uma reflexão comparativa sobre a linguagem - PPGHC

Propaganda
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Centro de Filosofia e Ciências Humanas – CFCH
Instituto de História - IH
Programa de Pós-Graduação em História Comparada - PPGHC
Claudia dos Santos Gomes
Arte e representação na propaganda política: uma reflexão comparativa
sobre a linguagem visual na construção do poder pessoal militar em Roma
(88-44 a.E.C.)
Rio de Janeiro
2014
Arte e representação na propaganda política: uma reflexão comparativa sobre a
linguagem visual na construção do poder pessoal militar em Roma
(88-44 a.E.C.)
Claudia dos Santos Gomes
CFCH/ IFCS/ IH/ PPGHC
Mestrado em História Comparada
Orientador: Professora Doutora Norma Musco Mendes
Rio de Janeiro
2014
GOMES, Claudia dos Santos.
G633
Arte e representação na propaganda política: uma reflexão comparativa
sobre a linguagem visual na construção do poder pessoal militar em Roma (88-44
a.E.C.) / Claudia dos Santos Gomes. Rio de Janeiro: UFRJ / PPGHC, 2014.
xii, 170 f.: il.; 30 cm.
Orientador: Profª Drª Norma Musco Mendes.
Dissertação (mestrado) – UFRJ / PPGHC – Programa de Pós-Graduação em
História Comparada, 2014.
Referências bibliográficas: f. 155-169.
1. Roma – Política e governo - 265-30 a.E.C. 2. Cultura política – Roma - História. 3.
Comunicação visual – Aspectos Políticos - Roma. 4. Liderança política – Roma – Estudo
de casos. 5. Arte – Aspectos políticos - Roma. I. Mendes, Norma Musco. II. Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em História Comparada. III.Título.
CDD 937.02072
.
Arte e representação na propaganda política: uma reflexão comparativa sobre a
linguagem visual na construção do poder pessoal militar em Roma
(88 - 44 a.E.C.)
Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em História
Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro – PPGHC/UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em História Comparada.
Avaliada por:
_______________________________________________________
Prof. Dra. Norma Musco Mendes – Orientadora (PPGHC-UFRJ)
_______________________________________________________
Prof. Dr. André Leonardo Chevitarese (PPGHC-UFRJ)
_______________________________________________________
Prof. Dra. Claudia Beltrão da Rosa – (PPGH-UNIRIO)
_______________________________________________________
Prof. Dra. Maria Regina Candido (PPGHC-UERJ) Suplente
_______________________________________________________
Prof. Dra. Sônia Rebel (PPGH-UFF) Suplente
Rio de Janeiro
2014
À querida amiga Vitória
que acreditou em mim
desde sempre...
AGRADECIMENTOS
O trabalho de pesquisa é na maior parte do tempo solitário. Felizmente, muitas vezes a
necessidade de ajuda faz interagir e é nesse momento que o sonho acalentado durante tanto
tempo acontece, pois sem a ajuda dos amigos o trabalho não se realiza. Muitos foram os que
de forma direta ou indireta, me auxiliaram no desenvolvimento desta pesquisa, e agradeço a
todos por isso.
Agradeço primeiramente à Prof.ª Dra. Norma Musco Mendes que aceitou me orientar
nesse projeto, disponibilizando seu tempo, carinho, atenção e sabedoria ao ensinar o ofício do
historiador. Muitos agradecimentos devo à Prof.ª Dra. Claudia Beltrão da Rosa pela atenção
em ouvir, conversar, mostrar os caminhos e as possibilidades de análise de forma tão gentil.
Agradeço a todos os meus colegas do grupo de pesquisa. Mais do que colegas, amigos
que deram informações, livros, ideias e amizade quando me senti perdida. Agradeço à querida
Airan Borges que desde o início dizia: "você vai conseguir"! E aos amigos Diogo Silva e
Thiago Pires. Agradeço aos meus "novos" amigos cujos laços de amizade não são medidos
pelo tempo de convívio: Débora Casanova, e ao sempre gentil Paulo Duprat. À querida
Andreia Tamanini pelas conversas e insights oferecidos no "fórum pro Claudinha" que foram
fundamentais à pesquisa iconográfica, bem como ao querido Diego F. Machado, que além do
fórum, sempre esteve disposto a ajudar. E não poderia deixar de mencionar Érika Vital, amiga
desde a graduação, e lembrar nosso pacto de sempre nos apoiarmos.
Agradeço aos amigos da escola Evangelina pela força e amizade nos momentos
difíceis e também por me "obrigarem" a me divertir às vezes, particularmente às amigas
Lorena Bonomo, Nadia Alchorne, Ana Cristina Santos e tantas outras pessoas não nomeadas,
mas não esquecidas. Agradeço especialmente ao prof. Jaime de Souza Júnior pela bibliografia
e pelas profícuas discussões sobre os "memes" e a análise crítica do discurso.
Por fim, Agradeço à doce amiga Regina Coelli, credora eterna da minha gratidão, pois
sem ela eu não teria conseguido superar os obstáculos, e principalmente meus medos e
inseguranças. Agradeço à minha mãezinha pelo apoio quando mais precisei. Muitos
agradecimentos devo à minha irmã Luciana por toda ajuda e carinho, e especialmente à minha
irmã Fernanda, artista plástica, que me orientou, tirou minhas dúvidas acerca das questões
técnicas, das nomenclaturas e do fazer artístico. Agradeço as duas por todo amor e carinho
nos momentos mais difíceis.
“[...] o símbolo, o mito, a imagem pertencem à substância
da vida espiritual, e que podemos camuflá-los, mutilá-los,
degradá-los, mas jamais poderemos extirpá-los.”
Mircea Eliade. Imagens e Símbolos.
RESUMO
A partir das interações culturais entre Roma e as sociedades helenísticas, esta
dissertação problematiza as formas simbólicas ligadas à ideologia de poder de Alexandre o
Grande que se tornou um paradigma para os chefes militares no final da República romana,
especialmente para Sila, Pompeu Magno e Júlio César. A construção do regime político de
caráter pessoal, baseado nas vitórias militares, pode ser identificado nas formas de
propaganda e de comunicação política. Nesse sentido, analisamos o processo de construção de
um novo sistema de representação imagética do governante romano. No caso específico desta
pesquisa, propomos “experimentar” as formas de legitimação do poder político de caráter
pessoal (helenístico e romano), construído de acordo com os vetores fundamentais de
identificação dos imperatores. Logo, nosso campo de experimentação de pesquisa se alia ao
projeto coletivo de pesquisa sob orientação pela Prof. Dra. Norma Musco Mendes, intitulado
“Império: teoria e prática imperialista romana”, cujo objetivo principal é a construção de
hipóteses de trabalho e a obtenção de argumentos explicativos que permitam observar
comparativamente a diversidade, a pluralidade e a singularidade dos processos de formação,
expansão, legitimação e desagregação dos impérios. Nossa pesquisa pretende contribuir para
o diálogo comparativo entre a equipe de pesquisadores acerca do uso da arte na comunicação
política para a construção de um sistema de representação para identificar e legitimar o poder
imperial. Ou melhor, a partir do caso romano, investigar como numa sociedade imperial, os
fenômenos simbólicos e as formas artísticas atuaram como sustentáculo de poder político.
ABSTRACT
From the cultural interactions between Rome and the Hellenistic societies this essay
discusses the symbolic forms of power linked to the ideology of Alexander the Great who has
become a paradigm for the military leaders in the late Roman Republic, especially for Sulla,
Pompey the Great and Julius Caesar. The construction of the political regime of a personal
nature, based on military victories, can be identified in the forms of advertising and political
communication. Accordingly, we analyze the process of building a new system of imagery
representation of the Roman ruler. In the specific case of this research, we propose to
"experience" the legitimation of political power for personal (Hellenistic and Roman)
character, constructed in accordance with fundamental vectors of identifying Imperatores.
Thus, our experimental field research joins the collective research project supervised by Prof.
Dr. Norma Musco Mendes, entitled "Empire: theory and practice Roman imperialist" whose
main objective is the construction of working hypotheses and obtaining explanatory
arguments that allow observe comparatively the diversity, plurality and singularity of the
processes of formation, expansion and disintegration of empires legitimacy. Our research
aims to contribute to the comparative dialogue between the research team about the use of art
in political communication for building a system of representation to identify and legitimize
the imperial power. Or rather, from the Roman case, investigate how in an imperial society,
the symbolic phenomena and the artistics forms acted as bulwark of political power.
Abreviaturas
ANRW
Caes. BC
Cíc. Ad Atti
Cíc. De Rep.
Cíc. Verr.
Cíc.Imp Pom.
CIL
Plut., Alex.
Plut., Caes.
Plut., Pom.
Plut., Sul
RPC
RRC
Suet. Caes.
Aufstieg und Niedergang der römischen Welt (Rise and Decline of the Roman
World)
Bellum Civili (Guerras civis) de Júlio César
Carta a Ático
De Res publica de Cícero
Verrinas de Cícero
De Imperio Pompeio de Cícero
Corpus Inscriptionum Latinarum
Vida de Alexandre
Vida de Júlio César
Vida de Pompeu
Vida de Sila
Roman Provincial Coinage, Supplement 2
Roman Republican Coinage Catalogue – M.H. Crawford
Vida de Júlio Cesar de Suetônio
Lista das Ilustrações
Figura 1: Possível retrato Alexandre (a-b) ............................................................................... 80
Figura 2: Cabeça de Alexandre o Grande - Pérgamo ............................................................... 82
Figura 3: Cabeça de Alexandre o Grande - “herma de Azara” - Museu do Louvre ................. 83
Figura 4: Estatueta de Alexandre (a-b) ..................................................................................... 83
Figura 5: Cabeça de Alexandre o Grande - Museu de Pella..................................................... 84
Figura 6: Mitridates VI - Museu do Louvre ............................................................................. 86
Figura 7: Mosaico de Alexandre (a-b) ...................................................................................... 90
Figura 8: Monumento de “Ahenobarbus” - Museu do Louvre (a-b) ..................................... 100
Figura 9: Coluna em mármore de Emílio Paulo ..................................................................... 101
Figura 10: “Sarcófago de Alexandre” ................................................................................... 101
Figura 11: Reconstituição do Teatro de Pompeu Magno (a-b) .............................................. 105
Figura 12: Estátua de Pompeu Magno Cosmocrator - Palazzo Spada .................................. 106
Figura 13: Reconstrução do Forum de Júlio César................................................................. 107
Figura 14: Estátua equestre de Alexandre o Grande - Museu de Nápoles ............................. 108
Figura 15 Tumba dos Cipiões................................................................................................. 117
Figura 16: Retrato de Cipião Africano chamado ‘Sila’ .......................................................... 118
Figura 17: Retrato de Cipião Asiático chamado ‘Mário’ ....................................................... 118
Figura 18: Sacerdote egípcio .................................................................................................. 119
Figura 19: Retrato de Pompeu Magno na época do seu primeiro consulado. ........................ 120
Figura 20: Retrato de Pompeu Magno na época do seu segundo consulado .......................... 121
Figura 21: Retrato de Júlio César - Museu de Tasos .............................................................. 122
Figura 22: Retrato de Júlio César - Museu de Turim ............................................................. 123
Figura 23: Retrato de Júlio César - Museu do Vaticano......................................................... 123
Figura 24: “Monumento de Sila” – Porta Triumphalis (S. Omobono) (a-b-c) ....................... 133
Lista das Moedas
Moeda 1. Denário de M. Sergius Silus, Roma ......................................................................... 49
Moeda 2. Tetradracma de Felipe II . ........................................................................................ 78
Moeda 3. Tetradracma Alexandre - Hércules com pele do leão de Nemeia ........................... 79
Moeda 4. Tetradracma de Lisímaco – Alexandre e o símbolo de Zeus-Amon . ........................ 79
Moeda 5. Tetradracma de Antíoco I - Hércules usando a pele do leão de Nemeia. ................ 85
Moeda 6. Tetradracma de Antíoco I - Antíoco I com tiara ..................................................... 85
Moeda 7: Denário Cn. Lentulus – Globo, cetro, grinalda e leme . ......................................... 127
Moeda 8: Denário de M. Brutus. Roma - Retrato de Brutus e Ahala .................................... 130
Moeda 9: Tetradracma de Sila - “New Style” ateniense . ...................................................... 132
Moeda 10: Áureo e Denário cunhado por Sila - Vênus e troféus. .......................................... 132
Moeda 11: Denário L. Vinicius - Vitória carregando palmas e coroas de flores ................... 134
Moeda 12: Bronze de Sila - cabeça laureada de Janus ........................................................... 134
Moeda 13: Áureo de Sila - Triumphator dirigindo quadriga ................................................. 136
Moeda 14: Denário de Fausto Sila - Vênus laureada e troféus ............................................. 138
Moeda 15: Denário de Fausto Sila - Globo cercado por três coroas de flores ...................... 138
Moeda 16: Áureo Pompeu Magnus – Triumphator .............................................................. 139
Moeda 17: Denário de Júlio César – troféu gaulês ................................................................ 141
Moeda 18: Denário de Júlio César - Enéias carregando Anquises ........................................ 142
Moeda 19: Denário de Júlio César - Vênus segurando Vitória ............................................. 142
Moeda 20: Denário de Júlio César - Templo de Clementia ................................................... 143
Moeda 21: Retrato de Júlio César - Pai da Pátria .................................................................. 144
Moeda 22: Retrato de Júlio César - Juno Sospita conduzindo biga ....................................... 145
Moeda 23: Retrato de Júlio César - Niceia ............................................................................. 146
Moeda 24: Retrato de Júlio César - Corinto. .......................................................................... 146
Moeda 25: Denário de Júlio César - Símbolos sacerdotais .................................................... 148
Moeda 26: Denário de Júlio César - Símbolos sacerdotais e elefante esmagando ................ 148
Mapas e plantas
Planta 1. Planta esquemática da rota triunfal em Roma .......................................................... 48
Mapa 1. Conquistas romanas de 146 a 30 a.E.C. ..................................................................... 57
Mapa 2. Campanhas de Alexandre o Grande ........................................................................... 69
Mapa 3. Os reinos helenísticos e as ligas gregas ...................................................................... 74
Quadros
Quadro 1. Titulatura de Sila, Pompeu e Júlio César usada na cunhagem .............................. 170
Sumário
Introdução ............................................................................................................................... 13
Capítulo 1- Discutindo conceitos: ideologia, discurso, arte e visualidade ......................... 21
1.1 Arte e ideologia .................................................................................................................. 25
1.2 Metodologia e Documentação ............................................................................................ 30
1.2.1 Documentação textual ..................................................................................................... 31
1.2.2 Documentação de cultura material .................................................................................. 35
Capítulo 2 - Roma e as transformações políticas do século I a.E.C. ................................. 37
2.1 A conjuntura sociopolítica e o sistema republicano de governo no século I .................... 38
2.2 Ethos social e a ideologia de vitória ................................................................................. 43
2.3 A expansão territorial do império e o elemento militar ..................................................... 50
Capítulo 3 - Alexandre, o Grande e a imagem do poder pessoal ....................................... 63
3.1 Os reinos helenísticos ......................................................................................................... 73
3.2 Alexandre e a estética do poder ......................................................................................... 77
3.3 Alexandre o Grande: uma criação romana? ...................................................................... 88
3.4 A arte helenística e as contribuições à linguagem visual de Roma ................................... 90
Capítulo 4 - Poder e representação – a arte na comunicação política .............................. 96
4.1. A linguagem visual - modos de comunicação política dos romanos................................. 96
4.2 A perfomance teatral e o discurso de poder político ........................................................ 104
4.2.1 Arquitetura .................................................................................................................... 104
4.2.2 O triunfo romano – uma procissão espetacular ............................................................ 110
4.2.3 Retrato – imagines e os ancestrais ................................................................................ 115
4.3 Comunicação política e as moedas romanas - a arte da representação ............................ 124
4.3.1 Sila no Oriente - uma nova forma de comunicação? .................................................... 131
4.3.2 Pompeu – exaltação ao poder pessoal .......................................................................... 137
4.3.3 Júlio César – tradição e inovação ................................................................................. 140
Considerações finais ............................................................................................................. 152
Referências Bibliográficas ................................................................................................... 155
Apêndice ................................................................................................................................ 170
13
Introdução
Em dezembro de 2012 o Banco da Inglaterra divulgou a notícia de que poderia em
breve estampar nas moedas de £10 imagens de personalidades importantes para a sociedade
inglesa, tais como William Shakespeare e Winston Churchill, passando por David Beckham,
Mick Jagger, a princesa Diana e os Beatles. Na mesma época, chamou a atenção outra
reportagem relativa à capital dos Estados Unidos, Washington - conhecida pela grande
quantidade de estátuas que homenageiam celebridades da história americana e do mundo,
dentre elas Abraham Lincoln e Mahatma Gandhi, e que hoje estão espalhadas por toda a
cidade.1
As imagens, em nossa sociedade, são valiosos suportes que expressam signos, ideias,
valores e ideologias. Nessa perspectiva, o professor Dr. Nigel Spivey, da Universidade de
Cambridge, no documentário “How Art Made the World” (2005),2 leva os espectadores em
uma viagem investigativa a fim de compreender como a arte se constituiu e “moldou o
mundo” com a intenção de decifrar a capacidade humana de se comunicar por meio de
símbolos.
Particularmente, no episódio três - “The art of persuasion”, o pesquisador inicia o
capítulo ressaltando os artifícios visuais usados por George Bush em sua campanha e que o
ajudaram a ser eleito. A partir daí, o professor volta no tempo, partindo das grandes
civilizações do mundo antigo como a Pérsia de Dario I, passando à Macedônia de Alexandre
o Grande até chegar a Roma de Augusto, para mostrar que estratégias visuais persuasivas
provêm não dos tempos modernos, mas de um mundo com milhares de anos de idade e
demonstra como as imagens se tornaram uma arma indispensável no arsenal dos líderes
políticos.
Desta forma, observamos que a propaganda está presente na maioria das sociedades
contemporâneas e no contexto da chamada globalização, onde as trocas culturais são intensas,
e as imagens cada vez mais rapidamente são difundidas com as mais variadas finalidades.
Segundo Neyde Thelm (1998, p.306), “as imagens são olhadas e compreendidas de forma
sincrônica, global e imediata”, destarte a autora esclarece quanto à importância da linguagem
visual para a publicização de valores, ideologias e mensagens.
1
As reportagens encontram-se disponíveis nos sites: http://br.omg.yahoo.com/noticias/beatles-mick-jaggerrobbie-willians-podem-estampar-moeda-181402849.html, acesso 01/01/2013 e
http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2013/02/ruas-e-pracas-de-washington-tem-estatuas-de-anonimos-efamosos.html, acesso 29/03/2013.
2
Dr. Nigel Spivey é professor na Universidade de Cambridge, onde leciona Arte Clássica e Arqueologia. No
documentário produzido pela BBC em 2005, o professor apresenta uma série com cinco episódios mostrando a
historia da arte e seu papel no mundo. Mais informações: http://www.pbs.org/howartmadetheworld/interviews/
14
Quando Roma expandiu suas conquistas em direção ao Mediterrâneo oriental no
século II a.E.C., houve uma intensificação do contato e consequente aumento das interações
culturais entre os povos que habitavam aquela parte do império. Os romanos dominaram a
Grécia e reinos helenísticos e, ao se virem protagonistas da região, inseriram cada vez mais o
patrimônio destes “em seu próprio repertório para responder à nova situação” (OLIVA
NETO, 2008, p.49).
Nesse processo, identificamos referências ligadas à ideologia de poder de Alexandre o
Grande, herói paradigma do guerreiro vitorioso e divino, que foram apropriadas e
ressignificadas pelos chefes militares romanos. Assim, a presente pesquisa problematiza o
processo de transformação do sistema de representação dos imperatores no decorrer do século
I a.E.C. tendo em vista que as representações imagéticas contribuíram para o discurso de
legitimação política na propaganda e na comunicação política dos chefes militares,
especialmente para Sila, Pompeu Magno e Júlio César3 e contribuíram também para discurso
visual do regime político de caráter autocrático em Roma, entendido aqui como uma
modalidade de poder monárquico “que se concentra na figura de um chefe e pode levar à
personalização do poder” (STOPPINO, 1998, p.372).
Nossa opção de análise recai sobre a modalidade de poder político militar visto que o
controle do exército foi um dos elementos que respaldaram o sistema de governo de caráter
pessoal em Roma, consolidado somente com Otávio Augusto no final do século I a.E.C. no
regime político do Principado. Segundo Mendes (2006, p.22), a necessidade de um exército
permanente e profissional fez surgir as “bases essenciais para o estabelecimento de um poder
pessoal” e a ditadura, no caso de Júlio César, foi um dos instrumentos “para obter um poder
centralizado e pessoal”.
De acordo com Gilvan Ventura da Silva (2001, p.31-2), “a explicação tradicional para
a ascensão política de Augusto fundamenta-se no monopólio dos meios de coerção exercidos
pelo princeps,4 enfatizando-se o controle estrito mantido por ele sobre o exército”. Um
exemplo dessa corrente foi L. Homo (1927, p. 262-3) ao afirmar que “o império é uma
monarquia militar e a despeito de todas as aparências sua força residirá sempre no exército; é
a ação declarada ou latente do exército que conduzirá gradualmente o regime imperial na via
do despotismo militar.”
3
Lucio Cornélio Sila (138-78), Cneu Pompeu (106-48) e Caio Júlio César (100-44).
Princeps - o mais eminente cidadão do Estado - era o cidadão que se destacava e ocupava liderança na cidade,
consagrado pela popularidade, dignitas e auctoritas na noção estoica de “primeiro entre os iguais”. Após as
guerras civis, um novo sistema político foi elaborado em torno das práticas republicanas das relações de poder,
centrado na figura do princeps (MENDES, 2006, p.26-27).
4
15
Outra corrente de interpretação defende que outros elementos sustentaram a
instauração do novo modelo de governo, como P. Petit (1989, p.193-214), que prefere atribuir
ao “Principado uma natureza jurídica, religiosa e/ou sociológica decorrente da retenção
política por parte de Augusto de diversos títulos ou princípios característicos da prática
política republicana, como por exemplo, o imperium, a tribunicia potestas e o Pontificado
Máximo.” Ou seja, após a vitória de Otávio Augusto na batalha de Ácio em 31, a nova
configuração política do governo da res publica foi representada pela concentração pelo
princeps expresso pelo imperius majus proconsulare dado a Augusto no ano de 23.
Todavia, o monopólio das forças de coerção por si não sustenta um regime político por
muito tempo, pois há que existir um consenso entre os segmentos da sociedade na condução
dos assuntos do Estado visto que o “poder social não é uma coisa ou a sua posse: é uma
relação entre pessoas” (STOPPINO, 1998, p.934). Considerando-se a argumentação de
Stoppino, lembramos que sobre o Principado augustano, G. Ventura (2001, p.33) ressalta a
necessidade de criação de “valores que possam tornar a ação dos agentes do poder constituído
algo perfeitamente admissível, legítimo e até mesmo desejável.”
Logo, a partir dessas considerações, nossa pesquisa entende que o poder político,
baseado nas vitórias militares, perpassou o controle do exército, mas não só. Os chefes
militares anteriores a Augusto também se apoiaram nas esferas jurídicas e religiosas da
sociedade romana a fim obterem legitimação política no processo de construção do poder
pessoal em Roma.
A política em Roma caracterizava-se pela áspera e frequentemente dramática disputa
entre as famílias (SMITH, 2006, p.313-4).5 Nesse cenário, a arte revelou-se importante
instrumento no processo de legitimação do poder pessoal militar do soberano romano, assim
como parte da construção de um sistema de representação política do império. O objeto
artístico, “convocado a satisfazer as exigências de autorrepresentação dos protagonistas
daquelas lutas” ofereceu uma “variada gama de temáticas e soluções formais” (GASPARRI,
2008, p.31) aos agentes do poder político. Sendo assim, um dos nossos objetivos é identificar
as formas simbólicas6 e os tipos e modelos das obras de arte gregas e helenísticas, apropriadas
e ressignificadas no discurso visual romano, como um dos elementos que serviram para o
estabelecimento e sustentação das relações de dominação política.
5
Em relação ao papel das gentes na comunidade romana, especialmente a disputa pelas magistraturas, comando
militar e sacerdócios na República tardia, cf. J. Christopher Smith (2006, capítulo 10).
6
Entendemos as formas simbólicas em um amplo espectro de ações e falas, imagens e textos produzidos pelos
sujeitos, reconhecidos por eles e por outros, como constructos significativos (THOMPSON, 2002. p.81).
16
As imagens são concebidas, idealizadas, inventadas e produzidas pela sociedade, as
quais nos remetem de forma não explícita ao vivenciado, ao visto, ao não visto, ao sentido, ao
imaginado, ao sonhado, ao projetado por aqueles que viviam nesta sociedade (BURKE, 2004,
p.11). Assim, para investigarmos as representações simbólicas, optamos pela análise das
esculturas e da cunhagem dos magistrados, compreendidas aqui como documentos históricos.
O estudo das formas de legitimação de poder, a partir das representações iconográficas,
baseia-se na ideia de que o “campo icônico e figurativo” representa o mundo em que vivemos
“em toda sua diversidade e complexidade” (PAIVA, 2002, p.26-7). Porém, ao analisar as
formas simbólicas, não podemos esquecer que a imagem não expressa em si um significado
cultural, religioso ou ideológico, como se o significado fosse intrínseco ou existisse
independente dessa expressão imagética. Nas palavras de Jean-Claude Schmitt (2007, p.42):
[...] Pelo contrário, é a imagem que lhe faz ser como o percebemos,
conferindo-lhe sua estrutura, sua forma e sua eficácia social. Dito de outro
modo, a análise da obra, de sua forma e de sua estrutura é indissociável do
estudo de suas funções. Não há solução de continuidade entre o trabalho de
análise e a interpretação histórica.
Observar os usos das imagens é uma tarefa difícil, no entanto, recolocá-las “no
conjunto do imaginário social,” pode nos ajudar a aferir suas implicações de poder e memória
(SCHMITT, 2007, p.45-6). Portanto, constitui nosso objetivo observar a função política das
obras de arte, sua dimensão e significado histórico, ou seja, seu papel ideológico e político.
Nesse sentido, a proposta de Schmitt dialoga com o trabalho de Peter Stewart quando
este examina as características da estatuária romana. Abandonando as categorizações
modernas de ‘escultura’, ‘retrato’, ‘arte’ e ‘culto’, o autor considera as estátuas como uma
única categoria e analisa suas funções básicas e importância social. Isto é, avalia as estátuas
“como objetos de culto, como sinais de interação social entre pessoas ou entre pessoas e
deuses, como ferramentas para a autorrepresentação ou exposições de status cultural e
prestígio, como propaganda política” (STEWART, 2003, p.7-10).
Podemos dizer que o período contemplado na pesquisa se caracteriza pelas mudanças
culturais. E as transformações foram condições básicas para a transmissão da vitória para
grande parte da sociedade romana: geograficamente por todo o império e, socialmente, em
várias esferas da vida. O “esplendor, a memória e a ideologia foram formas de
monumentalização conceitual, e como tal, fixavam a glória da vitória e do poder podendo se
espalhar material e idealmente” (HÖLSCHER, 2006, p.44). Em Roma, a colocação de
estátuas em lugares públicos era cuidadosamente controlada. O rigor na autorização desses
17
elementos visuais, para nós, demonstra a influência e o poder do discurso imagético visual na
política.
No caso específico desta pesquisa, propomos experimentar as formas de legitimação
do poder político de caráter pessoal, construído pelos romanos de acordo com os vetores
fundamentais de identificação dos imperatores. A partir das interações culturais entre Roma e
as sociedades helenísticas,7 relacionamos a apropriação e releitura pelos romanos do
paradigma do Alexandre o Grande que convergiram na ideologia e no sistema de
representação imagética do governante romano.
A arte, elemento da cultura política, evidencia os usos da linguagem visual como um
dos fatores de legitimação de poder político e sustentação de estruturas imperiais. Desta
forma, o presente trabalho integra-se ao campo de experimentação de pesquisa coletiva
orientado pela Prof. Drª Norma Musco Mendes, intitulado “Império: teoria e prática
imperialista romana”, cujo objetivo principal é a construção de hipóteses de trabalho e a
obtenção de argumentos explicativos que permitam observar comparativamente a diversidade,
a pluralidade e a singularidade dos processos de formação, expansão, legitimação e
desagregação dos impérios.
A partir das propostas de Marcel Detienne (2004) sobre a prática comparativa de
pesquisa, nosso projeto coletivo se preocupa com o estudo de Impérios como uma categoria
de análise histórica e nosso campo de experimentação se limita à experiência imperialista
romana. Considerando o caso romano, nossa pesquisa pretende contribuir para o diálogo
comparativo entre a equipe de pesquisadores acerca das formas de representação do poder
político como um veículo de comunicação e seu valor para legitimar a dominação em uma
sociedade imperial.
Entendemos que um império não sobrevive apenas através das forças de coerção e dos
atos de acumulação de riquezas. Sua permanência se dá através de práticas que envolvem a
dinâmica dos processos de formação, manutenção e reprodução dos impérios, o qual pode ser
definido pelo termo imperialismo. Neste contexto, a investigação está vinculada ao conjunto
de problemas relacionados à análise do poder das representações iconográficas produzidas
pelo conquistador, as quais podem ser entendidas como práticas imperialistas. Portanto,
7
Segundo A. Momigliano (1991, p.9-26), as sociedades helenísticas se caracterizam pelo encontro de diversas
culturas disseminadas na bacia mediterrânea e para além dela; e nossa pesquisa entende que Roma fez parte
desses contatos culturais. Interessa-nos particularmente, a partir do final do séc. II a.E.C, além da Magna Grécia,
os contatos com as regiões do Mediterrâneo oriental sob domínio romano que compreenderam a Grécia
continental, Reino Selêucida, Império Lágida, Ásia Menor, Reino do Ponto, Reino de Pérgamo e os importantes
centros artísticos de Alexandria, Antioquia, Atenas, Corinto, Damasco, Rhodes e Pella.
18
pretendemos demonstrar a conexão entre poder e cultura em uma sociedade imperial (SAID,
1995).
Nossa dissertação propõe, como uma das hipóteses de trabalho, entender como um
viés possível de análise, que o ethos social em relação à guerra e as interações culturais com
as novas áreas conquistadas acentuaram o caráter pessoal das relações de poder e reforçaram a
cultura política8 baseada no poder pessoal militar em Roma.
Tendo em vista que Alexandre o Grande já se apresentava como herói de caráter
divino no mundo Mediterrâneo, propomos que além de um paradigma ideológico, o
conquistador macedônio foi um paradigma estético de poder pessoal militar. Nesse sentido,
consideramos a importância das apropriações das obras de arte e dos modelos estilísticos
gregos e helenísticos que contribuíram para transformar a visualidade e a iconosfera de Roma.
Nossa hipótese principal é que o domínio romano do Mediterrâneo oriental requereu a
construção de uma nova linguagem visual modificando o sistema de comunicação política
produzindo um sistema semântico no Império Romano expresso pelo discurso imagético
textual e visual das formas artísticas e simbólicas. Esse processo é pensado a partir da
proposta de Tonio Hölscher (2004, p.127) onde as formas artísticas criaram um “sistema de
comunicação visual” e serviram como veículo de mensagens ideológicas e possibilitaram a
comunicação política através do império.
A partir da ideia de performance (BEACHAM,2005), propomos como última hipótese
de trabalho, que a apropriação e a releitura das formas simbólicas ligadas a Alexandre o
Grande e o estilo de arte helenística contribuíram para a esteticização da política atuando
como uma performance teatral para a comunicação política em prol da legitimação dos
imperatores servindo ao estabelecimento e sustentação das relações de dominação política.
Tendo em conta que a História apresenta problematizações e questões atuais, às vezes,
originadas em outras áreas do conhecimento, há a necessidade de estabelecer diálogos
interdisciplinares (PAIVA, 2002). A ampliação dos interesses para além dos eventos políticos
e econômicos, como também a história da cultura, do cotidiano e outros interesses, convidam
a expandir a gama de tipologias documentais (BURKE, 2004). De forma, os vestígios de
cultura material – as moedas, estátuas, epígrafes, monumentos revelam-se como uma
documentação suscetível de ser analisada e cotejada com a documentação textual. Estes
8
A partir do atual debate sobre a República romana, seus avanços teóricos e metodológicos, Karl Hölkeskamp
(2010) sugere que a cultura política romana foi uma espécie única, uma variante específica de uma classe
política e sublinha a importância do debate sobre as instituições, as hierarquias sociais, enfim, sobre a vida
política como um todo. Para tal, o autor analisa o sistema de valores romano, tais como a aristocracia senatorial;
concorrência na guerra e a política dentro da aristocracia; a linguagem simbólica dos rituais e cerimônias
públicas, monumentos, arquitetura e a topografia urbana.
19
materiais devem ser analisados em sua especificidade, através de um diálogo interdisciplinar
com a Arqueologia, a Numismática e a História da Arte.
Para melhor operacionalizar a documentação textual e imagética, estabelecemos como
recorte cronológico o período do século I antes da Era Comum (a.E.C.),9 mais
especificamente a partir da Primeira Guerra Mitridática e o comando de Sila (88) até o
assassinato de Julio César (44).
O corpus documental imagético visual privilegia a iconografia relacionada aos
ensaístas do poder pessoal que nos ajudam identificar apropriações e ressignificações dos
signa,10 tipos e/ ou modelos gregos e helenísticos, assim como as referências a Alexandre
Magno na comunicação política dos romanos. Além desses elementos, a escolha do nosso
recorte temporal advém da observação de que no final da República e começo do Império,
especialmente sob Augusto, um “novo vocabulário artístico foi desenvolvido para dar forma e
significado às novas ideologias” (POLLINI, 2012, p.3).
Com a finalidade de validar as hipóteses de trabalho, organizamos o texto desta
dissertação da seguinte forma:
O item inicial de nosso trabalho – Discutindo conceitos: ideologia, discurso, arte e
visualidade - relaciona a arte e as imagens ao conceito de ideologia e representação nos
discursos. Também apresentamos o corpus documental da pesquisa.
O capítulo 2 – Roma e as transformações culturais do século I a.E.C. - apresenta o
contexto da expansão imperial romana no Oriente a fim de analisarmos o ethos social baseado
na laus e na glória militar, bem como o elemento militar e suas relações com a religião e a
política no processo de construção do poder de caráter pessoal em Roma.
Em seguida, no capítulo 3 – Alexandre, o Grande e a imagem do poder pessoal tratamos do mundo helenístico e das formas de legitimação do poder monárquico de
Alexandre o Grande. Neste item traçamos algumas considerações sobre a historiografia do
helenismo, a relação entre a vitória militar, a constituição dos reinos helenísticos e a
construção dos signa de poder pessoal de Alexandre o Grande. Em seguida, discutimos o
paradigma de Alexandre na cultura romana e as interações culturais entre Roma e a arte
helenística, bem como as contribuições à linguagem visual de Roma.
