que apresentem um ou mais transtornos mentais, sejam eles: congênito,
adquirido, crônico ou agudo42.
40 Transtornos mentais atingem 23 milhões de pessoas no Brasil Pelo menos 12% da população
necessitam de algum atendimento em saúde mental e 3% sofrem de transtornos graves.
In:http://saude.ig.com.br/transtornos+mentais+atingem+23+milhoes+de+pessoas+no+brasil/
n1237686125917.html Consulta em: 10.jun.2014.
41 In:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm
Consulta
em:
04.Jun.2014
42 MUSSE, Luciana Barbosa. Novos sujeitos de direito: as pessoas com transtorno mental na
visão da bioética e do biodireito. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 41.
362
volume
06
i encontro de internacionalização do conpedi
De acordo com o IBGE existem em média 20 milhões de brasileiros que
recorrem ou já recorreram a algum tipo de atendimento em saúde mental,
sendo que 3 por cento desse total sofrem de transtornos psiquiátricos graves e
persistentes43.
Atualmente, mais de 6 por cento da população brasileira apresenta transtornos
psiquiátricos graves em decorrência do uso de álcool e de drogas. Com o chamado
boom do crack, se observa que, infelizmente, 70 por cento dos usuários dessa
droga, que deixa sequelas psiquiátricas irreversíveis, se encontram no Nordeste do
país, local em que ha os mais baixos índices sócio-econômicos.
5.conclusões
A população de deficientes psíquicos no Brasil é bastante considerável e nela
podem ser reconhecidos indivíduos em diversas fases de seu desenvolvimento
humano. A população adulta, todavia, é mais suscetível a transtornos psíquicos,
embora se tenha registros de que há uma espécie de processo de enlouquecimento
das crianças brasileiras na medida em que o uso desenfreado de psicotrópicos
nessa etapa da vida tem radicalmente aumentado e isso tem sido objeto de pouca
ou nenhuma atenção dos poderes públicos44.
Segundo a OMS- Organização Mundial de Saúde, pode se afirmar que os
transtornos psíquicos atingem a Homens e Mulheres em percentuais semelhantes,
porém, enquanto as mulheres tem mais inclinação à depressão, os homens se
inclinam mais ao abuso e à dependência ao álcool e às drogas. Tal panorama
se confirma no Brasil atualmente, apesar de ser facilmente constatável a imensa
quantidade de crianças e adolescentes de ambos os sexos usuários de crack nas
metrópoles brasileiras45.
43 In:
http://www6.ensp.fiocruz.br/radis/revista-radis/38/reportagens/como-anda-reformapsiquiatrica. Consulta em: 09.jun.2014.
44Como se fabricam crianças loucas. In: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/03/17/
opinion/1395072236_094434.html. Consulta em: 07.maio.2014.
45 Dos usuários de crack do Brasil, 14% são crianças e adolescentes -A Pesquisa encomendada
pelo Ministério da Justiça também mostrou que 70 mil moradores das principais capitais
brasileiras usaram crack, pasta base, merla e óxi regularmente durante o periodo de
2012 Consulta em: 08.jun.2014. In:http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/
volume
06
363
i encontro de internacionalização do conpedi
A insegurança, a insalubridade e as péssimas condições de trabalho a que a
maioria dos brasileiros são submetidos, bem como o stress da vida contemporânea,
podem ser apontados como relevantes fatores que geram ou propiciam o
aparecimento de alguns transtornos psíquicos46.
Nesse sentido, ainda deve ser considerada a extenuante jornada de trabalho
a que as mulheres trabalhadoras são submetidas no Brasil, vez que algumas são
submetidas à tripla e até quarta jornada para conciliar o trabalho dentro e fora
de casa, e, com isso, o exaurimento a que são submetidas se tornam importantes
causas para a produção e aumento dos grupos populacionais dependentes de
psicotrópicos e drogas em geral.
Toda essa realidade, contudo, ainda é escamoteada como um tabu na sociedade
brasileira e hodiernamente ainda se verifica casos em que os transtornos mentais
são ainda considerados frutos de uma espécie de castigo divino, pois somente essa
abordagem justificaria a falta de eficiência das políticas públicas voltadas para esse
setor, bem como a falta de atenção aos pacientes nessa área da saúde.
Ocorre que, com o processo de desospitalização no Brasil o que verifica
na prática é que as famílias e os próprios pacientes ficaram ainda muito mais
desassistidos, pois tem que se reorganizar na economia dos insumos e dos afetos
para conviver com pacientes que, por vezes, se encontram em situações agudas,
em surto, por exemplo e, pois, oferecem até um certo perigo para si mesmo e para
os outros na convivência social.
Imperioso, face a esse panorama, é destacar alguns dos direitos constitucionais
das pessoas com transtornos psíquicos no Brasil: o direito à vida e à igualdade, o
direito a não discriminação, o direito à liberdade, o direito à saúde, o direito à educação, o direito ao trabalho, o direito à moradia, o direito à inclusão social, o direito
ao convívio familiar e social, os direitos sexuais e reprodutivos, os direitos culturais e,
sobretudo, o direito a receber o atendimento adequado ao seu quadro clinico.
Inconteste, nesse sentido é a afirmação de que o direito mais elementar quando
se trata da condição de deficiente psíquico é o direito ao diagnóstico. Ademais,
brasil/2013/11/28/interna_brasil,400681/dos-usuarios-de-crack-do-brasil-14-sao-criancas-eadolescentes.shtml.
46 MUSSE, Luciana Barbosa. Novos sujeitos de direito: as pessoas com transtorno mental na
visão da bioética e do biodireito. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 46-57.
364
volume
06
i encontro de internacionalização do conpedi
a ONU já havia preconizado desde 1991, por meio da Carta de Princípios sobre
a Proteção das pessoas acometidas de transtornos mentais e as melhorias da
assistência à saúde mental, que o diagnóstico de um transtorno mental deve ser de
natureza não discriminatória, pautado, portanto, em critérios internacionalmente
aceitos como o CID- 1047.
O CID- 10 é a classificação de enfermidades desenvolvida pela OMS. De
acordo com o CID- 10 há vários tipos de transtornos psíquicos, desde os mais
simples até os mais graves48. No entanto, evidencia-se que a própria classificação
desses transtornos é igualmente fruto de um julgamento que sobeja à abordagem
biomédica e se estende no âmbito social, moral, ético, e, sobretudo, político.
Nesse panorama médico, ético e, principalmente, jurídico, torna-se relevante e
necessária a conjugação de instrumentos que visem a tutela integral dos pacientes,
das famílias e da sociedade civil, tais como: a Declaração da ONU de 1948, o
Pacto de San José da Costa Rica, a Constituição Federal de 1988, a Lei 10.216 de
2001, a Convenção sobre os direitos das Pessoas com deficiência, dentre outras.
Ocorre que, apesar da existência dessa teia de marcos normativos que cuidam
da tutela dos deficientes mentais, o cenário atual ainda é catastrófico. As
conquistas advindas do texto constituinte, não obstante seus quase trinta anos
de promulgação, não foram plenamente concretizadas, especialmente no que se
refere aos direitos sociais.
Nesse sentido, há grupos ideologicamente posicionados que ainda insistem
em afirmar a impossibilidade de se assegurar esses direitos, especialmente em
países em desenvolvimento como o Brasil, apoiando-se na equação da alocação
de recursos.
A esse triste panorama de falta de efetividade das normas constitucionais, pode
ser adicionado o desconhecimento por parte da maioria da população brasileira
do sistema interamericano de direitos, mormente do teor do Pacto de San José
da Costa Rica49. Além disso, há uma flagrante falta de efetividade da Lei 10216
de 2001.
47 In:http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/deficiente/protec.htm. Consulta em: 09.jun.2014.
48 CID- 10 In: http://www.medicinanet.com.br/cid10.htm. Consulta em: 09.jun.2014
49 In:http://www.agu.gov.br/page/content/detail/id_conteudo/113927.Consulta em: 08.jun.2014
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06
365
i encontro de internacionalização do conpedi
Outro agravante é o fato de que a população brasileira tem culturalmente
recorrido à automedicação, inclusive no que se refere ao uso indiscriminado de
psicotrópicos. Muito embora, estejam na categoria de remédios controlados, são
facilmente adquiridos e consumidos por boa parte da população, gerando para o
Brasil a alcunha de Nação Rivotril50.
Assim, a ânsia por entorpercimento de grande parcela da população brasileira
tem gerado um incremento nas vendas de psicotrópicos que, indiscriminadamente,
tem sido ingeridos pelas mais diferentes pessoas. O mais grave, como outrora
se afirmou, se trata da intensa prescrição desse tipo de medicamento para uma
significativa parcela de jovens e de crianças das classes alta e média no Brasil,
restando aos pobres o uso das drogas como o crack.
De todo modo, essa nação entorpecida, seja pelo crack quando se trata
das pessoas de classes mais baixas, seja pelo Rivotril no que se refere aos mais
afortunados, é cada vez mais cruel e excludente, sobretudo em relação as pessoas
com transtornos psíquicos mais graves e agudos.
Com advento dessa série de marcos normativos, houve, de fato, a busca pela
extinção do modelo hospitalocêntrico, no entanto, restou insanável a complexa
teia de problemas referentes à deficiência psíquica e toda a carga de discriminação.
Ocorre que, além de um longo caminho a ser trilhado ainda no sentido de
recepcionar os modos de tutela da Convenção sobre os direitos das pessoas com
deficiência, afirmando desde a singeleza da acessibilidade nas cidades brasileiras
até a sofisticação da revisão do instituto civil da interdição, o Brasil tem se
posicionado no ranking mundial como uma das sociedades mais desiguais e isso
tem afetado diretamente aos mais vulnerabilizados pelo sistema.
Assim, pode se dizer com Leminski51 que, com advento dos marcos normativos
ainda não era o dia, era apenas o raio na escuridão e na invisibilização que ainda
se encontra essa parte da população brasileira.
A falta de leitos suficientes para atendimentos e para a internação de casos
graves, a ineficiência de políticas públicas na área da saúde mental, o desvio de
50 In: http://super.abril.com.br/saude/nacao-rivotril-587755.shtml. Consulta em: 09.jun.2014
51 In: http://pauloleminskipoemas.blogspot.com.br. Consulta em: 09.jun.2014
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volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
verbas públicas por parte dos agentes públicos, a falta de preparo da Sociedade civil e das famílias para o convívio com os pacientes e a precariedade dos orçamentos
para as políticas públicas, o endividamento do Estado brasileiro, a fragilidade
das Instituições, o aumento no número de dependentes de psicotrópicos, álcool
e drogas, a fragilidade da atuação dos centros de atendimento e de referência
em saúde mental, a dificuldade das pessoas que já foram institucionalizadas em
restabelecer laços afetivos e sociais, a concentração de investimentos nas regiões
sul e sudeste, são alguns dos principais problemas nessa área que dificultam ou
até mesmo impedem o exercício dos direitos humanos e fundamentais das pessoas
com deficiência psíquica no Brasil.