9
A maior parte das datas aqui apresentadas são antes de Era Comum (a.E.C.), de modo que não faremos essa
indicação salvo alguma data em contrário.
10
Identificamos como signa de poder, os símbolos ligados às vitórias militares, às conquistas territoriais e às
alusões mitológicas. Assim como as referências ao próprio Alexandre o Grande, tal como seus feitos heroicos,
suas conquistas, a ligação com o divino, e principalmente aos retratos do macedônio que se configuraram como
um modelo de representação de poder em si.
20
No capítulo 4 – Poder e representação – a arte na comunicação política - refletimos
sobre as transformações na comunicação política dos romanos em contato com o Oriente e a
contribuição do helenismo para o Império. Em seguida, optamos por interpretar o valor da
heroicização, ascendência/ proteção divina e da divinização pessoal como vetores
fundamentais para a construção do sistema de representação dos imperatores no discurso
imagético textual e visual.
Por fim, nas considerações finais, sintetizamos nossos principais argumentos
interpretativos sobre os discursos de legitimação de poder pessoal e a relação dos fenômenos
simbólicos e as apropriações das formas estéticas na propaganda e na comunicação política.
21
Capítulo 1
Discutindo conceitos: ideologia, discurso, arte e visualidade
A propaganda e a persuasão estavam presentes na vida cotidiana e fizeram parte da
esfera política e social da Roma antiga. Pode-se observar também que elas promoveram ou
fortaleceram alguns dos princípios ideológicos, consagrados no discurso político, atuantes
desde o processo de expansão imperialista da república romana (SALINERO, 2011, p.11).
Logo, ao examinarmos o paradigma de Alexandre o Grande e as diferentes maneiras
como ele foi apropriado na propaganda e na comunicação política utilizada pelos ensaístas do
poder pessoal, nossa pesquisa busca analisar a construção do sistema de representação do
soberano em Roma como parte do processo de legitimação de poder pessoal militar.
Porém, a ideia de propaganda que mais se aproxima, em nosso entender, do fenômeno
no mundo antigo, é a de Jacques Ellul que define propaganda como “o simples, mas
importante ato de organizar, selecionar e divulgar informações, usando de persuasão, de
síntese e de imagens que estão na memória dos receptores das mensagens.” Além disso, as
informações que são passadas “dizem respeito a fatos significativos já ocorridos ou a
acontecerem, e atingem as pessoas de forma diferenciada” (ELLUL, 1957 apud
GONÇALVES, 2001, p.62).
Tendo em vista as interações culturais entre Roma e as sociedades helenísticas como
temática central, a pesquisa enfatiza as formas de comunicação política. Para tal, o arcabouço
teórico da investigação parte dos pressupostos da “Nova História Política” que ressalta o valor
da cultura política para o estudo das relações de poder em uma sociedade.
A proposta de Rémond (2003, p.35-6) reabilita a história política supracitada quando
afirma suas “relações com os outros domínios: liga-se por vínculos, por toda espécie de laços,
a todos os outros aspectos da vida coletiva. O político não constitui um setor separado, é uma
modalidade de prática social”. Assim sendo, entendemos o político como “o ponto para onde
conflui a maioria das atividades e que recapitula os outros componentes do conjunto social”.
Ou seja, o político “dirige em parte as outras atividades, define seu status, regulamenta seu
exercício” (RÉMOND, 2003, p.447).
Mas como definir o que é o político? Nessa tarefa, Rémond (2003, p.443-5) sugere um
sentido mais abstrato, seguindo o que ele tem de mais constante, ou seja, o poder. Para o
autor, “a política é a atividade que se relaciona com a conquista, o exercício, a prática do
22
poder”. Nos interessa a relação de poder “que constitui a totalidade dos indivíduos que
habitam um espaço delimitado por fronteiras que chamamos precisamente de políticas”. E
como todas as atividades e setores têm relação com o político, não podemos representá-lo
como um domínio isolado. Deste modo, o autor postula que a História política possibilita
observações mais globais em que o político “é um ponto de condensação” e não um fim em si
mesmo.
Contudo, é preciso ter em vista as especificidades da antiga Roma, de modo que
entendemos poder e participação na vida política da República (em nosso caso, no século I)
de acordo com Hölkeskamp (2010, p.1) ao propor que esta não envolvia somente as estruturas
constitucionais, mas também os valores, as tradições e as práticas que informavam a visão de
mundo das elites e das pessoas comuns da mesma maneira, ou seja, a cultura política como
um todo.
Ao pensarmos a política como um aspecto cultural das sociedades, entendemos que a
cultura política expressa uma identidade social que se caracteriza como um conjunto de
representações e de visões de mundo. Segundo Woodward (2000, p.3), “a construção das
identidades é, assim, tanto simbólica quanto social. Deste modo, existe uma associação entre
as identidades de uma pessoa e as coisas que uma pessoa usa”. A representação, como um
sistema de significação, enquanto forma de atribuição de sentido, se configura como elemento
importante na definição das identidades, pois que ela se expressa através de símbolos. De
modo que nas relações entre identidade e cultura política, entendemos que é “por meio da
representação que a identidade e a diferença se ligam a sistemas de poder” (WOODWARD,
2000, p.91).
Compreendemos poder como a capacidade ou possibilidade de agir, individualmente
ou em grupo, e cujo campo de atividade ou “esfera de poder”, é baseado em uma competência
específica. O poder político abrange uma ampla esfera e garante a realização das obrigações
pertinentes e inseridas ao sistema de organização coletiva, ou melhor, o poder político é
ancorado “por uma parte na institucionalização e na legitimação da autoridade e por outra na
possibilidade efetiva do recurso à ameaça e, como extrema medida, ao uso da violência.” (T.
PARSONS apud STOPPINO, M. 1998, p.933).
Pensando nos atributos do Estado, recorremos a Lucio Levi (1998, p.675) quando
definiu legitimidade como a existência “em uma parcela significativa da população, de um
grau de consenso capaz de assegurar a obediência sem a necessidade de recorrer ao uso da
força”. Por esta razão, “todo poder busca alcançar consenso, de maneira que seja reconhecido
23
como legítimo, transformando a obediência em adesão” e busca ser um elemento integrador
no âmbito das relações sociais.
Considerando que nossa pesquisa objetiva analisar os vetores de identificação e
legitimação do poder pessoal militar no império, sugerimos que esse processo não ocorreu
exclusivamente pela força, mas aliado a processos políticos, sociais e culturais. Implica dizer
que a construção do poder pessoal, envolvia diferentes grupos, e se valeu de mecanismos de
legitimação, de dispositivos “teóricos ou práticos” (SILVA, 2010, p.135) para dar suporte ao
seu poder político.
A partir da acepção de Eliot A. Cohen (2004, p.50) entendemos que “império é um
Estado multinacional ou multiétnico que estende sua influência por meio do controle formal e
informal sobre outros regimes”. Nirad Chaudhuri acrescenta que não há império sem um
conglomerado de nacionalidades de diferentes línguas, culturas e etnias, na qual a hegemonia
de uma sobressai sobre as outras. A heterogeneidade e a dominação são da própria essência
das relações imperiais. Um império é hierárquico, podendo haver nele “total ou parcial
liberdade de indivíduos ou grupos a subir de um nível para outro, mas isso não modifica a
estrutura escalonada e estratificada da organização" (apud COHEN, 2004, p.50).
Por outro lado, o antropólogo Thomas J. Barfield (2001, p.11-41) ao sintetizar as
condições para que um Estado se transforme em um império, afirma a necessidade da criação
de um sistema de valores compartilhados, formado com base nos padrões culturais do centro
imperial, como um meio de sobrepujar as diversidades locais. A presença imperial é marcada
e refletida em todas as variáveis, tais como: formas de organização do espaço, arte,
cosmologia, estilo arquitetônico, práticas sociais, rituais e sistemas de representação da
legitimidade imperial.
Concordamos com T. J. Barfield quanto à prática imperialista de se fazer presente nas
variadas formas de organização do espaço e etc. Conquanto, nossos estudos sobre o Império
Romano mostram que o compartilhamento dos valores culturais não buscava “sobrepujar as
diversidades locais”. Mas dos contatos entre as diversas culturas, ocorreram negociações,
apropriações e ressignificações que mostram caminhos de “mão dupla”.
Podemos dizer que uma das condições para a construção do “projeto imperial”
(WOOLF, 2001, p.311-322) foi a indispensável existência de sistemas voltados para o
controle socioeconômico, político, militar e ideológico a fim de impor uma “certa unidade
através do império”. De modo que definimos imperialismo como:
24
[...] ação de pensar, colonizar, controlar terras, que não são as suas, são
distantes, habitadas e pertencentes a outros povos. É a prática, a teoria e as
atitudes de um centro metropolitano dominante, governando um território
distante. Pode ser alcançado pela força, pela colaboração política, por
dependência econômica, social e cultural. É a criação de uma dinâmica
específica da dependência, que sobrevive em determinadas práticas
econômicas, políticas, sociais e ideológicas, ou seja, em uma esfera cultural
geral. Concluímos, pois, que o imperialismo é um processo da cultura
metropolitana, entendida como um conjunto de códigos de identificação,
referência e distinção geográfica, controle, autoridade, dependência,
vantagem e desvantagem, cuja função é a de sustentar, elaborar e consolidar
a prática imperial (SAID, 1995, p.38ss).
Nosso trabalho se apoia nas análises de Edward Said, no sentido de que as
experiências imperialistas produziram uma “estrutura de atitudes e referências da cultura
imperial” que possibilita confrontar as “formas culturais com a história dos impérios e com os
mecanismos de integração, existentes no contexto imperial”. Particularmente, nos interessa
quando o autor examina o discurso colonial enfatizando o poder das representações e das
linguagens coloniais, produzidas pelo conquistador e pelo conquistado como um legítimo
campo de pesquisa (SAID, 1995, p.38).
Nesse sentido, entendemos representação como processos nos quais indivíduos ou
grupos “usam sistemas de significação para produzir significado”, ou seja, os “objetos,
pessoas, eventos no mundo não têm em si mesmos qualquer significado fixo, final ou
verdadeiro” de modo que “somos nós, em sociedade, que atribuímos significado às coisas e ao
mundo que nos rodeia. Os significados, consequentemente, irão sempre mudar, de uma
cultura ou período para outro” (HALL, 1997, p.61).
Assumindo as representações como sistemas de significação que servem à
comunicação social (RODRIGUES, 1983, p.35), utilizamos então o conceito antropológico de
cultura semiótica proposto por Clifford Geertz (1989, p.15) ao defender que o homem é um
animal amarrado a uma teia de significados que ele mesmo teceu e está amarrado a ela,
transformando o comportamento humano em uma ação simbólica, onde os símbolos se
tornam inteligíveis no contexto da cultura. Simultaneamente estes símbolos são “tecidos” num
processo contínuo e dinâmico. Dessarte, a cultura não constitui um padrão estabelecido de
comportamento, mas sim como um sistema que organiza e controla o comportamento do
homem.
Portanto, nenhum homem está sozinho, ele sempre faz parte de um todo. O conjunto
de segmentos que compõem a cultura de um povo é formado pela religião, moralidade,
ciência, comércio, tecnologia, política, lazer, o direito e pelo próprio cotidiano. Tal conceito
25
nos permite identificar que a interação do público com a Arte está baseada em associações
constituídas num aprendizado (ao longo dos séculos) e da conexão com os símbolos sociais.
Daí a necessidade de que a análise sobre arte/ estética não seja apartada da vida social
(GEERTZ, 1997, p. 145).
1.1 Arte e ideologia
No mundo antigo, as esculturas estavam em todos os lugares, principalmente nos
espaços urbanos, pois gregos e romanos concederam à escultura posição central na cultura e
no repertório simbólico ao ocuparem lugar de destaque nos espaços públicos (BEARD e
HENDERSON, 2001, p.65). O mundo romano foi um mundo de cultura visual dado que as
imagens mostravam os assuntos do império em todos os seus modos de vida, econômica,
religiosa e social, ajudando a construir uma unidade simbólica entre as diversas pessoas que
integravam o mundo romano, enfocando o senso de hierarquia e prestígio individual
(ELSNER, 1998, p.12).
Jás Elsner, em seu livro Imperial Rome and Christian triumph (1998, p.2), afirma que
a dinâmica motivadora da “grande mudança cultural no final da antiguidade” já existia na
cultura romana. Para o autor, uma característica dos romanos era “redefinir o presente
reinventando livremente o passado” e mais, “uma das características culturais persistentes do
mundo romano foi a sua capacidade de se reinventar, preservando a retórica da continuidade”
e a arte, como comunicação, serviu a esse propósito.
Ainda há muito o que esclarecer sobre as funções das estátuas romanas. Todavia, de
acordo com Peter Stewart (2003, p.10), a maioria dos clássicos tinha, em diferentes níveis,
consciência da importância social das estátuas como “objetos de culto, como sinais de
interação social entre pessoas ou entre pessoas e deuses, como ferramentas para a
autorrepresentação ou exposições de status cultural e como propaganda política”.
Essa percepção ajuda nossas análises dos discursos de legitimação na construção do
poder pessoal em Roma no século I, pois entendemos que as representações dos imperatores,
nesse período, se apropriaram de elementos ideológicos ligados ao paradigma de Alexandre o
Grande, bem como de modelos iconográficos gregos, configurando a nosso ver, mudanças na
linguagem discursiva imagética textual e visual em Roma.
Nessa perspectiva, a pesquisa se baseia no conceito de ideologia proposto pelo
sociólogo J. B. Thompson. Para o autor, ideologia é como um “sistema de crenças, ou formas
26
e práticas simbólicas”, e importa analisar de que modo às formas simbólicas se entrecruzam
com as relações de poder. Ou seja, cabe ao pesquisador observar “como o sentido é
mobilizado, no mundo social, e serve, por isso, para reforçar pessoas e grupos que ocupam
posições de poder”. Logo, ao estudarmos ideologia a partir desse conceito, examinaremos “as
maneiras como o sentido serve para estabelecer e sustentar as relações de dominação” (2002,
p.78).11
Para Thompson (2002, p.78), só poderemos compreender os fenômenos simbólicos
como ideológicos quando situarmos esses fenômenos nos contextos sócio-históricos. De
acordo com este autor, poderemos descobrir se os fenômenos simbólicos estabeleceram e
sustentaram relações de dominação “somente ao examinar as maneiras como as formas
simbólicas são empregadas, transmitidas e compreendidas por pessoas situadas em contextos
sociais estruturados”.
Todavia, utilizamos esse conceito de ideologia sem a ideia negativa da concepção
marxista de dominação de classe. Ao pensarmos ideologia, nos interessa as maneiras como o
sentido, mobilizado pelas formas simbólicas, serve para estabelecer e sustentar as relações de
domínio que podem ser entre homens e mulheres, entre grupos étnicos ou entre grupos da
elite romana (no nosso caso).
Jean-Claude Schmitt (2007, p.11-12), dialoga com as ideias de Thompson, quando
afirma que as imagens exprimem e comunicam sentidos, pois “estão carregadas de valores
simbólicos, cumprem funções religiosas, políticas ou ideológicas, prestam-se a usos
pedagógicos, litúrgicos e mesmo mágicos”. Logo, abordamos a imagem como:
[...] a representação visível de alguma coisa ou de um ser real ou imaginário:
uma cidade, um homem, um anjo, Deus, etc. Os suportes dessas imagens são
os mais variados: fotografia, pintura, escultura, tela de televisor. Mas o
termo “imagem” concerne também ao domínio do imaterial, e mais
precisamente da imaginação. Não é necessário ver a representação material
de uma cidade para imaginá-la.
No que concerne às formas simbólicas e sua relação com o contexto social, J. Schmitt
lembra que o objeto artístico, de uma maneira geral, está na articulação de diversas formas
simbólicas que regem o funcionamento da sociedade de uma dada época, advertindo quanto a
11
Karl Mannheim foi o primeiro pensador a formular uma concepção de ideologia procurando relacionar ideias,
doutrinas filosóficas e teóricas com a posição de classe e relacioná-las às condições sócio-históricas. Esse
método é descrito como “a sociologia do conhecimento” e tem como objetivo não a denúncia ou a crítica do
pensamento do adversário. Seu objetivo “é analisar todos os fatores sociais que influenciam o pensamento,
incluindo o próprio, e com isso garantir aos homens modernos uma nova visão de todo o processo histórico”
(MANNHEIM, 1998 apud THOMPSON, 2002, p.68).
27
problemas e especificidades da arte, bem como das diferentes formas simbólicas que devem
ser observadas pelo historiador das imagens. Segundo Schmitt (2007, p.32-4), “a análise da
imagem deve assim levar em conta, tanto quanto os motivos iconográficos, as relações que
constituem sua estrutura e caracterizam os modos de figuração próprios de certa cultura e de
certa época”.
Ao examinarmos os processos políticos no período final da República relacionados à
legitimação de poder pessoal militar buscamos nas obras artísticas os símbolos que
evidenciam a construção do sistema de representação dos imperatores, que a nosso ver,
resultaram das interações culturais entre Roma e o mundo helenístico. Ao examinarmos os
mecanismos de formação e manutenção do Império Romano - como uma unidade política
integrada sob uma lógica cultural - propomos uma abordagem interdisciplinar dialogando
principalmente com a Arqueologia, Numismática e com a História da Arte.
Para tal, seguimos a ideia de Richard Bucaille e Jean-Marie Pesez (1989) sobre como
os vestígios de cultura material nos trazem o corriqueiro e o cotidiano dentro da sociedade, e
por esses motivos, configura-se o estudo da coletividade, dos hábitos, valores e tradições da
sociedade em questão. Ao estudarmos os objetos artísticos como vestígios de cultura, e como
tal uma tipologia documental passível de análise, concordamos com Ulpiano Bezerra de
Meneses (1983, p.112) quando define cultura material como:
[...] o segmento do meio físico que é socialmente apropriado pelo homem.
Por apropriação social convém pressupor que o homem intervém, modela, dá
forma a elementos do meio físico, segundo propósitos e normas culturais.
Essa ação, portanto, não é aleatória, casual, individual, mas se alinha
conforme padrões entre os quais se incluem os objetivos e projetos. Assim, o
conceito pode tanto abranger artefatos, estruturas, modificações da
paisagem, [...] ou, ainda, os seus arranjos espaciais (um desfile militar, uma
cerimônia litúrgica).
Presumindo que as sociedades produzem imagens textuais e icônicas dotadas de
símbolos que representam os que nela vivem (COULET, 1996 apud MENDES, 2001, p.39),
entendemos as imagens, encontradas nos mais variados suportes, como textos e por isso,
suscetíveis ao exame. Essa orientação amplia as possibilidades de análise do historiador
quando este identifica as diferentes naturezas dos discursos. Nossa pesquisa considera os
textos e as imagens como discursos, e como tal, produtos culturais inseridos nos processos de
comunição.
Norman Fairclough reconhece o discurso (falado, escrito ou visto) como um tipo de
prática social e por isso “formado por relações de poder e investido de ideologias”. A partir
28
desta definição, assumimos o discurso como uma prática tanto de representação quanto de
significação do mundo, constituindo e ajudando a construir as identidades, as relações sociais
e os sistemas de conhecimento e crenças. O discurso como ação política estabelece, mantém e
transforma as relações de poder. Ou seja, “o discurso como prática ideológica constitui,
naturaliza, mantém e transforma os significados do mundo de posições diversas nas relações
de poder” (FAIRCLOUGH, 1992, p.90-4).
Defendemos então o discurso como uma atividade geradora de sentido, isto é, somente
no contexto histórico-cultural podemos pesquisar os processos de produção de sentido. Nesta
perspectiva, entendemos a documentação como produto cultural, como “formas empíricas do
uso da linguagem oral ou escrita, e/ou de outros sistemas semióticos no interior de práticas
sociais contextualizadas histórica e socialmente” (PINTO, 1999, p.7-18). Desta forma, ao
propormos uma análise dos fenômenos simbólicos, recorremos à documentação, textual e
iconográfica, uma vez que se configuram como veículos de mensagens - com o objetivo de
analisar algumas características do discurso de poder político produzido pelos ensaístas do
poder pessoal.
Nesse processo, interessam-nos sobremaneira as características estilísticas dos objetos
artísticos provenientes das cidades gregas e helenísticas. Levadas para Roma como butim, ou
através do comércio, elas inspiraram os romanos no desenvolvimento de seu estilo artístico.
Segundo Beard e Henderson (2001, p.5), a diversificada cultura visual do Império Romano e
o “ethos dominante da imitação criativa” ensejaram que trabalhos de arte fossem “copiados e
multiplicados, adaptados e parodiados, ao longo dos séculos” de forma que a arte grega foi
mediada por Roma.
Concordamos com os autores acima, visto que o acesso que temos hoje às obras de
arte gregas se constituiu pela mediação dos romanos e que o modo de reprodução dessas obras
impediu um modelo único. Contudo, entendemos a “imitação criativa” como a apropriação dos
modelos e das formas artísticas relidas e ressignificadas nos processos de interação cultural.
No que concerne à linguagem visual, destacamos o trabalho de Tonio Hölscher (2004,
p.1-2) que examina a linguagem das imagens artísticas no império como um fator essencial da
cultura romana. O autor entende que explorar as formas estilísticas pode ser um meio de
analisarmos as identidades culturais, e acrescenta, “não apenas no caso de indivíduos, mas
especialmente de grupos maiores, incluindo culturas e épocas inteiras”.
Ademais, Hölscher (2004, p.11-2) pensa a arte romana como um “sistema semântico”
onde as formas artísticas estão alinhadas com a linguagem. A noção de “sistema semântico”
permite ao autor estender a metáfora linguística, e assim apresentar a arte romana como uma
29
cultura visual das ideias, na qual as formas e os tipos não seriam apenas associados à
comunicação de significados, eles também adquiriam significado hierárquico dependente da
hierarquia cultural de valores. Nessa linguagem romana das imagens, Hölscher identifica em
sua estrutura primária, empréstimos tipológicos encontrados nas obras gregas clássicas e
helenísticas.12
Esse “sistema semântico” garantiria uma comunicação eficiente com a população
multicultural do império e sua eficácia repousaria na repetição constante das formas, criando,
assim, um “sistema de comunicação visual.” Tal sistema utilizava formas artísticas parecidas
e inteligíveis aos habitantes das diferentes regiões. Observar a padronização da linguagem
visual, ou seja, a crescente padronização da mensagem (num processo inconsciente) pode nos
dar uma boa medida da gradual formação da identidade cultural dos habitantes do Império
Romano (HÖLSCHER, 2004, p.11-12 e127). Consideramos que o processo de expansão
territorial, as interações culturais entre Roma e as sociedades helenísticas contribuíram com
novas formas e modelos artísticos para a comunicação política visual dos romanos e também
na formação do sistema de representação dos imperatores.
Nesse sentido, também consideramos que, através da visualidade, podemos superar a
percepção da imagem como uma ilustração do trabalho, uma leitura iconográfica, ou ainda,
como documento visual que ratifica nossas hipóteses. Para Ulpiano B. Meneses (2003, p.6,
28-30), dentro do campo da cultura, estudar a construção visual do social, seria uma linha de
condução coerente, a visualidade como um campo possível de análise, como uma dimensão
importante da vida da comunidade. Significa entender a visualidade como ação recíproca
entre o objeto e a sociedade. Assim, podemos identificar os significados das imagens em seu
contexto sócio-histórico e relacioná-los ao processo de construção do poder pessoal militar
como parte de um novo sistema de comunicação e propaganda política em Roma.
Ao analisarmos a dimensão visual da sociedade romana, perguntamos não somente o
que a arte expressa, mas também o que ela provoca? Segundo William J. T. Mitchell, a
cultura visual, composta pelas imagens, é caracterizada como o “estudo da percepção e da
representação visual, em particular a construção social do visível e – igualmente importante –
a construção visual que deriva do social”13 e, por conseguinte, “devem ser tratadas como
componentes do jogo social em causa” (MENESES, 2011, p.260), portanto, devemos procurar
12
O "sistema semântico" proposto por Hölscher parte da análise dos objetos artísticos e de como as formas
típicas dos estilos da arte grega clássica e barroca (que eu chamo helenística) foram adotadas como tipos com
significados específicos e manipuladas de novas maneiras na arte romana. ‘Tipologia' é entendida como uma
ampla gama de esquemas e padrões básicos de representação (estilos) desenvolvidos na arte grega que foram
apropriados e explorados com “empolgante flexibilidade” pelos romanos (2004, p.1-21).
13
MITCHELL, 2009, p.339 apud MENESES, 2011, p.248.
30
caminhos para compreendermos a arte e sua faculdade de “provocar efeitos, produzir e
sustentar formas de sociabilidade, tornar empíricas as propostas de organização e atuação do
poder, etc.” (MENESES, 2003, p.15).
Entendemos que a investigação relacionada à visualidade seja de difícil execução,
ainda mais em estudos relativos à antiguidade. No entanto, acreditamos que ao analisarmos o
objeto visual em seu contexto histórico, encontraremos respostas para os problemas
concernentes à construção da iconosfera, ou seja, “o conjunto de imagens-guia de um grupo
social ou de uma sociedade num dado momento e com a qual ela interage.” (MENESES,
2005, p.1).
Ulpiano B. Meneses (2003, p.30-1) propõe estratégias destinadas a prover as pesquisas
e de forma didática, sugere “três focos” possíveis para investigação, sendo eles: o visual – a
iconosfera e os sistemas de comunicação visual, os ambientes visuais; o visível – relacionado
à esfera do poder, aos sistemas de controle, aos objetos de observação; e por fim, a visão –
que seriam os instrumentos, técnicas de observação e os papéis do observador.
1.2 Metodologia e Documentação
Martine Joly (2007, p.50) afirma que “não existe um método absoluto para análise,
mas opções a serem feitas ou inventadas em função dos objetivos” e tendo em vista nossas
propostas teóricas, adotamos então a combinação de metodologias que relacionam análise
iconográfica e simbólica aplicável à documentação selecionada pela pesquisa.
Nesse sentido, o trabalho busca relacionar alguns discursos imagéticos, textuais e
visuais, que nos possibilitem verificar o processo de construção de uma linguagem visual na
comunicação política no século I relacionadas aos chefes militares Sila, Pompeu e César. De
forma a identificar as opções tipológicas e formais contidas na documentação iconográfica,
nosso corpus de documentação de cultura material é composto por objetos escultóricos
(esculturas, retratos, relevos e moedas).
Nossa metodologia de análise parte da linha teleológica para estabelecer o método
idiográfico proposto por Michel Baxandall (2006, p.43-4 e 70). A idiografia tem como base a
identificação e a compreensão das singularidades, buscando elementos diferenciadores, e não
fórmulas generalizadoras. Implica dizer, a partir da obra procuramos inferir as ações e
intenções humanas, observar o objeto e o contexto de forma a estabelecer a relação entre o
31
objeto e as circunstâncias de produção identificando as possíveis intenções do agente
envolvido.
Ao analisar o processo de legitimação de poder unipersonal de Alexandre o Grande,
identificamos a valorização de três aspectos presentes nas culturas orientais e helênica que
contribuíram para legitimação política do seu governo, tais como: a heroicização, a
ascendência divina e a divinização pessoal. Em Roma, esses elementos de legitimação, aqui
entendidos como os vetores ideológicos de legitimação de poder, foram apropriados, relidos,
interpretados e utilizados para a construção do sistema de representação dos imperatores
cujos principais vetores de identificação foram os seguintes:
1) heroicização - vitória e glória militar e/ou alegorias de conquista;
2) ascendência divina - mitificação familiar e/ou mitologia;
3) divinização pessoal - favorecimentos dos deuses e/ou atributos de divinização;
4) interação dos vetores ideológicos acima descritos ao exemplo de Alexandre o Grande.
A documentação de cultura material e textual foi catalogada e descrita com as
seguintes informações: suporte material, datação, local de origem, imagem e legenda e
transcrição (se houver). Após a escolha das imagens, os dados extraídos da análise da
documentação foram classificados, cotejados e interpretados.
Após estas considerações acerca do nosso instrumental teórico-metodológicas,
apresentamos a seguir o corpus documental que faz parte desta pesquisa.
1.2.1 Documentação textual
a) Verrinas, livro IV De Signis de Cícero
Filósofo e orador romano, Marco Túlio Cícero (106-43) filho de um rico equestre
originário de Arpino, na Itália, ganhou destaque por sua oratória e seu sucesso nos tribunais
criminais onde atuava geralmente na defesa. Apesar de sua família nunca ter alcançado o
Senado romano, ele garantiu sua eleição para os cargos políticos mais importantes. Os
discursos de Cícero são modelos de eloquência e persuasão, e juntamente com suas cartas, são
uma das principais fontes para a história da República tardia. Seu estilo elevou a língua latina
a uma elegância e beleza que nunca foi superada.
32
As Verrinas são os discursos que Cícero proferidos no ano de 69 por ocasião do
processo iniciado em Roma contra Gaius Verres, propretor da Sicília, por abusos cometidos
durante seu mandato na província da Sicília. Neste discurso, Cícero enumera as ações do
magistrado como questor, proquestor, como legado e como pretor urbano acusando Gaius
Verres de abusos em seu governo na província de 73 a 71. Quanto aos motivos concretos do
processo, os delitos na Sicília, o orador editou quatro livros, sobre a jurisdição, sobre o trigo,
sobre as estátuas e sobre os suplícios.
Logo após o mandato, grande parte dos sicilianos virou-se para Cícero, que fora
questor nessa região cinco anos antes, para que este acusasse em seu nome o ex-governador
de um crime que se assemelha no direito moderno ao crime de concussão, mas que na época
romana, tinha limites mais amplos.
Em 71, Pompeu promete reformar e restaurar os tribunais penais e o caso de Verres foi
um escândalo. Cícero então com 36 anos, no início de sua carreira política, viu nesse episódio
a oportunidade de apoiar a política de Pompeu em favor da ordem equestre, sem quebrar a
ligação com a nobilitas. Falando dos defeitos atribuídos aos senadores como classe e para
salvar o prestígio do grupo, segue a linha de que o senado deve condenar Verres e assim
apagar as más impressões.
Neste texto, Cícero fala do roubo de objetos artísticos efetuados por Verres enquanto
pretor na Sicília. Inicialmente, sobre o roubo das obras artísticas de Praxisteles, Míron e
Policleto pertencentes a Caio Heyo, assim como de outros sicilianos que tiveram seus objetos
saqueados pelo ex-governador.
Particularmente, nos interessa o Livro IV - De Signis, a possibilidade de obter indícios
quanto o papel e valor dos objetos artísticos provenientes, tanto da península, quanto das
cidades do oriente helenístico para a sociedade romana. Também nos possibilita ter
informações a respeito da importância desses objetos nas comunidades de onde elas
provinham, bem como entrever, de certo modo, a visualidade da cidade de Roma a partir dos
relatos do orador contidos no texto.
b) De Imperio Pompeio de Cícero
O De Imperio Pompeio é um discurso de Cícero em favor do comando de Pompeu e
com essa preleção o orador se associou publicamente ao comandante militar, o que o ajudou a
garantir apoio político para sua propria eleição ao senado no ano de 64. Na longa guerra
contra o rei Mitrídates VI do Ponto, a Lei Gabínia (67) conferiu a Cneu Pompeu poderes
33
militares ilimitados sobre os mares para combater a ação dos piratas. Esta lei foi
complementada pela Lei Manília (66) que estendeu seu comando ao continente para deter
Mitrídates.
Cabe ressaltar que esse documento é importante para a compreensão do
funcionamento da política em Roma e do governo no leste do Mediterrâneo. Particularmente,
esse documento importa à problemática de nossa pesquisa, pois evidencia a importância do
discurso político para a análise da construção do poder pessoal, uma vez que o texto de Cícero
engrandece as qualidades de Pompeu, mas não nega o caráter monárquico dos poderes
concedidos a ele.
c) Comentários da Guerra Civil - Bellum Civili de Júlio César
Caio Júlio César (100 - 44), patrício, líder militar e político romano, desempenhou um
papel importante no período final da República romana e notabilizou-se pelas conquistas
militares. Como literato, César destacou-se ao narrar os próprios feitos e suas obras que
chegaram aos nossos dias colocam-no entre os grandes escritores da língua latina. Seus relatos
sobre a guerra na Gália e a posterior guerra civil, evidenciaram sua inteligência e capacidade
literária e transformaram essas obras em clássicos da literatura universal.
Nos livros De Bellum Civili, César conta sua versão das guerras civis em Roma, o
contexto que antecedeu a travessia do Rio Rubicão, a Batalha de Farsália e a morte de
Pompeu. A narrativa, aparentemente simples, serviu como manobra política e também como
propaganda das suas ações militares em Roma. Esse texto serve às nossas hipóteses de
trabalho para demonstrar a interiorização do paradigma de Alexandre o Grande em César.
d) Vidas paralelas de Plutarco
Plutarco (c. 45–120 d.E.C.), pertenceu a uma família importante, nasceu em Queroneia
na Beócia, perto de Delfos. Ocupou várias magistraturas, sendo favorecido pelos imperadores
Trajano e Adriano. Sua formação intelectual foi em Atenas, onde se consagrou como biógrafo
e filósofo. Proveniente de uma elite romanizada revelou-se inserido na cultura imperial.
Foi um filósofo platônico, autor de uma coleção denominada "Moralia" ou "Ensaios
de Ética", no formato de diálogo, muitos deles dedicados a temas filosóficos, mas nem todos
relacionados à ética. Plutarco é mais conhecido como autor de "Vidas paralelas" no qual
associou pares de estadistas gregos e líderes militares romanos de acordo com a representação
34
histórica, de caráter ou por determinada virtude. Nesse projeto, conservou sua alteridade/
resistência ao optar pela composição em grego ao invés do latim, “o qual representa uma fase
distinta no processo contínuo de negociação cultural que tornou possível a coexistência entre
os gregos e romanos” (MENDES, 1999, p.315).
Dos 50 pares que compunham a obra, restaram somente 23. Porém, mais
especificamente, nossa pesquisa se aterá a “Vida de Alexandre”, “Vida de Sila”, “Vida de
Pompeu” e “Vida de Júlio César”. A escolha dessa documentação, cronologicamente posterior
aos eventos em análise, deve-se ao fato dela demonstrar a importância dos heróis gregos e
romanos na sociedade romana como modelos representacionais e permite pensar em como as
representações discursivas sobre Sila, Pompeu e César, ainda eram importantes mais de um
século dos eventos ocorridos.
Por outro lado, podemos pensar que ao elaborar esses textos, Plutarco mostra a
preocupação em produzir um discurso de comparação entre romanos e gregos, ou seja, de
valorização da sociedade e a cultura grega sob o domínio de Roma. Além disso, ao ler o texto
(em seu aspecto discursivo imagético) tentamos uma nova forma de analisar a documentação
(FAVERSANI, 2013b, p.149).
e) A vida dos doze Césares - de Suetônio.
Por fim, Divus Iulius, também uma obra posterior, escrita por Caius Suetonius
Tranquillus, nascido por volta dos anos 69-70 d.E.C., e morto entre os anos 140-150 d.E.C.
Advogado e estudioso de retórica foi um erudito professor de gramática. Protegido de Plínio,
por recomendação deste, obteve do imperador Trajano o ius trium liberor um e o tribunato
militar. À época de Adriano desempenhou o cargo de magister epistularum (secretário
particular), mas tendo entrado na intimidade da Corte, logo caiu em desgraça por ter atraído as
atenções da imperatriz Sabina. Segundo Sobral (2007, p.9), muitas críticas ao biógrafo advêm
da sua origem humilde e são abalizadas por Plínio ao aludir sua condição financeira. Contudo,
a convivência e a influência de Plínio na sua produção intelectual demonstra seu convívio
com a sociedade aristocrática no trabalho do biógrafo.
Suetônio teria elaborado as “Vidas dos Doze Césares” a partir das fontes do meio
palaciano e dali retirado o conjunto de acontecimentos do Império. As informações
disponíveis sobre a vida e obra de Suetônio não nos permite saber com exatidão o papel
político do autor no panorama do governo imperial. Porém, sua posição como secretário ab
epistulis latinis permitia o acesso a uma volumosa fonte documental, e ao ser responsável pela
35
correspondência latina do império, possibilitou buscar informações utilizadas nas biografias
(SOBRAL, 2007, p.10).
De sua produção, apenas uma parte chegou até nós. Sua obra “De Vita Caesarum”
conservou-se quase que por inteiro, e mesmo faltando o começo da vida de Caio Júlio César,
esta obra nos ajuda a entrever a imagem e importância de sua vida e das ações políticas do
período analisado em nossa pesquisa, sem esquecer que as descrições de Suetônio foram
representações discursivas, fruto do seu próprio tempo político. Nesse sentido, podemos
entrever na Vida de César, a “gênese do Principado” ao mostrá-lo como um predestinado, um
homem de ação, que trabalha obstinadamente na realização de seu destino; revelando um
homem excepcional, com traços tirânicos, mas com virtudes admiráveis (BRANDÃO, 2013,
p.67-68). Esse texto é importante, pois ele permite vislumbrarmos, em algumas passagens,
importantes imagens representacionais de César que nos permite imaginar serem ecos do
contexto histórico do ditador.
1.2.2 Documentação de cultura material
A documentação de cultura material é composta por objetos artísticos: esculturas,
bustos, relevos, mosaico e moedas ligadas a Sila, Pompeu e Júlio César e nosso objetivo é
relacionar as imagens com os eventos políticos e as vitórias militares como uma das formas de
propaganda e comunicação em Roma.
Em relação às moedas, nossa análise é iconográfica e não numismática, contudo, sem
negligenciar as informações que esta tipologia documental oferece. Segundo Wilfried Koch
(2001, p.141-145), a “escultura é a arte de plasmar corpos desde os primórdios da história”, e
lembramos que as moedas, antes de tudo, são primeiro esculpidas ou modeladas para que se
faça um molde para a fundição. E partir disso, tudo que se diz da escultura feita com metal e,
portanto, metal fundido, pode ser aplicado às moedas.
Para além do aspecto técnico e iconográfico, ressaltamos que a documentação
numismática tem uma grande importância nos estudos históricos, pois elas apresentam
evidências arquitetônicas, assim como diferentes projetos políticos, tais como a romanidade,
história familiar, história cívica de Roma e do império (MEADOWS, 2009, p.56) e a análise
dessa documentação possibilita identificar diferentes níveis históricos. A referida
documentação é constituída de legendas e fórmulas abreviadas da titulatura e representações
pictóricas que possibilitam ao historiador um escopo interpretativo ampliado.
36
Nosso trabalho buscou na bibliografia as informações imagéticas e interpretação de
diversos autores, mas tem como base de referência numismática o catálogo especializado no
período republicano em Roma, o Roman Republican Coinage (RRC) de M. H. Crawford de
198314, editado em dois volumes pela Cambridge University Press, o catálogo de moedas do
British Museum Coins15 e o catálogo Retratos e Propaganda: faces de Roma editado pelo
Banco Central do Brasil. A documentação numismática relativa a Alexandre o Grande
encontrada na historiografia do helenismo foi aferida a partir das informações do catálogo de
Martin Jessop Price The Coinage in the name of Alexander the Great and Philip Arrhidaeue
publicado pela The British Museum Swiss Numismatic Society em 1991.
De forma a obter boas imagens e otimizar a análise iconográfica, recorremos a fotos
de grande definição disponibilizadas em vários catálogos virtuais na Internet16 que são
confrontadas com as informações do Roman Republican Coinage (RRC) e com o catálogo de
Martin Price. Do mesmo modo, as reconstituições e as obras de arte citadas neste trabalho,
quando necessário, foram também apresentadas em imagens dos sites especializados.17
14
As moedas aqui analisadas estão indicadas segundo o catálogo Roman Republican Coinage (RRC).
Roman Republican Coins in the British Museum E Ghey, I Leins (eds)
https://www.britishmuseum.org/research/publications/online_research_catalogues/rrc/roman_republican_coins.aspx
16
Utilizamos as imagens disponíveis em sites reconhecidos, como:
< http://www.coinproject.com/>, < http://www.forumancientcoins.com/>, < http://www.wildwinds.com/>,
<http://www.tesorillo.com/ >, <http://davy.potdevin.free.fr/Site/home.html>,
< http://www.forumancientcoins.com/catalog/roman-and-greek-coins.asp?vpar=553>,
< http://www.museumsurplus.com/AlexanderCoinsPAGE1.htm> e
< http://www.coinsoftime.com/Articles/Coins_of_Alexander_the_Great.html>
17
As imagens das obras de arte foram indicadas em numeração sequencial (fig. nº) e as imagens das moedas
foram também indicadas em numeração sequencial (moeda nº), bem como os mapas (mapa nº) ao longo do texto.
15
37
Capítulo 2
Roma e as transformações políticas do século I
Há muito que o imperialismo antigo, mais especificamente, o imperialismo romano é
foco da atenção de muitos de pesquisadores.18 Um número considerável de estudos têm
investigado as causas que levaram a mudanças no sistema de governo republicano e a
instauração do sistema de governo do Principado, modelo romano de poder pessoal.
A formação do Império Romano foi um longo processo que durou séculos e podemos
identificá-lo como uma unidade política de grande complexidade. Do Lácio ao Império, Roma
foi “uma das mais vastas, mais coerentes construções política e militares de todos os tempos”
(DUBY, 1989, p.11). Durante a expansão territorial no século II e todo século I, devido à
conquista das regiões orientais, das Gálias, complementada pela conquista das margens do
Mediterrâneo, aumentaram enormemente o fluxo de riquezas, escravos, terras, alterando
alguns aspectos econômicos, políticos e sociais da República.
Ao se tornar uma cosmopolis, Roma rompeu as bases de uma cidade-estado clássica,
o que trouxe novos desafios e situações que estavam em desacordo com a forma tradicional
do governo romano. A transformação de Roma em um império mundial não comportou mais
a forma de governo baseada em uma aristocracia dominada por conflitos políticos que
agravavam os problemas sociais, principalmente em questões relativas ao campesinato e de
administração das províncias.
O século I foi marcado por diversas transformações, dentre elas: dificuldade das
instituições garantirem os interesses da República ante os interesses privados; disputa de
poder no interior da elite romana devido às rivalidades políticas; criação de alianças entre as
lideranças políticas; violência na vida pública; ilegalidades constitucionais; necessidade de
um exército profissional e permanente (MENDES, 2006, p.22).
A instauração do Principado, sistema de governo caracterizado pela concentração de
poder nas mãos de um único governante, foi iniciado por Otaviano em 31, estabilizando o
império. Porém, antes de Otávio Augusto se tornar princeps em Roma, houve outros ensaios
de poder pessoal, sustentado pelo poder do exército, mas não só. A construção do poder
18
Destacamos os trabalhos de HOMO, 1927; FOWLER, 1931; SYME, 1939; WIRSZUBSKI, 1968;
CARCOPINO, 1974; BRUNT, 1982; ALFÖLDY, 1989; GRUEN, 1994; SHOTTER, 1994; WALLACEHADRILL, 1997, FLOWER, 2010.
38
pessoal militar no período final da República se utilizou também de elementos ideológicos e
simbólicos que serviram para legitimar a forma de dominação política de caráter autocrático.
Ao tratar do Principado augustano, Karl Galinsky (2005, p.8) postula ter sido este um
momento de numerosas transformações e experimentações na sociedade e na política romana.
Para o autor, não houve uma ideologia rígidamente elaborada, mas sim ideias e valores que
foram compartilhados, articulados e debatidos entre Augusto e seus colaboradores,
principalmente no âmbito da política e da religião, que se tornaram legado dessa época. Um
exemplo bem sucedido dessas experiências, segundo o Galinsky, foi o forum de Augusto,
onde as referências às origens míticas da gens Iulia tornaram-se a maior ideologia de seu
governo, e em nosso entendimento, uma das formas de legitimação do governo do princeps.
Diante de tal colocação, consideramos válido argumentar que as transformações e
experimentações relacionadas aos chefes militares no contexto das guerras civis do século I
relacionam-se às diferentes formas de propaganda e comunicação política utilizadas pelos
ensaístas do poder pessoal. Nossa pesquisa busca analisar a construção de um sistema de
representação dos imperatores em Roma como parte do processo de legitimação de poder
pessoal militar, e que resultaram em uma nova forma de comunicação política visual
observável através da iconografia e das obras de arte.
2.1 A conjuntura sociopolítica e o sistema republicano de governo no século I
A res publica, visualmente expressa pela sigla SPQR (Senatus Populusque Romanus –
o Senado e o Povo Romano), sempre presente nas insígnias militares e nas construções
públicas, representava a atuação conjunta de um Conselho Consultivo (o Senado), das
Assembleias e dos Magistrados. De acordo com Cícero (De Rep. 25), as instituições eram
centradas no domínio da lei emanada pelo princípio da soberania do povo, o qual concedia às
leis um “caráter divino e afastava o domínio do homem sobre o homem”. Para o exercício do
poder era preciso ter dignidade (dignitas) e autoridade (auctoritas),19 qualificações que
norteavam a vida pública e privada do cidadão romano. Entretanto, o sistema de governo era
efetivamente controlado pela aristocracia, pois que esta controlava o Senado e em
consequência, “a política e a vida pública” (MENDES, 2009, p.94-5).
19
Auctoritas (autoridade e prestígio) mais do que um poder legal, é antes um poder moral. O termo é usado em
relação a grupos ou pessoas que comandam. Neste sentido, os textos jurídicos e literários falam de auctoritas do
povo (populi), do imperador (principis), dos magistrados, juízes e jurisconsultos, de um pai ou pais. Ver A.
Berger, 1953.
39
No desenvolvimento das práticas institucionais, a República romana congregou a
sociedade camponesa (aspecto interno) e o estado de guerra constante (aspecto externo). Tal
articulação conferiu uma concepção sociopolítica aos romanos, “baseada no respeito à
tradição e costumes dos ancestrais e na ação”, fazendo de Roma um Estado conquistador
(MENDES, 1988, p.30). A fim de analisarmos a construção do poder pessoal militar no
século I, faremos algumas considerações sobre o sistema republicano, sobre a ideologia de
vitória e uma breve contextualização da expansão imperialista e das conquistas militares de
Sila, Pompeu e Júlio César.
A partir da segunda guerra púnica, houve grandes mudanças nas estruturas sociais e
econômicas que contribuíram para o empobrecimento do campesinato itálico e a
proletarização20 da plebe urbana que habitava Roma. Além disso, o aumento das diferenças
sociais e o antagonismo entre senadores e equestres, recrudesceram as tensões e conflitos na
sociedade, inclusive dentro da própria oligarquia romana, principalmente à época e após as
frustradas tentativas de reforma dos irmãos Gracos entre 133 a 122, fizeram emergir no seio
das elites dirigentes dois grupos com interesses opostos, mas cujo tema principal era as
questões sociais. Nesse modelo tradicional, alguns historiadores avaliam esse momento da
história republicana através de um viés polarizado expresso pela ideia de patrícios e plebeus,
optimates e populares.21
Pensando a questão em outro sentido, Ronald Syme no livro The Roman Revolution
(1939) analisa os grupos oligárquicos e em especial, a aristocracia senatorial, abandonando a
perspectiva constitucionalista. Nesse trabalho, a proposta é uma revolução social, que também
implicaria uma revolução cultural, configurada como o triunfo da periferia sobre o centro. Ou
seja, quando a composição do antigo governo foi alterada com a ascensão da elite colonial ao
seio da aristocracia romana, a Revolução consistiu no deslocamento da ideologia aristocrática
romana para uma ideologia italiana municipal visto que “a elite romana estava tão ávida pelos
despojos das conquistas que descartou prontamente as ásperas virtudes ancestrais” (SYME,
1939, p.8 e 453). Para o autor, houve uma ruptura entre República e Império.
Mas essa leitura é criticada por Andrew Wallace-Hadrill (1997, p.5-6) em alguns
aspectos, tais como o uso dos conceitos de classe social e burguesia, além da imagem
prematura de uma Itália como uma nação unitária, como só o foi no período augustano.
20
Referimo-nos ao termo “proletário” como a última classe censitária do sistema romano, ou seja, ao individuo
que não possuía nenhum recurso a não ser os filhos (a prole). A proletarização na Roma antiga está vinculada ao
processo de constante endividamento dos pequenos agricultores e a formação de um crescente contingente
populacional ocioso nos centros urbanos.
21
Destacamos os trabalhos de HOMO, 1928; FINLEY, 1983; GRANT, 1988, ALFÖLDY, 1996; POLO, 1994;
COLLARES, 2009.
40
Porém, o autor não abandona o conceito de Revolução cultural sugerido por Syme e propõe ir
além da esfera política e do social ao analisar as questões ideológicas e culturais.
Nesse sentido, lembramos que a crise da nobreza (nobilitas) se dava também no
âmbito da legitimidade política, assim como a sua principal instituição no século I, o Senado.
A proposta de Wallace-Hadrill (1997) é uma análise da sociedade romana como a
transformação de um sistema cultural para outro visto que os componentes políticos são
entrelaçados pela cultura. Essa visão é importante em nossa pesquisa, pois nos ajuda
compreender a adoção de modelos artísticos, culturais e filosóficos de uma sociedade por
outra e nos auxilia a esclarecer o processo que levou as elites consentirem na concentração de
poderes, concretizada somente por Augusto.
Wallace-Hadrill (1997, p.12) observa que no período republicano, a nobilitas detinha o
poder sobre aspectos sociais tais como as tradições e a memória. Implica dizer que os mesmos
dominavam o processo de “invenção” e “reinvenção” da tradição; dos códigos civis e das
práticas religiosas, enfim, aspectos relacionados à cultura ancestral. Porém, na época tardo
republicana, segundo o autor, houve uma crise da autoridade da oligarquia dominante devido
à gradativa transferência da autoridade do Senado, sobre alguns aspectos, para a figura do
princeps.
Destarte, podemos pensar esse momento sob a ótica de mudanças culturais ocorrendo
no império, sem a ideia de ruptura como propõe Erich Gruen (1994), ao analisar o período
final da República não como um evento “bom ou ruim”, mas como uma avaliação das
inovações e das continuidades na política romana. Gruen ressalta que grande parte dos
historiadores assume que os conflitos civis do século I como uma cadeia “longa e
ininterrupta” de acontecimentos que culminariam inevitavelmente no fim do sistema
republicano de governo, e que a guerra civil é o símbolo do colapso da República.
Devemos então questionar se as últimas décadas da república seriam “uma era
revolucionaria ou de declínio?” Na opinião de Gruen (1994, p.4-5), a noção de um equilíbrio
entre a inovação e a continuidade pode ser mais adequada, e sugere abordar a questão de
forma diferente, perguntando: “quão bem a res publica absorveu e adaptou-se à mudança?”.
Outro estudo que pensa a república romana, e de muitas formas seu fim como regime
político, é o trabalho de Harriet Flower (2010) que elabora uma análise sobre as mudanças e
continuidades do período republicano ressaltando a questão da cronologia e da periodização.
Para a autora, elas são importantes, mas não podem fazer o historiador refém, cabendo à
relativização, e a uma nova e diferente periodização baseada na “evolução da vida política da
comunidade romana”. Sem abandonar os sistemas de periodizações existentes, ela sugere que
41
a “cronologia política pode e deve ser útil tanto em complemento, como em contraste com
outros esquemas de datação e épocas”. Flower (2012, p.4-16) diz que o estudo “foi concebido
como uma tentativa de criticar, articular, e, finalmente, para dissolver o conceito de uma
única, monolítica República em Roma”.
O conceito de várias repúblicas auxilia pensar no sucesso de alguns sistemas e práticas
políticas e o fracasso de outros, isto porque, ao observar as variadas mudanças políticas, faz
emergir os padrões de estabilidade e instabilidade. A sugestão de Flower (2010, p.33-4) nos
ajuda a esclarecer o contexto histórico para a “interpretação de várias repúblicas, e mostrar
como elas cresceram, o que as ajudou a florescer, e em que circunstâncias cada uma chegaram ao
fim”.
Segundo a referida proposta, o longo período republicano foi dividido em seis
repúblicas de forma a analisar as diferentes práticas e tempos políticos. Nessa datação
interessa-nos a sexta e última república denominada “República de Sila”, iniciada em 88 e
seguida por períodos de transição, triunviratos, e ditaduras.22 Essa distinção advém, segundo a
autora, do marco importante e pouco valorizado que foi a reforma de Sila. Embora o ditador
tenha usado os nomes tradicionais para os órgãos do Estado, o sistema imposto por Sila foi
fundamentalmente diferente de tudo o que existira. O Senado, por ele ampliado, tinha um
caráter e função diferente de qualquer órgão anterior. Em essência, a nova constituição foi
baseada no Estado de direito imposto por um sistema de tribunais, em vez das práticas e
deliberações tradicionais da política, como por exemplo, as discussões apresentadas pelos
tribunos da plebe perante o povo no Fórum (FLOWER, 2010, p.29).
Harriet Flower e E. Gruen dialogam no sentido de sistematizar uma resposta à
pergunta sobre como a república se adaptou às mudanças. Essa abordagem torna-se útil à
pesquisa visto que nossa análise observa os esforços de construção e legitimação do poder
pessoal, evidenciando transformações político-culturais assim como continuidades na
sociedade romana. No mesmo sentido, Wallace-Hadrill (2008, prefácio, xix) acredita que a
transformação política do mundo romano está conectada à transformação cultural. Para o
autor, não foi a mudança cultural que causou a mudança política, nem a refletiu, mas
representaram processos intrinsecamente ligados.
22
Não é possível discorrer sobre todos os argumentos e dados oferecidos para justificar a periodização
apresentada pela autora. No entanto cabe indicar que dentre os treze períodos cronológicos, incluindo as seis
repúblicas, nosso recorte temporal se insere na denominada sexta (e última) República que se inicia em 81 e foi
precedida pelo denominado período transição de 88-81 com a ditadura de Sila até 44 com a morte de César. Ver
H. Flower, Roman Republics de 2010, Introdução e capítulo II.
42
Nossa visão do século I, deve-se em muito aos textos de Cícero, e de outros autores,
que enfatizam a perda da cultura e dos valores republicanos. E há um texto de Cícero que
ilustra bem o que Harriet Flower (2010) e Wallace-Hadrill (2008) apresentam como uma
“nostalgia de uma época de ouro na história romana”. Se voltarmos às fontes, como sugere
Fábio Faversani (2013a, p.105), “veremos inúmeras mortes da República”, pois discursos
lamentando crise da república ocorreram diversas vezes.
Na verdade, a nossa geração, embora tenha herdado a res publica como se
fosse uma obra-prima que, com o tempo, foi perdendo as cores e a clareza de
seus contornos. Sofrendo sucessivas restaurações, a pintura não retoma suas
cores originais. Pelo contrário, ao final, o que restou foram apenas os
contornos da obra-prima original (Cíc, De Rep. 5.2).
Fábio Faversani (2013a, p.109-110) propõe pensar a República e Império como “tendo
múltiplas fronteiras” de forma a considerar a separação entre os dois regimes não como
ruptura, mas como uma fronteira e “sendo fronteira, há separação e ligação entre as várias
‘Repúblicas’ e ‘Impérios’ que podemos construir analiticamente”.
Diante de tais colocações a respeito das mudanças, das transições políticas e da
periodização nos estudos romanos, e tendo em vista que nosso trabalho enfoca a visualidade e
a linguagem imagética na comunicação política, nada mais natural do que compartilharmos a
representação gráfica oferecida por Faversani sobre essa questão:
43
2.2 Ethos social e a ideologia de vitória
Poucos fenômenos da história humana podem ser definidos verdadeiramente
como ‘universais’. Um deles é certamente a guerra, isto é “lei de natureza e
invenção humanas, de instinto espontâneo e construção jurídica”. Seja ela
‘internacional’ ou ‘interna’, ‘regular’ ou ‘irregular’, ‘de conquista’ ou ‘de
defesa’, etc., o denominador mínimo comum residente no conflito é de
possuir (pelo menos) duas partes opostas. Ele comporta necessariamente a
elaboração de táticas e estratégias e recorre a todos os possíveis recursos à
disposição, material e, podemos dizer, ‘imaterial’. Contamos entre esse
último o componente religioso, ou seja, o apoio de um ou mais deuses e a
celebração de atos rituais específicos (FERRI, 2010, p.25).
As guerras em Roma interagiram com a construção do ethos social fundamentado na
laus23 e glória militar. Segundo William Harris (1979, p.11-2), “o êxito militar permitia
reclamar, e em grande parte obter, a mais alta estima dos seus concidadãos”. Portanto,
podemos dizer que as noções de laus e glória justificavam a posição dos nobiles, os que
possuíam o poder e a riqueza, “os quais se auto perpetuavam no Senado e repartiam entre si
os títulos e a posição de patronos da res publica: os principes civitatis.”
Até o final do século II, devia ser incomum um homem chegar ao consulado sem uma
experiência substancial de comando militar. A importância do consulado, para além do poder
político, representava encargo da guerra, pois era na guerra que quase todos os cônsules
encontraram suas maiores responsabilidades, mas também as maiores oportunidades. Tanto
que nas três primeiras décadas do século II “mais de três quartos dos cônsules participaram
ativamente na guerra”.24 Nas palavras de Salústio:
[...] tão grande era o desejo de glória que invadia os homens. [...] Para
homens assim nenhum esforço era excessivo, nenhum solo áspero ou
escarpado, nenhum inimigo em armas aterrador: tudo estava dominado pelo
valor (virtus). Pois havia uma forte competição entre eles pela glória: cada
um se apressava a abater um inimigo, escalar uma muralha e ser visto
realizando tal proeza [...] (Sal. BC, 7.3-6)
Cícero e Salústio mencionam com frequência a laus e glória como metas obviamente
desejáveis para os romanos, tema esse encontrado não só nos discursos, mas também em
textos filosóficos, históricos e nas cartas. Isso demonstra que esse comportamento estava
presente entre os romanos, herdado dos aristocratas do século II e talvez anterior. Essa
característica política aparece quando observamos as eleições. Por exemplo: além dos
23
laus - louvor, elogio, aprovação e mérito.
A partir da obra de Lívio, W. Harris analisa os consulados de 199 a 168 e constata que dos 68 cônsules que
ocuparam o cargo no período, “mais de três quartas partes” deles participaram ativamente na guerra (Harris,
1979, p.257, Nota adicional IV).
24
44
cônsules, os pretores que celebraram triunfos25 elevavam a reputação militar e dificilmente
um triumphator perderia a eleição ao consulado seguinte (HARRIS, 1979, p.26 e 31).
A ânsia pela glória (cupido gloriae) aparece nas inscrições monumentais que se
referiam, na maioria das vezes, às proezas guerreiras ou as colocando em relevo. Nessa
intenção, foram erigidos importantes monumentos como a coluna de C. Maenius (cônsul
vitorioso em 338) ou as columnae rostratae de C. Duilius (c. 260) e de M. Emílio Paulo (c.
255). Além disso, aumentou o número de estátuas, não mais no fórum, mas no alto do
Capitólio. Para Welch (2006a, p.3-4), esse fato demonstra as “sementes do culto militar
romano do indivíduo, um culto competitivo que obteve sua independência durante a
República tardia”.
O advento da guerra para os romanos estava estreitamente relacionado à religião e
podemos vê-la refletida nos festivais, como por exemplo, em março quando havia uma “série
de rituais inter-relacionados, a maioria em honra do deus Marte”. Esses ritos guerreiros,
mesmo sendo arcaicos, “continuavam a manter sua significação em fins da República, e
mesmo sob o Principado” (BELTRÃO, 2012, p.127). E a rotina da guerra era tão importante
que podemos ver seu reflexo no calendário religioso, na arquitetura, nas representações
pessoais e artísticas dos romanos, enfim, no cotidiano de Roma.
Nosso conhecimento sobre a religião romana parte de um corpo limitado de material,
que revela, na maioria das vezes, uma expressão religiosa ligada ao Estado e na qual
transparece, para nós modernos, a ideia de que a atividade pública é mais importante que a
vida religiosa individual. Há ainda a pressuposição de estudiosos contemporâneos que
relacionam os aspectos práticos da vida romana (como a arquitetura, o urbanismo e a guerra)
à religião romana. Além disso, diferente da maioria das religiões atuais, o material disponível
sobre a religião antiga “mostra a falta de uma intervenção divina direta, a falta de milagres, a
falta de mitos de atividades divinas, e mesmo a falta de profetas” (BELTRÃO, 2006, p.137140).26
Contudo, as interações entre homens e deuses se davam, quase sempre, através de
constantes rituais na urbs, isto porque os deuses romanos eram também cidadãos,
participando das ações do Estado, envolvidos nos rituais “tanto na forma de auspícios como
de sacrifícios”. Podemos imaginar que os rituais eram complexos e daí “inferir alguns dos
princípios pelos quais foram realizados”. Segundo Claudia Beltrão (2006, p.141), um ponto
25
O triunfo pretoriano era um acontecimento relativamente raro, mas revela como um general elevava seu mérito
e valor ao triunfar (HARRIS, 1979, p.31).
26
Em relação aos estudos sobre a religião romana ver: BEARD, M.; NORTH, J.; PRICE, S., 1997; SCHEID, J.
2003; BELTRÃO, 2006; RÜPKE, J, 2007.
45
importante é que “o sacrifício era feito estritamente segundo as regras e tradições, que
necessariamente tinham que ser respeitadas”, seguido da habilidade dos sacrificantes, pois ela
permitiria a comunicação entre homens e deuses. Ou seja, os rituais, em seus variados tipos,
eram essenciais nas interações entre homens e as divindades e marcavam os eventos públicos
e as celebrações do Estado.
Nesse sentido, há muitos indicativos de que agentes políticos “contavam com a
religião e com os deuses como fatores importantes na determinação dos eventos e na garantia
de suas reivindicações de autoridade e comando”, talvez não decorrente das atitudes
religiosas, mas “encontravam seu modo de expressão nas competitivas atividades religiosas
dos indivíduos poderosos” (BELTRÃO, 2006, p.145).
Diante desses argumentos, e como disse Giorgio Ferri (2010), entendemos que a
guerra é um objeto de estudo per se. Porém, aqui interessa-nos principalmente um aspecto
relacionado à guerra e à religião que é o comando supremo na guerra (imperium militae) e o
caráter sagrado das ações dos generais e seus exércitos. Segundo N. Mendes (2004b, p.19), o
exercício do poder romano baseava-se na dignitas e na autorictas e guiavam a vida pública e
privada do cidadão. E o imperium, antigo atributo dos reis, seria a projeção, no interior da
civitas, da onipotência de Jupiter Optimus Maximus, e, portanto, significa o conjunto da
autoridade suprema e a fonte de toda a ação política (NORTH, 2006, 263-5).
Inicialmente, a posse do imperium27 foi dividida entre os dois magistrados maiores,28
mais tarde surgiram o pretor urbano e o pretor peregrino. O cônsul, depois de inaugurado
(inauguratio) pelo colégio dos áugures, tinha a prerrogativa de consultar os auspícios
(auspicius), ou seja, estava ligado à divindade e tornava-se seu intérprete (LINDERSKI, 1986,
p.2169-79). O magistrado escolhido pelo povo detinha então, o poder inerente a Júpiter,
“força transcendente, ao mesmo tempo criativa e reguladora, capaz de agir sobre o real de
submetê-lo a uma vontade” (MENDES, 2004b, p.20).
A prerrogativa de consultar os auspícios convertia o cônsul em intérprete da vontade
de Júpiter, poder esse, materializado através da concessão de várias honras, tais como: ocupar
acentos especiais nos teatros e espetáculos; vestir a toga praetexta (branca com uma larga
27
Imperium, ii (impero) n. – poder, soberano, ordem, mando, autoridade; governo, domínio; comando militar,
magistratura; estado (ALMEIDA, 2008, p.329).
28
Magistrados maiores (cum imperio eram o cônsul, o pretor e o ditador) e os magistrados menores (sine imperio
eram os censores, edis, questores e tribunos da plebe). Eleitos anualmente, eles usufruíam poder de caráter
administrativo (potestas) que conferia, dentre outros, o direito de fazer editos, direito de vida e de morte e o
comando militar.
46
banda ornada de púrpura) e pelo direito ao séquito dos lictores29 portadores dos fasces30 e em
número determinado pela magistratura (MENDES, 2004, p.19). O significado destas honras e
insígnias usadas pelos magistrados eram facilmente identificadas, configurando a nosso ver,
uma das formas de representação visual do poder político e religioso.
Os cônsules e pretores eram eleitos pe1a Assembleia Centuriata, no entanto somente
pela lei de império31, votada pela Assembleia Curiata formada por 30 lictores e sob a
presidência do pontifex maximus, era conferido o imperium. Em momentos de perigo da res
publica, um ditador (dictador), ou seja, um magistrado excepcional era escolhido pelo Senado
e nomeado pelos cônsules e designado para uma missão especifica. Este, “unificava os
poderes do imperium repartido entre os dois cônsules, por um período limitado de seis meses”
(BEARD, 2007, 219-244). Ou seja, a lei consolidava o caráter jurídico e sagrado envolvidos
na concepção de imperium relacionado também ao direito augural.32
Os colégios sacerdotais romanos, não devemos esquecer, estavam ligados diretamente
à vida política da cidade. Segundo Beard, North & Price (1998, p.18):
A estrutura básica dos colégios sacerdotais romanos é atribuída a Numa e
assumida para o período republicano arcaico, quando já existiam os três
maiores colégios sacerdotais: os pontífices, os áugures e os dois homens para
o sacrifício (duoviri, depois decemviri sacris faciundis); um quarto colégio,
os fetiales, talvez tivesse uma importância comparável aos três primeiros.
Estes quatro colégios, cujos membros eram geralmente vitalícios, eram
consultados pelo Senado em sua área de responsabilidade.
Com a expansão territorial de Roma, tanto as atribuições sacerdotais, como os rituais
também sofreram transformações. Um exemplo, de acordo com Beltrão (2012, p.121) foram
as declarações de guerra realizada pelos fetiales, que não eram mais passíveis de execução
29
Lictores - oficiais estabelecidos por Rômulo, a exemplo dos etruscos. Normalmente eram pessoas de baixo
estrato social, porém eram homens livres. A hierarquia determinava o número de lictores que acompanhavam o
magistrado: o ditador era acompanhdo por 24, os cônsules eram acompanhdo por 12 e os pretores eram
acompanhados por seis. Suas funções consistiam em: 1. caminhar em procissão ante os magistrados com os
fasces; 2. compelir o povo a saudar os magistrados; 3.caminhar diante do magistrado em fila indiana; 4. se os
magistrados pronunciassem as palavras: Eu lictor, adde virgas reo, et lege em eum age, atingia o culpado com os
fasces e cortava-lhe a cabeça. Dictionary of Romans Coins.
Disponível em: http://www.forumancientcoins.com/numiswiki/view.asp?key=Lictores acesso nov 2013.
30
Fasces - são hastes de madeira com uma lâmina (machado). Os fasces originarios da civilização etrusca,
passaram a Roma antiga simbolizando o poder e a competência de um magistrado e o poder coercitivo do
Estado. O machado (securis) indicava os autores de crimes hediondos e inexpiáveis indicando que teriam que ser
cortados da sociedade (literalmente, cabeças cortadas). Dictionary of Romans Coins. Disponível em:
www.forumancientcoins.com/numiswiki/view.asp?key=Fasces acesso nov 2013. No interior da urbs, os fasces
não portavam as lâminas (C. BELTRÃO, 2014, informação verbal)
31
A lex curiata de imperium (lei que delegava autoridade soberana) a formalidade do consulado começava pelas
eleições nos comícios centuriatos, seguida da tomada dos auspícios, na qual o cônsul prestava seus votos (votum)
à tríade capitolina, efetuando igualmente o sacrifício ritual para Jupiter Optimus Maximus (SCHEID, 2003,
p.185).
32
Cf. Jersky Linderski, “The Augural Law” (1986).
47
como em períodos anteriores33 porque os conflitos se davam agora muito longe da urbs de
modo que o ritual sofreu mudanças em sua execução, porém, sem perder o fundamento do
ritual que era definir as condições de garantia divina da ação bélica.
Do mesmo modo, a expansão territorial do século II e I aumentou consideravelmente o
número e a duração das campanhas militares romanas, assim como a complexidade das
relações entre cidadãos e os estrangeiros. Na sequência, o sistema de magistraturas teve que
se adaptar às exigências advindas das conquistas, como por exemplo, o aumento do número
de magistrados investidos de poder supremo.
Nesse sentido, podemos detectar a ligação entre a religião e a guerra observando as
“práticas sociais e políticas romanas”. Um exemplo é o costume de reunir os comitia
centuriata, ou seja, a assembleia do povo em armas, fora do pomerium,34 no Campo de Marte
o que demonstra que “o espaço sagrado de Roma, marcou sempre uma rigorosa fronteira que
mantinha as atividades guerreiras fora da urbs.” Outro exemplo é a proibição dos exércitos se
reunirem no exterior do muro sagrado e o general vencedor somente ser “autorizado a entrar
na urbs à frente de suas tropas na cerimônia do triunfo” (BELTRÃO, 2012, p.127).