O resultado mais aterrador e facilmente constatável é o aumento das populações
de rua e carcerárias que, de fato, são fruto inclusive dessa falta de cuidado com
essa parte da população brasileira.
Conclui-se, com isso, que a mera edição de novos marcos normativos não será
suficiente para a mudança desse cenário, vez que se trata de algo estruturante que
tangencia a formação do povo brasileiro e que deve ser objeto de enfretamento
coletivo para que possamos compreender que o principal papel do paciente
psiquiátrico é o de ser a expressão da decadência da lógica binária, cartesiana.
E, assim, proporcionar o diálogo a partir de outras lógicas, outras facetas da
razão que não podem ser simplesmente taxadas de desrazão ou de alienação.
Dessa forma, buscar empreender mais ações inclusivas do que punitivas para uma
efetiva cultura de paz e, especialmente, de solidariedade.
Dos arrazoados poéticos se pode expressar que, mais uma vez, a afirmação dos
direitos humanos e fundamentais no Brasil deve se deslocar em travessias... “pelos
caminhos que ando/ um dia vai ser/ só não sei quando.” (Paulo Leminski)
volume
06
367
i encontro de internacionalização do conpedi
uma proposta de reconfigur acão das
concepções e tipologia do estado
contempor âneo
Luiz Henrique Urquhart Cademartori1
João Luiz Martins Esteves2
Resumo
O presente trabalho aborda seu objeto a partir da constatação de uma indeterminação ou confusão teórica quanto ao conceito de Estado Constitucional
ao se subestimar a importância do ambiente político e econômico que constitui
e fundamenta cada modelo de Estado em um determinado período e lugar.
Considerado isto, realiza-se uma crítica às teorias existentes sobre esse tema, e
analisa-se a trajetória e característica dos modelos jurídico-político e econômico dos
estados de Direito desenvolvidos de forma vinculada à experiência constitucional,
reconhecendo quais são estas experiências e como se efetua a identificação dos
tipos de Estado, bem como, das concepções que os sustentam.
Palavras-chave
Estado liberal; Estado de Direito; Estado Social; Estado Constitucional.
Resumen
El presente trabajo analiza su objeto partiendo de la constatación de la
indeterminación o confusión teórica sobre el concepto de Estado de Derecho
1 Pós-doutorado pela Universidade de Granada (Espanha) em Filosofia do Direito. Doutor e
Mestre pela Universidade Federal de Santa Catarina em Direito Público. Professor titular dos
cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito, stricto sensu, Mestrado e Doutorado da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Consultor Jurídico. e-mail: luiz.hc@terra.
com.br
2 Doutorando em Direito, pelo Programa de Doutorado da Pós Graduação em Ciências
Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Direito, Estado e
Cidadania, pelo Programa de Mestrado da Universidade Gama Filho (UGF/RJ). Professor na
graduação e pós-graduação da Universidade Estadual de Londrina – (UEL). Procurador do
Município de Londrina – Estado do Paraná. e-mail: [email protected]
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06
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i encontro de internacionalização do conpedi
al subestimarse la importancia de la situación política y económica en que se
basan y fundamentan cada tipo de estado en un momento y lugar determinados.
Considerado esto, lleva a cabo una revisión de las teorías existentes sobre el tema,
y se analiza la trayectoria y las características de los modelos jurídico-políticos
y económicos de los estados de derecho desarrollada a partir de la experiencia
vinculada al modo constitucional, reconociendo estas experiencias y cómo ellas
afectan la identificación de tipos de Estado, así como los conceptos que les son
subyacentes.
Palabras clave
Estado Liberal; Estado de Derecho; Estado Social; Estado Constitucional.
1.introdução
A crise do liberalismo, vivenciada principalmente a partir de meados do
século XIX, teve como consequência imediata a crise do sistema jurídico-político
que lhe deu suporte. A emergência da declaração dos direitos sociais, os quais
encontraram nos valores do liberalismo individualista um comportamento
refratário a eles, exigiram não somente da atividade política, mas também da
atividade jurídica, um novo posicionamento que possibilitasse o entendimento
desta nova configuração política e social e suas consequências nos âmbitos do
Direito e da Política. A importância disto encontra-se objetivamente em que,
uma teoria do direito utilizada por uma comunidade jurídica lhe oferece os
métodos de intepretação e aplicação de suas normas a traçar suas condutas sociais
e individuais, não podendo estar apartada do entendimento sobre qual é o modelo
jurídico-estatal ao qual se encontra submetida.
Com base nos desafios derivados das novas configurações do Estado, após as
revoluções burguesas, é possível perceber na literatura jurídica, principalmente a
partir de meados do século XX, uma preocupação com a identificação de qual é
o tipo de organização jurídico-política sucessora daquela que foi criada a partir do
final do século XVIII, levando a uma multiplicidade de denominações como, por
exemplo: Estado Liberal, Estado de Direito, Estado Social e Estado Constitucional.
Somam-se a isto, conceituações também múltiplas e divergentes que podem ter
sua causa nas diferenças existentes entre concepções jurídicas que desconsideram
370
volume
06
i encontro de internacionalização do conpedi
ou reduzem a importância do ambiente político e econômico que constitui cada
modelo de Estado em um determinado período e lugar.
No presente trabalho, como forma de contribuir para a minimização da
indeterminação teórica existente, se realiza uma análise sobre a característica
do modelo jurídico-político e econômico da época do liberalismo, da crise
deste modelo, e também do seu sucedâneo no contexto do Estado, de forma a
reconhecer claramente quais são e como se realiza a identificação dos tipos de
Estados existentes desde o início desta trajetória e também das concepções que os
fundamentam sob a perspectiva da evolução constitucional.
2.limitação do poder estatal como condição do
liber alismo
O termo “constituição” é utilizado desde a antiguidade para designar qualquer lei feita pelo Imperador de Roma, podendo encontrar-se a utilização do
termo durante a idade média no mesmo sentido em que se utilizam os termos
ordenações e estatutos, entre outros (GILISSEN, 2001, p. 419). Mas é em meados
do século XVIII que o termo iniciou a ter um significado não existente até este
período, o qual se tornou necessário como instrumento, também simbólico, para
identificar o novo modelo de Estado que se construía na Europa, derivado das
transformações econômicas, políticas e sociais experimentadas desde a época
renascença. Foi em 1748 que Montesquieu (2003, p. 165), descrevendo seu
conceito de liberdade política, buscou relacionar as leis que a formam conjugadas
com o que lhe parece ser a melhor forma de funcionamento do poder estatal, a
ser fracionado em instâncias legislativa, executiva e judicial3, modelo este ao qual
dá a denominação de Constituição da Inglaterra4.
3 Montesquieu denomina os poderes executivo e judicial, respectivamente de: poder executivo
das coisas que dependem do direito das gentes e poder executivo das coisas que dependem do
direito civil, ou ainda de “poder executivo do estado” e “poder de julgar”. (MONTESQUIEU,
2003, p. 165).
4 Conforme lembrado por Paulo Bonavides Montesquieu teria cometido equívoco fundamental
quando propôs a Constituição da Inglaterra por exemplo vivo relativo à prática daquele
do princípio da separação de poderes, uma vez que aquele Estado iniciava a experiência
parlamentar de governo, a qual atenuou a distinção entre poderes. Mas salienta que isto não
teria tirado o papel fundamental desempenhado de sua concepção de tripartição de poderes.
(BONAVIDES, 2010, p. 147).
volume
06
371
i encontro de internacionalização do conpedi
É importante notar que não existia ainda um documento político ou jurídico,
formalmente estabelecido, que recebesse a denominação de “constituição”. Nem
mesmo a Inglaterra, utilizada como modelo paradigmático pelo filósofo e político
francês, tinha ou viria a ter um documento com esta característica, fato este que
permanece até os dias atuais.
E é perceptível que o relevo que se deu ao termo “constituição” durante este
período do iluminismo5, esteve mais agregado à forma de distribuição do exercício
do poder estatal, do que necessariamente à preocupação com a emissão de um
documento de característica jurídica ou política necessário à fundação de um Estado
ou que conferisse a este legitimidade política. A “constituição” é concebida como
instrumento que estabelece limitações ao exercício do poder estatal, mas não como
condição da existência de um governo ao qual caberia o exercício deste poder. É
importante destacar que os Estados já existiam, mesmo que identificados por meio
de outra nomenclatura6, muito antes que existisse a própria ideia de constituição
e à época de Montesquieu, não estava em relevo a legitimidade desta forma de
organização política – o Estado - ou daquele a quem era conferido o exercício do
poder. Isto não quer dizer que a legitimidade não fosse tema já tratado teoricamente
por outros autores da modernidade7, entretanto, a preocupação central exposta por
Montesquieu foi quanto ao modo de exercício do poder estatal.
Mas, também, o modo como se exercia o poder ou as funções estatais não
era uma novidade no debate filosófico e político existente no século XVIII.
Especificamente, a concepção de uma separação de poderes já é um tema que
ocupou o pensamento moderno anterior a Montesquieu, de que são exemplos
Maquiavel (2003, p. 114) no século XVI e Locke (2001, p. 182) no século XVII,
tendo aquele realizado a primeira sistematização teórica da separação de poderes,
5 Conforme Binetti (1997, p. 605), “O termo iluminismo indica um movimento de idéias que
tem suas origens no século XVII (ou até talvez nos séculos anteriores, nomeadamente no século
XV, segunda interpretação de alguns historiadores), mas que se desenvolve especialmente no
século XVIII, denominado por isso o “século das luzes”.
6 Em 1532, o termo “Estado” foi introduzido por Maquiavel (2003, p. 29), que delineando os
tipos estatais propõe que “Todos os Estados que existem e já existiram são e foram sempre
repúblicas ou principados”.
7 Por exemplo, Bobbio (1987) lembra que para Hobbes “[...] a segurança dos súditos, que é o fim
supremo do Estado, e portanto da instituição do poder político, é necessário que alguém, não
importa se pessoa física ou assembleia, ‘detenha legitimamente no Estado o sumo poder’”.
(BOBBIO, 1987, p. 88).
372
volume
06
i encontro de internacionalização do conpedi
isto sem contar com as diversas teorias das formas de governo de filósofos com
Aristóteles na antiguidade clássica. A questão relativa ao exercício do poder estatal
sempre foi algo recorrente e tem sido, até a atualidade, um tema sobre o qual a
humanidade tem se ocupado e pode ser considerado como um dos temas mais
desafiadores no âmbito das, denominadas, ciências humanas. Entretanto, em
cada um dos períodos históricos traçados, é possível identificar que a preocupação
com o modo de agir estatal está irremediavelmente e evidentemente, subordinada
à sua época e consequentemente aos valores proeminentes em cada um dos
contextos históricos em que foram desenvolvidas as variadas teses sobre a maneira
de exercício do poder, bem como do estabelecimento de suas funções. Sendo,
portanto o exame do ambiente histórico em que se geram conceitos como “poder
estatal” e “constituição”, indispensável à sua compreensão.
É interessante notar que Montesquieu não pareceu estar desatento à necessidade de contextualizar a época e lugar em que os estados definiram-se por objetivos
distintos. Tomou por premissa que os estados, em geral, apresentam como objetivo
a sua própria conservação mas que, apesar disto, cada um deles apresentava um
objetivo particular. Exemplifica que estes objetivos poderiam ser a guerra, o comércio,
a religião, a tranquilidade pública, entre outros, vinculando-os a diferentes estados
existentes em diferentes épocas. Entretanto, coerente à sua época, e alçado pelo
valor político e existencial que o movia – a liberdade - o filósofo francês apresenta
outro objetivo, derivado e estritamente vinculado a Constituição, qual seja, o das
condições e limites ao exercício do poder estatal, que passa a denominar-se “[...]
liberdade política [...]” (MONTESQUIEU, 2003, p. 165).
Apesar dessa conjugação, que acresce a política à liberdade, as transformações
sociais não aconteceram e nem tiveram sua origem exclusivamente no campo
da política. As relações econômicas é que foram decisivas nas mudanças que
aconteceram á época de Montesquieu, pressionadas pelo imperativo burguês de
liberdade de mercado. E quanto a isto deve ser esclarecido que mesmo nesse
momento de nova conformação estatal e apesar de poderem caminhar juntos,
não se pode confundir o liberalismo político com o liberalismo econômico. Isto
porque no século XVIII os fisiocratas, balizadores da nova ordem8 e defensores
8 Conforme Avelãs Nunes (2011), “[...] a caracterização do novo estado burguês emergente
como estado de classe é feita, sem qualquer disfarce, pelos fisiocratas e por Adam Smith”.
(NUNES, 2011, p. 1).
volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
da liberdade econômica (o laissez faiere, laissez passer), em termos políticos eram
favoráveis a um “[...] despotismo legal [...]”(MAFREY, 1997, p. 503, grifo do
autor), ou ainda a um “[...] despotismo esclarecido [...]”(NUNES, 2011, p. 1).
A preocupação central seria, portanto, adequar o Estado a um novo objetivo,
o qual serviria a um novo modelo de relações sociais e econômicas em ebulição na
Europa e que convivia ainda com um antigo modelo político-jurídico insuficiente
para dar resposta a esta nova realidade. A necessidade de uma liberdade para se
contratar e de que não houvesse a interferência nas relações entre particulares; a
necessidade de liberdade para ser proprietário9 e de que o poder estatal tivesse uma
atuação limitada a garantir o exercício dos direitos patrimoniais; bem como, a
necessidade de que os sujeitos destes direitos atuassem indiretamente na formação
da vontade do poder estatal, como forma de garantir o exercício destes mesmos
direitos, requisitava uma nova forma de atuação do poder estatal. A melhor
fórmula para garantir esta liberdade – objetivo do novo modelo jurídico-político
que se desenvolveu – foi apresentada por uma proposta de regulação das condições
de exercício do poder estatal. E ainda calcada no fracionamento do exercício do
poder e na delimitação rígida de suas funções, a qual estaria traduzida em uma
constituição, ideia esta firmemente presente no processo revolucionário francês
e transcrita no art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
de 1789, o qual proclama que uma sociedade que não assegure a garantia dos
direitos e não estabeleça a separação dos poderes não tem uma Constituição.
Esse ideário formava a sustentação de um discurso e de uma ação que serviram
perfeitamente às pretensões naturalistas daqueles que – como Adam Schmidt defendiam a não regulamentação das relações econômicas, e consequentemente
sociais, autorreguladas pela “mão invisível do mercado” que deveriam estar
apartadas do Estado10.
9 Avelãs Nunes (2011) nos dá uma visão bem clara da relação estabelecida entre liberdade e
propriedade, por meio da transcrição do pensamento de Mercier de La Rivère, discípulo
do célebre fisiocrata Quesnay : “atacar a propriedade é atacar a liberdade”; [...] perturbar a
liberdade é perturbar a propriedade; assim, propriedade, segurança, liberdade, eis o que nós
buscamos e o que devemos encontrar evidentemente nas leis positivas que nos propomos
instituir; eis o que devemos considerar a razão essencial destas mesmas leis.” (NUNES,
António 2011, p. 2)
10 Conforme Nunes (2011), “Em consonância com o cânone liberal, Smith entende que a
economia (separada do estado) funciona de acordo com as suas próprias leis, leis naturais, leis
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i encontro de internacionalização do conpedi
É este entendimento político e filosófico, que molda a concepção de constituição, que também determina as bases do Estado constitucional, também
denominado de Estado de Direito, conforme assinalado por Miranda (2005, p.
47). Da sua configuração econômica e política deriva seu epíteto de Estado liberal.
Sob o entendimento de que é isto que sustentam os pressupostos doutrinais e
prismas próprios de autores do século XVIII e XIX, Miranda (2005) assinala
ainda que
O Estado constitucional, representativo ou de Direito surge como
Estado liberal, assente na ideia de liberdade e, em nome dela,
empenhado em limitar o poder político tanto internamente (pela
sua divisão) como externamente (pela redução ao mínimo das suas
funções perante a sociedade). (MIRANDA, 2005, p. 47)
De outra parte, Norberto Bobbio entende que doutrina liberal ou liberalismo11
compreende que estas suas duas características de restrição podem receber um
tratamento distinto. Quanto a isto, sustenta que a noção corrente que serve
pra representar a limitação dos poderes é Estado de direito; e a noção corrente
que serve para representar a limitação das funções estatais é Estado mínimo.
Entretanto não abandona a noção de Estado liberal para designar a situação na
qual se encontram em um só movimento os dois tipos de limitação concebidos
pelo liberalismo12.
de validade absoluta e universal. E defende que a ordem natural harmoniza todos os interesses
e realiza o máximo de utilidade social quando a vida económica decorre segundo as leis da
natureza, perseguindo cada um o máximo de satisfação com o mínimo de esforço.” (NUNES,
2011, p. 7, grifo do autor)
11 Atualmente o termo liberalismo, embora defina um fenômeno histórico identificável, não
encontra uma única definição possível, variando conforme o lugar. O sentido que em que aqui
se utiliza é o utilizado na Itália que é também corrente no Brasil, o qual identifica o aspecto
econômico, mas também se agrega a ele o aspecto político-jurídico relativo à separação de
poderes. Conforme Nicola Matteucci “[...] a palavra assume diferentes conotações conforme
os diversos países: em alguns países (Inglaterra, Alemanha), indica um posicionamento de
centro, capaz de mediar conservadorismo e progressismo, em outros (Estados Unidos), um
radicalismo de esquerda defensor agressivo de velhas e novas liberdades civis, em outros, ainda
(Itália), indica que procuram manter a livre iniciativa econômica e a propriedade particular”.
(MATTEUCCI, 1997, p. 688).
12 Conforme Bobbio (2005), “Embora o liberalismo conceba o Estado tanto como Estado de
direito quanto como Estado mínimo, pode ocorrer um Estado de direito que não seja mínimo
(por exemplo, o Estado social contemporâneo) e pode-se também conceber um Estado mínimo
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i encontro de internacionalização do conpedi
Reconhece-se, portanto, que essa conjugação de elementos, que reduzem e
limitam o poder estatal por meio de uma divisão do seu exercício e da minimização
de suas funções econômicas e sociais frente à sociedade, e que estão lastreados
juridicamente na existência de uma Constituição, foi o fator que possibilitou a
consolidação do liberalismo na sua correlação mais genuína, o Estado Liberal do
século XIX.
3. o liber alismo como mecanismo de gar antia do individualismo
As transformações sociais derivadas da ruptura da ordem existente, ainda que
sejam impulsionadas pelas condições materiais da vida, não são determinadas
exclusivamente por elas. As revoluções sempre apresentam um conjunto de
valores a serem incorporados à sociedade e sedimentados no ideário coletivo de
forma a consolidar a nova ordem que se impõem. Estes valores se retroalimentam
de forma que um passa a justificar o outro.
Nesta linha, é necessário explicitar que a liberdade é apresentada como um
valor, e como tal é uma expressão aberta que, assim sendo, constitui critério de
avaliação de ações. Entretanto, a própria liberdade não deve ser considerada um
valor em si mesmo, pois é necessário que seja explicitado qual o seu propósito ou
a qual objetivo ela serve. Isto se explica pelo motivo de que, também são feitas
valorações dos próprios valores e, portanto sempre serão feitas valorações quanto
ao que pode significar o próprio valor liberdade. Ou seja, é necessário indagar qual
foi o valor que fundamentou a liberdade apresentada como objetivo direto das
limitações ao exercício do poder estatal, e que por ele era condicionada. A reposta
deve ser retirada da análise do pensamento vigorante à época das revoluções
liberais. E sendo assim, por meio de uma análise que realiza uma associação
que não seja um Estado de direito (tal como, com respeito à esfera econômica, o Leviatã
hobbesiano, que é ao mesmo tempo absoluto no mais pleno sentido da palavra e liberal em
economia). Enquanto o Estado de direito se contrapõe ao Estado absoluto entendido como
legibus solutus, o Estado mínimo se contrapõe ao Estado máximo: deve-se, então, dizer que
o Estado liberal se afirma na luta contra o Estado absoluto em defesa do Estado de direito
e contra o Estado máximo em defesa do Estado mínimo, ainda que nem sempre os dois
movimentos de emancipação coincidam histórica e praticamente”. (BOBBIO, 2005, p. 17
e 18).
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histórica, é fatalmente verificável que as concepções da escola do direito natural
ou jusnaturalismo, e também o contratualismo, devem ser apresentados como
sendo a raiz filosófica do Estado liberal como contraposição ao Estado absoluto,
as quais eclodiram em um momento de continua corrosão deste.
Segundo o jusnaturalismo os homens têm certos direitos fundamentais
pré-existentes à sociedade, como direito à vida, à liberdade e à propriedade
independente da sua vontade ou da vontade de outro ou de outros (BOBBIO,
2005, p. 12). Por sua vez, o Estado liberal recebe uma explicação legitimadora
como sendo o resultado de um acordo entre indivíduos inicialmente livres. A
partir deste entendimento, verifica-se que a afirmação dos direitos naturais e a
teoria do contrato social estão estreitamente ligados. Conforme Bobbio (2005)
O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo
é a comum concepção segundo a qual primeiro existe o indivíduo
singular com seus interesses e com suas carências, que tomam a
forma de direitos em virtude da assunção de uma hipotética lei da
natureza, e depois a sociedade, e não vice-versa como sustenta o
organicismo em todas as suas formas, segundo o qual a sociedade
é anterior aos indivíduos ou, conforme a fórmula aristotélica
destinada a ter êxito ao longo dos séculos, o todo é anterior às
partes. (BOBBIO, 2005, p. 15).