Nesse sentido, a decisão do Senado em conceder um triunfo sinalizava que a elite
político-militar da República reconhecia sua realização frente ao populus Romanus
(HÖLKESKAMP, 2006, p.483) e permitia ao general vitorioso percorrer as ruas de Roma
(planta 1) em um carro de guerra, intitulado imperator e revestido dos atributos de Júpiter
(VERSENEL, 1970; MENDES, 2004b; BEARD, 2007). Desta forma, a ligação entre o
magistrado revestido de imperium e Júpiter era o aspecto fundamental da cerimônia de
triunfo.
O “triumpho, a honra máxima reservada aos imperatores” evidencia como os “rituais
garantiam o caráter sagrado das ações dos generais e seus exércitos” (BELTRÃO, 2012,
p.127). Enfim, o poder de exercer o comando supremo na guerra afirma a relação entre as
33
Fetiales - colégio sacerdotal composto por vinte membros. Era encarregado dos ritos de declaração de guerra e
paz: uma delegação de fetiales, conduzida pelo pater patratus e acompanhada por um condutor da erva sagrada
(a verbena) colhida na Arx, demanda ao inimigo a reparação de um dano. Ao fim de trinta ou trinta e três dias,
em não havendo a satisfação, o pater patratus retornava à fronteira, acompanhado pelo verbenarius, e lançava
um longo dardo no território inimigo, pronunciando a fórmula da declaração de guerra. Contudo, com a
expansão, tornou-se inviável transportar os sacerdotes ao local dos conflitos e ritual então ganhou nova forma.
“Um pedaço de terra na urbs, perto do templo de Bellona, foi designado, por lei, “terra inimiga”, e era ali que os
fetiales passaram a realizar seu ritual.” (BELTRÃO, 2012, p.120-129).
34
Assinala o espaço da fundação da cidade de Roma. Os prédios deveriam ficar a certa distância desse espaço
que determinava o lugar inicial da cidade. O pomerium tinha relevância jurídica. Os soldados deveriam dispor
das armas para entrar nessa parte sagrada, exceto nos dias do ritual do triunfo. A importância política advinha da
impossibilidade de alguém que detivesse o imperium, ou comando de homens, ter que deixar suas armas, para
entrar na cidade, pois entrar na cidade portando armas era um desrespeito ao espaço sagrado delimitado
(AZEVEDO, 2012, p.439; SCHEID, 2003, p.61-3).
48
duas instâncias da sociedade romana. Ademais, a procissão triunfal expressava visualmente,
na linguagem das imagens, a relação entre as esferas político-religiosa da tradição romana.
Planta 1 - Esquema da rota triunfal em Roma. In: BEARD, M. The Roman Triumph, 2007, p.335.
Além dos rituais, a relação entre a guerra e a visualidade em Roma, pode ser também
observada através dos monumentos. Segundo Harris (1979, p.20-1), em meados do século III,
os monumentos e os triunfos promoviam a fama dos comandantes vitoriosos, pois
“praticamente de onde se olhasse os lugares públicos podia-se ver os títulos de glória dos
aristocratas, baseados em sua maioria no êxito da guerra.” Isto porque os generais construíam
seus próprios templos manubiais, muitos deles prometidos no campo de batalha para as
divindades protetoras, pago ex manubiis (com a receita da guerra). Nessas construções, os
triunfadores não perdiam a oportunidade de exibir imagens, de pinturas e estátuas,
relacionadas às suas vitórias.
Para K. Welch (2006a, p.5) os templos sobreviventes no forum Holitorium e a Área
Sacra do Largo Argentina demonstram que com o passar do tempo, esses templos foram
“projetados com uma iconografia arquitetônica cada vez mais original” de forma que cada um
dos monumentos “disputava a atenção do espectador e, assim, evocava a vitória específica do
general para sempre”. Um exemplo interessante de monumento de guerra que representa a
realização pessoal foi o de Cipião Africano que erigiu em 190 um arco sobre o Clivus
49
Capitolinus35 cuja descrição de Tito Lívio (37.3) fala de nove estátuas de bronze douradas e
um par de cavalos. Provavelmente as estátuas seriam retratos do triumphator e de sua família.
Mas é na cunhagem romana que a prática de autopromoção pode ser observada
ostensivamente. De acordo com M. Crawford (1983, p.727-28), após a Lex Gabínia de 139,36
aumentou o interesse pelo ofício da cunhagem visto que os monetários tinham uma
considerável liberdade na seleção das imagens nas moedas, tornando-se mais ousados em suas
escolhas iconográficas, além de ser mais uma maneira de mostrar as pretensões políticas ao
conhecimento público. Ainda segundo K. Welch (2006a, p.5), não é surpresa que os temas
eram na maioria militares e, a nosso ver, a ousadia na escolha das imagens se configurava
mais um meio de propaganda política.
Um exemplo significativo da temática bélica é um denário de 116 emitido por M.
Sergius Silus cujo tema faz referência ao avô (pretor em 197) que perdeu a mão numa batalha
(moeda 1). A iconografia tem Dea Roma com elmo de um lado e de outro um cavaleiro
brandindo uma espada na mão esquerda e empunhando uma cabeça decepada por meio de um
gancho, no lugar da mão direita ausente. Esta iconografia, segundo Welch (2006a, p.5-6),
revela práticas reais de guerra.
Moeda 1. Denário de M. Sergius Silus, Roma c. 116-115.37
Podemos dizer então que o ethos designa as características morais, sociais e afetivas
que definem o comportamento de uma determinada pessoa ou cultura, da mesma forma que se
refere ao espírito motivador das ideias e dos costumes. No caso da sociedade romana, o ethos
baseado na vitória militar (laus e gloria) foi fundamental para a cultura política republicana e
35
A via principal para o Capitólio Romano, o Clivus Capitolinus começa na início do Forum Romano, como
uma continuação da Via Sacra.
36
Em relação à substituição do voto oral pelo secreto contribuíram: lex Gabinia de 139 a.E.C. nas eleições, pela
lex Cassia de 137 a.E.C., e pela lex Papiria de 131 a.E.C. tiveram grande impacto na prática dos nobres
fiscalizarem os votos (MENEZES, P., 2012, p.50).
37
Ind.: RRC 286/1; Anv.: Cabeça de Roma (Dea Roma) com elmo; Insc.: ROMA*/EX.S.C; Rev.: cavaleiro brandindo
uma espada na mão esquerda e empunhando uma cabeça decepada por meio de um gancho, no lugar da mão direita
ausente; Insc.: Q/M SERGI/SILVS, Imagem: http://www.coinproject.com/siteimages/91-3900Sergius.JPG
50
as imagens ancestrais ocuparam um lugar de grande destaque na ideologia política (GRUEN,
1992, p.154).
Na República média, os aristocratas romanos almejavam colocar suas estátuas
especialmente ao redor do comitium próximo à cúria, e também no Capitólio, próximo ao
templo de Júpiter. Esse desejo é facilmente explicado pela vontade de associar suas estátuas,
ou de seus ancestrais, aos pais fundadores, pois esses locais davam a impressão que também
eles tinham tido um papel importante na história da cidade. Mas a edificação de estátuas nos
lugares públicos era cuidadosamente controlada e estátuas desautorizadas eram retiradas pelos
censores regularmente (Plínio, História Natural, 34.30).
O fortalecimento de uma aristocracia de ofício naturalmente levou ao desenvolvimento
de grande número de anúncios públicos focados especialmente sobre o sucesso militar das
elites dominantes, e serviu para justificar posições sociais privilegiadas. No final do século
IV, troféus assinalavam vitórias e estátuas honoríficas votadas pelos magistrados, tornaram-se
importantes elementos decorativos na cidade (HÖLSCHER, 1978 apud FLOWER, 2006,
p.70). No entender de Flower (2006, p.63-4), “as imagines eram poderosos lembretes visuais,
apresentados no funeral. A própria imago de um homem era a sua recompensa final por
alcançar a alta magistratura e, portanto, parte do objetivo de um aristocrata, pois as imagines
dos seus antepassados, serviam como um meio para chegar a esse objetivo.”
2.3 A expansão territorial do império e o elemento militar
A expansão territorial é um aspecto importante no processo de construção do poder
político de caráter pessoal em Roma, pois a política de conquista romana alterou a
configuração do exército, tendo em vista que a partir da Segunda Guerra Púnica ocorreram
mudanças nas estruturas sociais e econômicas, recrudescendo as tensões e conflitos sociais,
inclusive dentro da própria elite.
Para Géza Alföldy (1996, 65-70), a expansão territorial trouxe transformações ao
Estado e à sociedade romana, haja vista que a estrutura econômica e a ordem social foram
submetidas a condições mais complexas. Isto se deve à permanência dos exércitos cada vez
mais distantes da urbs e por períodos de tempo mais longos, além de fazer com que muitos
camponeses, ao retornarem, se vissem arruinados e impossibilitados de pagarem suas dívidas.
Alguns esforços foram feitos para suprir a carência de contingente militar, desde a diminuição
51
da qualificação ao serviço militar e disponibilidade de soldos, sem, contudo, solucionar o
problema.38
Um dos aspectos sociais observados em nossa pesquisa, em relação ao poder
autocrático romano, é a questão militar, visto que os soldados cada vez mais recorreram “a
indivíduos capazes de lhes fornecer o que o Estado não lhes pudera oferecer”, ou seja,
recorreram aos chefes militares como forma de obter recursos (FINLEY, 1985, p.144-5).
Nesse contexto, se faz necessário mencionar as reformas de Caio Mário (157-86).
Para o historiador Brian Campbell (2002, p.23) desde o inicio do século IV Roma já
reconhecia a necessidade de recompensar os soldados pelos serviços prestados através de um
subsídio diário a título de ajuda de custo, e foi a partir dessa prerrogativa que Caio Mário
conseguiu aumentar seu contingente militar para a guerra contra Jugurta39, de forma que o
exército adquiriu novas configurações no século I.
Mário, um homem novo (homo novus), originário de Arpino conseguiu enriquecer
como cavaleiro e publicanus40. Devido ao sucesso militar, obteve apoio político
possibilitando sua nomeação ao comando supremo da guerra na África junto ao seu primeiro
consulado no ano de 107. Para essa jornada, Mário fez uma reforma militar ao abrir o exército
a todos os cidadãos, legalizando um processo iniciado no século anterior pela elite de Roma
(SANTOSUOSSO, 2001, p.13) e possibilitou a incorporação dos proletarii. Dessa forma, o
cônsul converteu-os em soldados profissionais o que, na prática, tornou o exército um efetivo
permanente.
Após essa mudança, o exército entra no cenário político como instrumento dos chefes
militares, sendo controlado através do butim e pela promessa de distribuição de terras
(ALFÖLDY, 1996, p.129). Os soldados, por sua vez, buscavam ingressar nas fileiras de
generais vitoriosos porque, nesses exércitos, os soldados adquiriam butim e escravos, além de
recompensas generosas e “donativos distribuídos durante os triunfos” pelos chefes vencedores
(CAMPBELL, 2002, p.23).
38
Em relação aos processos censitários para qualificação militar ver A. Santosuosso (2001), capítulo 1 “All, rich
and poor, Well-Boran and commoners, must defend the Estate”
39
Após a morte do rei Massinissa do reino cliente da Numídia (ao lado da província da África), Roma dividiu o
país entre os dois jovens príncipes em 118. O príncipe Jugurta, que servira com Cipião Emiliano, era cavaleiro
renomado e soldado nato. No entanto, a divisão o desagradou, pois Roma deu-lhe a parte ocidental e “mais
primitiva do país”. Na sequência, Jugurta assassinou os italianos residentes no reino, o que fez Roma declarar
guerra a ele (GRANT, 1988, p.164).
40
Publicanus – cidadão da ordem equestre que servia de intermediário entre o Estado e os contribuintes. Em 218
a lex Claudia proibia que senadores exercessem cargos relacionados ao comércio, serviços financeiros ou
iniciativas fiscais. Essas atividades seriam exercidas por equestres ricos, através de corporações que empregavam
libertos, indivíduos especialistas e escravos Porém, uma parcela menor dos cavaleiros permaneceu como uma
pequena nobreza e continuou a exercer seu papel no exército (PIRES, 2012, p.46).
52
Segundo Adrian Goldsworthy (2011, p.46), este teria sido um estágio significativo na
transição de um “exército de reserva de cidadãos recrutados em um corte transversal das
classes proprietárias para um exército profissional”. Para Goldsworthy e Homo, ao recrutar os
muito pobres, Mário contribuiu para a transformação do papel do exército na política e para o
fim do sistema republicano.
O Senado, também teve seu papel para a inserção e consolidação do exército na
política. A fim de garantir as vitórias militares e administrar as novas províncias, o sistema de
prorrogação e os governos de províncias foram ampliados pelo Senado em virtude dos
numerosos conflitos. Um exemplo dessas inovações constitucionais é dado por Tito Lívio ao
relatar as disposições do Senado quando prorrogou o comando militar de P. Cornélio Cipião,
durante a segunda Guerra Púnica, para que este fosse à África enfrentar Aníbal e terminar a
guerra que se prolongava por dezesseis anos (Tito Lívio, Ab Urb Condita, 30, 1). Da mesma
forma, Políbio também relata a guerra com os cartagineses, na metade do século II, ocasião na
qual o Senado teria confirmado os “comandos militares dos magistrados e pró-magistrados
republicanos, prorrogando suas atribuições ou até mesmo substituindo os últimos, caso
considerasse necessário” (COLLARES, 2009, p.17). Nas palavras de Políbio
O cônsul, ao partir com seu exército, investido pelo povo e pelo Senado,
parece ter realmente autoridade absoluta nos assuntos relacionados à
realização de seus empreendimentos; [...]. O cônsul também depende do
Senado fazer com que realize ou não suas aspirações e seus projetos, pois os
Senadores têm o direito de substituí-lo ou de prorrogar seu comando uma
vez terminado seu mandato anual (Historias, 6, 15).
Conforme atesta Políbio, essas atribuições dos cônsules já faziam parte da tradição
republicana. Desde o século IV as magistraturas cum imperium41 podiam ser prorrogadas
mediante aprovação do Senado e após os comícios centuriatos sugerindo, desde já, a
existência dos chamados pró-magistrados. No entanto, sabemos que a partir do século II, não
era incomum magistrados delegarem comandos menores a seus próprios subordinados, devido
à expansão territorial (BRENNAN, 2004, p.39-40). Além disso, desde a lei Hortênsia de 287
havia a possibilidade dos chefes militares obterem comandos por meio da atuação dos
tribunos da plebe na Assembleia Tributa.
Podemos dizer que na visão tradicional da historiografia expressa, por exemplo em L.
Homo, a perda do controle absoluto do Senado sobre o exército se iniciou quando este perdeu
41
Magistrados cum imperium - Caberia governar as províncias um magistrado em exercício (pretor) ou que já
havia saído do cargo (propretor ou procônsul). Os governadores de província possuíam amplos poderes em
virtude do imperium de que estavam revestidos. Cf. NORTH (2006, p.264)
53
sua conformação cidadã e passou a ser um exército de profissão. Para Homo, no último século
da República, os comícios da plebe proporcionaram aos “ambiciosos generais” grandes
comandos militares e serviram a políticos como Sila, Crasso, Pompeu e César alcançarem o
poder pessoal, ou seja, o poder militar estaria na “origem do futuro regime imperial” (1928,
p.195-206).
Entretanto, convém notar que no caso dos mencionados generais, realmente as vitórias
militares permitiram a eles obter grande soma de recursos financeiros, mas principalmente
poder político, laus e glória, reforçando ideologia de heroicidade através da guerra e das
vitórias militares. Mas não se pode esquecer que o ethos guerreiro era um elemento
importante da sociedade romana e vale lembrar o caso de C. Mário, que através de suas
efetivas vitórias militares, permitiram a um ‘homem novo’ se tornar cônsul na República, fato
até então inédito. Considerado herói pelo povo, desde a guerra africana, foi nomeado para
deter os germanos, derrotando os teutões e os cimbros, além de ser reeleito cônsul todos os
anos, contrariando a lei e a tradição. Ao voltar a Roma (100), conseguiu seu sexto consulado
devido à glória militar.
Todavia, na sequência do conflito com os germanos, e após a Guerra Social42 com a
vitória militar de Roma e política dos aliados (WALLACE-HADRILL, 2008), surgiram
problemas nas províncias orientais, principalmente após a ascensão do rei Mitridates VI43 do
Ponto e a sua política de expansão territorial. Esses conflitos no Oriente interessam à
pesquisa, pois esse foi um dos cenários onde a guerra, o exército, as riquezas, as interações
culturais constituíram elementos importantes do processo de construção do poder pessoal
militar, quer dizer, esse foi o palco onde se destacaram os atores políticos privilegiados pela
pesquisa.
Inicialmente, L. Sila destacou-se na vitória final na guerra da Numídia graças a uma
manobra, orquestrada por ele (lugar-tenente de Mário), que convenceu Boco, rei da
Mauritânia, a trair Jugurta e entregá-lo aos romanos. Porém, diferente do que esperava Mário,
42
Guerra Social (socii, aliados) ou mársica (90-87) - foi o conflito entre Roma e os aliados italianos iniciada em
91 após a persistente recusa dos romanos em atribuir o direito de cidadania romana aos aliados italianos. A
revolta centrou-se nas regiões meridional e central da península, envolvendo povos de língua osca dos Apeninos
centrais, principalmente os marsos, samnitas, e os lucanos, além da cidade de Piceno. Os aliados constituíram um
Estado independente. As autoridades romanas perceberam que as concessões aos italianos não podiam mais ser
negadas. O cônsul L. Júlio César apresentou um projeto (Lex Julia) concedendo a cidadania romana a todos os
italianos leais, assim como aos que se dispusessem a depor as armas (GRANT, 1988, p.168-169).
43
Mitridates VI Eupátor, rei do Ponto (132 - 63 a.E.C.), envolveu-se em três conflitos com Roma nas chamadas
Guerras mitridáticas: Primeira Guerra (88-84 a.E.C.) L. Sila conseguiu expulsar Mitrídates da Grécia; Segunda
Guerra (83-81 a.E.C.): o cônsul Lúcio Licínio Murena teve a incumbência de executar as cláusulas do tratado de
paz entre Roma e o Ponto, acusando o rei de rearmar seus exércitos e iniciou nova guerra; Terceira Guerra: (7565 a.E.C.) Mitrídates foi finalmente derrotado por Pompeu.
54
a missão de comandar um exército para lutar no Oriente foi dada a Sila, cônsul de 88 e cujas
habilidades já haviam sido demonstradas nas campanhas da África e na Guerra Social.
Mário tentou retirar o comando de Sila, mas este não aceitou o afastamento e com suas
tropas da Ásia Menor, marchou sobre Roma que caiu sem resistência, desafiando o governo
republicano. Essa foi uma clara demonstração de lealdade do novo exército a um general
(MENDES, 1988, p.66) e a primeira vez na história que a urbs foi palco de uma guerra civil.
De volta à Grécia, Sila logo retomou Atenas e sem demora seguiu para a Ásia Menor. Lá
chegando, pôs fim a guerra e negociou um acordo de paz bastante generoso com Mitridates.
Por esse tempo, em Roma, Mário havia se unido aos cônsules do ano de 87, e em um
contexto político violento, realizou massacres, além de iniciar seu sétimo consulado, vindo a
falecer poucos dias depois. Após voltar do Oriente, Sila retomou a cidade com a ajuda de uma
guarda pessoal de dez mil homens, conhecidos como ‘Cornélios’, que promoveram um
massacre, matando seus inimigos, inclusive quarenta senadores e 1600 cavaleiros, cujas terras
foram confiscadas e distribuídas entre os ex-legionários. Após assembleia no Senado, Sila
delineou o projeto de proscrições e também os massacres e confiscos (Plut. Sul. 30).
É interessante observar que apesar dessas ações conturbadas, Sila se colocou como
restaurador da República e para tal resgatou a ditadura em 81, sem prazo de término,
magistratura que havia sido abolida desde o século III (Plut. Sul. 33,1). Seu projeto de
reestruturação foi elaborado segundo a facção que o apoiava, o Senado. Sua atuação foi
conservadora e buscou legislar para restabelecer o monopólio e a autoridade do Senado na
prática política através de novas leis, prejudicando a assembleia Tributa, criando assim, um
sistema diferente de tudo que existiu antes. Acreditamos que com essas leis,44 o ditador
desejava evitar que outro fizesse o mesmo que ele. Contudo, não deixa de ser irônico o fato de
que foi o próprio Sila quem rompeu o poder senatorial ao apoiar seu poder político na força
do exército.
Nesse cenário, inicia a ascensão de um jovem general, Cneu Pompeu, ligado a Sila, e
que prontamente mostrou suas habilidades militares ao acabar com a oposição na Sicília e na
África. Segundo Plutarco (Pomp. 13, 4-5) o cognome Magnus45 foi atribuído pelo próprio
Sila. Após estas vitórias, mesmo com a relutância de Sila, o general foi premiado com um
44
Em relação às mudanças de Silva cf. A “República de Sila” conforme proposta de Flower (2010, p.22ss). Para
detalhes sobre as leis e reformas políticas cf. GRANT, 1988; e principalmente SANTANGELO, 2007 e
FLOWER, 2010.
45
Sila teria sido o primeiro a saudá-lo como ‘Magnus’ desde sua campanha na África, mas somente a partir do
pró-consulado na Espanha que Pompeu começou a usar o nome oficialemente. Segundo Plutarco, Pompeu
passou a “inscrever-se em suas cartas e ordenanças Pompeius Magnus, pois o nome tornou-se conhecido e já não
era desagradável” (Pom. 13, 3-5). Em 66 a.E.C., Cícero também se referiu a ele deste modo no discurso De
Imperio Pompeio (Cíc. Imp Pom., 67)
55
triunfo (provavelmente em 81) mesmo sendo tão jovem. Nesse ínterim, Pompeu, derrotou M.
Lépido46 e ofereceu seu exército para ajudar no conflito contra Sertório na Hispânia. Sem
poder recusar a oferta, o Senado nomeou Pompeu procônsul em 77 (Plut. Pom.17-18) pondo
fim à guerra com facilidade e voltou à Itália com grande fama militar. Por essa ocasião, o
jovem Pompeu já estava sendo comparado ao grande conquistador macedônio Alexandre
Magno.
Na segunda metade da década de 70, se destaca outro importante agente político do
período. Roma enfrentava várias agitações e uma delas foi uma revolta liderada por
Espártaco, gladiador trácio, que conseguiu reunir escravos fugitivos e derrotar quatro
exércitos romanos. As autoridades, então, confiaram o comando contra os revoltosos a Marco
Licínio Crasso que recebeu o imperium proconsular e demonstrou sua competência ao
marchar com um exército de quarenta mil homens (71) contra Espártaco e vencê-lo na Apúlia.
Por essa ocasião, Pompeu e Crasso, embora suspeitando um do outro, preferiram unir
esforços e candidataram-se ao consulado no ano 70. Do ponto de vista legal, ambos estavam
inaptos à eleição, pois não desmobilizaram seus exércitos, e Pompeu era inelegível, pois nem
mesmo havia assumido seu posto como senador. Contudo, a essa altura, uma figura tão
popular como Pompeu, a lei não foi impedimento e o Senado cedeu à eleição (Plut. Pom.
22,1,5). Foi mais uma demonstração de como o apoio do exército permitia aos chefes
militares manipular a política romana.
Após a eleição, os dois cônsules se empenharam na restauração dos poderes dos
tribunos, abolidos na reforma de Sila, diminuindo assim, o monopólio do Senado sobre os
tribunais. Crasso, pessoa amável e lisonjeira, sabia explorar os laços de amizade, decidiu
permanecer em Roma ampliando seus recursos financeiros e sua influência política. Pompeu,
por sua vez, aguardava uma oportunidade de aumentar ainda mais sua reputação militar, o que
não tardou a acontecer devido aos problemas com a pirataria no Mediterrâneo.
Desde o século anterior, quando Roma enfraqueceu a ilha de Rodes e sua força naval,
os piratas intensificaram suas ações. Porém, no início da década de 60 aumentaram os
sequestros, os ataques à costa italiana e às vilas. Além disso, estavam comprometendo cada
vez mais o fornecimento de trigo à população romana. Nesse cenário, Pompeu foi nomeado
46
Marcus Aemilius Lepidus – patrício, tornou-se cônsul em 78. Foi chamado a Roma para acabar com a revolta
dos camponeses que foram destituídos de suas terras para os colonos de Sila. Contudo, ao ver irrealizável o
mandato do senado, decidiu unir-se à revolta. Pompeu obrigou-o a abandonar a Itália e refugiar-se na Sardenha
onde morreu.
56
pela lei Gabínia47 para a tarefa de acabar com a pirataria, sendo-lhe atribuídos vastos poderes
e disponibilizados imensos recursos em homens, dinheiro e abastecimento. Pompeu não
decepcionou e no prazo de três meses conseguiu livrar os mares da ameaça. Mas no ano
seguinte (66) recrudesceram os problemas no Oriente e apesar da relutância do Senado, foi
aprovada a lei Manília48 em favor do seu comando, que teve inclusive o apoio de Cícero, que
na ocasião, reforçou seu discurso, comparando-o a Alexandre o Grande ao evocar o epíteto
Magnus (Imp Pom.67).
Pompeu continuou no Oriente por mais quatro anos, e quando venceu Mitridates, além
de explorar o Cáucaso (65), resolveu a situação da Ásia ocidental. Nessa ocasião, o general
anexou o reino do Ponto à Bitínia formando uma única província. Também a região da Síria
foi transformada em província romana, incluindo a importante cidade de Antioquia, sendo
afastado o último rei selêucida. Quanto ao pequeno reino judaico, e sua velha capital
Jerusalém, foi permitida a dinastia dos Asmoneus (macabéia) continuar no governo como um
monarca cliente dos romanos (GRANT, 1988, p.178-9).
Ao cercar as novas províncias de reinos clientes,49 Pompeu garantiu o
comprometimento dos governantes em defender as fronteiras. Em troca, Roma dava aos reis
plenos poderes nos assuntos civis e os apoiava contra movimentos internos de subversão.
Dessa forma, os romanos se isentavam das despesas de administrar esses territórios. Essa
organização do Oriente próximo foi a maior do que qualquer outra já empreendida e mostrou
não só a capacidade militar, mas também administrativa de Pompeu ao aumentar a receita
anual de Roma em pelo menos 40% (GRANT, 19988, p.180).
As guerras com Mitridates VI duraram quase vintes anos, somando os intervalos, e
causaram grandes transtornos. Entretanto, ampliaram o poder e o envolvimento de Roma no
Oriente e os três grandes estados que sucederam o império de Alexandre o Grande, a
Macedônia, o selêucida e do Egito, tornaram-se área de domínio ou de influência romana50
47
Lei Gabínia – Aulo Gabínio, tribuno da plebe em 67 a.E.C. aprovou uma lei que garantiu a Pompeu poderes
para liderar a guerra contra os piratas.
48
Lei Manília – Nessa lei, o tribuno C. Manílio propôs em 66 a.E.C. o prolongamento do mandato de Pompeu
para resolver o conflito com o rei Mitridates do Ponto.
49
Princípio romano de clientela - a diplomacia romana fundamentava-se em um princípio de fundo religioso e
moral, que norteou as relações com os aliados. A Boa Fé (fides) era uma relação recíproca, que implicava, por
parte do vencedor, obrigações de clemência, proteção, moderação, e selava os compromissos diplomáticos.
Pode-se compará-la aos laços de clientela, base da vida social, econômica e política da aristocracia romana. Ao
aplicar este princípio na política externa, Roma criou uma clientela estrangeira, além de servir também como
justificativa jurídica e religiosa da ação militar romana em defesa dos seus sócios e reinos aliados (noção de
guerra justa) (MENDES, 1988, p.46).
50
Cronologia dos territórios conquistados na República séc. III e II a.E.C.: Sicília 241; Sardenha 238; Córcega
227; Macedônia 146; África Proconsular 146; Ásia 133-129; Narbonensis 121; Cilicia 100; Cirenáica 74; Creta
57
(mapa 1). Pompeu, por seu lado, obteve aliados importantes nessas regiões, principalmente
em África.
Conquanto, se por um lado, os conflitos no Oriente trouxeram riqueza e ampliaram a
influência na região, por outro lado, forçaram o governo republicano a estender os comandos
militares tornando-os quase independentes. E o caso de Pompeu ilustra bem a situação. Ao se
apoderar de enorme quantidade de despojos, o jovem general aumentou o soldo dos seus
soldados (Plut. Pom. 45.3) garantindo assim sua fidelidade, além de se tornar o homem mais
rico de Roma, posição ocupada até então por Crasso.
Mapa 1: Conquistas romanas de 146 a 30 a.E.C.
In: Craige B. Champion, Roman Imperialism: Readings and Sources, 2004, p.12
Entretanto, a nosso ver, algumas ações se revelam ainda mais significativas do poder
que o imperium proconsular dava aos chefes militares. No caso de Pompeu, por exemplo, a
fundação da cidade de Nicópoles no local onde venceu o rei Mitridates, e outras quarenta
cidades que foram criadas ou restauradas em todo o Oriente, em consonância a tradição
urbanística dos monarcas helenísticos, comprovam seu poder. Essas medidas foram tomadas
em grande parte sem consultar o Senado e demonstram de modo geral, sua posição de
monarca absoluto no Oriente por aquela ocasião. Também no sentido da construção de seu
68-67; Síria 64-63; Bitínia e Pontus 64; Chipre 58; Aquitania, Lugdunenese e Bélgica 58-52; África Nova
(Numídia) 46; Egito 30 (N. Mendes, 2006, p.295).
58
poder pessoal, o jovem general recebeu variadas honrarias das comunidades orientais,
prenunciando “as personagens imperiais que estavam para surgir” (GRANT, 1988, p.180).
Por essa altura, comparar Pompeu ao herói conquistador Alexandre o Grande era
perfeitamente natural.
Entretanto, ao final da campanha de Pompeu, pairava na atmosfera política romana o
medo de que este agisse como Sila. Mas ao desembarcar em 62, o general dispensou suas
tropas para alívio de todos e regressou a Roma esperando celebrar seu triunfo.51 Pompeu
também esperava que o Senado ratificasse os acordos no Leste, assim como proporcionar
parcelas de terras aos seus veteranos. Porém, suas aspirações foram frustradas por adversários,
principalmente Lúculo e M. Catão,52 ao mesmo tempo em que Crasso também teve suas
reivindicações negadas pelo Senado.53
Nessa conjuntura, vale destacar que a construção do poder pessoal em Roma foi um
processo no qual as circunstâncias da política externa, a princípio, bem como no plano
interno, fizeram aumentar e/ou aprofundar as prerrogativas de poder dos magistrados
romanos. A aristocracia romana, no século I, não tinha a coesão necessária para controlar a
força crescente dos generais, ao mesmo tempo em que os problemas externos requeriam
soluções rápidas. E, apesar da nobilitas temer os grandes generais e sua influência sobre o
exército, o Senado não podia prescindir da intervenção deles para manter o equilíbrio da
República.
O caso de Pompeu é emblemático dessa situação como vimos nos episódios dos
piratas e da guerra com Mitridates VI, pois diante de uma situação de perigo, e apesar dos
receios, foram dados muitos poderes e atribuições a um só homem. No entender de L. Homo
(1928, p.226), as leis Gabínia e Manília asseguraram a Pompeu um papel importante na
estrutura republicana e deram início ao fugaz regime do “Principado de Pompeu” prenúncio
do que seria estabelecido por Otávio.
Nesse sentido, é significativo o discurso De Imperio Pompeio de Cícero em prol do
comando de Pompeu, pois permite entrever indícios da ideologia de poder conferido a um
cidadão, segundo ele, dotado de “inteligência divina”, “proteção divina”, “conhecimento,
autoridade e fortuna” e “habilidade militar”.54 Ou seja, podemos ver que nesse momento, as
51
Discutiremos os triunfos de Pompeu no capítulo 4.
Lúculo foi substituiu no comando na Ásia Menor por ocasião da segunda Guerra Mitridática e M. P. Catão
(descendente de Catão o censor) tribuno em 62 bloqueou sistematicamente os pedidos de Pompeu.
53
Em 61 a.E.C., uma companhia de publicanos pediu a redução no preço do arrendamento das receitas asiáticas,
alegando que elas estavam se mostrando menos lucrativas que o previsto. Crasso apoiou essa reivindicação, mas
Catão, alegando o acordo anteriormente celebrado, convenceu o Senado a rejeitar o pedido.
54
Respectivamente em De imperio Pompeio, 42, 48, 49,64.
52
59
linhas da construção de um novo sistema político, já estavam sendo desenhadas. Mas esse
novo sistema, construído em torno da figura do princeps e pautado nas práticas republicanas,
estava imbuído de práticas relacionadas ao poder autocrático.
É importante considerar que o modelo de poder pessoal que os romanos acabaram por
admitir, a partir do conceito do princeps, concedido àquele cuja liderança e destaque
advinham da sua dignitas e autorictas, acabou por se estabelecer somente com Otaviano, pois,
no período de Pompeu, o ideal republicano ainda era muito forte. Mas após um segundo
período de guerras civis, Augusto soube configurar, através da concentração da tribunicia
potestas (iniciativa legislativa e amparo dispensado ao povo), do pontificatus maximus
(mediador entre os homens e os deuses) e do imperium majus (comando supremo) consolidar
e integrar o imperium à realidade imperial. De forma que o Principado foi a modalidade
romana de poder pessoal, “podendo ser chamado de ‘monarquia republicana’” (MENDES,
2006, p.26-7).
Retornando aos chefes militares, vale lembrar que cada vez mais, entrava na cena
política e militar a figura de outro jovem general, Caio Júlio César (100-44), patrício ligado
pelo casamento de sua tia Júlia a Mário. Foi questor na Hispânia (69) e edil (65). Em 63
conseguiu se eleger pontifex maximus, o que lhe garantiu grande prestígio, mas não sem a
ajuda financeira de Crasso. Foi enviado como procônsul à Hispânia Ulterior em uma operação
contra os lusitanos (61) e devido a essas vitórias foi-lhe concedido o triunfo. Mas César
também desejava candidatar-se ao consulado em 60 e, se entrasse na cidade antes da procissão
triunfal, perderia tal direito. Foi quando pediu autorização para candidatar-se às eleições por
procuração, mas seu pedido foi negado pelos esforços de Catão.
Ou seja, por essa ocasião, os senadores frustraram simultaneamente Pompeu, Crasso e
César. Esquecendo suas discordâncias pessoais, os três grandes generais se uniram em uma
aliança informal, um pacto privado, a princípio secreto, mas que logo se tornou público e
conhecido como primeiro Triunvirato. Como era de se esperar, eles obtiveram o consulado em
59 e conseguiram aprovar uma série de medidas em favor das suas próprias reivindicações.