Bobbio (1991) expõe a contraposição do contratualismo a uma concepção,
originada na antiguidade clássica, onde não estava contemplada sobremaneira a
ideia de individuo, e sim calcada sob uma concepção organicista que concebia o
todo (a sociedade ou o Estado) como dado anterior às partes (os indivíduos). No
que se refere á concepção organicista, pode-se encontrar as suas bases filosóficas
no pensamento de autores tais como Aristóteles (384-322 a.C) na medida em
que este teorizava a ideia de Estado como ser natural anterior ao indivíduo, o que
leva a conclusão de que o todo tem precedência sobre as partes13. Também Platão
(427-347 a.C) já entendia, ao comparar o Estado ao homem, que o primeiro era
uma ampliação do segundo.
13 Aristóteles formula o princípio constitutivo do organicismo sob o argumento de que “O
Estado, ou sociedade política, é até mesmo o primeiro objeto a que se propôs a natureza. O
todo existe necessariamente antes da parte. As sociedades domésticas e os indivíduos não são
antes se não as partes integrantes da Cidade [...]”. (ARISTÓTELES, 1991, p. 4).
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A concepção organicista ainda se estendeu na Idade Média, através do
pensamento escolástico representado, principalmente, por Santo Tomás de
Aquino (1225-1274) que, no período da Alta Idade Média, apenas interpôs a
essa ideia totalizante de Estado (ou sociedade natural) o elemento divino entre
este e o homem, vindo tal dado novo a caracterizar o jusnaturalismo teológico ou
organicista dessa época.
Uma das primeiras e importantes refutações a esse tipo de concepção orgânica
de sociedade veio através de Hobbes (2003), nos primórdios da era moderna.
Ao afirmar que não é o impulso natural que leva o homem ao Estado mas,
ao contrário, é o seu temor a outros homens que o leva a submeter-se a um
ordenamento estatal, criado pelos mesmos homens, Hobbes desencadeou uma
verdadeira inversão de valores na abordagem filosófica da época sobre a relação
individuo-Estado. Com efeito, partindo este pensador da ideia de que o Estado
é uma criação artificial posterior e diferenciada dos homens, germinam as raízes
do jusnaturalismo individualista e racional que veio a caracterizar toda a Idade
Moderna.
Essa mudança paradigmática propiciada por Hobbes, onde se privilegia a ideia
dos indivíduos precedendo a organização social, rompendo com o organicismo, é
relevante por três motivos que podem ser constatados a partir dela: a) a sociedade
somente pode ser tida como um fato natural tendo como pressuposto a existência
dos indivíduos; b) possibilitou-se a concessão de espaço à ação independente do
todo e o reconhecimento de uma distinção entre as esferas pública e privada
(BOBIO, Norberto, 2005, p. 46); c) a existência da sociedade passa a ser
fundamentada na garantia de direitos derivados dos interesses e necessidades dos
indivíduos. Entre estes direitos encontra-se a própria liberdade, a qual somente
existe por interesse dos indivíduos. E conforme já observado por Bobbio, “sem
individualismo não há liberalismo” (BOBIO, Norberto, 2005, p. 16).
As declarações de direitos, apresentadas durante os processos revolucionários do século XVIII, e que desempenharam importante papel de orientação
política na formação das primeiras constituições, servem como suficiente
parâmetro para que se observe a materialização teórica dos valores fundantes do
constitucionalismo liberal. A declaração francesa de 1789, sem dúvida, foi a mais
importante do período, não somente por que eclodira no centro da efervescência
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i encontro de internacionalização do conpedi
do movimento revolucionário burguês daquele período, mas também em virtude
do seu caráter universal, dirigindo seus anseios para além das fronteiras da França
e da também da Europa.
Por meio de um discurso que reconhecia ao indivíduo a detenção de direitos
pré-estatais, fez-se uma declaração de direitos que proclamou numerosas
liberdades e na qual “[...] o individualismo ocupa um lugar essencial, sendo que
ela exclui qualquer corpo intermediário, qualquer grupo entre o indivíduo e a
comunidade nacional [...]”(GILISSEN, 2001, p. 426), ou seja, entre o indivíduo
e a nação. Esta declaração teve por objetivo o reconhecimento e asseguramento da
ideia de liberdade em uma perspectiva do individuo, na qual fundamentalmente
se assentou a nova ordem política e jurídica.
Se o poder foi limitado para assegurar a liberdade, e esta tinha por fundamento
e objetivo assegurar a emancipação do individuo, é decorrência lógica que a
limitação do poder estatal – e, portanto o surgimento da Constituição -, tanto
pela divisão do seu exercício, como pela redução ao mínimo das suas funções,
teve por objetivo assegurar o exercício do individualismo burguês e, ao mesmo
tempo, o freio a qualquer manifestação social que pudesse oferecer oposição ao
exercício do individualismo, apanágio do liberalismo14.
A tarefa acima exposta foi realizada sob o entendimento de que toda e qualquer
organização, que buscasse regular qualquer conduta de cunho social deveria
ser extirpada da sociedade, como forma de garantir a liberdade do indivíduo.
Por consequência disto, a ordem jurídica estabelecida estimulou a erradicação
de qualquer possibilidade de intervenção estatal nas relações sociais, que se
apresentassem como obstáculo à nova organização econômica.
A aversão à possibilidade de que os indivíduos sejam representados
coletivamente, ou de que tenham uma vontade coletiva que não seja a própria
vontade do Estado legislativo, aliada à fórmula de fracionamento do exercício
do poder e delimitação rígida de suas funções estatais, foi utilizada para garantir
14 MATTEUCCI (1997), identifica que, para o iluminismo francês e para o utilitarismo inglês
liberalismo significa individualismo e que “[...] por individualismo entende-se, não apenas a
defesa radical do indivíduo, único real protagonista da vida ética e econômica contra o Estado
e a sociedade, mas também a aversão à existência de toda e qualquer sociedade intermediária
entre o indivíduo e o Estado; em consequência, no mercado político, bem como no mercado
econômico o homem deve agir sozinho”. (MATTEUCCI, 1997, p. 689).
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a liberdade de contrato e de propriedade sem qualquer interferência e serviu
perfeitamente às posições naturalistas de não regulamentação das relações
econômicas e sociais. Este tipo de liberdade nada mais é do que a liberdade para
contratar e para ser proprietário, conferida ao indivíduo na conformidade de
agente econômico e sujeito (privado) da economia (NUNES, 2011, p. 18).
Ficou demonstrado, assim, que o ideário liberal presente nas revoluções
burguesas, o qual se apresentou como valor fundante do Estado de Direito na
sua primeira versão histórica, teve como fundamento a garantia de exercício do
individualismo burguês frente a suas necessidades e pretensões econômicas, sendo
este seu principal objetivo.
4.a crise do invididualismo e a emergência dos direitos sociais
A exacerbação individualismo levado até as suas últimas consequências,
quando se torna um fim absoluto, conforme aconteceu durante todo o século XIX
e início do século XX, possibilitou a consolidação de uma sociedade altamente
desigual, notadamente, no seu aspecto de condições materiais de existência
da maioria dos seus membros. Esta situação em que se fez do individualismo
um dado único e absoluto de forma de vida social, somente foi possível com
liberalismo levado aos seus extremos.
Os axiomas do liberalismo como a tese de que a não regulamentação da
economia e das relações sociais proporcionaria a todos os indivíduos as condições
para desenvolvimento de uma vida material adequada e que, portanto, a tarefa
principal do Estado seria a de garantir o livre mercado e a garantia da propriedade
individual foram confrontados e posteriormente alterados pela própria realidade.
Avelãs Nunes aponta para os seguintes fatores que levaram à falência do
pressuposto liberal de organização social e econômica:
[...] progresso técnico; aumento da dimensão das empresas;
concentração do capital; fortalecimento do movimento operário
(no plano sindical e no plano político) e agravamento da luta de
classes; aparecimento de ideologias negadoras do capitalismo, que
começaram a afirmar-se como alternativas a ele. (NUNES, 2011,
p. 18).
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i encontro de internacionalização do conpedi
A partir desse esgotamento e consequente crise do Estado liberal, derivados da
não realização das promessas marcadas pela apoteose do liberalismo econômico e
do individualismo, mas também estimulados pelo surgimento dos movimentos
de caráter social e antiliberais empreendidos desde meados do século XIX na
Europa, verificou-se uma mudança no comportamento estatal, não prevista
e nem desejada quando do surgimento do constitucionalismo liberal. Esta foi
assinalada pelo surgimento de uma legislação de caráter social15 que teve por
objetivo abrandar as péssimas condições materiais de vida a que ficou submetida a
grande maioria da população, notadamente operária, conforme esclarece GarcíaPelayo (GARCÍA-PELAYO, 1985).
Em efecto, desde el último tercio del siglo XIX se desarrolló em
los países más adelantados uma “política social” cuyo objetivo
inmediato era remediar las péssimas condiciones vitales de los estratos
más desamparados y menesterosos de la población. Se trataba,
así, de uma política sectorial no tanto destinada a transformar la
estructura social cuanto a remediar algunos de sus peores efectos y
que no precedia, sino que seguia a los acontecimentos. (GARCÍAPELAYO, 1985, p. 18, destaque do autor).
Direitos que tinham por objetivo o bem-estar da coletividade, e que não tinham
como foco somente a garantia do agir individual, começam a ser declarados e
positivados até adquirirem status de bens que requisitavam uma vinculação
jurídica, que lhe permitisse a sua garantia e realização concreta, por meio de um
compromisso estatal mais elevado. Se, em um primeiro momento, são feitas leis
definidoras de direitos sociais, de que são exemplo: o direito à habitação; o direito à
educação e o direito à saúde, posteriormente estes direitos passam a ser positivados
nas constituições, iniciando-se pela constituição zapatista de 1917 no México e pela
constituição de Weimar de 1919 na Alemanha. Esta mudança no comportamento
político, com reflexos no âmbito jurídico, recebeu acompanhamento no plano
econômico caminhando para um recrudescimento da ordem econômica liberal
que deu lugar a um agir estatal interventor e propulsor de medidas econômicas. O
15 A partir de revoltas operárias e sob a influência de ideologias progressistas (Saint Simon,
Proudhon, K. Marx, etc.) foram tomadas algumas medidas de carácter social a partir dos anos
quarenta do século dezenove. (GILISSEN, 2001, p. 468).
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economista inglês John Keynes (KEYNES, 1992), desvencilhando-se do modelo
liberal clássico de economia, mas mantendo as bases do sistema capitalista, propôs
medidas de regulação fiscal e monetária, que influenciaram governos – de que é
exemplo o do presidente Rosevelt nos Estados Unidos da América, por meio do
estabelecimento do New Deal - e que tiveram por objetivo influenciar as políticas
econômicas dos Estados capitalistas servindo de instrumento para conter o avanço
socialista ocorrido depois da primeira guerra mundial16. Sem que se abandonassem
os princípios elementares do liberalismo econômico, como por exemplo, de
existência do regime de propriedade e de liberdade de contratação, o Estado passou a intervir nas relações produtivas, sendo ele o próprio o principal fomentador
da atividade econômica, com o objetivo “[...] de reduzir a intensidade e a duração
das crises cíclicas próprias do capitalismo, e motivadas pelo objetivo de salvar
o próprio capitalismo [...]” (NUNES, 2011, p. 67). Ao mesmo tempo em que
regulou as relações de produção existentes entre capital e trabalho por meio de uma
legislação de proteção social. Esta situação foi o mais duro golpe nas concepções
econômicas liberais clássicas que alardeavam a tese de que a economia deveria
ser tida como uma ordem natural e que deveria ser afastada da atividade estatal,
convertendo-se em uma mudança paradigmática que deu lugar à emergência do
Estado social, e conforme esclarece Avelãs Nunes (2011)
Desfeito o mito de que a sociedade civil (a ordem económica natural)
garantiria por si própria a ordem social e a justiça social, o estado
social veio traduzir e assumir a necessidade de intervir de forma
sistemática na economia, deixando esta de ser, para o estado e para
os cidadãos, um dado da ordem natural, para se tornar um objeto
susceptível de conformação pelas políticas públicas. (NUNES, 2011,
p. 32, grifo do autor).
O Estado passou à condição de garantidor dos direitos declarados e
reconhecidos, retirando-se da situação de inércia defendida pelos postulados
do liberalismo e do individualismo, gerando duas situações decorrentes disto:
16 Conforme Alvin Harvey Hansen, professor de economia em Havard, o presidente dos Estados
Unidos da América Harry Truman, sucessor de Franklin Rosevelt, confirmou que “Em 1932
o sistema de livre empresa privada estava próximo do colapso. Havia verdadeiro perigo de que
o povo norte-americano adoptasse outro sistema”. (HANSEN, 1941, apud, NUNES, 2011,
p. 47).
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a) verificou-se um abandono do individualismo exacerbado como objetivo
primordial do Estado, em decorrência do reconhecimento da legitimidade das
organizações corporativas e também pela necessidade de intervenção estatal
nas relações sociais. Esta situação abalou a noção de limitação do poder estatal
por meio da minimização de suas funções; b) enfraqueceu-se a concepção de
liberdade fundada no fracionamento do exercício do poder com rigidez na
delimitação de funções repartidas, em virtude das transformações que levaram
a uma complexidade das tarefas estatais, das múltiplas funções adquiridas,
e da necessidade de uma atuação estatal coordenada com objetivo de garantir
efetivamente os direitos conquistados.
Esta tendência se consolidou a partir da segunda metade do século XX com
o fortalecimento do estado de bem-estar social (Welfare State) na Europa, o qual
tomou por tarefa, não somente a positivação dos direitos sociais, mas também a sua
efetiva e concreta realização. Essa trajetória, marcada pelo pensamento keynesiano
no âmbito econômico, com a adoção de uma política fiscal e monetária que
pendulava inflação e emprego, com controle cambial (NUNES, 2011, p. 115),
alargou o caminho para que houvesse uma atuação estatal no reconhecimento e
positivação de direitos que vão além dos direitos individuais clássicos. Enquanto
que, no âmbito teórico, o entendimento quanto à existência gerações de direitos,
construídos sob a noção de cidadania, tem sua originalidade marcada na obra
de Marshall (MARHALL, 1967, p. 66), que traça o seu desenvolvimento na
consolidação dos direitos individuais, políticos e sociais e teve sequência no
trabalho de Vasak (1979, Apud BONAVIDES, 1996, p. 517), o qual traça
trajetória similar, em que inclui os direitos da fraternidade e da solidariedade,
dividindo-os em gerações17 de direitos, também, já neste período, solidificaram-se
nos Estados Unidos, na década de 1960, as chamadas ações coletivas, através das
chamadas Class actions18. Estas com possibilidade de pretensões indenizatórias,
por meio da Rule 23, as quais tiveram papel importante para o reconhecimento
17 Bonavides (1996, p.525), prefere o termo “dimensões”, no que é acompanhado por Sarlet
(2004, p. 52.)
18 A class action do direito estadunidense é um procedimento em que uma pessoa, ou um
pequeno grupo de pessoas, enquanto tal, passa a representar judicialmente um grupo maior
ou classe de pessoas que compartilham entre si, um interesse comum. (FRIEDENTHAL;
KANE; MILLER, 1985, p. 728).
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dos denominados direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, que
passaram a possibilitar o procedimento judicial em que uma pessoa ou um grupo
de pessoas representar um interesse, e relativo a direitos individuais ou sociais,
que é comum a uma coletividade à qual pertencem.
Foi o resultado concreto da atividade do próprio modelo econômico liberal
o responsável pela desestabilização e consequente esfacelamento do ideário de
inspiração iluminista e dos valores posteriores que o sustentaram abrindo-se a
possibilidade para agregação de novos direitos. Entretanto, esta nova situação
não desprezou os valores ligados à liberdade e ao individuo, mas abandonouse definitivamente as características de direitos quase absolutos e naturais que
anteriormente foram concebidos pela via revolucionária no século XVIII,
possibilitando o entendimento, agora definitivo, de que os direitos são produto
da intervenção humana a partir de uma dada configuração política e social.
5. as concepções de estado e o constitucionalismo
Os axiomas relativos ao funcionamento e alcance das funções do Estado Liberal, foram teorizados antes e durante a sua formação e consolidação. Um trabalho
teórico intenso e de grande alcance fora desenvolvido no campo da filosofia da
política e da economia com o objetivo de explicar e justificar o fenômeno do
liberalismo e de moldar a estrutura estatal aos seus postulados.
Por sua vez, a emergência dos direitos sociais e de sua configuração jurídica,
derivada da nova situação social que derivou do processo dialético do próprio
empreendimento do Estado Liberal, e que resultou em uma sociedade altamente
desigual no aspecto material, impusera aos setores de pensamento e de ação social,
empenhados em uma mudança nas relações sociais a tarefa de explicar e justificar
os direitos sociais e de contribuir para a construção de uma estrutural estatal que
seja adequada à efetividade destes direitos.
Entretanto, a disputa política, travada não somente internamente nas
sociedades estatais, mas também no âmbito internacional, demonstrou claramente
que, no ambiente do sistema capitalista, não existe uma substituição dos direitos
individuais pelos direitos sociais, e que também não restou evidenciada uma
derrota dos direitos sociais pelos direitos individuais. A emergência dos direitos
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sociais ao lado dos direitos individuais e também a possibilidade de identificar
certos tipos de ordens jurídicas e políticas com o título de Estado social19, não
significou e não significa o abandono ou substituição do Estado Liberal. Pelo
contrário, o Estado Social deve ser tido como uma derivação do Estado Liberal
dentro do conceito de Estado constitucional.
Jorge Miranda (2005), de forma clara esclarece por quais motivos o Estado
social de Direito não é senão uma segunda fase dentro do Estado constitucional
(também chamado representativo ou de Direito):
1º) porque, para lá das fundamentações que se matêm ou se
superam (iluminismo, jusracionalismo, liberalismo filosófico) e do
individualismo que se afasta, a liberdade – pública e privada – das
pessoas continua a ser o valor básico da vida colectiva e a limitação
do poder político um objetivo permanente;
2º) porque continua a ser (ou vem a ser) o povo como unidade
e totalidade dos cidadãos, conforme proclamara a Revolução
francesa, o titular do poder político. (MIRANDA, 2005, p. 53).
Sem abandonar os pressupostos do liberalismo político, como valor e como
um direito, o Estado social tem seu embrião na remediação para os problemas
derivados da experiência econômica liberal e, portanto, foi a resposta aos problemas
derivados das contradições do modelo liberal de Estado. Neste sentido, conforme
García-Pelayo argumenta
Em términos generales, el Estado social significa historicamente
el intendo de adaptación del Estado tradicional (por el que
entendemos em este caso el Estado liberal burguês) a las
condiciones sociales de la civilización industrial y postindustrial
com sus nuevos y complejos problemas, pero también com sus
grandes possibilidades técnicas, económicas y organizativas para
enfrentarlos. (GARCÍA-PELAYO, 1985, p. 18).
Inicialmente a experiência teve início na Alemanha com a Constituição de
Weimar por meio do que é denominado por Avelãs Nunes como uma “solução de
19 Conforme Manuel García-Pelayo, formulação da expressão Estado Social, ou mais a ideia
de Estado social de direito se deve a Hermann Heller, socialdemocrata e tratadista de teoria
política e do Estado entre os anos vinte e trinta do século XX. (GARCÍA-PELAYO, 1985, p.
14 a17).
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i encontro de internacionalização do conpedi
compromisso” realizada após a derrota do movimento socialista (spartakista) em
1918, “[...] com o objetivo de refrear as aspirações revolucionárias de uma parte
do operariado alemão [...]” (NUNES, 2011, p. 37). Esta solução compromisso
representava um significativo avanço civilizatório enquanto que naquele
momento, em outros Estados, a solução capitalista para o combate ao socialismo
foi a implantação de regimes politicamente autoritários de tipo fascista20.
Posteriormente à segunda guerra mundial o compromisso foi retomado, mas
sob o novo modelo já descrito anteriormente que se configurou no denominado
welfare state. É perceptível que este novo modelo de Estado social foi desenvolvido
no período da denominada de guerra fria, quando acontecia uma similar disputa
internacional entre os campos políticos socialista e capitalista que tivera vez
durante as três primeiras décadas do século XX. Entretanto, o que se evidencia
no estado de bem-estar social é que as tarefas relativas à garantia e efetividade de
direitos individuais e sociais, passaram a conviver concomitantemente no campo
prático e teórico conferindo aos direitos sociais não somente um caráter formal
como o que lhes foram atribuídos durante a República de Weimar.
5.1. as classificações de estado de direito zagrebelsky
e pérez luño
Antes de tratar do aspecto que informa a existência de um caráter evolutivo
quanto à efetividade dos direitos sociais, o qual acontece sob a percepção da
existência de duas concepções de Estado – do Estado liberal e do Estado social
-, é necessário esclarecer que podem ser encontradas na literatura jurídica, outras
teorias que realizam uma demarcação diferente como, por exemplo, o faz Gustavo
Zagrebelski (2007, p. 21 a 31), que enuncia e conceitua a existência de dois
tipos de Estado: Estado de direito, típico do século XIX na Europa, e o Estado
constitucional da atualidade.