César contou com os triúnviros para ajudá-lo em sua carreira política ao obter um
comando especial de cinco anos. Logo ele partiu para a província (58), de onde se lançou à
conquista da Gália continental. As operações dessa campanha são bem conhecidas devido aos
escritos do próprio César55 que, tendo em vista sua prolongada ausência, publicou tais livros
para justificar suas ações militares, bem com aumentar seu prestígio em Roma.
55
A Guerra das Gálias (Bellum Gallico), assim como a subsequente Guerra Civil (Bellum Civili) relatam os
conflitos militares de César. Ver capítulo 1, item documentação.
60
O objetivo de César certamente era suplantar Pompeu como chefe militar ao ser
enviado a regiões pouco conhecidas dos romanos. O general se aventurou, mesmo que por
pouco tempo, em uma região onde nenhum outro comandante romano havia estado antes,
além de construir uma ponte sobre o rio Reno, comprovando mais uma vez sua excelência
como chefe militar (e da engenharia romana). Essa façanha impressionou muito a opinião dos
metropolitanos naquele momento.
Por essa ocasião, a aliança entre os triúnviros foi renovada. Pompeu e Crasso foram
nomeados cônsules para 55 e cada um recebeu um comando especial de cinco anos. Pompeu
recebeu as províncias hispânicas, que governou indiretamente, através de legados, permitindo
que ele permanecesse em Roma administrando o fornecimento de trigo ao mesmo tempo em
que seguia a vida política da República. César, como previsto, teve o comando na Gália
também prolongado por mais cinco anos, período em que novamente mostrou suas
habilidades militares ao capturar o chefe dos gauleses e conquistar as Gálias.56
César esperava estabelecer uma rede de clientes, assim como Pompeu fez no Oriente,
e alcançou seu objetivo, pois o grande território foi reduzido à condição de súdito, sujeito a
um tributo anual a Roma. Com a anexação dessas terras, o conceito e o caráter do Império
Romano mudou, pois não era mais um domínio exclusivamente mediterrâneo, mas sim um
vasto conjunto de territórios da Europa continental e setentrional (GRANT, 1988, p.199).
Podemos dizer que o sucesso militar de César adveio da tradicional máquina de guerra
romana, mas não só. Suas qualidades pessoais fizeram a diferença: cavaleiro exímio, literato,
estrategista e detentor de uma resistência admirável transformaram-no em modelo e herói
militar. Nos momentos difíceis, tão logo tomava as decisões necessárias, movimentava suas
tropas rapidamente, impossibilitando aos inimigos acompanhá-lo. Essa particularidade o fez,
muitas vezes, prestar tributo à sorte, pela qual ficou famoso. Por conta de suas ações heroicas
e por sua eloquência (inferior somente a de Cícero) conquistou prestígio, a admiração e a
lealdade de suas legiões, consolidando a fidelidade de seus soldados.
Ao terminar a campanha no Ocidente, César voltou sua atenção à política em Roma. A
situação dos triúnviros havia desmoronado gradualmente. Crasso e seu exército foram
destruídos na Mesopotâmia. Em 54, Júlia (esposa de Pompeu e filha de César) faleceu e com
ela o laço pessoal que ligava os dois generais e o resultado foi a crescente tensão entre os dois.
Após várias tentativas infrutíferas de acordo com os senadores, César transpôs o Rubicão
56
Estudos sobre os gauleses ver: GUYNVARC'H, Christian-J; FRANÇOISE, Le Roux. A Civilização Celta.
Lisboa: Publicações Europa América, 1993; CUNLIFFE, B. The Celts. A very short introduction. Oxford:
Oxford University Press, 2003.
61
(49), violando a fronteira sagrada do território romano57, dando inicio à guerra civil da qual
saiu vencedor.
Para além de sua vitória, César lançou um programa de reformas políticas, sociais e
administrativas em Roma, tais como: reduzir o problema das dívidas, distribuir terras nas
colônias e províncias, reformar leis e o sistema de cobrança de impostos na Ásia e
recompensar muitos de seus partidários com lugares no Senado. Lançou também uma série de
grandiosos projetos de construção, como o templo de Venus Genetrix, além da reforma do
calendário. Para isso, ele foi nomeado cinco vezes ditador e reviveu a ditadura após trinta
anos da ditadura de Sila. Usou o título de imperator como uma denominação especial e
pessoal, demonstrando sua grandeza militar, que superara muitos outros (CANFORA, 2002,
p.311).
Nomeado ditador perpétuo, Júlio César (Plut. Caes, 57, Suet. 76,1) teve sua efígie
estampada nas moedas, demonstrando assim, sua posição política e o culto a sua
personalidade. Mas César ainda buscava rivalizar com Alexandre o Grande “na mesma parte
do mundo em que Alexandre invadira”, e para isso planejava conter o poderoso reino da
Dácia em uma nova guerra. Entretanto, seus anseios foram interrompidos quando três dias
antes de sua partida para o Oriente, os senadores reuniram-se no teatro de Pompeu, e numa
conspiração, assassinaram o ditador.
Após essa breve contextualização e retornando à discussão sobre as transformações
políticas do final do século I, concordamos com H. Flower de que as evidências mostram que
a velha República, “baseada em um grupo de nobiles essencialmente iguais, não mais existia”,
assim como revelam a mudança nas práticas políticas ao observarmos o confronto entre
Pompeu e César (FLOWER, 2010, p.170).
Por não haver nenhum grupo, seja no Senado ou fora dele, capaz de mediar a situação,
ou que tivesse autoridade suficiente para controlar o exército fazendo com que os soldados
deixassem de seguí-los como clientes, “a desagregação da cultura republicana produziu, um
padrão de senhores da guerra com os exércitos clientes” (FLOWER, 2010, p.32).
Diante de tais colocações e a título de conclusão deste capítulo, lembramos Domingo
P. Suárez (1996, p.17), ao afirmar que através das contradições entre a polis dos basileus
helenísticos e a civitas republicana, é possível observar que as práticas helenísticas
57
Rubicão - o rio marcava a divisão entre a província da Gália Cisalpina e o território da cidade de Roma, limite
mais próximo de Roma ao qual poderia chegar um general com suas legiões. Tal medida visava impedir que os
generais dispusessem dos contingentes militares na cidade. Segundo Suetônio, César teria então proferido a
famosa frase alea jacta est ("a sorte está lançada"). O autor também descreve como César parecia indeciso ao se
aproximar do rio e atribui a decisão de atravessar a uma aparição sobrenatural (Suet. Caes. 32)
62
interagiram no processo de formação do Império Romano, de forma que Roma foi definindo
sua personalidade, adaptando os modelos gregos à satisfação das suas próprias necessidades
em um processo autônomo.
Certamente, as monarquias helenísticas, como o regime imperial romano, surgiram de
determinadas circunstâncias, que em realidade evidenciaram as mudanças culturais daquelas
sociedades, bem como de suas instituições. Nesse sentido, podemos enfocar a formação do
poder pessoal romano, que de algum modo encontra correspondência nos princípios de poder
político presentes nas monarquias helenísticas.
Pode-se dizer que a construção do poder de Alexandre o Grande se apoiou em
princípios legitimadores de poder político, os quais identificamos como vetores de
identificação e legitimação de poder pessoal. Todavia, o primeiro elemento de legitimação,
presente tanto nas sociedades gregas, como posteriormente nos reinos helenísticos, se dava
primeiramente através da vitória e da glória militar, e como vimos ao longo deste capítulo,
também foi traço da cultura e da política romana.
Entretanto, se fizermos um paralelo entre os valores da kalokagathia (a soma de todas
as virtudes) dos reis helenísticos que o capacitava para a realização do bem supremo e para a
felicidade de seus súditos, com as qualidades ideais que embasaram o poder do princeps
equivale em Roma à ideologia da Virtutes Principis, ou seja, as virtudes da clementia,58 a
dignitas, equitas e a pietas (ESCALONA, 2011, p.453). Ou seja, as virtudes do soberano
helenístico certamente apresentam sentidos equivalentes aos ideais de legitimação política dos
romanos.
Entendemos a política de Roma no século I, aliada a outros fatores, caminhou em
direção à ideologia de poder autocrático do tipo helenístico. Portanto, parece-nos evidente que
o paradigma de Alexandre, o Grande interagiu com as noções já existentes em Roma, desde
inícios da República, as quais permitiram a construção do ethos social vinculado à glória, à
vitória militar e à posição divinizada dos imperatores, cuja ação permitiu a criação do laus
imperii (império de louvor) e a noção de um império ilimitado (BRUNT, 1978, p.162). Logo,
a apropriação do paradigma de Alexandre pelos generais romanos em conflito, durante o final
do período republicano, contribuiu para acentuar o caráter pessoal do poder destes.
58
Clementia - considerada tanto um atributo pessoal, como uma virtude pública do cidadão durante a República,
fazia parte do código de conduta romana. Na República tardia, os romanos usavam para elogiar as supostas
qualidades de seus antepassados, que incluía, entre outros clementia, misericordia, mansuetudo, temperantia,
lenitas, benevolentia. Segundo M. López (2013, p.471), com Júlio César, a noção de clementia mudou para a
noção de conduta misericordiosa com os demais.
63
Capítulo 3
Alexandre, o Grande e a imagem do poder pessoal
Alexandre o Grande, considerado um dos maiores generais do mundo, uma figura quase
lendária, permanece no imaginário social. E suas imagens ajudam a manter vivo o mito: seja
através das obras de arte, dos livros, ou mesmo dos filmes, o conquistador macedônio
permanece ícone de herói na atualidade. Nesse sentido verificamos que, para além da ideologia
de vitória militar, Alexandre o Grande também utilizou as obras artísticas como uma forma de
publicizar sua ideologia legitimadora de poder autocrático.
Em seu aspecto discursivo, a arte permite que a linguagem das imagens e o sentido
simbólico das representações sirvam à comunicação política. Os objetos artísticos, por sua
vez, também podem ser analisados em seu aspecto funcional quando buscamos compreender a
função estética das obras de arte na dimensão de seu significado histórico (STEWART, 2003;
SCHMITT, 2007). Neste capítulo objetivamos analisar a construção das representações de
Alexandre o Grande, isto é, identificar os modelos e as formas artísticas como expressão do
desenvolvimento da linguagem das imagens na comunicação política em seus discursos
visuais. Para tal, antes faremos algumas considerações sobre o helenismo, sobre as ações do
general macedônio no decorrer de suas campanhas militares e a formação dos reinos
helenísticos.
O período helenístico é uma construção historiográfica moderna e o termo surgiu a
partir da publicação do livro chamado Geschichte des Hellenismus (História do helenismo)
escrito por Johann Gustav Droysen em 1836. Ao fixar os limites cronológicos entre a morte
de Alexandre o Grande (323) até o fim da dinastia independente dos lágidas do Egito (31), o
autor nomeou o período de ‘helenismo’ e até os dias atuais a historiografia utiliza esses
marcos temporais para designar a época ‘helenística’. No entanto, o interesse de Droysen era
relacionar o contexto da unificação do Estado alemão à “unificação” empreendida por
Alexandre e seus sucessores, mas também significava a fusão das culturas grega e oriental que
forneceu um solo fértil para surgimento do cristianismo (BOSWORTH, 2006, p.9-10).
Na maior parte do século XX, de certo modo, o período helenístico foi relegado e, se
comparado a outros períodos da antiguidade, é pouco conhecido, configurando uma lacuna
intelectual. Esse quadro adveio da ideia negativa de que esse momento histórico assinalava o
epílogo da civilização clássica com a perda de seus valores e qualidades, pois já não
comungava do espírito cívico grego e das instituições democráticas. Quer dizer, as visões
64
eurocêntricas desenvolveram estudos tendenciosos, nos quais a civilização helenística
caracterizava-se como uma civilização inferior devido ao contato com as sociedades orientais.
Esse pensamento não é mais aceito pelos estudiosos atuais, no entanto, de alguma forma,
permanece arraigada a ideia de Alexandre como fundador de novos tempos (BOSWORTH,
2006, p.10).
O cenário historiográfico mudou, principalmente a partir da década de 1980, quando
se observa um interesse e aprofundamento nos estudos históricos, culturais e arqueológicos do
período. De acordo com Sales (2005, p.576), os estudos têm evidenciado “o peso e
importância da época Helenística como um dos mais fecundos períodos da história humana”.
Ou seja, o período helenístico é importante não só pelo que ele significou no mundo antigo,
mas também pelo que representou em épocas posteriores. Apesar de sua visão apologética e
das generalizações acerca da culta grega, concordamos com Pierre Lévêque (1987, p.57) ao
dizer que as instituições helenísticas estavam carregadas “de futuro,” tanto prática quanto
ideologicamente se pensarmos na arte e na filosofia grega.
As conquistas de Alexandre o Grande sobre o Império persa abrangeram uma extensão
territorial inusitada até aquele momento e integrou de forma mais intensa o Egito, Ásia
Menor, o Ponto, a Síria e Palestina, a Mesopotâmia, além de uma parte da Índia. Todavia, é
necessário lembrar que a nova configuração geopolítica não inaugurou o contato entre as duas
regiões, visto que a Grécia mantinha relações com o Egito e o Oriente há muitos séculos. O
que se percebe foi uma intensificação das trocas comerciais e culturais proporcionada pela
unificação territorial liderada pelas elites gregas e macedônias e pela instauração dos novos
impérios, principalmente o Lágida, Selêucida e Macedônio.
No entanto, quando falamos do helenismo como um movimento que levou a cultura
grega para o Oriente, é preciso ressaltar que nem a cultura grega e nem a dos povos do antigo
Império Persa se configuravam como um bloco uniforme. Ou seja, não podemos atribuir ao
mundo helenístico uma homogeneidade cultural e ignorar as diferenças regionais de um
território imenso e heterogêneo como o que se constituiu no final do século IV.59
Contudo, ao olharmos a Hélade, é possível identificar elementos comuns,
especialmente o idioma e o panteão religioso com suas práticas e rituais característicos dos
povos helênicos. Apesar das nuances e das diferenças regionais, os elementos culturais gregos
59
Concordamos com L. Levine (1998, p.16-17) ao definir o helenismo como o meio cultural, amplamente grego,
dos períodos helenístico, romano e uma extensão mais limitada do período bizantino. Por helenização, o autor
considera o processo de adoção e adaptação desta cultura em um nível local, significa dizer que a helenização
não deve ser vista como um processo homogêneo, mas repleto de especificidades locais, resultado do encontro
da cultura grega com as múltiplas e variadas culturais locais dispostas no Mediterrâneo, no Egeu e para além
desses dois mares.
65
foram levados ao Oriente pela inserção de comerciantes, pensadores, filósofos, artistas,
viajantes e soldados que difundiram usos, costumes e as instituições gregas nesses espaços.
Mesmo assim, não há evidências de que as populações locais tenham adotado a língua e a
religião do conquistador de maneira universal.
O mundo helenístico, formado a partir do encontro e contato de variadas sociedades, é
caracterizado pela intensa troca cultural entre aquelas populações. Nesse sentido, partimos da
premissa que nenhuma cultura existe de maneira isolada, sendo o resultado das interações
entre diversas tradições culturais, para assim, compreendermos como ocorrem as
transformações nas diversas culturas.
Seguindo o raciocínio estabelecido por Sahlins (1990, p.180), “a cultura é
historicamente reproduzida e alterada na ação”, o que significa dizer que existe sim uma
“transformação estrutural”, e consequentemente, há também uma “mudança sistêmica”
porque a cultura se encontra inserida na própria História e por isso está em constante
movimento, não permanecendo estática ou pré-definida. Ou seja, a reprodução cultural é
sempre uma alteração, quer dizer, para a cultura se manter, ela deve se modificar para
continuar sendo ela mesma. Sahlins conclui que a cultura funciona como um espaço de
encontro, “uma síntese de estabilidade e mudança, de passado e presente, de diacronia e
sincronia”. Implica dizer, no momento em que as culturas grega e oriental se encontraram a
partir das conquistas de Alexandre Magno, podemos “admitir que os agentes envolvidos
diretamente nesses encontros nunca mais foram os mesmos.” (CHEVITARESE, 2007b, p.20)60
Nessa perspectiva, é importante reconhecer algumas das estratégias que permitiram
que os diversos grupos se mantivessem unidos e sentindo-se “identificados culturalmente” se
reconhecessem como iguais. O pertencimento a um grupo, a uma sociedade, é uma construção
social e cultural que pode ser analisado a partir de “interpenetrações do patrimônio simbólico
cultural” e das apropriações e ressignificações que possibilitam entender o surgimento da
identidade cultural (BUSTAMANTE, 2006, p.111).
Nesse sentido, a civilização helenística constitui-se de uma série de continuidades e
transformações sociais, econômicas e culturais entre as sociedades grega e oriental. Nessa
direção, a difusão do idioma grego, das técnicas, do comércio, das artes, além do desejo das
elites locais que buscavam ascender no contexto das novas monarquias, contribuiu como
vetores da helenização das sociedades orientais.
60
Para uma discussão sobre as várias possibilidades de contatos antes do quarto século a partir da perspectiva de
M. Sahlins, ver A. Chevitarese (2004).
66
Por outro lado, não se pode ignorar que o contato dos gregos (que também nunca se
constituíram numa unidade cultural) com as antigas civilizações da Pérsia, Babilônia e Egito
possibilitou o confronto dos ideais de simplicidade e democracia dos gregos com a
extravagância e o luxo das monarquias orientais. Certamente o contato foi desigual em ambos
os lados, digamos assim, ao longo de quase três séculos produziu uma cultura heterogênea na
região.
Segundo J. Sales (2005, p.572), a civilização helenística não partilhava mais dos ideais
da civilização grega clássica como o “nacionalismo” helênico, da polis ou do espírito cívico
das instituições democráticas. É certo que Alexandre não acabou com o modelo de civilização
clássica, no máximo pode ter precipitado um processo que já se desenhava. Porém, com as
conquistas territoriais, Alexandre levou o ideal de cosmopolis, que na perspectiva estoica de
Zenão, seria um mundo sem fronteiras, assim como a imagem do monarca ideal (MOSSÉ,
2001, p.119).
Destacamos a importância das cidades no contexto helenístico, pois a urbanização se
apresentou como um ponto em comum nessas sociedades. A prática de fundação de grandes
cidades, tais como Alexandria, Pérgamo, Antioquia, Éfeso, Cirene, costumeira entre os reis
helenísticos, a começar pelo próprio Alexandre, serviram posteriormente como centros
irradiadores do desenvolvimento citadino, mas principalmente como forma de estender o
paradigma cultural grego.
Entretanto, segundo Bosworth (2006, p.17-18), poucas são as evidências de uma
missão cultural nas ações fundadoras do conquistador macedônio e, ao que parece, a maioria
das “Alexandrias” foram criadas objetivando serem bases militares. Todavia, algumas dessas
cidades tinham recursos capazes de suportar a expansão das mesmas. Ainda segundo o autor,
ocorreu que os colonos gradualmente usaram a renda para construções típicas da cultura
helênica como teatros e ginásios.
Podemos dizer que, diferente da civilização grega, com seu “espírito cívico”, o
nacionalismo helênico e as “instituições democráticas”, que nunca constituíram um império,
as posteriores monarquias helenísticas, deram ênfase às cidades. As metrópoles voltadas a
oikoumene61 ensejaram laços diplomáticos, assim como direitos locais aos estrangeiros. Esse
novo traço citadino atraiu as mais variadas populações e culturas aos centros urbanos. Na
61
José Sales explica que a visão ecumênica e cosmopolita dos novos tempos é bem traduzida pelo cínico
Diógenes: “Sou um kosmopolítes (cidadão do mundo)”. Assim como pelo estoico Zenão que concebia um mundo
sem fronteiras ou Estados, onde todos os cidadãos fossem iguais e unidos por sua expressa vontade e por um
forte sentimento de amor coletivo (cf. María Daraki, Gilbert Romeyer-Dherbey, El mundo helenístico: cínicos,
estoicos y epicúreos, Madrid, Ediciones Akal, 1996 apud SALES, 2007, p.577).
67
configuração imperial do mundo helenístico, “o papel das novas cidades ‘gregas’ não foi
político” (SALES, 2005, p.571-2), mas, principalmente, cultural.
Para P. Lévêque (1987, p.15), Alexandre percebeu que um meio possível de tentar a
“unificação progressiva” do império seria através das trocas comerciais. Habilmente impôs a
moeda única, as do tipo macedônicas com o padrão Ático em substituição aos pesados daricos
(as moedas de ouro cunhadas pelo Grande Rei, Dario I). O comércio de espécimes animais ou
vegetais, mas principalmente as trocas humanas em consequência das estradas, canais, portos,
lagos, barcos que ele construiu ou reconstruiu ensejaram as comunicações. Ao conquistar o
Egito e a Ásia, conseguiu a interpenetração das civilizações helênicas e orientais, e na
sequência, facilitou a maior interação entre as comunidades.
O jovem príncipe, “apaixonado pelas coisas do espírito, e que carregava consigo a
Ilíada com anotações de seu mestre” (LÉVÊQUE, 1987, p.17), cuja educação foi confiada ao
filósofo Aristóteles, desde os treze anos de idade estudou filosofia, história e poesia através de
Homero, Heródoto e Eurípedes, aprofundando-se na cultura helênica. Preparado para a
sucessão, seguindo a tradição macedônica, iniciou-se na guerra combatendo ao lado do pai em
Queroneia, já mostrando seu potencial militar. Quando Felipe foi assassinado,62 Alexandre
tinha vinte anos e como filho mais velho, foi aclamado rei pelo exército.
Alexandre III logo mostrou suas habilidades de comando, seguindo o exemplo do pai.
Pelo lado materno, foi muito influenciado pela tradição mística de sua mãe Olímpia63 que teve
papel relevante na personalidade do futuro rei. Iniciada nos mistérios de Samotrácia (Plut.
Alex. 2.2) reforçava a crença divina do filho, reverenciando-o como um legítimo deus. De
forma que o jovem príncipe foi criado venerando seus antepassados míticos e acreditando em
sua ascendência duplamente divina: pelo lado do pai como descendente de Hércules, enquanto
ligava-se a Aquiles e Príamo pela dinastia da mãe (Plut. Moralia, 2.1), tanto que foi celebrar
essa ligação em Tróia quando chegou à Ásia (Plut. Alex. 15.8–9) reproduzindo, de algum
modo, a epopeia de Homero.
62
Felipe II – (382-336 a.E.C.) Filho do rei Amintas III, governou a Macedônia entre 359 a 336 a.E.C. na época
em que o país estava dominado pelos ilírios. Felipe formou um exército forte e eficaz que aliado as suas
habilidades militares, libertou o reino. A região fazia fronteira com a Grécia e o mundo considerado bárbaro,
mas após os conflitos com a Tessália e a intervenção de Tebas garantiu seu lugar de autoridade no cenário grego.
O rei mostrou-se moderado em relação aos derrotados ao demonstrar grande clemência. Mas Felipe também
soube usar a força como instrumento de dominação quando necessário. Foi assassinado por Pausânias de
Oréstide (Plut. Alex, 10.8)
63
Em uma aliança com a casa real molossiana, Felipe casou-se com Olímpia (sua quarta esposa), pertencente à
família real dos Molossos, os Eácidas que se diziam descendentes de Aquiles. O rei repudiou-a mais tarde para
casar-se com Cleópatra, uma nobre macedônia. Este arranjo significava que Olímpia seria uma concubina e seu
filho, um bastardo. Acredita-se em seu envolvimento na conspiração pela morte do rei.
68
A ideia de descendência divina não era novidade no mundo grego. Existiram antes de
Alexandre III algumas experiências de governos autocráticos legitimados pela ascendência
mítica. Clearco, por exemplo, instaurou em Eracleia do Ponto64 uma tirania proclamando-se
filho de Zeus (LÉVÊQUE, 1987, p.16). E o próprio Filipe II, pouco antes de sua morte,
representou a si mesmo em um conjunto estatuário onde ele figurava à frente dos doze deuses
olímpicos. O rei havia iniciado, na entrada da área sagrada da cidade de Olímpia, uma
construção para acomodar estátuas de ouro e marfim (materiais tradicionais das imagens de
culto). De acordo como Bosworth (2006, p.19) não sabemos exatamente a intenção do rei,
pois o monumento foi concluído após seu assassinato, mas as imagens dele mesmo, de seu pai
Amintas III e de seu filho, levam a pensar em culto heroico. Para o autor, Alexandre quis
exibir “três gerações de governantes quase divinos e que culminavam nele próprio.”
Contudo, a análise do modelo de governo grego e macedônio revela o porquê da
guerra ser tão importante para os basileus helenísticos. No mundo antigo, cabia ao governante
provar sua heroicidade de forma a conferir legitimidade a seu governo. Os Deinomenidas e os
Batíadas de Cirene, por exemplo, buscaram legitimar suas respectivas dinastias insistindo em
“fundações heroicas e no significado cósmico do ato de governar” (MITCHELL, 2011, p.146153). Ou seja, o modelo de fundação das colônias gregas e o culto ao herói fundador
constituía uma prática do mundo grego.
Nesse sentido, o primeiro ato de legitimação de poder empreendido por Alexandre foi
confirmar-se como chefe pelo seu exército. Este, reunido em assembleia, realizou uma
cerimônia ligada à tradição relacionada às origens da dinastia macedônia, que desde os
tempos arcaicos, heroicizava e mitificava seus antepassados. Claude Mossé (2001, p.84-7)
nega a existência de qualquer transgressão das regras políticas ou religiosas nas ações de
Alexandre ao subir o trono visto que o empreendimento militar era o elemento chave na
ideologia de governo e identidade da polis.
Ao examinarmos as campanhas do macedônio, percebemos que o rápido resultado de
suas expedições no Leste e seus atos heroicos tiveram grande impacto nas sociedades gregas e
orientais. Seus feitos militares e as conquistas territoriais, em pouco mais de uma década,
formaram um império de proporções inimaginadas e foram fundamentais para a construção de
sua imagem de herói.
O início das campanhas de Alexandre ocorreu assim que ele se confirmou como
sucessor do pai e continuador do domínio da Grécia. Logo empreendeu guerras simultâneas
64
Clearco (c. 401-353 a.E.C.) foi tirano de Heracleia Pôntica (na costa do mar Negro, na Turquia), uma antiga
cidade na Bitínia, então Ásia Menor.
69
nas montanhas da Trácia e no Danúbio, e conseguiu submeter algumas tribos celtas no curso
dessa campanha. A habilidade e a coragem prontamente lhe conferiram fama.
Ao mesmo tempo, algumas cidades gregas ao sul se agitaram e iniciaram movimentos
contra a dominação Macedônica. Tebas liderou a revolta, mas foi rapidamente vencida pelo
novo rei que arrasou a cidade, assassinando e reduzindo a escravidão os sobreviventes (Plut.
Alex. 11.12), sendo as únicas exceções os templos e da casa do poeta Píndaro.65 Mas, assim
como fez seu pai, foi generoso e benevolente com a cidade de Atenas. Pouco depois da vitória
sobre a Grécia, Alexandre mobilizou o exército macedônio, bem como os contingentes da
Liga Helênica66 e invadiu o Império Persa (mapa 2).
Mapa 2. Campanhas de Alexandre o Grande.
Fonte: Glenn Bugh, The Cambridge Companion to the Hellenistic World, 2006. p.xxiv
Na Ásia Menor libertou Sardes (a velha cidade real da Lídia) e depois Éfeso. Nomeou
um macedônio como governador e deu-lhe o título de sátrapa67, proibiu a pilhagem, manteve
os impostos e reconstruiu Tróia, demonstrando intenção de governar a região. O encontro
entre Alexandre e Dario aconteceu em Isso (333), na costa sudeste da Ásia Menor. Ao
65
"nos é dito que Alexandre preservou a casa de Píndaro, o poeta, e os descendentes de Píndaro" (Arriano,
Anabasis I.9.10).
66
A Liga Helênica (união das cidades gregas) - Ao perceberem a ameaça do norte (Macedônia), os atenienses
propuseram uma aliança com as outras cidades gregas para combater o rei macedônio, mas já era tarde. A Liga
não tinha recursos suficientes e caíram sobre as forças de Filipe na Batalha de Queroneia. O objetivo de Filipe II
era conquistar a Grécia e depois o império Persa.
67
Sátrapas - governadores das províncias, chamadas satrapias no antigo império Persa dos aquemênida. Após a
conquista, Alexandre manteve basicamente o mesmo sistema administrativo.
70
perceber a derrota, o rei fugiu para além do rio Eufrates. Alexandre apoderou-se da tenda real
e dos tesouros deixados para trás, assim como da família do rei.
Ao chegar ao Egito, Alexandre foi recebido em Mênfis como libertador e, ao que
parece, mudou os rumos das conquistas. Dominar o Egito não constava no programa da Liga
de Corinto,68 de forma que ele tomou o “cuidado de não anexá-lo ao império”, respeitando sua
autonomia ao evitar nomear um sátrapa (MOSSÉ, 2004, p.30). No antigo império dos faraós,
Alexandre celebrou jogos gregos e fez sacrifícios aos deuses egípcios, ao mesmo tempo em
que colocou a dupla coroa do Egito e solicitou a investidura divina do oráculo de Amon, que
os gregos chamavam Zeus Amon. Após peregrinar no deserto e chegar a Siwah, o sacerdote
teria dito que Alexandre era filho de Zeus. Segundo Plutarco,69 o episódio não foi nada mais
que um erro de pronúncia do sacerdote egípcio. Verdade ou não, o fato é que, a partir desse
momento e no decorrer das conquistas, o herói usará essa prerrogativa de ascendência divina
como elemento de legitimação política.
Depois de um ano no Egito, Alexandre avançou pela Ásia, atravessou o rio Eufrates e
depois o Tigre atrás do rei Dario. Uma a uma, as antigas capitais caíram sob seu poder, e após
os babilônios se renderem, Alexandre oferece sacrifício a Marduk e se faz reconhecer “rei das
quatro partes do mundo”. Em Susa recuperou um grupo de estátuas roubadas por Xerxes dos
atenienses. Em Persépolis, infelizmente, deixou a soldadesca incendiar a bela cidade.
Podemos dizer que na realidade o império persa já havia ruído e não deixa de ser simbólico
Alexandre encontrar as estátuas dos tiranos Hermódio e Aristogíton, roubadas de Atenas
cento e cinquenta anos antes e devolvê-las aos seus donos.
Após o assassinato de Dario pelo sátrapa da Bactriana, o vitorioso general concedeu
funeral solene ao antigo rei e proclamou-se herdeiro dos aquêmenidas.70 Porém, desejando
conquistar a Índia, Alexandre novamente demonstra suas habilidades militares ao vencer a
batalha contra Poro, mas perdeu seu cavalo Bucéfalo durante esse combate. Rumando em
direção do rio Ganges, o exército fatigado por tão prodigiosa façanha, se recusou a continuar.
68
Liga de Corinto – Após a vitória em Queronéia, Filipe II emergiu como o poder dominante do mundo
helênico. Agindo com diplomacia, não humilhou as cidades vencidas. A hegemonia macedônica foi estabelecida
sobre a Grécia em uma reunião convocada pelo macedônio (337 a.E.C.), que incluía todos os estados gregos,
exceto Esparta. A Liga garantiria a paz geral, a autonomia interna dos Estados, exceto para suprimir revoluções e
uma aliança sob o comando de Filipe, que logo declarou guerra contra o Império Persa.
69
And some say that the prophet, wishing to show his friendliness by addressing him with "O paidion," or O my
son, in his foreign pronunciation ended the words with "s" instead of "n," and said, "O paidios," and that
Alexander was pleased at the slip in pronunciation, and a story became current that the god had addressed him
with "O pai Dios," or “O son of Zeus” (Plut. Alex. 27.9)
70
Dinastia aquemênida (c. 550–330 a.E.C.) - primeiro Império Persa, foi um império iraniano fundado no século
VI a.C. por Ciro, o Grande e situado no Sudoeste da Ásia. Por volta do século V a.E.C. estendia-se do vale do
Indo até a fronteira nordeste da Grécia, posteriormente também controlaria o Egito - o que fez dele o maior
império até então.
71
Porém, antes de voltar, o general ergueu na margem ocidental do rio Hífaso doze altares
rodeando uma coluna cuja inscrição dizia: “Aqui parou Alexandre” (LÉVÊQUE, 1987, p.13).
De volta à Babilônia, sua morte (323) repentina o impediu de prosseguir com seus planos de
conquistar Cartago e o Ocidente71 (Plut. Alex. 68 1,2).
Vale destacar que em sua empreitada, Alexandre acrescentou às possessões de seu pai
(o reino da Macedônia e a Liga Helênica) nada menos do que Império Aquemênida. Podemos
dizer que, aliando sua genialidade militar, sua força e heroicidade, Alexandre morreu chefe da
liga helênica, “faraó do Egito”, “rei das quatro partes do mundo” na Babilônia, “o Grande rei”
após a morte de Dario e “Senhor da Ásia”. Não sem razão Alexandre se tornou modelo de
conquistador e herói militar, admirado por generais como Pirro, Pompeu, César e Augusto, e
denominado “o Grande” em Roma.
Todavia, para além das conquistas territoriais, percebemos mudanças na ideologia de
poder relacionadas ao jovem general. Ainda na Ásia, observamos que seu papel foi o de
libertador das cidades gregas da tutela persa. Porém, foi em solo egípcio, que identificamos o
início da progressiva divinização das ações e da pessoa de Alexandre. No Egito, o herói foi
saudado pelo sacerdote de Amon no oásis da Líbia como o filho de um deus e, portanto, ele
também um deus.
Na visão racionalista e cética de alguns estudiosos, como por exemplo, Arnold
Toynbee (1975, p.128-9), esse evento demonstra que a divinização do general macedônio teve
apenas finalidade diplomática, pois “um deus oficialmente reconhecido podia ditar leis às
criptodivindades, às cidades-estados, sem menosprezar-lhes formalmente a soberania”.
Difícil pensar que Alexandre não percebeu as vantagens que tiraria da sua divinização,
considerando que o culto ao soberano, ao deus vivo e epifâneo, seria “capaz de fornecer
indispensável unidade a um império desmedido, para além da diversidade das terras, dos
povos, das religiões” (LÉVÊQUE, 1987, p.15). Todavia, não podemos esquecer que ele era
um homem do seu tempo, tinha o exemplo de seu pai e, ao que parece, estava predisposto a
pensar-se divino.