Na classificação de Zagrebelsky, o Estado de Direito indica um valor como
eliminação da arbitrariedade no âmbito da atividade estatal, como oposição ao
20 Conforme Nunes, “Em outros países da Europa, o falhanço das tentativas revolucionárias
inspiradas na revolução soviética ocorridas em 1918 e 1919 deu lugar à implantação de
regimes de tipo fascista: Itália, 1922; Bulgária, 1923; Espanha (Gen. Primo de Rivera), 1923;
Albânia, 1925; Polônia (Pilsudski), 1926.” (NUNES, 2011, p. 37).
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volume
06
i encontro de internacionalização do conpedi
Estado Absoluto, que tem representado historicamente os elementos básicos das
constituições liberais e que tem na lei a centralidade e garantia subjetiva dos direitos, os quais teriam na Constituição somente uma dimensão objetiva de dever
estatal. O Estado Constitucional, como contraponto ao Estado de Direito, é
apresentado como uma transformação na concepção do Direito sob o entendimento
de ter sido modificado o status hierárquico da lei, como limite de todo direito,
a qual passa a se submeter à Constituição, bem como o desprendimento do
conceito de direito da própria lei. Nas palavras de Zabrebelsky (2007)
La ley, por primera vez em la época moderna, viene sometida
a uma relación de adecuación, y por tanto de subordinación, a
um estrato más alto de derecho estabelecido por la Constitución.
(ZAGREBELSKY, 2007, p. 34).21
E completa Zagrebelsky que:
Teniendo presentes los catálogos de derechos estabelecidos em
Constituciones rígidas, es decir, protegidas contra el abuso del
legislador, podemos distinguir uma doble vertiente de la experiência
jurídica: la de lay ley, que expressa los interesses, las intenciones,
los programas de los grupos políticos mayoritarios, y la de los
derechos inviolables, directamente atribuídos por la Constitución
como ‘patrimonio jurídico’ de sus titulares, independentemente
de la ley. (ZAGREBELSKY, 2007, p. 51, destaque do autor).
Esta concepção, em que estabelece a existência de um Estado de Direito e
um Estado Constitucional feita por Zagrebelsky, não deve ser colocada de forma
totalmente oposta à concepção que identifica a existência de um Estado Liberal
e um Estado Social. Entretanto existem fatores que as vinculam e outros que as
separam.
O Estado de direito em Zagrebelsky se diferencia do Estado Liberal
conceituado por Norberto Bobbio em um aspecto: apesar de entender não caber
dúvida de que o Estado de Direito representa historicamente os elementos básicos
das concepções constitucionais liberais, Zagrebelsky (2007, p. 23) concebe que,
esta noção de Estado pode também ser compatível com orientações totalitárias,
21 Ainda, conforme Zagrebelski (2007), as constituições contemporâneas, em virtude de uma
pulverização legislativa e heterogeneidade de seus valores, derivados de um pluralismo das
forças políticas e sociais, cumprem uma função unificadora.
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i encontro de internacionalização do conpedi
“[...] apartándola de su origen liberal y vinculándola a la dogmática del Estado
totalitário [...]”. Assim, o referido autor identificaria a existência de um modelo
estatal, denominado Estado de Direito, podendo ser liberal politicamente e
economicamente, e também autoritário politicamente e economicamente, sendo
ainda possível a combinação destes fatores, mas que, em todos os casos a lei teria
supremacia sobre a Constituição. Por este motivo utiliza um termo específico [...]
Estado liberal de derecho [...] (ZAGREBELSKY, 2007, p. 23) para identificar
aquilo que Bobbio denomina de Estado Liberal, entendido este como oposição ao
totalitarismo em política e favorável ao minimalismo em economia22.
Realmente é induvidoso que um Estado possa ser totalitário em política e
liberal em termos econômicos, como se pôde perceber no decorrer da história e
já observado anteriormente quanto aos regimes autoritários de caráter fascista,
e também se reconhece a existência de experiências que combinaram limitação
da liberdade individual com oposição ao liberalismo econômico como na
experiência de alguns Estados socialistas. Quanto a isto há que se efetuar dois
destaques. Primeiramente é preciso entender que o Estado que se apresenta
como totalitário em política e liberal em economia deve ser concebido como
um recurso do liberalismo econômico quando se encontra ameaçado, impondo
uma anomalia ou imperfeição ao Estado Constitucional. Como já observado,
a implantação de regimes desse tipo, geralmente se seguiram após tentativas
revolucionárias de substituição do liberalismo econômico por regimes de
economia planificada e com a abolição da propriedade privada e/ou estatização
dos meios de produção, ou quando forças políticas e econômicas ligadas à defesa
do sistema capitalista sentiram algum tipo de ameaça que colocasse em risco a
economia liberal23. Ou seja, para defender o capitalismo, privilegia-se a liberdade
econômica em detrimento da liberdade política. Em segundo lugar é necessário
entender que a existência de Estados em que a falta de liberdade política não vem
22 Ver notas 11 e 12.
23 A crise do sistema capitalista no período entre guerras também teve como resposta a formação
de Estados deste tipo na década de 1930 na Alemanha, Itália, Espanha e Portugal, com
economia debilitada. (NUNES, 2011, p. 56). Também no pós segunda guerra, “[...] o recurso
a regimes totalitários de tipo fascista foi uma solução corrente do imperialismo americano e
dos seus aliados autóctones em vários países, especialmente na América Latina, desde o início
dos anos 50 até a década de 80 do século passado”. (NUNES, 2011, p. 55).
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volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
acompanhada de liberdade econômica deve ser tida como a completa negação
do tipo de Estado formado a partir das revoluções burguesas iniciadas no século
XVIII. A compreensão e estudo destes dois tipos estatais não se enquadram no
recorte teórico e metodológico analisados no presente trabalho. Ambos os tipos
devem ser tidos respectivamente como anomalia e como negação do Estado
Constitucional, e seja qual for a nomenclatura que se possa dar a eles, não devem
merecer classificação no presente trabalho 24.
Quanto às concepções relativas ao Estado Social e ao Estado Constitucional
(demarcados por Zagrebelsky), para que seja possível indicar distinções é
necessário fazer algumas considerações de carácter conceitual.
Como já se demonstrou anteriormente, foi sob o entendimento político e
filosófico, dos valores do individualismo e do liberalismo que surgiu o Estado
constitucional, ainda vinculado exclusivamente à ideia de Estado de Direito,
ou ainda de Estado Liberal. O surgimento dos direitos sociais e sua posterior
positivação nas Constituições representou uma transformação efetiva na
superestrutura do Estado Constitucional de tipo liberal – entretanto, sem que
isto significasse um abandono completo do liberalismo. Por consequência desta
transformação de característica material, o conceito de Estado constitucional
também é levado a uma revisão e, portanto a uma mudança de paradigma.
Sob a perspectiva acima colocada, o Estado Social deve ser entendido como
uma segunda fase do Estado Constitucional. E é justamente neste momento que
se passa a exigir uma subordinação da lei à Constituição, não como forma de
garantia e efetividade dos direitos do indivíduo, pois estes já se asseguravam por
meio do modelo jurídico-estatal existente. Não havia, desde o século XIX, uma
preocupação com a garantia dos direitos individuais por meio da estrutura estatal
do constitucionalismo liberal. O estado revolucionário fora montado e moldado
a partir dos postulados do individualismo burguês que teve como sustentação a
separação rígida do exercício das funções estatais e da mínima intervenção estatal
nas relações sociais. A este momento Depois disto, com o advento do Estado
24 Este trabaho se realiza na forma de uma concepção jurídica no campo do constitucionalismo
democrático sob o entendimento de que o princípio da soberania popular é, conforme
definição de Canotilho (2003, p. 98), “[...] uma das traves mestras do Estado constitucional”.
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i encontro de internacionalização do conpedi
Social, caracterizado pela alteração das regras inscritas superestruturalmente no
Estado Constitucional, a tarefa que se apresenta para buscar a efetividade dos novos
direitos é a adequação dos instrumentos de interpretação e aplicação dos direitos,
de forma a que não sejam usurpados por maiorias parlamentares eventuais, e que
também independam destas maiorias para que sejam reconhecidos e aplicados.
Zagrebelsky (2007, p. 33 e 34) indica como característica do que denomina
[...] Estado constitucional [...], uma efetiva subordinação, formal e material, da lei
à Constituição e um catálogo de direitos invioláveis diretamente atribuídos pela
Constituição, independente de lei ordinária, e protegidos de eventuais maiorias
políticas, opondo isto ao que denomina de [...] Estado de derecho legislativo [...] que
se apresenta em uma situação histórica na qual, durante o século XIX, o positivismo
jurídico acrítico foi a concepção de direito própria do Estado de Direito, tendo
na instância legislativa a concentração da produção jurídica. Entretanto esta nova
forma jurídica de interpretação, que se opondo à forma de interpretação jurídica
clássica do liberalismo, privilegia a norma constitucional em detrimento da norma
ordinária, não pode ser tida como uma mudança de paradigma que desencadeia
um novo fenômeno concebido como Estado Constitucional. Vale dizer, como
um novo tipo de Estado ou mesmo uma nova concepção de Estado que se
contrapõe à de Estado de Direito (liberal ou autoritário em termos políticos).
De forma diferente, entende-se que o Estado Constitucional já existente desde
o final do século XVIII, sempre foi baseado no direito, e tem sua trajetória
marcada de forma indelével pelo Estado Liberal e pelo Estado Social, devendo
ser entendida a mudança paradigmática verificada por Zagrebelski como interna
ao Estado Constitucional e derivada de fatores que apresentam características
fundamentalmente econômicas e sociais, mas que exigem uma alteração na forma
de compreender o papel jurídico a ser exercido pela Constituição.
Ainda, se faz necessário esclarecer que outra conceituação de Estado
constitucional, que se diferenciaria do Estado de Direito (assim designado o
Estado Liberal) e do Estado Social, fora outorgada por Pérez Luño e observada
por Cademartori (LUÑO, apud CADEMARTORI 2009, p. 31 e seg.) o qual
resumidamente a estabelece por meio de dois elementos: 1) o deslocamento do
princípio da primazia da lei e do controle jurisdicional da legalidade para o princípio
da primazia da constituição e do controle jurisdicional da constitucionalidade; 2)
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volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
o reconhecimento de direitos difusos, como direitos de terceira geração. Quanto
à caracterização feita pelo jurista espanhol Cademartori observa
[...] é que todas as previsões constitucionais (de liberdades públicas
individuais no Estado de Direito e direitos socioeconômicos e
culturais no Estado social), enunciadas apenas em caráter formal,
agora podem ser objeto de uma tutela jurisdicional, vale dizer, são
justiciáveis, e isto se deveu, sobremaneira, a Kelsen. De fato, foi
o jurista austríaco quem contribuiu de forma decisiva ao afirmar
o protagonismo do Tribunal Constitucional como guardião da
Constituição (Hutter der Verfassung) na sua polêmica com Carl
Schmitt na etapa da República de Weimar, tendo isto ocorrido em
1931. (CADEMARTORI 2009, p. 32, grifo do autor).