A afirmação do oráculo de Siwah quanto à ascendência olímpica de Alexandre, após
tantos atos de bravura, conquistas, vitórias e façanhas bem sucedidas nos campos de batalha,
fazia todo sentido para ele e para seus companheiros de armas, crer em sua heroicidade
71
Segundo Michael Flower (2000, p.132) as fontes são unânimes em dizer que Alexandre pretendia fazer
campanha no oeste, mais precisamente com as cidades gregas da Sicília e o sul da Itália de forma a libertá-las do
dominio de Cartago. Para A. B. Bosworth (2006, p.11) não há dúvidas que foi creditada a Alexandre um desejo
ilimitado para a conquista. Embora Arriano (7. I.3-4) relate que algumas de suas fontes afirmaram a intenção de
Alexandre em seguir ao Ocidente, ele mesmo não tinha certeza quanto às intenções de Alexandre. Uma
discussão sobre os planos futuros de Alexandre está em A. B. Bosworth 1988.
72
divina. De acordo Bosworth (2006, p.19-20), a rivalidade com Hércules, e mais tarde com
Dionísio, encontrada nas evidências arqueológicas, sugerem que o herói se fazia da mesma
essência dos seus modelos divinos.
Não se pode esquecer que no contexto grego do período arcaico e clássico, como
refere Aristóteles,72 a basileia ao contrário da tirania, era baseada no excesso de virtude
(arete) do indivíduo, da família, nas ações pessoais ou na soma de todos esses aspectos. Por
isso a importância das façanhas militares e das conquistas territoriais para Alexandre, pois a
natureza de sua autoridade vinha da ideologia da vitória (MOSSÉ, 2004, p.142).
O chefe macedônio buscou, pelo menos perante os gregos, afastar a imagem de tirano.
Em Atenas, por exemplo, ele foi deificado como deus invicto (aniketos theos), fato esse que
serviu para mostrar que sua legitimidade relacionava-se às divindades e aos heróis do mundo
helênico (MITCHELL, 2011, p.148). Contudo, é inegável que a partir do contato com o
Oriente, Alexandre reforçou ideia de chefia militar, unindo-a a ideia de realeza.
Na Grécia, somente os heróis e os fundadores de cidades recebiam culto. No Oriente,
por outro lado, as monarquias teocráticas já existiam há milênios, como por exemplo, no
Egito onde o Faraó era um deus em si, ou no caso da Mesopotâmia onde o soberano era o
arauto dos deuses.
Foi neste cenário complexo que Alexandre encontrou as condições favoráveis para a
fundação do culto real, ou seja, um novo culto de adoração a um deus-herói que combinava as
características divinas e humanas às qualidades heroicas tendo em vista sua propagada
descendência de Hércules e Aquiles e de Zeus-Amon (ao mesmo tempo). Ao impor o culto à
sua pessoa, resultado do culto à divindade greco-egípcia, vemos o germe da monarquia
helenística, produto da fusão entre a concepção grega que legitimava o poder, e a concepção
oriental que legitimava o direito divino (LA VEGA, 1995, p.35).
É sabido pela documentação que Alexandre exibia uma afinidade crescente com as
instituições, práticas e valores dos vencidos, o que teria irritado alguns de seus oficiais
macedônios, mas que não era totalmente fora de sintonia com as atitudes helênicas.
Entendemos que ao levar a cultura grega para o leste, o conquistador também absorveu as
tradições e as práticas orientais: adotou hábitos persas, respeitou os novos súditos e se casou
com uma nobre persa.73 Mais do que a extensão territorial, as conquistas do general
possibilitaram o aumento dos contatos entre os povos do Mediterrâneo, criando maior
72
Politica 1288 a 15-19; 28-29.
Roxana (c.340-309 a.E.C) –Após vencer o local, o conquistador casa-se com a princesa em uma cerimônia de
acordo com os ritos iranianas (327 a.E.C.) e depois de sua morte, ela deu à luz a Alexandre IV.
73
73
familiaridade, mas sem excluir a possibilidade de tensão entre as identidades (GRUEN, 2006,
p.297).
Certamente Alexandre não foi, efetivamente, o fundador de uma nova era. Mas
podemos dizer que, a partir dele e dos eventos posteriores ao fim do seu império, vemos
indícios de novos modelos de sociedade política que possibilitaram igualmente novos
sistemas imperiais “portadores do germe da futura cosmogonia romana” centrados na
concepção de monarquia personalista e individual inserida na ideia de universalismo
cosmopolita (LA VEGA, 1995, p.34).
Por último, concordamos com Bosworth (2006, p.22-3) que a campanha de Alexandre
caracterizou-se pela contínua aquisição de poder militar e recursos da Macedônia, ampliados
pelas vastas reservas de ouro do Império Persa. Mas a monarquia alexandrina, baseada na
conquista externa e no acúmulo de forças militares, a partir da sua morte, foi dispersa pelas
contendas posteriores. Para o autor, na prática, Alexandre teve pouco efeito concreto sobre os
regimes que o sucederam, mas continuou a ser um símbolo de invencibilidade e de um
Império mundial.
No contexto da formação dos reinos helenísticos, conforme veremos a seguir,
podemos dizer que as extraordinárias façanhas militares e o seu significado heroico
contribuíram para a ideologia legitimadora de poder político que tornaram Alexandre o
Grande paradigma de poder autocrático que chegou a Roma.
3.1 Os reinos helenísticos
O surgimento dos principais Estados do mundo helênico foi o resultado de uma série
complexa de eventos. Porém, a personalidade influente de Alexandre o Grande permaneceu,
mesmo após sua morte, deixando marcas em seus sucessores. Uma geração e meia de guerras
quase constantes entre os macedônios, os diádocos (Diadokhoi), mostra o contexto em que
foram formados os reinos helenísticos. A mistura de várias tradições e a força da
personalidade dos sucessores foram elementos integrantes da realeza helenística (ADAMS,
2006, p.28).
No processo de conquista, Alexandre não organizou nenhuma nova estrutura de
governo imperial, pois sua abordagem tinha sido recompor as instituições persas existentes ao
dividir as funções de cada satrapia nas mãos de seus comandantes gregos ou macedônios. Na
falta de algum deles, o próprio Alexandre era o encarregado. Porém, o macedônio errou ao
74
não escolher um sucessor, pois com sua morte repentina, o império foi repartido entre os
generais mais próximos. Foi deste grupo, e posterior dinastia, que surgiram os três grandes
impérios helenísticos (ADAMS, 2006, p.29), isto é, o Império Ptolomaico no Egito, Império
Selêucida na Ásia e Império Antígona na Macedônia (mapa 3). Além desses, houve a
manutenção e/ ou consolidação de pequenos reinos no Ocidente e no Oriente próximo.
Mapa 3. Os reinos helenísticos e as ligas gregas.
Fonte: Glenn Bugh, The Cambridge Companion to the Hellenistic World, 2006. p.xxvi
Após as guerras de sucessão, houve um razoável equilíbrio de poder entre as três
grandes monarquias helenísticas nascentes da reorganização geopolítica do império. Esses
monarcas vincularam sua própria dinastia à figura de Alexandre o Grande, que havia se
tornado referencial de monarca divino. E nos posteriores processos de sucessão, os reis
helenísticos (basileus) passaram a ser legitimados pelo direito dinástico, como fonte de
justificação régia, mas também como verdadeiros sucessores do império alexandrino
(ADAMS, 2006, p.48-49).
A desintegração do império alexandrino e a instauração de “realezas por toda parte”
demonstra o estabelecimento da monarquia como instituição. E muitos foram os fatores que
contribuíram para essa ideologia política, dentre eles, a filosofia pitagórica e estoica ao
desenvolverem a ideia do “homem forte e providencial” na qual o rei significava a lei viva e
encarnada (nomos empsychos) justificada pelo caráter divino (LÉVÊQUE, 1987, p.51). Para
F. Walbank (1984, p.81-9), outro fator importante era a representação do rei como guerreiro e
lembra que foi na sequência das vitórias militares que os diádocos assumiram seus títulos
75
reais. Ainda segundo esse autor, a população era sensível às vitórias, pois acreditavam na
vontade dos deuses definindo a monarquia. E o rei, ao ser vitorioso, podia proteger seu povo,
ser o salvador (soter) e benfeitor (euergetes).
Vemos que os diádocos uniram à ideologia de vitória ao ideário das teocracias
orientais onde o soberano era visto como filho das divindades, sendo eles mesmos divinos.
Esses elementos nos ajudam a compreender o estabelecimento das monarquias helenísticas.
Nesse sentido, Julián Escalona (2011, p.445ss), a partir da ‘Teoria das três funções’ de
G. Dumizél,74 observa que o monarca helenístico recebia seu poder (basileia) ao manifestar as
funções de guerreiro, governante e sacerdote. Vimos na seção anterior que Alexandre,
seguindo a tradição, legitimou seu poder demonstrando suas habilidades militares. Nos reinos
helenísticos, o monarca antes de tudo é um militar, mas principalmente, um guerreiro
agraciado pela Vitória. Ou seja, o êxito militar revelava a proteção dos deuses, bem como o
aspecto divino do monarca.
A função de governante, por sua vez, se revela na ideologia de líder e protetor do
povo. Um exemplo dessa propaganda pode ser encontrado no Egito ptolomaico que conseguiu
unir sua dinastia às tradições egípcias. Mais especificamente, encontramos em uma moeda
póstuma de Ptolomeu III, 75 uma iconografia que traz o governante representado com a coroa
radiante do deus Hélio e o tridente de Poseidon. Mas é no reverso que a mensagem de
protetor/provedor se explicita pela representação da cornucópia, símbolo de fartura. Além
dessa mensagem visual, não se pode esquecer o epíteto de Evergeta, ou seja, “o benfeitor”
estava associado ao faraó helenístico.
A última, e não menos importante função monárquica foi a atribuição sacerdotal dos
reis helenísticos. O basileus era o celebrante dos ritos religiosos, e também das cerimônias de
caráter ancestral como, por exemplo, a presidência do Areópago. Esses serviços conferiam
uma aura de sacralidade, além de acentuar o engrandecimento da linhagem dinástica,
vinculando-o à divindade.
Isto é, a associação entre a divindade e o humano, fundamental para a ideologia
monárquica helenística, fez do rei a personificação das virtudes (do divino) quando este se
colocou como defensor da humanidade, garantindo assim sua glória. O basileus, como
espelho da divindade, buscava exibir as qualidades essências que o rei deveria reunir tais
como a clemência (epieikeia), a justiça (diakaiosyne) e a beneficência (eunonia) (LA VEGA,
74
Dumezil, (1969, p.195) “a soberania mágica e jurídica, vigor guerreiro, e em quanto ao terceiro mais
complexo, ainda adverte o fator comum as suas manifestações: saúde e alimentação, abundância de homens e de
bens, vinculação ao solo e também paz, aspiração ao doce e tranquilo de uma idade do ouro.”
75
Ref. Catalogue of Coins of the British Museum: CM BMC 103.
76
1995, p.41). Para Ettore Quaranta, seguindo ou não o pensamento estoico da virtude, “a
maioria dos monarcas dedicou-se à philanthropia, pelo menos no que se refere à ajuda às
cidades gregas” (2005, p.191).
Nesse ponto, vale ressaltar que a filosofia contribuiu para a realidade imperial, na
medida em que a necessidade de legitimação do poder monárquico, primeiro por Alexandre e
mais tarde por seus sucessores, deu origem a uma literatura sobre a realeza ideal tendendo a
deificação dos reis. Tanto o epicurismo como o estoicismo, preocupados com a ética, o
autocontrole e a eliminação das paixões serviram ao ideal do sábio, e depois no ideal do rei
justo. No Império romano, encontramos exemplos de conselheiros que combinavam os papeis
de mentores da moral e da filosofia junto aos imperadores. Nesse sentido, o estoicismo
estruturou a ética que serviu como diretriz para as ações políticas, bem como a base para
“reprovação moral de um imperador específico ou de suas ações” (GILL, 2006, p.36-7).
Nos séculos II e I, essas correntes filosóficas tornaram-se elemento importante para a
constituição ideológica do imperialismo de Roma. Para J. Davidson (2002, p.202), os
romanos, atraídos pela gravitas e pela autorictas, fizeram com que pensadores se dispusessem
a “temperar e adaptar seus ensinos éticos e políticos às pautas e postulados dos estadistas e
soldados romanos”. Em outras palavras, a ideia de cosmopolis passou ao Estado concreto e o
“modelo de excelência moral não corresponderia mais ao ideal contemplativo”, e sim ao
estadista romano capaz de se distinguir ao servir sua comunidade.76 Podemos ver que os
romanos se apropriaram de aspectos do patrimônio cultural, bem como da realeza helenística
(ADAMS, 2006, p.28).
Podemos dizer que o culto aos monarcas helenísticos também se estabeleceu como
parte das homenagens excepcionais que se concediam em agradecimento aos benefícios
políticos que estes proporcionavam à cidade, mas não só. Para Maria H. de La Vega (1995,
p.33-4), “estas honras e cultos aos reis eram uma expressão das complexas relações existentes
entre os reis e as cidades que tinham como base fundamental a evergesiai”. Para a autora, o
culto ao monarca helenístico teve como modelo o culto divino, e sua organização foi seguida
pelas várias cidades, e é interessante notar que acabou sendo completamente integrado à vida
religiosa e cívica das comunidades.
As cidades, então, tornaram-se palco da propaganda dos reis e a fundação e
urbanização das cidades helenísticas estava estreitamente relacionada à publicização do poder
do soberano. A edificação de monumentos e prédios públicos como teatros e ginásios
76
Para filosofia no período helenístico ver Sharples (2006). Estudos sobre filosofia estoica e epicurista ver:
Hankinson e Inwood (2006). Para Roma ver Novak (1999).
77
serviram para a educação dos jovens, além de tornarem-se centros difusores da cultura
helênica atraindo não só indivíduos das elites locais, bem como de outras regiões do mundo
grego (QUARANTA, 2005, p.192).
3.2 Alexandre e a estética do poder
A fim de analisarmos como a arte serviu ao processo de legitimação do poder,
observamos que para além dos feitos militares, no plano ideológico, importava também a
Alexandre os elementos iconográficos e simbólicos ligados à legitimação do seu poder
monárquico. Interessa-nos o significado político e o modo como Alexandre publicizava seu
poder e legitimidade através da linguagem das imagens.
Em relação à arte helenística, Ernest Gombrich (1981, p.74) diz que esta se caracteriza
pela harmonia entre as formas da arte grega clássica e a necessidade de expressão de
sentimentos, muitas vezes dramáticos e impactantes. Para o autor, “a arte helenística adorava
obras tumultuosas e veementes, desejava ser impressionante”, isto por que o estilo rebuscado
expressava os níveis de complexidade social daquelas sociedades. A profusão de ornamentos
e detalhes na arquitetura combinavam com as recém-fundadas cidades como Antioquia e
Pérgamo, por exemplo.
Jerome J. Pollitt (1986), afirma que o interesse e a importância dada ao estudo da arte
deste período na atualidade estão relacionados ao contexto de criação desses objetos. Para o
historiador, a arte helenística foi produzida por diferentes povos, ao mesmo tempo em que
circulava pelas diferentes regiões do império. De forma que a conjuntura de produção da arte
helenística se assemelha ao contexto moderno onde se produz e consome arte (e imagens) de
regiões e povos distintos.
Beard e Henderson (2001, p.5), por sua vez, afirmam que o mundo incorporado por
Roma (as cidades e reinos helenísticos), era “uma fervente multicultura mundial”. Para os
autores, “o helenismo estava em todo lugar, e não menos na Grécia, mas em todo
Mediterrâneo”, e o que chamamos de arte grega foi mediada pelo pensamento romano.
Já para Andrew Stewart (2006, p.158), a arte grega mudou profundamente sob
Alexandre. A partir da análise da escultura, pintura, arquitetura e urbanismo, o autor acredita
que a cominação de um jovem rei, audacioso e sugestivo, aliado a um conjunto de artistas
extremamente talentosos contribuiu para que a arte grega não fosse apenas reproduzida ou
78
repudiada, mas que o “ideal helenístico, na arte e nas letras, foi envolver o passado de forma
criativa.”77
Ao examinarmos os bustos, estátuas, moedas e mesmo as cerimônias religiosas,
referentes ao herói, encontramos: o uso da tiara ou diadema (a fita com nó na nuca) adotado
por ele após a morte de Dario; a estátua equestre e do esquema do cavaleiro sobre cavalo,
atributos de autoridade e poder, além da representação com os cornos de carneiro para mostrar
sua relação com Zeus Amon. Podemos dizer que Alexandre utilizou os signa e esquemas
iconográficos existentes na cultura mediterrânea, do Egeu e Oriente próximo, principalmente
os ligados a simbologia representativa da sua heroicidade, ascendência divina e deificação
pessoal. No entanto, essa iconografia foi progressivamente reinterpretada e modificada.
Nesse sentido, podemos identificar as mudanças iconográficas que Alexandre
introduziu na cunhagem, e que aos poucos, se tornaram muito comuns no mundo antigo.
Inicialmente, o herói usou um modelo iconográfico que não era novo na Macedônia, pois
desde que a casa real alegou descendência de Hércules, vários reis já haviam usado a imagem
do semideus em suas cunhagens, inclusive Felipe II utilizou no anverso de uma moeda a
cabeça de Hércules usando a pele do leão de Nemeia (moeda 2).
Moeda 2. Tetradracma (c. 355-348). Anv. Hércules usando a pele do leão de Nemeia.
Rev. Felipe II a cavalo, levantando a mão e cavalgando para a esquerda.78
A inovação de Alexandre foi trazer um novo significado à imagem de Hércules junto
à imagem de Zeus. Pollitt (1986, p.25ss) propôs analisar esse desenvolvimento a partir de
duas fases. A primeira seria a fase mais tradicional desse modelo imagético, e o simbolismo
está na imagem de Hércules como um protótipo de Alexandre, ou seja, “um herói
conquistador e ancestral cujos atos de bravura subjugaram as forças bárbaras e trouxeram
glória para a cultura grega da qual o próprio Alexandre era uma espécie de encarnação”. Zeus,
77
Para Stewart (2006), a arte helenística apresenta uma série de inovações iniciadas com o reinado de Alexandre.
A partir da escultura, pintura, arquitetura e urbanismo, e também das inovações temáticas e mesmo
comportamentais, tais como as coleções, por exemplo, o autor discute as inovações do período helenístico.
78
Tetradracma de prata de Felipe II; Localização: Anfípolis; Inscrição: ΦΙΛΙΠΠΟΥ; Indicação: Le Rider 110
(D51/R93); Imagem: Classical Numismatic Group http://www.cngcoins.com/Coin.aspx?CoinID=84023
79
por sua vez, representa não somente o ancestral dos reis macedônios, mas também o árbitro e
juiz das conquistas heroicas. Isto é, a iconografia significa que Alexandre, organizou os
gregos e macedônios numa força pan-helênica contra o Império persa como um dos doze
trabalhos de Hércules. A propaganda dessa nova ideia pode ser observada nas moedas
cunhadas em Alexandria em c. 325 (moeda 3). De acordo com T. Hölscher (1971, apud
FLORENZANO, 1989, p.27), as fisionomias de Alexandre e Héracles foram manipuladas nas
esculturas e nas moedas conscientemente para tornarem-se semelhantes.
Moeda 3. Alexandre o Grande. Mênfis - Egito (c. 332-323). Anv. Cabeça de Hércules
usando a pele do leão de Nemeia (talvez o retrato de Alexandre)79
Moeda 4. Tetradracma de Lisímaco (c. 305-281). Alexandre, o Grande com tiara no cabelo
que segura os chifres, símbolo de Zeus-Amon. Imagem destina-se a mitificar e deificar o herói macedônio.80
A segunda fase iconográfica das moedas de Alexandre acontece após a conquista do
Egito e a visita dele ao oráculo em Siwah de onde saiu como o próprio filho do deus Amon.
Nesta etapa, a simbologia sugere que Alexandre não seria mais o descendente de Hércules,
mas sim o filho vivo de Zeus cujas façanhas heroicas, como as do próprio Hércules, fizeram
dele um deus, indicada pelos chifres de carneiro, símbolo de Zeus-Amon (moeda 4).
79
Tetradracma de prata de Alexandre; Local: Menfis, Egito; Rev.: Zeus Aetophoros sentado em um banco
(diphros) à esquerda, segurando a águia e cetro, com um vaso a seus pés. Inscrição: AΛEΞAN∆POY; Ind.: M. J.
Price, nº.3971; Imagem: Berlim, State Coin Collection -http://ww2.smb.museum/ikmk/object.php?id=18202968.
Acesso em: dez 2013.
80
Tetradracma de prata de Lisímaco, rei da Trácia; Local: oficina de Lampsaco; Anv.: A tiara com o chifre de Amon
que segura o cabelo destina-se a mitificar e deificar a imagem; Rev.: Atena Nikephoros sentada à esquerda, segurando
Nike na mão direita estendida, cotovelo esquerdo descansando sobre escudo, lança para trás; herma a esquerda
exterior; Insc: ΒΑΣΙΛΣΩΣ – ΛΥΣΙΜΑΧΟΥ; Ind.: Price nº. 3971, Thompson 59; Imagem: British Museum
http://ww2.smb.museum/ikmk/object.php?id=18202968 Acesso em: dez 2013.
80
A partir desses modelos iconográficos, podemos ver uma importante mudança no
sentido simbólico das imagens de Alexandre que são importantes ao nosso entendimento do
processo de construção do poder monárquico. De acordo com Pollitt (1986, p.26), o melhor
dessas moedas está na sutil transformação da cabeça de Hércules tornar-se o retrato de
Alexandre, e podemos constatar essa significativa mudança quando comparamos a efígie das
moedas alexandrinas com os diversos retratos esculpidos nas quais podemos identificar a testa
saliente, a boca estreita e o pousar de lábios que de alguma forma se remetem a serenidade e a
beleza do sorriso arcaico das estátuas dos kouroi (rapaz) ligado à ideia da arete (virtude)
grega.
Em relação ao retrato de Alexandre, uma importante descoberta arqueológica ocorrida
em 1978 trouxe mais evidências aos pesquisadores. O arqueólogo grego Manolis Andronikos
afirmou ter descoberto o local de sepultamento dos reis macedônios na pequena cidade de
Vergina, no norte da Grécia, antiga capital macedonia de Aigai (Αἰγαί). Segundo o
arqueólogo, mesmo com a transferência da capital para Pella sob o reinado de Arquelao (413399), o costume de sepultar os reis na antiga capital permaneceu. A tumba encontrada estava
praticamente intacta e os astefatos indicavam ser o local de sepultamento de Felipe II, pai de
Alexandre o Grande. Estudos feitos em 2010 confirmaram que o crânio masculino encontrado
apresenta um traumatismo consistente com as informações de que Felipe II sofreu uma lesão
facial ainda em vida.
Na tumba foi encontrado um conjunto escultórico que compõe uma cena de caça e
supõe-se representarem o rei e seu filho. Segundo Nigel Spivey (2005), das esculturas
encontradas pelos arqueólogos, uma pequena cabeça sugere ser um retrato de Alexandre III,
pois apresenta semelhança fisionômica com as imagens encontradas em diversas
representações de Alexandre o Grande (fig. 1a-b).
Fig. 1a: Possível retrato Alexandre
Fig. 1b: Possível retrato Alexandre (perfil)
Escultura proveniente da tumba Felipe II em Vergina - Museu de Macedônia. Imagem: N. Spivey, 2005.
81
Sabemos que Alexandre fez de Lisipo81 o escultor da corte e decretou, de acordo com
Plutarco, que nenhum outro artista seria autorizado a fazer sua imagem. Seus bronzes criaram
um novo cânone escultórico ao mostrar um herói quase homérico, “arrojado e jovial, pronto a
fazer um mundo novo” (STEWART, 2006, p.159). Esses retratos, portanto, tornaram-se a
imagem oficial de Alexandre, a imagem que ele gostaria que seus súditos guardassem na
memória (POLLIT, 1986, p.20).
Plutarco também revela que essas imagens conseguiram expressar não só a arete de
Alexandre, mas também seu ethos e seu caráter pessoal, a imagem de alguém cujo papel era
governar e cuja natureza o fez apto para tal, como podemos ver nas duas passagens a seguir:
As estátuas na qual melhor transmite a aparência de Alexandre são as de
Lisipo, que era o único por quem ele queria ser retratado. Pois foi este artista
que capturou exatamente essas características distintivas, ou seja, a postura
do pescoço ligeiramente virados para a esquerda e aquela flexibilidade dos
olhos que tentaram imitar muitos dos sucessores e amigos
(Plut., Alex., 4.1)
E quando Lisipo modelou sua primeira estátua de Alexandre, que
representou o olhar com o rosto voltado para os céus (como, aliás, muitas
vezes, Alexandre fez olhar, com uma ligeira inclinação da cabeça para um
lado), alguém gravou esses versos na estátua, não sem alguma
plausibilidade,
“A estátua de bronze parece proclamar, olhando para Zeus:
Eu coloco a terra sob o meu domínio, você,
Ó Zeus, se mantenha no Olimpo.”
Por esta razão, Alexandre decretou que somente Lisipo deveria fazer seus
retratos. Apenas Lisipo, ao que parece, trouxe seu verdadeiro carater ao
bronze e deu forma à sua essencial excelência. Outros, na ânsia de imitar a
inclinação do seu pescoço e a expressiva flexibilidade do olhar, não
conseguiram preservar a sua viril e leonina qualidade.
(Plut., Moralia, De Alexandri Magni Fortuna aut Virtute 2.2.3)
É significativo que o modelo escultórico criado por Lisipo buscou representar
Alexandre similar ao leão, ligando a força do animal à bravura do herói, tipologia de
representação que já existia na arte grega do século IV. Contudo, a inovação foi que além da
cabeleira leonina com madeixas caindo sobre a testa, o modelo lisipiano aliou a inclinação da
81
Lisipo (c. 390 a.E.C) - natural de Sicíon no Peloponeso, autodidata na arte da escultura, fez grandes inovações
estéticas no século IV ao modificar as proporções do corpo humano estabelecidas por Policleto. Fazendo a
cabeça menor (um oitavo do corpo), tornou as estátuas mais esbeltas, assim como as atitudes mais naturalistas.
Lisipo foi provavelmente o artista mais criativo e influente de todo o período helenístico. Durante os primeiros
75 anos do período, ele e seus alunos, criaram uma nova tipologia de monumentos e concebeu inovações
estilísticas que seriam utilizadas na arte helenista por séculos. Famoso, tornou-se o escultor preferido da corte de
Alexandre o Grande (POLLITT, 1986, p.47).
82
cabeça ao olhar levantado (anastole).82 Segundo E. Quaranta (2012, p.3), o “olhar levantado
pode ser em direção a Zeus, pai de Alexandre”.
Esse modelo representacional influenciou a arte helenística, principalmente nas
estátuas heroicas, assim como se tornou parte do padrão iconográfico dos reis helenísticos,
sendo usado durante séculos por “homens menores que gostavam de se colocar como dignos
sucessores de Alexandre” (POLLITT, 1986, p.20).
Infelizmente, o retrato original de Alexandre feito em bronze por Lisipo não
sobreviveu até nós. Porém, não é difícil identificar em várias representações do general
macedônio as características descritas por Plutarco, ou seja, o cabelo, a inclinação do pescoço
e o olhar erguido. Mas qual deles seria o mais próximo do original? O célebre busto
proveniente da cidade de Pérgamo, datado de cerca de 180, segundo Pollitt (1986, p.20)
transmite a força dramática dos retratos de Lisipo, mas a face saliente, as linhas de expressão,
olhos arredondados e o cabelo de caprichosos caracóis pertencem claramente ao estilo
daquela cidade (fig. 2).
Fig. 2: Cabeça de Alexandre o Grande. Origem: Pérgamo de c. 200.
Museu Arqueológico de Istambul. fonte: J. Pollit, 1996, p.20.
Por sua vez, o monumento que apresenta uma imagem possivelmente feita em vida é a
chamada “herma de Azara” (fig. 3). Esse retrato é considerado a melhor réplica romana do
original de Lisipo que sobreviveu e apresenta a inscrição: ‘Alexandre, Filho de Felipe’. E
mesmo que não houvesse a inscrição, o retrato apresenta as distintivas características citadas
por Plutarco, tais como a forma como o cabelo se eleva acima da testa, pois a anastole do
cabelo foi o traço marcante das representações de Alexandre (POLLITT, 1986, p.21).
82
Essas conclusões advêm em parte das discussões sobre o tema do retrato com o grupo de pesquisa,
especialmente com a pesquisadora Andreia Tamanini.
83
Ainda segundo Pollitt (1986, p.22) há uma impressionante similaridade entre a herma
de Azara e uma pequena estátua em bronze (fig. 4a-b) que também se encontra no Louvre. A
semelhança sugere que ambas, a herma e a estatueta, foram feitas a partir do mesmo original,
fato que ajuda a avaliar “o efeito da composição envolvida no retrato de Lisipo”.
Fig. 3: Cabeça de Alexandre o Grande - “herma de Azara”. Cópia romana de original final do séc. IV
Museu do Louvre – fonte: J. Pollit, 1996, p.21.
Fig. 4a: Estatueta de Alexandre com uma lança83
Fig. 4b: Estatueta de Alexandre (detalhe)
Contudo, um busto menos conhecido, descoberto em Yannitsa, cidade próxima a
capital macedônia de Pella, seria provavelmente a obra que mais se assemelha ao original de
Lisipo (fig. 5). A longa cabeleira que tipifica esta cabeça é característica das imagens do herói
e expressa o espírito da "lenda de Alexandre". Pollit (1986, p.21) acredita ser este o protótipo
de Lisipo para a imagem oficial do rei devido a sua relativa sobriedade e pelo modo como o
83
Bronze baseado talvez em uma estátua de Lisipo de c. 330-325 a.E.C. – Museu do Louvre - A estatueta
representa Alexandre como um conquistador, com lança em sua mão esquerda, enquanto a direita segura uma
espada e veste um toucado. Imagem: http://www.louvre.fr/en/oeuvre-notices/alexander-spear. Acesso em: jan
2014.
84
tratamento geral dos olhos e dos cabelos foram feitos. Para o autor, esta obra aproxima o
busto do estilo grego do final do quarto e início do terceiro século.
Fig. 5: Cabeça de Alexandre o Grande - Mármore. Museu Arqueológico de Pella
O retrato pode ser datado do tempo de Filipe V ou Perseus (c. 200-150). fonte: J. Pollit, 1996, p.21.
As escolhas estilísticas de Lisipo refletem o desejo e a necessidade de Alexandre ter
uma imagem oficial. Inicialmente o escultor foi um artista tradicional, mas com espírito
inovador e atendendo a necessidade de seu patrono, “se preocupou particularmente com a
aparência e o efeito que sua obra teria sobre os espectadores”. O artista parece “ter sido
dotado de uma sutil e sofisticada (...) ‘mentalidade teatral’ no sentido de que muitas de suas
obras foram projetadas para surpreender e emocionar àqueles que as viram” (POLLITT, 1986,
p.48).
No entanto, a nós, não importa saber se Alexandre tinha realmente essas características
fisionômicas ou não. A questão central aqui é perceber que através das imagens, carregadas
de estratégias iconográficas e ideológicas, tornaram-se um discurso visual que serviu ao
processo de legitimação de poder. Sua imagem oficial, o retrato, parece ter sido importante
para ele promover-se e afirmar seu domínio nas áreas que conquistava. Cabe ressaltar que
Alexandre criou um estilo, ou mesmo uma marca visual que se tornou a sua própria imagem,
ao usar sua face para se tornar reconhecível em todo lugar. Ele inventou o que podemos
chamar de retrato político e uma estratégia inédita até aquele momento (SPIVEY, 2005), e
que se revelou eficaz.
Nessa direção, observamos que rapidamente os diádocos buscaram estabelecer suas
monarquias e garantir também sua legitimidade entre as populações locais que viviam em
suas fronteiras. Da mesma forma, coube também aos sucessores estabelecidos nas cidades
gregas instituir e legitimar o regime político de conformação pessoal das monarquias
helenísticas, conforme já mencionamos.
85
Nesse sentido, encontramos na iconografia dos reis helenísticos, mais particularmente
nos reinos da Macedônia, selêucida, lágida e do Ponto, referências às imagens e símbolos de
Alexandre, assim como seu retrato, deixando entrever aspectos da estratégia ideológica de
legitimação política na arte propagada pelos seus sucessores. Mais especificamente, as
moedas do mundo helenístico oferecem ao pesquisador uma documentação preciosa, pois
permitem avaliar diferentes estratégias iconográficas.84
Podemos observar, por exemplo, a estratégia de legitimação de poder sucessório
empreendido por Antíoco I descendente de Selêuco I, fundador da dinastia selêucida no
território da antiga Babilônia. Com o objetivo de se afirmar como legítimo sucessor, o novo
rei veiculou a imagem de seu pai (moeda 5) como seu ancestral e fundador da dinastia, e para
tal, enfatizou a data de retorno do diádoco à Babilônia como o marco inicial da dinastia (c.
300). Logo em seguida, Antíoco (moeda 6) buscou assegurar seu próprio papel como
soberano e legitimar seu poder inserindo sua própria imagem no anverso das moedas
(ERICKSON, 2010, p.92-94).
Moeda 5. Tetradracma de prata de Antíoco I (c. 280 a.E.C) Anv: Hércules usando a pele do leão. Rev: Zeus
Aetophoros sentado em um banco (diphros) à esquerda, segurando a águia e cetro, com um vaso a seus pés.85
Moeda 6. Tetradracma de Antíoco I (c. 270 a.E.C) Anv: Antíoco I com tiara virado à direita, rejuvenescido e
idealizado. Rev: Apolo sentado à esquerda sobre ônfalo86
84
Devido aos limites deste trabalho, nos ateremos somente ao exemplo de Selêuco e Antíoco I, não sendo
possível avaliarmos os vários exemplos de apropriação efetuados pelos diádocos e seus descendentes. Cf.
DODD, 2009; MEADOWS, 2009; ERICKSON, 2010.
85
Emissor: Antíoco I; tipo: Tetradracma – prata; Ind.: Houghton and Lorber 2002: nº 36; Imagem: Erickson,
2010, p.256.
86
Emissor: Antíoco I; tipo: Tetradracma; Insc.: ΒΑΣΙΛΕΩΣ ΑΝΤΙΟΧΟΥ; Rev. Rev: Apolo sentado à esquerda
sobre ônfalo examinando seta na mão direita e na mão esquerda descansando sobre arco aterrado, ATP em
exergo ΘΕ monograma Ind.: Houghton and Lorber 2002: nº 311.2; Imagem: Erickson, 2010, p.263.
86
As imagens mostram que os reis da dinastia selêucida se apropriaram do esquema
representativo inaugurado por Alexandre, e posteriormente reformulado para atender às
necessidades de seu contexto político. Selêuco I, por exemplo, utilizou os signa utilizados nas
primeiras moedas de Alexandre reafirmando sua ligação com o mesmo. Por sua vez, Antíoco
I, no objetivo de confirmar a si mesmo como legítimo governante, utilizou em sua
representação a tiara dos reis persas que Alexandre adotou após derrotar Dario.