E resumindo as considerações de Luño:
[...] o Estado Constitucional será identificado como Estado de
Direito de terceira geração, assumindo o papel de delimitar o meio
espacial e temporal de paulatino reconhecimento dos direitos de
terceira dimensão, cujo conteúdo gira em torno de temas como a
paz social, o direito às relações de consumo, a qualidade de vida
e ou a liberdade ampla de informação (o que inclui, portanto, o
meio virtual). Assim delimitam-se, então, direitos difusos, vale
dizer, direitos que não possuem um destinatário específico, seja
ele coletivo ou não, como marca preponderante de uma nova
configuração estatal. (CADEMARTORI 2009, p. 33)
Esta concepção não deixa de realizar a diferenciação entre Estado Liberal e
Estado Social e, portanto, de levar em consideração a tipologia de direitos que são
característicos destes dois modelos de Estado, respectivamente as denominadas
liberdades públicas (direitos individuais) e os direitos socioeconômicos e culturais.
Entretanto agrega um terceiro tipo de direitos que não apresentam destinatário
específico e por isto recebem o nome de difusos, fazendo a partir disto a
demarcação de um terceiro tipo estatal, que denomina Estado constitucional,
cuja conceituação apresenta ainda o fator relativo á possibilidade de serem os
direitos, agora em todas as suas dimensões, justiciáveis por meio da existência de
um controle jurisdicional de constitucionalidade.
Na mesma esteira da crítica feita anteriormente à proposição realizada por
Zagrebelsky, entende-se que, não são relevantes os argumentos apresentados por
Pérez Luño para que se demarque outro tipo de Estado.
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i encontro de internacionalização do conpedi
Como já se afirmou inicialmente, a instrumentalização jurídica que passa a
conferir efetividade a novos direitos, seja por meio da transformação do modelo
de jurisdição ou da adequação dos instrumentos de aplicação dos direitos, não
pode ser tida como uma mudança de paradigma que cria o Estado Constitucional
como um novo tipo de Estado deslocado do Estado de Liberal e do Estado
Social. Deve ser ressaltado que, a ideia de que todas as previsões constitucionais
enunciadas apenas em caráter formal devem passar a ser objeto de uma tutela
jurisdicional é algo que se confunde com a uma pretensão apresentada a partir
do esforço jurídico-hermenêutico para conferir efetividade aos direitos sociais.
E a contribuição de Kelsen na formação do sistema de jurisdição constitucional
europeu, que sem dúvida serviu de auxilio a esta pretensão, não pode ser a
demarcadora da existência de um novo tipo de Estado denominado de Estado
constitucional, uma vez que a jurisdição é somente instrumento, e por isto não
define o conteúdo dos direitos, estes sim qualificadores do tipo estatal. Caso se
tenha esta clara aferição pode-se cair em uma armadilha na qual, a cada novo tipo
de mecanismo de controle de constitucionalidade que porventura se venha a ter
no futuro, e que possibilite maior efetividade aos direitos, será possível uma nova
definição de Estado.
Quanto à emergência dos denominados direitos difusos como marca de um
Estado de terceira geração e que identificaria um Estado constitucional, no qual
os direitos não possuem um destinatário específico, configurando-se isto como
sua marca preponderante, deve ser destacado que não há nada que diferencie
estes direitos dos direitos individuais e dos direitos sociais que não seja o seu
caráter processual. Esta afirmação encontra seu fundamento em duas observações
que podem ser feitas a partir da análise do próprio entendimento realizado por
Pérez Luño (2007) quanto aos direitos difusos e coletivos: a) os direitos colocados
nas categorias de difusos e coletivos em virtude do seu conteúdo são na realidade
desdobramento dos já consagrados direitos individuais ou sociais e a eles
encontram-se submetidos: ao analisar descritivamente os direitos fundamentais
na Constituição espanhola, Pérez Luño (2007, p. 196 e 197) reconhece junto aos
direitos sociais de caráter laboral outros como o direito à saúde, e estreitamente
vinculado a ele o propósito constitucional de assegurar a todos uma qualidade
de vida digna por meio da defesa de um meio ambiente adequado, que guarda
ainda uma íntima relação com direitos de caráter econômico e cultural. Também
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i encontro de internacionalização do conpedi
se pode agregar a isto a observação de que outros direitos como, por exemplo, das
relações de consumo25, estão diretamente vinculados à tutela do hipossuficiente
nas relações contratuais do mercado, incidindo sobre a regulação da liberdade de
contrato, questão típica dos direitos individuais. Este entendimento contribui
para o reconhecimento de que direitos colocados na categoria de direitos difusos
são na realidade desdobramento dos já consagrados direitos individuais e sociais;
b) a ampliação da legitimação para a defesa de direitos fundamentais configura o
reconhecimento do caráter coletivo dos direitos individuais ao lado dos direitos
sociais como aperfeiçoamento dos meios para a defesa de interesses coletivos de
direito individual ou social: Pérez Luño (2007) reconhece que entes coletivos
podem tanto ser titulares de direitos sociais ou de direitos típicos da liberdade26,
e como já observado, são nas próprias palavras do jurista espanhol que se pode
encontrar o caráter jurídico-processual dos direitos difusos e coletivos
Debe también tenerse presente que uno de los fenómenos más
interessantes que registra la evoluación de la titularidade de los
derechos fundamentales em los últimos años es la tendencia a
ampliar la legitimación estrictamente individual para la defensa
de intereses colectivos o difusos. La experiência de las décadas más
recientes em matérias tales como el médio ambiente, la salud o
la defensa de los consumidores há mostrado la conveniência de
reconhecer a la generalidade de los ciudadanos la legitimación para
defenderse de aquellas agresiones a bienes colectivos o interesses
difusos que, por su propia naturaliza, no pueden contemplarse
bajo la óptica tradicional de la lesión individualizada. De ahí
25 No Brasil a lei de Ação Civil Pública (Lei 7.347/85), com suas recentes alterações, regulou
forma particular de tutela de interesses difusos. Diz seu “Art. 1º. Regem-se pelas disposições
desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e
patrimoniais causados: I - ao meio ambiente; II - ao consumidor; III - à ordem urbanística;
IV - a qualquer outro interesse difuso ou coletivo; V - por infração da ordem econômica e da
economia popular.
26 Conforme o autor “Em lo tocante a la titularidade hay que rechazar como simplista el
planteamiento que la vincula em las libertades al hombre individual, y los derechos sociales a
los grupos. Es cierto que titulares de derechos sociales pueden serlo, en ocasiones, los grupos
em los que la persona se integra para el mejor logro de sus objetivos (asociaciones, sindicatos,
colégios profesionales, etc.). Pero no es menos certo que también los entes colectivos pueden
ser titulares de derechos personales (inviolabilidade del domicilio, libertad de expresión...),
civiles (garantias procesales y pènales...) o políticos (participación de los partidos en el
processo electoral...).” (LUÑO, 2007, p. 208).
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i encontro de internacionalização do conpedi
que se tienda a postular la admisión de formas de acción popular
como medio idóneo para superar la concepción individualista
del processo, permitiendo la iniciativa de cualquier interessado –
individual o colectivo – em la protección de estos intereses. Tratase, em suma, de institucionalizar nuevos medios para la defensa
jurídica de intereses que no se pueden considerar privativos de uma
persona o de um grupo, por incidir em las facultades e intereses
de los ciudadanos em su conjunto. (LUÑO, 2007, p. 208 e 209,
grifos do autor).
Para além disto, o reconhecimento de que existem direitos que pertencem
a uma coletividade e também direitos difusos que são de interesse de todos
indistintamente, inclusive do próprio Estado, conferindo às representações
coletivas, além dos indivíduos, a legitimação para pleitear juridicamente estes
direitos é, sem dúvida, a manifestação de um profundo golpe na concepção liberal
clássica, vista anteriormente, de aversão à possibilidade de que os indivíduos
sejam representados coletivamente, ou de que tenham uma vontade coletiva que
não seja a própria vontade do Estado.
Contudo, esse duplo caráter conferido aos denominados direitos difusos
e coletivos, em que pese suas especificidades, também não constituem uma
mudança paradigmática que possibilite a identificação de outro tipo de Estado
além do Estado Liberal e do Estado Social por não se apresentar configurada uma
mudança de caráter político e econômico que signifique uma marcante alteração
nas relações políticas e sociais. Mas sem dúvida, o reconhecimento da existência
dos direitos difusos, significa um profundo avanço teórico e operacional no
desdobramento dos direitos fundamentais, além de possibilitar uma significativa
ampliação quanto aos instrumentos jurídicos que possibilitam dar uma maior
efetividade a estes direitos.
5.2.a distinção entre as concepções liber al e social
de estado
Retomando agora a abordagem relativa ao reconhecimento das concepções
de Estado, de característica liberal e social, por meio da qual se concebeu que o
Estado Liberal não tem no Estado Social uma total contraposição, podendo o
segundo ser entendido como uma derivação do primeiro, representando ambos
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i encontro de internacionalização do conpedi
uma derivação interna ao Estado Constitucional, passa-se ao entendimento
relativo àquilo em que efetivamente ambos se diferenciam.
É com base na importância conferida às categorias de direitos fundamentais27
do Estado que se torna possível identificar concretamente a diferença entre os
dois modelos estatais. A partir do século XIX, é identificável a formação de pelo
menos duas grandes concepções do Estado, as quais se podem denominar como:
a) uma concepção liberal de Estado, não somente típica do século XIX, mas
também presente nos séculos XX e na atualidade, como forma de asseguramento
prioritário de direitos individuais clássicos, de que são exemplo a liberdade
e propriedade, em detrimento dos direitos sociais; e b) uma concepção social
de Estado, a qual não apresenta a garantia dos direitos individuais como único
objetivo, mas que reconhece também os direitos sociais, a partir da experiência
originada com sua positivação constitucional a partir da segunda década do
século XX, em três fases: b.1) na primeira fase os direitos sociais como direitos
não são tidos como fundamentais, e portanto encontram-se em patamar inferior
aos direitos individuais. Esta fase da concepção social de Estado, se apresentou
como inicial na transição que se fez a partir do Estado liberal e teve sua origem,
mais bem definida, na Alemanha, em Weimar, por meio da constitucionalização
dos direitos sociais em 191928, e assumindo abertamente a intervenção do Estado
na economia, visando tanto a “racionalização da economia” como também
a “transformação do sistema econômico” (NUNES, 2011, p. 37); b.2) na
segunda fase, além da permanência da característica que concebe um poder de
intervenção econômica do Estado, os direitos sociais passam a ser tidos como
direitos fundamentais e, portanto, apresentam-se em posição igualitária aos
direitos individuais, ou seja, com um mesmo regime jurídico. A partir da segunda
27 O termos “direitos humanos” e “direitos fundamentais” têm sido utilizados como sinônimos.
Entretanto aqui se adota a distinção assinalada por Pérez Luño em que o termo direitos
fundamentais são utilizados para designar direitos positivados a nivel interno, e direitos
humanos para denominar os direitos positivados nas declarações e convenções internacionais.