Além da apropriação dos modelos iconográficos das moedas, muitos são os exemplos
de apropriação e ressignificação encontrados nos discursos visuais dos reis helenísticos ao
longo dos séculos. Porém chamamos a atenção para o exemplo de Mitridates VI do Ponto,
cuja liderança militar causou nada menos do que três guerras, e envolveu dois dos grandes
generais romanos, Sila e Pompeu, como vimos no capítulo anterior. O rei do Ponto, cuja
dinastia, em suas origens, não era grega, visto que remontava a um príncipe de Cios no Mar
Negro, tinha se helenizado de tal maneira que Eupátor podia ser considerado o último dos
grandes monarcas helenísticos (LÉVÊQUE, 1987, p.45).
Alegando uma suposta dupla ascendência, Mitridates se ligava de um lado, a Ciro e
Dario e por outro lado descendente de Alexandre e Selêuco I Nicator. Na escultura em
questão, Mitridates é representado em um estilo puramente grego e de forma análoga aos
retratos de Alexandre (fig. 6). O soberano foi concebido vestindo a pele do leão de Nemeia e
somente pelas longas costeletas e o perfil geral identifica o rei do Ponto, caso contrário,
poderia ser tomado como um dos muitos retratos póstumos de Alexandre. Mitridates é
apresentado, nesse retrato, de forma perfeitamente idealizada, como se ele fosse o novo
Alexandre-Hércules (SMITH, R. 1981, p.35).
Fig. 6: Mitridates VI – Mármore do primeiro quarto do séc. I. Museu do Louvre Fonte: J. Pollitt, p.3687
87
Imagem: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Mithridates_VI_Louvre_white_background.jpg.Acesso em:jan 2014.
87
Diante de tais evidências, podemos dizer que a realeza e autoridade de Alexandre, no
decorrer do processo de conquista territorial, desligou-se do comando militar e passou à sua
pessoa. Esse novo modelo de monarquia, que já não era grega e nem apenas oriental, uniu os
valores das monarquias macedônia e persa. Da união destas, resultou o modelo de monarquia
helenística, pessoal e hereditária, fundada inicialmente sobre o direito de conquista e
posteriormente sobre o direito divino e pessoal.
Alexandre criou uma identificação pessoal, uma imagem que foi o seu retrato. A partir
de sua fisionomia, elabororou uma estratégia iconográfica utilizando os signa e esquemas
imagéticos conhecidos das populações do antigo Império Persa e Egípcio de modo a afirmar e
publicizar sua divinização e heroicidade. É possível sugerir que a linguagem visual contribuiu
para o discurso de dominação, para legitimar e sustentar o poder monárquico de Alexandre
entre as populações conquistadas, assim como para a própria população grega.
Nesse sentido, a imagem criada por Lisipo para o jovem rei, revela a força do discurso
visual a serviço da ideologia do poder autocrático do conquistador macedônio, permanecendo
no imaginário social ainda por muito tempo após sua morte. Mais que isso, as conquistas de
Alexandre o Grande “deram forma ao cenário mundial não só para os reis e príncipes que
disputaram seus territorios depois de sua morte, mas para os romanos também” (BEARD e
HENDERSON, 2001, p.18).
O mito de Alexandre e a prática dos reis helenísticos, através da experiência visual,
evidenciaram aos imperatores aspectos de legitimação de poder autocrático tais como:
heroicização, ascendência divina e divinização pessoal. Na cultura romana, esses vetores
ideológicos legitimadores de poder foram expresso pela ideologia da vitória e glória militar,
mitificação familiar e pelo favorecimento dos deuses.
Podemos dizer que as experiências helenísticas contribuiram ao processo de
construção do poder pessoal militar em Roma e estão relacionadas ao paradigma ideológico
de Alexandre por este apresentar-se como o conquistador do mundo, paradigma de glória
militar, para Sila, Pompeu e César, “assim como o modelo para sucessivos imperadores
romanos” (BEARD e HENDERSON, 2001, p.17).
A título de conclusão desta seção, podemos dizer que as evidências deste estudo
sugerem a pertinência da nossa segunda hipótese de trabalho ao verificarmos que o herói
macedônio foi o paradigma de chefe e herói militar no mundo helenístico e romano, mas não
só. O paradigma de poder autocrático de Alexandre o Grande foi construído por meio de
experiências visuais e de práticas iconográficas que buscaram estabelecer a representação do
soberano contribuindo para o discurso imagético dos generais romanos também como um
88
paradigma estético de poder pessoal militar corroborando nossa teoria de que as formas e
práticas são eficazes instrumentos para reforçar pessoas, ou grupos, em suas posições de
poder (THOMPSON, 2002, p.78).
3.3 Alexandre o Grande: uma criação romana?
A imagem de Alexandre perpassou vários séculos, mas na Roma do século I, o mito
aparece como “sinônimo de poder” seja para se comunicar com as elites políticas, seja para se
comunicar com as novas populações que compunham o império. Todavia, essa imagem
sofrerá mudanças significativas no decorrer dos períodos históricos. Parte da historiografia
acredita que o “mito de Alexandre” se iniciou com o próprio, a fim de atingir seus objetivos
ao se apoiar na ascendência de Júpiter-Zeus, ou ainda quando adotou os trajes da realeza persa
como uma forma de comunicação com as populações locais.88 Outra corrente historiográfica
encontra indícios para afirmar que a criação se deu após a morte do conquistador
macedônio.89
Não é possível dentro dos limites deste trabalho, comentar todo o processo de
construção do imaginário alexandrino. Mas podemos dizer que o mito entrou em Roma
através dos escritos de Ptolomeu, Aristóbulo e Clitarco repletos de uma visão positiva, pois
apresentam Alexandre como um “soberano corajoso, generoso e, sobretudo, ‘universal’, uma
vez que foi o primeiro a conseguir agregar sob uma mesma égide diferentes povos e nações”.
Na literatura latina, Plauto90 foi o primeiro a mencionar Alexandre como símbolo da glória
militar. Ou seja, nesse período, podemos dizer que Roma absorveu o mito do macedônio (com
ressalvas à realeza) pelo viés heroico-militar, como um modelo de herói patriótico
“especialmente depois das vitórias alcançadas na luta contra Cartago” (VIZENTIM, 2007,
p.2).
Porém, Cícero foi o primeiro a expressar a ideia de que Alexandre não era bom
exemplo de governante. Apresentando uma dúbia avaliação, Cícero ora admirava a
genialidade militar, ora reprovava “os valores morais do general macedônio” (VIZENTIM,
88
Cf. Erkinger Schwarzenberg, “The Portraiture of Alexander”, In: Alexandre le Grand. Image et Réalité (1975)
e Paul Goukowsky, Essai sur les origines du mythe d’Alexandre, (1978 e 1981).
89
Cf. Margaret Bierber, Alexander the Great in Greek and Roman Art (1974) e François de Polignac “From the
Mediterranean to Universality? The Mythe of Alexander, Yesterday and Today” (1999).
90
Tito Macio Plauto (c. 230-180 a.E.C.) dramaturgo romano que viveu durante o período republicano. As 21
peças preservadas até os dias atuais datam do período entre os anos de c. 205 e 184 a.E.C. Suas comédias estão
entre as obras mais antigas em latim conservadas até os dias de hoje. De acordo com Marilena Vizentim (2007, p.2), a
menção de Plauto a Alexandre está na peça Mostellaria ou “A casa assombrada” (vv.775-777) de c.197 a.E.C.
89
2007, p.6). No entanto, cabe lembrar que no caso do orador, a crítica se destinava na realidade
a César, isto porque o conquistador da Gália não escondia sua admiração pelo herói grego
(Suet. Caes, 7,1 e Plut. Caes. 11,5-6), o que para Cícero era evidência dos projetos de realeza
de César. Ao criticar Alexandre o Grande, Cícero censurava a César e a instauração de uma
monarquia.
Uma obra do século I d.E.C que vale ser lembrada é História de Alexandre, o Grande
de Quinto Cúrcio. O autor teria escolhido o general macedônio como “objeto de seu estudo
em função de sua grande popularidade no mundo romano de fins da república”, visto que
nessa época, a personagem teria tido influência decisiva para Pompeu, César, Marco Antônio
e Otávio Augusto. Marilena Vizentim (2009, p.163) sugere que a obra de Cúrsio foi “um dos
exempla sobre os quais refletiu toda uma tradição de moralistas, de teóricos políticos e de
filósofos da história”. Segundo a autora, escritores como Cícero, Tito Lívio e Lucano, ao se
referirem a Alexandre, na realidade buscavam denegrir as citadas personalidades políticas. De
forma que Alexandre, “teria se convertido em exemplo e protótipo para a referência de
acontecimentos e personagens da própria história de Roma” (PEJENAUTE RUBIO, 1986,
p.46 apud VIZENTIM, 2009, p.163).
Nesse sentido, M. Beard (2013, p.51-2) propõe que os escritores romanos não se
limitaram a tomá-lo apenas como modelo, mas que “eles mais ou menos inventaram o
‘Alexandre’ que conhecemos”. É certo que os romanos não criaram a história, até porque eles
dependiam dos escritos provenientes do período de Alexandre, porém é certo que nenhum dos
contemporâneos ou sucessores imediatos se refereriram a ele com o epíteto de ‘Alexandre,
Megas’. Nesse sentido, ‘Alexandre o Grande’ é muito mais uma criação romana do que grega.
Parte dos autores que escreveram sobre Alexandre Magno, o fez no século I d.E.C, inclusive
Suetônio e Plutarco que compõem nossa documentação. Esses escritores, segundo a autora,
estavam “destinados a ver a história através do filtro romano, interpretar e ajustar o que eles
liam, a versão das conquistas, a luz da expansão imperialista característica do seu próprio
tempo político”.
Um indício da dualidade do mito alexandrino em Roma, a nosso ver, encontrava-se
nas ruínas de uma imponente casa da cidade de Pompeia, e onde foi descoberto de um
mosaico que ocupava um lugar de destaque na residência. O tema da imagem mostra a épica
batalha entre Alexandre o Grande e Dario III na cidade de Isso. O mosaico, que seria uma
derivação de uma pintura original grega, representa o herói macedônio no momento de tensão,
no corpo a corpo com o inimigo, no instante do choque entre duas ideologias: a civilização e a
barbárie (SPIVEY, 2005). O mosaico de Alexandre, como é conhecido (fig. 7a-b), representa
90
a fundação do império, “como se nós víssemos, o momento de inauguração da era helenística”
(BEARD, HENDERSON, 2001, p.13ss).
Fig. 7a: Alexandre em seu cavalo Bucéfalo (detalhe)
Fig. 7b: o Rei Dario III (detalhe)
Mosaico de Alexandre, originalmente da Casa do Fauno em Pompeia c. 100. (detalhe)
Retrata a batalha de Isso. Museu Nacional Arqueológico de Nápoles. fonte: M. Beard, 2001, p.14-15
A obra é a representação de um tour de force, cheio de tensão e dramaticidade,
característica da temática e da arte helenística, “desejosa de impressionar” (GOMBRICH,
1981, p.74). Entretanto, a imagem romana apresenta certa ambiguidade, pois ao mesmo tempo
em que apresenta o herói em seu momento de vitória, a cena exibe a expressão de Dario, que
se eleva acima da batalha, com braço estendido na direção de Alexandre, atraindo a atenção
para sua figura de forma a capturar a simpatia do espectador (BEARD, 2013, p.45).
Nosso entendimento é que essa ambivalência expressa visualmente as transformações
e dicotomias que a figura do herói apresenta quando analisamos a documentação textual.
Entretando, o mais importante é constatar que Alexandre o Grande foi uma figura crucial na
cultura romana ainda no século I d.E.C. e posteriormente (POLLITT, 1986, p.3; BEARD,
HENDERSON, 2001, p.17-8).
3.4 A arte helenística e as contribuições à linguagem visual de Roma
Arnaldo Momigliano afirma que um dos quatro fatores da vitória do imperialismo
romano foi “a cooperação de intelectuais gregos com políticos e escritores italianos na criação
de uma nova cultura bilíngue que deu sentido à vida sob o domínio romano” (1975, p.9). Paul
Veyne, por sua vez, trata do Império de Roma como um império greco-romano argumentando
91
que o idioma oficial da metade ocidental era o latim enquanto que no Oriente próximo era o
grego. E não só, para ele, os romanos também helenizaram o Ocidente quando levaram à
Gália monumentos em estilo grego e helenístico, além de escolas filosóficas e de retórica “de
nome e conteúdo grego” (VEYNE, 2009, Prólogo). É certo que os romanos aprenderam o
grego e estudaram filosofia na Grécia, porém, devemos relativizar esses pontos de vista, pois
o mundo romano foi um espaço representativo de múltiplas experiências e no qual podemos
refletir sobre a dinâmica do confronto entre identidades e alteridades no território imperial.
Nesta seção faremos algumas considerações que nos ajudarão a refletir sobre as
mudanças culturais em Roma envolvendo a arte helenística para avaliarmos as mudanças na
visualidade e na iconosfera 91 romana para que possamos analisar o papel da arte no discurso
e na comunicação política do século I. A fim de pensar os contatos entre romanos e gregos,
refletiremos sobre essas questões, a partir do contato romano e as sociedades itálicas, e
posteriormente com as sociedades helenísticas do Oriente.
Pensando helenização e romanização92 do ponto de vista da cultura, como processos
semelhantes de interações culturais decorrentes dos contatos, nos reportamos ao trabalho de
Andrew Wallace-Hadrill (2008). A partir de uma ampla tipologia documental, o autor analisa
a construção das identidades romanas examinando vários aspectos tais como: idioma,
arquitetura, moda, utensílios, dentre outros. De forma que as transformações culturais em
Roma estão associadas aos conflitos com as sociedades itálicas ao mesmo tempo em que
ocorria a expansão e a intensificação dos contatos com as sociedades helenísticas do Oriente,
o que contribuiu para as mudanças em ambas as sociedades.
Para Andrew Wallace-Hadrill (2008, p.26) as conquistas de Alexandre o Grande,
estenderam o poder grego para o Oriente provocando importantes transformações sociais,
assim como no Ocidente Mediterrâneo ao interagir com Roma. Mais especificamente, no
processo de expansão romana pela península, segundo o autor, com o objetivo de tornar “a
Itália romana, os romanos tornaram-se helenísticos”, pois o helenismo foi a arma cultural da
conquista, tendo em vista que o papel da helenização foi integrar o processo de romanização
na região.
Recordando o conceito de Marshall Sahlins de que as sociedades se transformam
como um modo de se reproduzirem e permanecerem as mesmas, entendemos que no processo
91
Ulpiano B. Meneses (2003), ver capítulo 1, p.30.
Em complemento a nota 59, a helenização possibilitou o fluir das ideias, da filosofia, da arte, da arquitetura,
enfim das crenças e modos de vida gregos entre os romanos. Este foi um processo lento, pois os contatos
existiam desde há muito, contudo, após a conquista do Sul de Itália e da Sicília, acentuou-se com as conquistas
da Grécia e das províncias orientais no séc. II a.E.C
92
92
de interações culturais entre romanos e helenos, a apropriação, a propagação e ressignificação
se configuraram como parte de um processo contínuo de transformação cultural, visto que “a
transformação de uma dada cultura também é um modo de sua reprodução” (SAHLINS, 1990,
p.174).
Ao se converterem em patronos dos intelectuais dos gregos (escritores e artistas), a
elite romana garantia “sustento à ideologia de dominação, baseada em uma superioridade
cultural que se apoia na herança grega” (SUÁREZ, 1996, p.22-3). No contato entre romanos,
italianos e gregos, constata-se não um diálogo perpetuamente renovável, mas sim “um
conjunto de trocas em que o Helênico (...) é constantemente reproduzido, sem de modo algum
diminuir a identidade romana ou Itálica” (WALLACE-HADRILL, 2008, p.26).
Nesses processos, nos interessa compreender o visual como um elemento relevante
nos processos de helenização. Pensando na visualidade, lembramos a importância dos
despojos de guerra como fator relevante para as mudanças na iconosfera romana, visto que os
objetos artísticos exibidos em triunfo pelos generais romanos, além de impactantes,
contribuíram no processo de formação da nova linguagem visual no império.
Para K. Welch (2006b, p.98 e 102), foi com a expansão territorial romana que a arte
grega passou a ser recorrente nas cidades e nas casas da aristocracia, principalmente na região
da Campânia. A autora afirma que a adoção do estilo grego ocorreu tanto na prática do butim
de guerra como na cultura. Por volta do final do século III houve a maciça chegada em Roma
de espólio de guerra trazido por generais como Marcelo em 211, seguido por vários outros. Os
espólios foram muitas vezes utilizados tanto no embelezamento de monumentos públicos
como também em casas, de forma que “os romanos levaram a guerra para dentro de casa”.
No entanto, a aquisição de butim, em especial das obras de arte, segundo a lei, ainda
permanecia prerrogativa do Estado. Não era comum objetos dessa natureza e origem serem
adquiridos por particulares (GASPARRI, 2008, p.31). Nesse sentido, o processo contra Gaius
Verres93 demonstra que neste período o cidadão não podia tomar para si as obras de arte sem a
permissão do Senado, mesmo ele sendo um pró-magistrado.
Além dessa informação, o discurso de Cícero nos oferece elementos relevantes sobre a
visualidade e as contribuições gregas à iconosfera romana. É interessante observar que o
orador menciona obras e artistas “famosos”, mais especificamente obras dos escultores
Policleto e outra de Míron (Verr. 4,3-5; 93,43). Importante ressaltar que através dessa
93
Verrinas de Cícero - ver capítulo 1, item documentação.
93
menção, o documento revela indícios da individualização e a valorização que os artistas do
período clássico começaram a ter no contexto grego, particularmente de Atenas.94
Em outra passagem Cícero acusa G. Verres de ter roubado uma estátua do templo de
Júpiter em Siracusa. Para destacar o delito, o orador menciona que havia “em todo mundo”
três esculturas de Júpiter Imperator no mesmo estilo (artístico), uma se encontrava em
Macedônia e foi colocada no Capitólio por Tito Flaminino, a segunda encontrava-se no Ponto
e a terceira estava em Siracusa. Esta última foi mantida no templo para o culto dos cidadãos
por Marcelo quando este venceu a cidade (214), antes de ser roubada por C. Verres (Cíc.
Verr. 130). Segundo o orador, as esculturas eram “belíssimas” e tinham o mesmo “estilo”.
Entendemos que ao mencionar nomes de artistas do período clássico, assim como
referenciar “estilos” escultóricos, Cícero revela que sua audiência tinha conhecimento das
obras e dos artistas gregos. A nosso ver, usar essa informação como algo importante na
acusação do réu, demonstra o valor que as obras artísticas já haviam adquirido diante da elite
romana.
Além do butim de objetos artísticos, destacamos outro fator importante na
transformação da visualidade de Roma que foi o comércio de obras de arte como objetos de
consumo. Nesse sentido, a Itália se beneficiou da produção artística existente nas cidades da
Magna Grécia, assim como do contato (e do comércio) com os numerosos centros de
produção do Oriente, tais como Atenas, Corinto, Pérgamo e Alexandria. Houve também a
imigração de artífices trazendo com eles sua experiência na produção e reprodução. Esse
parece ter sido um traço da paisagem artística helenística que os itálicos puderam explorar.
Em contra partida, no mesmo período, segundo Carlo Gasparri (2008, p.32)
conhecemos os importantes centros artísticos que já haviam organizado a produção “segundo
tipologias e fórmulas padronizadas – estátuas, hermas, relevos, parapeitos de poços (puteoli),
selecionando um repertório de modelos figurativos imediatamente reconhecíveis” para
atender as grandes residências como demonstra a correspondência de Cícero referindo-se a
uma encomenda.
Paguei a Lucio Cincius, de acordo com sua carta, os vinte mil e quatrocentos
sestércios pelas estátuas de Mégara. Os seus Hermes em mármore de
pentélico com cabeças de bronze, sobre o qual você fala na carta, me
agradando até agora, por isso quisera que mande juntamente com as estátuas,
outros objetos que pareçam apropriados a esse lugar, de minha preferência e
a seu bom gosto, em maior quantidade e o mais rapidamente possível, mas
especialmente aqueles que te parecerem apropriadas ao ginásio e ao pórtico.
(Carta a Ático, 4, I 8)
94
Não nos ateremos aqui sobre a discussão da individualização e o valor da obra de arte ou do artista. Para maior
esclarecimento ver Germain Bazin, História da História da Arte, 1989.
94
Para Wallace-Hadrill (2008, p.360-5) há duas direções observáveis nesse fenômeno: a
primeira é distinguir entre butim genuinamente grego reservado para os generais, e o segundo
é a reprodução das obras de arte para o mercado romano, segundo ele, para os novos ricos. O
comércio “de artigos de luxo” na República tardia se manteve nas elites, mas não somente na
elite política de Roma, pois incluiu também as elites das cidades italianas, visto que a
aquisição de objetos luxuosos foi um modo de demonstrar igualdade e prestígio social.
Fazendo uma pequena digressão, lembramos que a recuperação e reprodução de
modelos escultóricos do passado se iniciaram apenas em época helenística. Segundo Gasparri
(2008, p.28-9), após a instauração da dinastia atálida de Pérgamo, um reino carente de
precedentes históricos, surgiu à necessidade de cultivar uma nova imagem. A opção foi se
colocar como uma dinastia defensora da cultura grega, ligada ao ideal da supremacia cultural
e política de Atenas.
Com esse objetivo, nada melhor para expressar poder político do que a criação de
monumentos. Nesse processo, o modelo escolhido foi o “patrimônio temático e formal” da
Atenas de Péricles. Os atálidas então buscaram a “criação ex novo de um sistema de mitos e
de imagens” para decorar os novos edifícios públicos e de culto como uma das formas de
suprir a ausência de tradição e como um elemento de coesão e de reforço da identidade local.
Com esse objetivo, se apropriaram dos modelos decorativos dos monumentos da Acrópole de
Atenas e elaboram essas formas em uma nova temática (não mais dos deuses contra os
gigantes elaborados por Fídias)95 mas com temas históricos como as guerras entre gregos e
persas, ou mesmo as lutas entre os dinástas de Pérgamo e os gálatas.
Consideramos que os soberanos de Pérgamo ao proporem um novo modelo
iconográfico para os monumentos públicos criaram uma nova linguagem visual para atender
suas necessidades de comunicação política, não somente entre seu povo, mas também para
seus vizinhos, que tais como eles, se consideravam herdeiros da cultura e da política grega. Os
monumentos erguidos em Pérgamo traduziram “pela primeira vez na história da arte antiga, a
reprodução de réplicas intencionais de grandes obras de arte” (GASPARRI, 2008, p.28-9).
O movimento de apropriação das obras clássicas de Atenas pelos reis de Pérgamo teve
reflexos na esfera privada. Podemos comprovar esse reflexo a partir de uma descoberta,
95
Fídias (c. 490-430 a.E.C.) - escultor ateniense, foi responsável pela construção do Partenon na Acrópole de
Atenas. Criou as imagens religiosas mais importantes e provavelmente supervisionou e projetou sua decoração
escultórica geral. Reformado entre 447 e 432 a.E.C., o Partenon representava o ápice do programa construtivo de
Péricles, ao que parece tinha como objetivo elevar Atenas a uma posição de predominância cultural e política
entre os gregos. O programa temático dos conjuntos escultóricos buscava exaltar Atena, a deusa protetora da
cidade e glorificar seu povo, seus deuses e suas vitórias. As estátuas criadas por Fídias estabeleceram para
sempre concepções gerais de Zeus e Atena. (Enciclopedia Britannica)
95
dentre muitos exemplos, de uma estátua de Diadoumenos96 do final do século II encontrada
em Delos e que reproduz uma famosa obra de Policleto de Argos do século V, comprovando a
atividade (organizada e sistemática) de suprir a demanda por bens artísticos.
Nesse sentido, assinalamos que nas residências da aristocracia romana foram
encontradas “reelaborações tardo-helenísticas” assim como reproduções das obras famosas do
passado. Esses achados são evidências de que diante da dinâmica de transformações
socioeconômicas das regiões conquistadas por Roma, “os mesmos centros artísticos do
mundo grego, espoliados no passado pelos generais romanos, tornam-se agora os produtores
de obras de arte a serviço da rica clientela constituída pelos seus descendentes” (GASPARRI,
2008, p.30-1).
Ao analisar gregos reproduzindo gregos e romanos reproduzindo gregos, Mary Beard
e Henderson (2001, p.100) perceberam que tanto os mestres das obras-primas clássicas, como
para seus sucessores helenísticos, não se limitavam a cópia passiva ou robotizada. Isto porque
helenísticos e romanos valorizaram, desenvolveram e repensaram o mesmo cânone e
repertório estilístico das grandes obras (clássicas) a partir das quais encontraram suas próprias
possibilidades expressivas. A tradição escultural helenística pertencia ao processo contínuo de
reprodução e nos ajuda compreender um pouco sobre as apropriações das obras artísticas
gregas pelos romanos.
Por fim, sugerimos que o contato entre romanos e as sociedades helenísticas,
principalmente com as comunidades itálicas existentes há muitos séculos, e posteriormente
com as sociedades do Oriente próximo, contribuíram nas mudanças sociais, políticas e
econômicas desses grupos. Mais especificamente, pensamos nas apropriações estéticas
acentuadas com a prática do butim e com as trocas comerciais que aumentaram a exposição e
possibilitou o contato dos romanos com obras de arte e de objetos de luxo originários do
mundo helenístico e contribuíram sobremaneira para as mudanças na visualidade da cidade.
Acreditamos que as interações culturais entre essas sociedades foram fator importante para as
transformações na linguagem visual e na iconosfera de Roma.
96
Diadoumenos - cópia helenística de finais do século II a.E.C. a partir de original de bronze de Policleto (c.
450-425). Proveniente de Delos – Museu Arqueológico Nacional de Atenas (inventário 1826).
Imagem:http://www.flickr.com/photos/belenymiryam/4738782841/sizes/l/in/photostream/ acesso Jan-2014
96
Capítulo 4
Poder e representação – a arte na comunicação política
A arte fascina tanto pelos aspectos estéticos, como por seus aspectos simbólicos. Para
além da função estética, entendemos que os objetos artísticos são também formas de discurso
e nos interessa examinar seu significado político e seu uso como um meio de expressão e
comunicação. Após a leitura do livro Augusto e o poder das imagens de Paul Zanker (2008),
chamou nossa atenção à importância dos discursos imagéticos visuais em Roma como uma
das formas de propaganda e como as imagens são um elemento indispensável no arsenal dos
líderes políticos. Mais especificamente, nos atraiu o período anterior ao principado augustano,
pois identificamos novos modelos imagéticos nas representações ligadas aos ensaístas do
poder pessoal militar em Roma.
Discutimos como a guerra se configurava num traço marcante da política romana e
como foi igualmente importante para a sociedade vê-la representada. Nesse sentido, K. Welch
(2006a, p.3) ressalta a ideia de T. Hölscher (1978) ao propor que a distinção da arte romana
esteve ligada aos desenvolvimentos políticos no século IV e a formação da nobreza patricioplebeia, pois a competição pelas magistraturas fez a nobilitas explorar o significado da guerra
através das manifestações artísticas. Quer dizer, investigar a iconografia possibilita observar
um dos aspectos da concorrência aristocrática na competitiva política romana.
Nosso propósito neste capítulo visa identificar como as formas artísticas serviram para
a comunicação política, assim como as ideologias e as formas simbólicas contribuíram para a
construção da linguagem visual nos modelos de representação pessoal dos imperatores.
4.1. A linguagem visual - modos de comunicação política dos romanos
Karl Hölkeskamp (2006, p.481) afirma que a memória coletiva ajuda a um grupo ou
sociedade articular uma consciência de suas características definidoras de sua unidade e,
portanto, “constitui uma base essencial para a sua autoimagem e identidade.” O autor postula
o conceito de “memória cultural” como o conceito referente ao conhecimento que a sociedade
compartilha coletivamente, isto é, o “conjunto peculiar de certezas e convicções que a
sociedade tem de si mesma”. Significa dizer que a memória cultural é a principal fonte para os
padrões de percepção, e para o quadro de interpretação do próprio ambiente social. Além
97
disso, o corpo de conhecimento cultural nunca é arbitrário ou selecionado de forma aleatória,
pois, por um lado, ele tem a função educativa de disciplinar e integrar os membros da
sociedade e, assim, reforçar sua coesão, e por outro, o conhecimento cultural compartilhado
possui uma dimensão normativa da sociedade.
De modo que a relação entre as formas e os meios de memória, de um lado, e seu
conteúdo cultural socialmente condicionado, que atendiam às necessidades romanas de
sentido e orientação por outro. Nesse sentido, os lugares públicos adquiriam particular
importância, pois eles materializavam os locais das decisões políticas, as festas religiosas e a
comunicação diária entre os cidadãos, ou seja, a cultura política foi, em um nível estrutural,
“moldada pela lógica do espaço e da espacialidade, directness e densidade”. Daí, a conexão
entre templos, estátuas e outros monumentos, cuja respectiva “localização e espaço formavam
o físico, bem como a paisagem mental cheia de significados e mensagens políticas, histórica,
sacral e mítica. (...) experimentado diretamente, pelos cidadãos romanos, como espectadores,
no sentido concreto de andar olhando ao redor” (HÖLKESKAMP, 2006, p.482-3).
Observamos essa lógica espacial na Grécia, onde todos os soldados eram cidadãos, as
qualidades de luta e combate eram os valores da sociedade cívica. O modelo do cidadão era o
ideal dos heróis míticos bem como a virtude física (arete). A partir de Alexandre percebeu-se
que além das campanhas de conquista ou defesa dos grandes territórios, havia a necessidade
de legitimação da própria posição de governante conseguida através da ideologia de vitória e
da glória militar com vimos no capítulo anterior. Mas além dessa legitimação, os líderes
helenísticos precisavam encontrar um modo para estabilizar e solidificar seu poder político,
“transformando sucessos concretos em conceitos estruturais de poder” (HÖLSCHER, 2006,
p.28). Daí, o uso na comunicação política de uma iconografia inspirada em suas vitórias
militares.
Do mesmo modo os romanos perceberam essa necessidade. Mas como transformar
sucesso militar, de natureza efêmera, em poder político? Os gregos, e principalmente os
romanos, obtinham prestígio social e poder político através de suas vitórias guerreiras, as
quais foram publicizadas por meio da celebração de rituais e por uma política de construção
de monumentos. Desta forma, concordamos com Hölscher (2006, p.27), no sentido de que as
manifestações simbólicas fixam e perpetuam conceitualmente a superioridade e o domínio do
vencedor.
Não podemos esquecer que os monumentos são em si poderosos signos de poder, eles
“re-presentam” entidades políticas, Estados e estadistas em um sentido literal: tornando-os
presentes no espaço público. Como bem lembra Le Goff (1992, p.526) o monumento tem
98
como característica “o poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades
históricas - um legado à memória coletiva”. E as vitórias militares se tornaram ideologia a
serviço do poder político através da linguagem iconográfica monumentalizada nas distintas
expressões artísticas romanas.
Nas poleis clássicas, o significado primeiro dos monumentos políticos foi a celebração
de personagens e eventos locais. No entanto, Roma visava alcançar uma comunicação “em
larga escala” a fim de alcançar amplo poder político e governabilidade. Daí, o
desenvolvimento de uma linguagem iconográfica mais complexa para dar a estas mensagens
uma expressão visual eficiente. Nesse sentido, a política imperial conseguiu transmitir, por
todo império, as mensagens de glória e vitórias militares por meio de manifestações políticas,
ações coletivas e dos monumentos públicos. A eficiência com que os romanos conseguiram
comunicar essas mensagens de poder constitui uma singularidade do Império Romano.
Significativamente, na Atenas clássica, onde a alegoria política foi aplicada em
grandes monumentos de Estado, e depois pelos soberanos helenísticos, que muito exploraram
a monumentalidade para fins políticos. No entanto, foi no Império Romano que a linguagem
iconográfica apresentou uma complexidade maior, através da ampliação do repertório
alegórico e simbólico. O esplendor e a memória foram monumentalizados conceitualmente e a
glória, assim como o poder político, fixada pelas formas artísticas como uma maneira de
transmitir física e ideologicamente o poderio de Roma.
Com a expansão territorial, Roma se deparou com as seguintes questões: como
transmitir a mensagem de sucesso militar e estabilidade do governo? Como transformar a
guerra, um evento efêmero (limitado no tempo e espaço) em um bem ilimitado, universal e
eterno? Para Hölscher (2006, p.34-5), o sucesso romano está na transformação das conquistas
militares em valores sociais e políticos. Com esse objetivo, lançou mão de diferentes meios e
formas, explicitadas a partir de três tópicos principais:
Participação nos rituais - o ritual foi um modo de envolver os cidadãos nos resultados
das guerras e fazer com que participassem pessoalmente das celebrações de vitória.
Certamente a religião, em seu aspecto ritual, ajudava a monumentalizar e transmitir memória
à posteridade.
Monumentos – a monumentalização pública contribuiu para perpetuar a memória dos
sucessos e da glória militar. Daí a utilização das pinturas, butim de guerra, objetos de arte,
edifícios da cultura romana e de entretenimento (teatro, termas, pórticos) para o
engrandecimento de Roma.
99
O triunfo – a celebração do triunfo servia para a materialização da ideologia e da
glória romana ao incluir o cidadão, que não participou das lutas, informando-o sobre a
campanha através das pinturas representando as batalhas decisivas, modelos de cidades
capturadas, personificação das terras, rios ou montanhas, retratos dos inimigos derrotados, as
inscrições informando sobre os lugares de conquista, dentre outras representações visuais.
Na prática, os romanos tiveram que transformar o impacto imediato da celebração de
um triunfo, por exemplo, em algum conceito ideológico. Era necessário perpetuar a memória
do êxito guerreiro para as gerações futuras, e um meio eficiente para alcançar esse fim foi o
discurso visual. Nesse sentido, ergueram-se vários monumentos para testemunhar as vitórias
militares, mas que atuaram também como instrumentos de legitimação dos poderes
extraordinários concedidos aos generais, contribuindo para o sistema de representação política
dos imperatores.
Houve duas maneiras de conceituar glória e atos de prestígio militar em imagens:
através de um tema significativo ou pela escolha estilística e da forma na representação, e
ambos os meios foram explorados na arte romana num grau extremo. Na maioria dos
monumentos romanos, o tema da guerra é representado em um conjunto de cenas de ações
que se repetem de forma quase estereotipada (HÖLSCHER, 2006, p.43).
Nesse sentido, Erich Gruen (1992, p.141ss) acrescenta que além da temática guerreira,
há evidências de como a representação foi importante para a comunicação visual na política
imperialista direcionada ao Oriente, principalmente a partir do século II. Dois relevos
históricos nos ajudam a pensar sobre a questão estilística na arte romana para a comunicação
política no contexto da expansão de Roma.