(LUÑO, 2007, p. 44).
28 Conforme Pérez Luño, “La Constitución de Méjico de 1917 puede considerarse como el
primer intento de conciliar los derechos de libertad com los derechos socialis, superando así
los polos opuestos de individualismo y del colectivismo. Pero, sin duda, el texto constitucional
más importante, y el que mejor refleja el nuevo estatuto de los derechos fundamentales em
trânsito desde el Estado liberal al Estado social de Derecho, es la Constitución germana de
Weimar de 1919”. (LUÑO, 2007, p. 39)
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metade do século XX foi possível identificar sistemas jurídico-constitucionais
que incorporam normativamente os direitos sociais, deixando-os no mesmo
nível dos direitos individuais, dependendo do modo como foram sistematizados
nos textos constitucionais de cada Estado, ou de como são interpretados
pela comunidade jurídica; b.3) a terceira fase, se estabelece por meio do
reconhecimento da legitimidade coletiva e difusa dos direitos fundamentais por
meio de instrumentos jurídico-processuais que acabam por diluir a dicotomia
estabelecida entre direitos individuais e sociais, possibilitando o reconhecimento
da particularidade social de todos os direitos fundamentais.
Portanto, as diferenças entre Estado liberal e Estado social, encontram-se
relacionadas às duas concepções de Estado que lhes são correlatas: concepção
liberal de Estado e concepção social de Estado, as quais se estabelecem sob o
entendimento existente quanto ao aspecto econômico e social do Estado e
também sob a identificação de qual é a característica de amplitude conferida aos
direitos fundamentais. E assinalar a existência destas duas grandes concepções não
significa afirmar que existam correntes teóricas homogêneas ou que transpassem
décadas ou séculos sem modificação ou mesmo que exista um único modelo
teórico que sustente cada uma delas. Bem mais do que isto, é possível uma
variação teórica indeterminada quando se objetiva justificar ou implementar, por
meio da atividade estatal, os valores de uma ou de outra concepção de Estado.
Entretanto é possível identificar padrões que caracterizam, de forma geral, uma
ou outra concepção teórica.
Neste sentido, na delimitação dos contornos da concepção liberal de Estado,
em Böckenförde (1993) percebe-se o entendimento de que efetivamente se
construiu uma teoria liberal do Estado de direito burguês, relativa aos direitos
fundamentais – fato este que serve de sustentação à afirmação da existencia de
uma concepção liberal de Estado – como também encontram-se esclarecimentos
quanto às características centrais dessa teoria
Para la teoria liberal (del Estado de derecho burgués) de los
derechos fundamentales, los derechos fundamentales son derechos
de libertad del individuo frente al Estado. Se estabelecen para
asegurar, frente a la amenaza estatal, ámbitos importantes de la
liberdad individual y social que están especialmente expuestos,
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i encontro de internacionalização do conpedi
según la experiencia histórica, a la amenaza del poder del Estado.
(BÖCKENFÖRDE,1993, p.48).
Observa-se claramente nessa definição uma centralidade dos direitos individuais, e mais especificamente a garantia de liberdade do indivíduo como
preocupação central da concepção liberal de Estado. Em sentido oposto,
o aprimoramento de uma concepção social de Estado, relativa aos direitos
fundamentais, apresenta-se como contraposição ao significado dado a uma
concepção liberal de Estado, o qual pode ser retirado das características acima
expostas. Assim, a garantia de direitos não fica reduzida à liberdade do indivíduo
frente à atuação estatal, como também não se admite uma absolutização de
qualquer direito tido com fundamental.
Na concepção social de Estado, a partir de sua segunda fase, os direitos
sociais são colocados em regime de igualdade com os direitos individuais. E além
disso, os valores básicos de um Estado liberal e democrático, como a liberdade,
a propriedade, as dimensões da igualdade no seu aspecto formal, a segurança
jurídica e a participação popular na formação da vontade estatal não somente
estão protegidos em um Estado Social, como também este tem a pretensão de
torna-los mais efetivos dando-lhes uma base e um conteúdo material. Isto tudo,
partindo-se da suposição de que o individuo e a sociedade não são categorias
apartadas e contraditórias, mas sim que apresentam implicações recíprocas, não
podendo uma realizar-se sem a outra (GARCÍA-PELAYO, 1985, p. 26). Isto
significa que, na concepção social de Estado os direitos individuais, assim como
os direitos sociais, dependem da atuação objetiva concreta do Estado29.
29Nesta compreensão fica esclarecido que a concepção social de Estado não deve ser
simploriamente confundida com uma concepção marxista de Estado. Sem dúvida, uma
concepção social de Estado, marcadamente quanto aos direitos fundamentais, tem sua
inspiração na concepção marxista de sociedade, dada a sua preocupação com a afirmação da
igualdade substancial. Mas deve ser observado que não pode ser confundida com a marca
do Estado Socialista, pois se realiza ainda nos marcos do sistema capitalista, e nunca teve
por objetivo substituí-lo mas tão-somente torna-lo palatável, diminuindo sua índole de mau
distribuidor da riqueza produzida e possibilitando respostas aos influxos socialistas. Neste
sentido, como contribuição ao entendimento de que a concepção social de Estado, relativa aos
direitos fundamentais não destituí a garantia dos valores liberais, esclarece Böckenförde “La
idea de los derechos fundamentales sociales no aparece, vista así, como algo que se oponga a
la garantia de la libertad del Estado liberal-burgués de Derecho, sino como su consecuencia
lógico-material en una situación social modificada”. (BÖCKENFÖRDE, 1993. p.75).
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i encontro de internacionalização do conpedi
E se o Estado Social não substituiu o Estado Liberal, mas somente o
aperfeiçoou, também é possível identificar que o Estado Liberal, em sua forma
clássica, nunca deixou de existir efetivamente. Logo no surgimento do Estado
Social em sua primeira fase é possível reconhecer, por meio da análise de textos
constitucionais, que houve uma convivência, no mesmo período histórico, entre
Estados liberais e Estados sociais, a qual se arrasta até os dias atuais30.
Não resta dúvida de que a análise textual das constituições, quanto à forma
pela qual se positivam os direitos fundamentais e se define seu regime jurídico é
um elemento que permite e possibilita identificar Estados liberais e Estados sociais.
Entretanto, não é somente o texto constitucional que determina este reconhecimento pelo intérprete. Fundamentalmente, é na submissão da interpretação
constitucional a um dos tipos de concepção de Estado que se passa a reconhecer
se este é de tipo liberal ou social. Por exemplo, isto signfica que a análise de uma
Constituição repleta de direitos sociais, em convivência com direitos individuais
– como é o caso da brasileira de 1988-, pode não resultar na identificação e
reconhecimento de um Estado social, se a interpretação que se faz dela é realizada
por meio de uma concepção liberal de Estado que diferencia o regime jurídico dos
direitos individuais e sociais, possibilitando aos primeiros melhores condições
para aplicabilidade jurídica. Da mesma forma, a análise de uma Constituição que
textualmente não privilegia direitos sociais, como a estadunidense, pode, ainda,
possibilitar a identificação e reconhecimento de um Estado social se - submetida
a uma concepção social de Estado - realize uma interpretação que se desvincule
hermeneuticamente do texto positivo e confira aos direitos sociais o caráter de
fundamentais em regime jurídico de igualdade com os direitos individuais.
6.conclusões
Existe, na literatura jurídica, uma indeterminação teórica sobre o que
caracteriza e diferencia o Estado liberal, também denominado de Estado de
30 Exemplificando isso, por meio de uma análise dos textos constitucionais é possível verificar
que, assim como o Brasil em 1934, países bálticos e alguns países do leste da Europa, foram
influenciados pela Constituição de Weimar, o mesmo não ocorreu com países como Reino
Unido, França (NUNES, 2011, p. 40) e também E.U.A. E na atualidade é possível identificar
a existência de Estados sociais, cujas constituições receberam o influxo da concepção de
Estado social a partir da sua segunda fase, de que temos exemplo as Constituições italiana de
1947, alemã de 1949, portuguesa de 1976, espanhola de 1978 e brasileira de 1988, as quais
convivem temporalmente com a Constituição liberal dos E.U.A de 1787.
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Direito, daquele que o sucedeu. É possível encontrar teses que exemplificam esta
caracterização por meio da identificação de subordinação do direito e da lei à
Constituição em oposição a uma subordinação do direito à lei, e também na
identificação da emergência de um controle jurisdicional de constitucionalidade
e no reconhecimento de direitos difusos e coletivos, oferecendo, nestes casos, a
denominação de Estado Constitucional em contraposição a Estado Liberal.
Estas teses não são essencialmente excludentes e não apresentam equívoco
quanto á verificação de um caráter evolutivo na forma de garantia da realização dos
direitos fundamentais, entretanto, desconsideram ou minimizam a importância
do ambiente político e econômico que determina cada modelo de Estado em um
determinado período ou lugar.
O Estado Liberal não teve como sucessor o Estado Constitucional, mas é
sim genese deste, por meio do qual se estabelece uma concepção – na qual a
Constituição tem papel central - que reduz e limita o poder estatal por meio de
uma divisão do seu exercício e da minimalização de suas funções econômicas e
sociais frente à sociedade. O Estado Social, por sua vez, denuncia um rompimento
paradigmático ocorrido dentro do Estado constitucional, como resultado da crise
do liberalismo e da emergência dos direitos sociais, sem que se houvesse um total
abandono dos direitos individuais. Neste sentido, o Estado Social apresenta-se
como uma derivação do Estado Liberal dentro do conceito de Estado Constitucional.
A identificação destes tipos de Estado, não se realiza exclusivamente por meio
da análise interpretativa dos textos constitucionais que lhe dão suporte, mas
fundamentalmente por meio de uma consequente subordinação interpretativa
às concepções vinculadas respectivamente a cada um destes dois modelos de
Estado, a concepção liberal de Estado e a concepção social de Estado. Neste sentido,
a teoria do direito utilizada por uma comunidade jurídica auxilia uma correta
interpretação do direito, caso esteja coadunada ao tipo de Estado ao qual se
encontra submetido o ordenamento jurídico estatal, o qual, por sua vez, será
determinado pela concepção de Estado adotada pelo intérprete.
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