O relevo L. Domício Enobarbo (Domitius Ahenobarbus) mostra o ritual do lustrum,
ligado à censura, provavelmente de 132 e reconstruido em 32 d.E.C. por Enobarbo quando
este era legado de M. Antônio. Porém, importa ressaltar a diferença estilística entre as partes,
assim como seu possível significado. O primeiro lado mostra a cena do census e ao centro, o
solene sacríficio em honra ao deus Marte (fig.8a) e o outro lado do relevo mostra uma cena de
thiasos de Netuno – representando o casamento de Poseidon com Anfitrite (fig.8b).
Para E. Gruen, o significado é claro: a cena do thiasos significa a estabilidade e
controle romano do Mediterrâneo, e a cena sobre a censura tinha empregado artistas helênicos
para produzir uma cena puramente romana que transmitisse os valores do mos maiorum
(tradição ancestral). Acerca da diferença estilística, a representação do censo serviria para
demonstrar a “gravitas (dignidade e seriedade) de comportamento e ligação com a tradição.”
Por outro lado, a magnificiência estilística do lado do thiasos marinho demonstraria a
100
adaptação de um assunto puramente helênico para enunciar a própria conquista de Roma, e
essa combinação deu força ao monumento (GRUEN, 1992, p.146-7).
Fig. 8a: Monumento de “Ahenobarbus”– relevo c. 100 ou anterior - Museu do Louvre. 97
Cena do sacrifício em honra ao deus Marte (detalhe cena do lustrum - purificação)
Fig. 8b: Monumento de “Ahenobarbus”– Glyptoteck Munique.
Cena do cortejo nupcial de Poseidon e Anfitrite.98 (detalhe)
Por sua vez, Cécile Giroire (2007, p.15-6) interpreta que a diferença estilística como a
justaposição de diferentes princípios, indica que o artista desejou fazer cada situação de
acordo com seu tema cultural de origem e garantir assim a comunicação.
Já para M. Beard e Henderson (2001, p.98), há várias hipóteses para explicar a
diferença entre os estilos escultóricos. Pode-se “argumentar que não há nada especificamente
'romano' na escultura, no monumento como um todo”, que “toda a linguagem adotada pelos
escultores decorre do repertório grego em seu sentido mais amplo” ou ainda que fosse um
“ensaio de justaposição e contraste de estilos”. Todavia, esses autores alegam que sem
97
Imagem:http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Altar_Domitius_Ahenobarbus_Louvre_n2.jpg. Acesso em: jan 2014
Anfitrite - ninfa do mar e esposa de Poseidon (COTTERELL, 1999, p.76) Imagem:
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Sea_thiasos_Amphitrite_Poseidon_Glyptothek_Munich_239_front_n3.
jpg. Acesso em: jan 2014.
98
101
conhecermos a estátua ou grupo de estátuas, que estavam sobre a base, permanecerá a duvida
sobre a mensagem estilística.
O outro exemplo é o relevo comemorativo da vitória de Emílio Paulo99 na Batalha de
Pidna (fig. 9), descrito por Luiz Marques (2011) como uma “concepção de figuras em posição
não paralela100 ao plano de fundo, como se nota no cavalo que se volta para o fundo do relevo
no centro do fragmento superior”. Para o autor, esta escultura exemplifica a operação de
transferência cultural e dá inicio a “experiência da apropriação do friso grego pelos romanos,
apropriação fundamental para toda a história da arte romana” e dele “emerge uma nova
concepção das relações entre relevo e espaço, típica da arte romana” posterior.
Fig. 9: Mármore da coluna de Emílio Paulo (detalhe) c. 168 - Roma. A Conquista da Macedônia, O rei Perseu e a
Batalha de Pidna - Museu Arqueológico de Delfos. fonte: E. Gruen, 1992, p.171.101
Fig. 10: “Sarcófago de Alexandre” c. 325-311. Origem: Necrópole de Sidon (atual Líbano)
As imagens documentam de forma vívida a importância do tema da caça e das batalhas régias na arte helenística
Museus Arqueológicos de Istambul. fonte: J. Pollitt, 1986, p.38-39.102
99
Lucius Aemilius Paullus Macedonicus (c. 230-160 a.E.C.) - general que derrotou o rei Perseu (último rei da
dinastia dos Antígonas) em Pidna durante a Terceira Guerra Macedônica. A exemplo do triunfo de Marco
Claudio Marcelo, de 211 a.E.C., descrito por Plutarco (Vida de Marcelo), e do de Flaminino, de 197 a.C.,
descrito por Tito-Lívio, também no triunfo de Emílio Paulo via-se um enorme aparato de obras-primas da arte
grega, cujo impacto aprofunda ainda mais a influência artística da Grécia sobre a urbs. Entre as esculturas
trazidas a Roma, conta-se a estátua de "Atena" de Fídias, colocada por Emílio Paulo no templo da Fortuna
(MARQUES, 2011).
100
Significa o estilo escultórico em que as figuras do relevo se estendem para fora do fundo em pelo menos
metade da sua profundidade (alto relevo) diferente das esculturas em baixo relevo onde as figuras se estendem
apenas ligeiramente do plano de fundo.
101
Imagem: http://www.mare.art.br/detalhe.asp?idobra=3552 Acesso em: nov 2013
102
Imagem: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Alexander_Sarcophagus.jpg Acesso em: Nov 2013
102
Por sua vez, Beard e Henderson (2001, p.97) postulam que o friso apresenta elementos
gregos e romanos entrelaçados em uma composição ‘tensa’, de forma que o conjunto
iconográfico não fez emergir automaticamente o grego e o romano, “mas um perfeito
continuum.”
Erich Gruen (1992, p.143) sugere que a inspiração do monumento de Emílio Paulo é o
chamado sarcófago de Alexandre (fig.10), obra do final do século IV (Plinio HN, 34.66) onde
quatro dos seis painéis, incluem “cenas de batalha com guerreiros montados e soldados de
infantaria (...) combinações análogas às do relevo de Paulo” evidenciando que a forma e o
conteúdo helenísticos têm um significado simbólico muito importante. Ao relembrar a
importância do triunfo romano na guerra da Macedônia, esse monumento ‘helênico’ de
gênero e estilo familiar, provavelmente teria um grande impacto sobre os visitantes de Delfos.
O monumento serviria também para que os gregos reconhecessem “instantaneamente
os sucessos romanos imortalizados pela sua própria arte além de mostrar que o vencedor
romano pertencia as suas tradições culturais”. A escultura, sendo direcionada à audiência
helênica, “escolheu a convenção grega para dramatizar a conquista romana” e que “o
monumento de Paulo destinava-se a mostrar tanto a participação como o controle de Roma
sobre o mundo cultural do Mediterrâneo oriental” (GRUEN, 1992, p.143).
A teoria de E. Gruen se torna fundamental a nossa pesquisa, pois abre caminho para
pensarmos a apropriação dos temas e do estilo grego na construção da linguagem visual
romana tinha como finalidade a comunicação com o Oriente helenístico. A proposta também
se coaduna com o conceito de cultura semiótica de Clifford Geertz. O antropólogo recomenda
que “para ser do uso efetivo no estudo da arte, a semiótica precisa ir além da consideração dos
signos como meio de comunicação, como código a ser decifrado; ela precisa avançar em
direção à consideração dos signos como maneiras de pensar, como idiomas a serem
interpretados” (GEERTZ, 1983, p.120).
A teoria de Geertz reforça nossa opção de análise a partir da proposta de Hölscher
(2004) do uso dos temas e tipologias gregas apropriadas pelos romanos em suas opções
artísticas. E com o propósito de entender as formas artísticas em Roma e a formação dessa
nova linguagem política, Jás Elsner (1998, p.13) afirma que uma maneira de construir um
background cultural coerente e conectar as pessoas do império, foi dar ênfase ao
compartilhamento da herança cultural baseada nos mitos e na literatura grega clássica e
romana.
Indício significativo dessa assertiva é a apropriação do mito de Tróia por Roma.
Segundo E. Gruen, Roma não teve necessidade prática de um ancestral mítico troiano antes da
103
segunda metade do século IV. Contudo, ao final do terceiro e início do segundo séculos, fezse necessária uma imagem diferente, daí o anseio em demonstrar raízes na Antiguidade
distante, assim como reivindicar uma participação na cultura comum do Mediterrâneo
oriental. Assim, o “jogo das lendas aumentaram os laços que ligavam gregos e romanos.”
(GRUEN, 1992, p.50-1; 2006, p.301).103
Por isso, os sucessos militares deveriam vir acompanhados de demonstrações que
evidenciassem as qualidades civilizadas dos vencedores. Adotar um troiano em sua origem
possibilitou aos romanos pertencer ao mundo grego, ao mesmo tempo em que se distinguia
dos próprios gregos. Para o Gruen, a conexão entre Tróia e Roma permitiu ainda um
simbolismo de proeminência na península que deu aos romanos legitimidade cultural sobre os
itálicos. No plano externo, nas conquistas orientais, o ascendência troiana dava legitimidade
ancestral ao conquistador romano.
A partir da ideia de “memória cultural” (HÖLKESKAMP, 2006, p.487), entendemos
que a especificidade romana se constituiu em “conectar maneiras visíveis e invisíveis,
explícitas e implícitas, espaciais e conceituais num amplo espectro de diferentes meios de
comunicação - monumentos, imagens e textos” às mensagens de origem lendária e marcos
exemplares, formando uma “topografia sacral de um lado, e os locais de memória e
monumentos de vitórias guerreiras, do outro”, configurando uma topografia “de acúmulo de
memória”.
Dado tais evidências e propostas apresentadas pelos autores sobre a comunicação
política entre Roma e o Oriente nos leva a concluir que foi imprescindível ao império
transformar vitória militar em memória para obtenção do poder político. Com o objetivo de se
comunicar com a população romana e também com as populações conquistadas, Roma
buscou se apropriar de modelos estilísticos gregos em um “continuum” com a arte romana,
além de abraçar os mitos e tradições que davam legitimidade a sua dominação.
Seguindo a relação entre a forma e a função da imagem, retemos como ideia central
que a nova linguagem visual em Roma desenvolveu um sistema semântico no Império
Romano expresso pelas formas artísticas e simbólicas produzindo um novo sistema de
comunicação política confirmando nossa terceira hipótese de pesquisa de que o domínio
romano no Mediterrâneo oriental ensejou um novo “sistema de comunicação visual” que
serviu como veículo de mensagens ideológicas através do império.
103
Erich Gruen (2006, capítulo 14) discute as origens lendárias entre gregos e romanos, além de examinar as
ficções inventivas que atravessaram divisões étnicas e culturais dos gregos, fenícios, egípcios e romanos.
104
4.2 A perfomance teatral e o discurso de poder político
Michel Foucault pensa a questão do poder sem olhar as autoridades ou agências, onde
normalmente estão situados, mas sim, olhando as táticas e estratégias que ele chama de
"discurso" (1980, p.51). Nesse sentido, Richard Beacham (2005) analisa o teatro de Augusto
como um fenômeno cultural que nos ajuda a compreender aquela época. Para o autor, o teatro
augustano (a arquitetura, as peças, a pessoa do imperador, etc.), em seu conjunto, atuou como
uma performance, onde as mensagens de patrocínio, riqueza, popularidade, poder, piedade e
proezas militares, foram um modo de ‘fazer crer’. Em essência, a teatralidade, o espetáculo e
a pompa ajudaram a “definir as expressões sociais, políticas e estéticas do Principado”.
Dessa forma, a ideia de performance teatral ampliou nossa percepção quanto às
modalidades de discurso para analisarmos as representações dos imperatores no conjunto da
comunicação política em Roma. Nessa seção falaremos de três elementos que a nosso ver se
configuram como discursos políticos imagéticos utilizados pelos generais romanos: a
arquitetura, a procissão do triunfo e o retrato.
4.2.1 Arquitetura
Ao usarem as habilidades helênicas para decorar a cidade, os edifícios públicos, nas
comemorações e nos templos, “os romanos colocaram em exposição não só o seu gosto pela
arte grega”, mas também o manejo e manipulação de sua arte (GRUEN, 1992, p.140-1). Para
E. T. Salmon (1982, p.100) a “escultura helenística, pintura e detalhes arquitetônicos, escrita
helenística e os modos de pensamento passaram a ser rapidamente notados e ecleticamente
imitados em Roma, e a hegemonia de Roma assegurou sua transmissão rápida em outras
partes da Itália.”
Concordamos que a hegemonia romana possibilitou a transmissão, e por conseguinte,
a apropriação dos modelos helenísticos. E na perspectiva da expansão de Roma sobre a Itália,
ao analisar o urbanismo, os monumentos, a sofisticação dos utensílios e a linguagem artística
(período a período) Wallace-Hadrill (2008) afirma que os romanos foram os primeiros no
jogo da apropriação cujo o ponto de referência permaneceu o Oriente.
A apropriação de modelos helenísticos na escultura e arquitetura romanas pode ser
identificada nas realizações (ou projetos) urbanísticos relacionados aos generais aqui
pesquisados. Porém, a arquitetura se configura em um amplo campo de análise e, dentro dos
105
limites desse trabalho, abordaremos dois exemplos da relação entre arquitetura e discurso
político relacionado a Pompeu e César.
A arte e arquitetura desempenharam um papel importante na fixação dos eventos na
consciência pública e na memória (BEARD, 2007, p.19), e segundo Diana Favro (1996,
p.57ss), Pompeu adicionou tensão às convenções romanas de patrocínio e obtenção de gloria.
Isto porque, após suas campanhas no leste, ele se impressionou com os grandes teatros de
pedra de Metilene na ilha de Lesbos, inclusive “esboçando planos de construir um igual em
Roma, maior e mais magnífico” (Plut. Pomp. 42).
Fig. 11a: Reconstituição do Teatro de Pompeu Magno - Até hoje há muitas tentativas de reconstituir o design
arrojado e luxuoso do complexo. Esta reconstrução tridimensional, baseado em desenhos do século XIX, mostra
o Templo de Vênus Victrix (parte inferior à esquerda) com vista para o auditório; além dos pórticos, jardins e
uma galeria de escultura. fonte: Mary Beard (2007, p.23)
Fig. 11b: Reconstituição do Teatro de Pompeu Magno104
O Senado já havia negado em 154 a construção de um teatro de pedra em Roma
argumentando que tal estrutura encorajaria o povo a disperdiçar seu tempo em performances
fomentando a sedição. Contudo, quase 100 anos depois, Pompeu burlou o impedimento ao
104
Disponível em: Hypothetical 3D visualisation of the theatre of Pompey based on the work of L.
Canina,created by Martin Blazeby, King's College, London. Acesso em: jan 2014.
106
unir o templo de Vênus Victrix à cavea do teatro chamando os assentos em curvas de simples
‘degraus’ até ao santuário (fig. 12). Apesar de algumas críticas a artimanha para a construção
do edifício, outros celebraram a obra do jovem general, pois a grandeza e magnificiência do
conjunto arquitetônico extendeu a fama de Roma, e aumentou ainda mais a glória do patrono
do teatro.105
A literatura antiga fala que a decoração do complexo do teatro de Pompeu foi feita
com o espólio de guerra (Plínio, HN 7,34; 35,114; 35,59). E o projeto constitui um
monumento ao triunfo do general, pois uma procissão era encenada enquanto os tesouros
eram exibidos aos visitantes através dos pórticos (BEARD, 2007, 24-6). Esses elementos nos
permite sugerir que a visualidade de Roma estava mudando cada vez mais devido ao contato
com os objetos e obras artísticas helenísticas e gregas do período clássico.
Chamamos a atenção para uma estátua que representava Pompeu cosmocrator (fig.
12), e que ficou para a história devido à morte de César aos pés dela (Plut. Caes. 66).
Possivelmente a escultura foi butim, e segundo Maria H. de La Veja (2005, p.275), essa
representação, na esteira do triunfo de 61, constituiu uma demonstração simbólica de Pompeu
como o “dono do mundo” ao sustentar o globo, símbolo de domínio universal.
Fig. 12: Estátua de Pompeu Cosmocrator – Mármore - séc. I - Palazzo Spada em Roma
Estilo helenístico, nudez heroica, e o globo, símbolo de domínio. fonte: M. Beard, 2006, p.213.
105
A construção, as esculturas e a magnificiencia do complexo do templo-teatro de Pompeu ver Mary Beard
(2009, p.22-28) e John W. Stamper (2005, p.89).
107
Hoje se sabe que o corpo é uma peça antiga, mas a cabeça é de época moderna, de
forma que o rosto que pensávamos ser de Pompeu, se revelou falso (BEARD e
HENDERSON, 2001, p.212). No entanto, seus atributos admitem a ligação com o complexo
do teatro: a escala monumental, o tronco de palmeira que dá suporte a estátua é uma planta
ligada a vitória e ao triunfo, além da mão segurando o globo que simboliza a conquista do
mundo (BEARD, 2007, p.26). As aproximações de Pompeu com Alexandre Magno na
função de cosmocrator, evidentes nessa escultura, levaram o general muito mais ao luxo e à
suntuosidade oriental do império alexandrino do que suas pretensas qualidades de agregar
diferentes povos sob seu comando (VIZENTIM, 2007, p.4).
Por outro lado, Júlio César, ao que parece, tinha uma ideia clara das possibilidades
propagandísticas do patronato arquitetônico. Segundo Favro (1996, p.60ss), ao se eleger edil
em 65, César honrou seu pai com elaboradas perfomances incluindo jogos e combates com
animais selvagens e gladiadores, além de aproveitar e exibir o material para o ‘show’ no
caminho do Forum até o Capitólio. César usou os jogos para homenagear seu pai, mas
também para restaurar o monumento em honra das vitórias de seu tio Mário, e assim glorificar
seu ancestral, e consequentemente sua gens.
Dos empreendimentos urbanísticos de César, o Forum Iulium (fig.13) foi a mais
simbólica das suas iniciativas. Quando estava no campo de batalha, César havia prometido um
templo a Vênus Victrix, protetora de Pompeu, em troca de seu apoio. Contudo, ao redefinir e
expandir o Forum, César construiu um magnifico templo para Vênus Genetrix, ancestral dos
romanos e em particular dos Iulii.
Fig. 13: Reconstrução do Forum de Júlio César
O templo foi dedicado em 46 à Vênus Genetrix. fonte: J. Pollit, 2012, p.164
108
A concepção arquitetônica das obras de César remontam ao estilo helenístico
ocidental106 (CARCOPINO, 1974, p.581-3). Com essa finalidade, o general contratou um
ateniense “impregnado de recursos gloriosos e puros” do helenismo como responsável pela
direção final das suas oficinas e construções, fato que indignou Cícero (Ad Atti. XIII, 35.1).
César também decidiu adornar seus edificios com esculturas de artistas próximos ou
contratados por ele, exceto uma. A obra, dentre as esculturas do butim, escolhida
epecialmente para adornar o Forum Iulium foi uma famosa estátua esquestre de Alexandre o
Grande (fig.14). Esse bronze, criado na corte alexandrina por Lisipo, foi levado da Grécia
para Roma e colocado no meio do fórum onde César substituiu a cabeça original (Silv.1.1.8488) da escultura pela sua própria (Pollini, 2012, p.164).107
Fig. 14: Estátua equestre de Alexandre o Grande - bronze. Origem: Herculanum
Museu Arqueológico de Nápoles. Fonte: Pollini, 2012, p.165108
Aqui vale ressaltar que nos períodos helenístico e romano, os cavaleiros, carros de
combate e os cavalos eram atributos de autoridade e poder. De acordo com A. Chevitarese
(2007a, p.109-112), esses elementos de valorização social eram encontrados nos textos e
imagens antigos. Como um discurso visual, o esquema iconográfico do cavaleiro, montado
sobre o cavalo, segurando uma lança (às vezes com inimigo caído ao solo) constitui uma
106
Refere-se ao estilo da arte helenística das regiões próximas à bacia do Mediterrâneo, dos centros artísticos da
Grécia, Ásia Menor e Egito, com destaque para as cidades de Atenas, Corinto, Alexandria, Rodes e Pérgamo
principalmente.
107
Estácio (Publius Papinius Statius, c. 45-95 d.E.C.) descendente de gregos, foi poeta e professor. Em sua obra
Silvae, recapitula a vida e a influência do pai sobre ele. Foi o primeiro poeta romano que descreveu longamente
em seus poemas obras de arte e arquitetura, dando informações preciosas sobre a cultura material do período.
Ver Betty Rose Nagle. The Silvae of Statius. Indiana University Press, 2004, p.1-31.
108
Imagem: http://weather.vouhead.gr/wxbucephalus.php?lang=en. Acesso em: abr 2014.
109
tipologia bem conhecida nas culturas helênicas e/ou que estavam em contato, como no caso
de Roma.109
Esse modelo sugere poder e autoridade do cavaleiro (principalmente com a lança) e
“refletiria a esperança de proteção que o cavaleiro - entendido como um homem poderoso proporcionava aos simples e indefesos, às cidades e ao território contra as forças inimigas”.
Ou seja, nesta tipologia representacional, “a ênfase do significado recaía basicamente no
contexto militar e no reforço do status político-econômico gozado pelo rico e poderoso na
sociedade” (CHEVITARESE, 2007a, p.112-3).
Desse epísódio, constatamos a permanência do esquema iconográfico (aqui, o cavalo
com as patas dianteiras levantas aumentando a dramaticidade) como tema e símbolo de vitória
e poder social levado para Roma na forma helenística da escultura de Alexandre. Alterar a
estátua de um grande artista como Lisipo, hoje em dia seria considerado uma ato de
‘vandalismo artístico’, mas para nós, é mais uma evidência de que César buscava associar sua
imagem àquela de Alexandre, assim como o fez Pompeu ao aproximar sua fisionomia a do
herói macedônio.
Não obstante, constatamos que grande parte das intervenções de restauração e/ou
construção foi em lugares de culto. Podemos inferir desses exemplos que a relação entre laus
e glória militar, intrinsecamente ligada a religião, perpassou a lógica urbanística de Pompeu e
Júlio César, pois ambos parecem ter seguido o padrão de seus antecessores na restauração ou
na fundação novos templos na cidade com os despojos de suas vitórias militares.
No caso da construção do teatro de Pompeu, podemos dizer que não foi de todo uma
invenção, pois o edifício se encaixava em uma longa tradição italiana de “teatro-templos”
(BEARD, NORTH & PRICE, 1998, p.123). Da mesma maneira, o templo de Vênus Genetrix
construído por César ligava-se ao aspecto religioso, visto que o general desejava mostrar o
quanto era agraciado pela deusa em suas vitórias militares, bem como a mensagem da
ancestralidade divina dos Iulii, materializada por um ‘descendente’ da deusa, em forma de
monumento.
Todavia, a inovação não foi temática, mas na forma dessas mensagens, pois tanto a
construção de Pompeu quanto de César revelavam o butim ‘decorativo’, o que evidencia as
constribuições da visualidade artística grega à iconosfera romana.
109
André Chevitarese (2007b, p.103-124) mostra, a partir dos textos bíblicos, do texto de Josefo (Antiguidades
judaicas 8:41) e das imagens em moedas e amuletos, a importância social, política e econômica do cavaleiro para
àquelas sociedades, como um grande símbolo de vitória. Em nosso recorte de pesquisa identificamos a utilização
do esquema iconográfico do cavaleiro sobre cavalo por Felipe II (moeda 2), por Alexandre o Grande, e também
por Júlio César, na escultura e também na iconografia numismática (moeda 24).
110
4.2.2 O triunfo romano – uma procissão espetacular
Emílio Paulo percorreu a Via Sacra, desde a Porta Triumphalis até o templo de Jupiter
Optimus Maximus no Capitólio em triunfo após derrotar Perseu, o último rei da dinastia
Antígona. Entre as esculturas trazidas do Oriente, Emílio Paulo dedicou ao templo da Fortuna
à estátua da deusa Atena, obra célebre do escultor grego Fídias (MARQUES, 2011). Também
M. Claudio Marcelo e Tito Q. Flaminino110 triunfaram em Roma exibindo cativos, além de
uma enorme quantidade de obras de arte grega.
O relato mostra que a cerimônia do triunfo era espetacular, magnífica, e naturalmente
um acontecimento importante na cidade (HÖLKESKAMP, 2006, p.483). Pois essa era a única
ocasião na qual um general tinha autorização para entrar na urbs à frente de suas tropas e
representava a maior honraria que um general poderia ter. O evento proporcionava à
população um espetáculo onde eram exibidos cativos de guerras, às vezes monarcas como no
caso do rei Perseu, riquezas e obras de arte, sendo esta, uma prática profundamente arraigada
na mentalidade romana. Já observamos a relação entre a religião e o triunfo romano no
capítulo dois. Nesta seção gostaríamos de verificar o caráter performático do ritual, ao
enfocarmos o significado da procissão triunfal (pompa triumphalis) e de todo o aparato que a
integrava.
Podemos seguramente afirmar que a cerimônia permitia o envio de mensagens,
agregadas a uma série de discursos visuais, a começar pelo personagem principal: o
triumphator. Segundo Versenel (1970, p.56, 95-96), ele era vestido com a Vestis Triumphalis:
a tunica palmata - assim chamada após ramos de palmeiras serem bordadas nela - e a toga
picta, devido à cor roxa, além de ornamentos dourados, adicionados posteriormente. Na
cabeça, o general (e também dos soldados) usava a corona laurea, símbolo do triunfo, muitas
vezes chamada corona triumphalis, descrita por Lívio (10, 7.9) como uma coroa de ouro
pesado, colocada na cabeça do triumphator por um servus publicus, encarregado de dizer as
palavras bem conhecidas: “és um homem, lembre-se!”
Desde os primeiros tempos da cidade, a pompa triumphalis celebrava as vitórias
romanas, pelo menos era o que os romanos acreditavam, datando as origens da cerimônia até
seu mítico fundador Rômulo, ou ainda aos primeiros reis. A exibição de cativos, do butim, de
outros troféus, além dos soldados desarmados, vestindo togas e coroas de louros, seguiam o
110
Marcus Claudius Marcellus (268-208 a.E.C.) general e cônsul da República romana, comandou o exército
durante a Segunda Guerra Púnica e responsável pela tomada de Siracusa (Sicília) no período de 214 a 212 a.E.C.
Titus Quinctius Flamininus (228-174 a.E.C.) general romano e admirador da cultura grega, combateu os
macedônios e em 196 a.E.C. e anunciou a libertação dos estados gregos.
111
cortejo aclamando canções obscenas e alusivas ao seu general. Tudo isso fazia do evento uma
cerimônia muito alegre. Também havia em algum momento da procissão, dois bois brancos,
enfeitados com guirlanda e chifres dourados, que eram sacrificados a Júpiter (BEARD, 2009,
p.8).
Principalmente a partir do século II, o triunfo esteve intimamente ligado à expansão
imperial romana com implicações culturais e econômicas, como demonstram os triunfos de
M. Marcelo e E. Paulo. Mais que uma narrativa de conquista, as mudanças no modo de vida
da população urbana podem ser identificadas através da arte, por exemplo, dos elementos
decorativos, das estátuas, dos objetos de luxo e até mesmo no uso do mármore em Roma.
Nessa perspectiva, lembramos que entre os prisioneiros, muitos eram artistas e artesãos, e
trouxeram com eles a experiência do mundo helênico (WALLACE-HADRILL, 2008, p.356360; WELCH, 2006b, p.102ss).
Ao desfilar os frutos das conquistas, todo o tipo de bric-a-brac, a procissão servia
como um microcosmo dos próprios processos de expansão imperial e “trouxe a riqueza do
lado de fora para o centro do Império”, e certamente o exotismo dos despojos de guerra,
juntamente com as representações da conquista, apresentava a expansão imperial aos olhos do
povo. Interessa-nos especificamente a exibição das obras de arte na cerimônia, bem como o
conjunto de elementos da procissão que teatralizavam o discurso e a comunicação política em
Roma, pois além do impacto financeiro das conquistas111, a “exibição de espólio triunfal
mudou o ambiente visual da cidade” (BEARD, 2009, p.160).
Não obstante, a quantidade de metais preciosos, as estátuas de ouro maciço, os
milhões de escravos, retratos feitos de pérolas, relíquias de Alexandre, e tantas outras
extravagâncias descritas seriam realidade? Mary Beard pondera sobre o exagero do triunfo ao
analisar os relatos antigos. Para a autora, assim como em todas as outras cerimônias, é
significativo observarmos o processo, a percepção e a posterior “re-apresentação” do evento.
De modo que o triunfo, como narrativa, apresenta “exageros, distorções, e amnésia seletiva”
como parte do processo (BEARD, 2009, p.37-41).
Políbio (6, 15, 8), por exemplo, ao análisar as instituições romanas do século II,
descreveu o triunfo como "um espetáculo em que os generais trazem diante dos olhos do povo
romano uma impressão vívida de suas realizações". Isto é, o triunfo, além de exibir o sucesso,
111
Em relação ao afluxo de recursos para Roma no séc. I a.E.C. ver: HORDEN, P.; PURCELL, N. The
corrupting sea: a study of Mediterranean history. Oxford (UK), Blackwell, 2000; ANDREAU, Jean. L’economie
du monde romain. Paris:Ellipses, 2010, e OUZOLIAS, Pierre. l`Economie agraire de la Gaule, apercus
historiques et perspectives archeologiques. Université de Franche-Comté: 2006 (doutorado) especialmente p.25-8.
112
“re-apresentava e re-promulgava a vitória” de forma a trazer para o centro do império as
regiões mais distantes. No século II, o triunfo “comemorou a nova geopolítica que a vitória
tinha trazido” (GRUEN, 1992; BEARD, 2009).
Na expansão do século I, o caso de Pompeu é emblemático. Por vários meses o
general adiou seu triunfo para fazê-lo coincidir com seu próprio dies natalis quando
completaria 45 anos (BEARD, 2009, p.72-5). Na ocasião, segundo Plutarco, Pompeu foi
igualado a Rômulo, pois assim como o herói fundador de Roma, ele também triunfou três
vezes e sobre três continentes: primeiro sobre a África (Mauritânia), o segundo sobre a
Europa (Espanha e a vitória na Guerra Social), e por último sobre a Ásia de Mitridates.
Certamente a impressão era de que o triumphator tinha conquistado o mundo inteiro, “no
mais esplendido de todos os triunfos” (Plut. Pom. 45).
Pela primeira vez em Roma, um carro triunfal seria puxado por elefantes. Contudo, os
animais eram grandes demais para atravesar as ruas, frustrando parte do cortejo, mas tal
escolha estava ligada ao mito do “retorno vitorioso do deus Baco após a conquista da Índia
encenada em uma carroça puxada por elefantes”. Além disso, Pompeu desfilaria identificado
com Alexandre o Grande ao dizer que usava o manto que pertencera ao próprio macedônio,
além de um carro “cravejado com pedras preciosas” (Plut. Pomp. 14,4; 46,6; 46,1). Pode-se
ver que os relatos apresentam muitos exageros, mas de acordo com M. Beard (2009, p.14-7,
30), apesar de todas as críticas como as de Apiano e Plínio, se pode depreender da
documentação a ênfase na dimensão grandiosa dos eventos, descritos sempre como “sem
precedentes na história romana”.
Entretanto Pompeu marca sua semelhança com o herói macedônio principalmente pela
“necessidade da vitória como elemento essencial do poder, ou seja, pela ideia de que a vitória
militar confere a certos indivíduos da elite a plenitude do poder num país conquistado e lhe dá
o direito a um status sobre-humano” (MARQUAILLE, 1996, p.19 apud VIZENTIN, 2007,
p.4). Nesse sentido, entendemos que a imagem de Alexandre primeiro serviu como protótipo
do herói militar, e posteriormente, passando à representação do imperator romano.
Assim como Pompeu, Júlio César também elaborou seus triunfos de forma a exibir
suas conquistas e qualidades militares. Quando concluiu a guerra civil, César celebrou quatro
desfiles triunfais refentes às vitórias nas guerras na Gália, seis anos após a rendição de
Vercingentorix, assim como o triunfo sobre o Egito, o Ponto e a Numídia em 46, após
retornar da vitória em África (CANFORA, 2002, p.149 e 267).
113
No desfile, César exibiu cativos régios como o filho de Juba I112 e uma rainha
acorrentada, Arsinoe (irmã de Cleópatra). Desfilaram, dentre outras coisas, estátuas
representando os rios Ródano, Reno e Nilo (evocando a imensidão de suas conquistas), uma
cópia reduzida do Farol de Alexandria arrematado por uma chama (Floro, II, 13, 88), além das
famosas palavras “VENI, VIDI, VICI!” (Suet. Caes. 37). Por fim, seguindo a tradição, César
foi “vestindo púrpura em um carro puxado por cavalos brancos, e quando terminou a
cerimônia, desceu o capitólio até sua residência escoltado por quarenta elefantes, em cujo
dorso havia tocha acesas” (Suet. Caes. 37)
Mas assim como Pompeu, César também teve problemas com seu carro triunfal
quando este quebrou no primeiro desfile da série de triunfos. O veículo partiu-se ironicamente
em frente ao templo de Felicitas onde o triunfador quase caiu e ainda teve que esperar um
carro substituto. Além disso, na procissão, seus soldados cantavam musicas sobre sua calvície
que o deixaram desgostoso (Suet. Caes. 37).
Afora os acidentes, nos interessa identificar as transformações nas performances das
procissões triunfais advindas do contato com as sociedades helenísticas. No Oriente, J. Pollitt
(1986, p.46) lembra que nas procissões, além das representações de caçadas e cenas de
batalha, havia também monumentos que celebravam as conquistas dos governantes em
representações ligadas aos feitos militares ou aos deuses. Porém as evidências são limitadas e
exclusivamente literárias. Plínio, por exemplo, menciona obras do pintor Apeles, que parecem
se encaixar nessa categoria: a figura da "Guerra (Polemos), com as mãos amarradas atrás das
costas andando com Alexandre em um carro triunfal", "Castor e Pollux com Alexander e a
Vitória e "Antigonos, vestindo uma couraça, marchando junto com seu cavalo" (HN 35.9396). De acordo com Pollitt (1986, p.46) e Beard (2007, p.168) Kallixeinos de Rodes113
descreveu a procissão de Ptolomeu II Filadelfo (c. 276) em Alexandria, ocasião na qual foi
apresentada imagens de Alexandre e de Ptolomeu seguidas pelas imagens da Virtude, da
Vitória e uma personificação da cidade de Corinto.
Pollitt (1986, p46), pensa que
as referências literárias chamam a atenção para
“pinturas e esculturas triunfais romanas” e sugere que a arte helenística teve alguma
influência sobre a procissão do triunfo em Roma. Da mesma maneira, M. Beard (2009, p.168)
112
Juba I (c. 85-46 a.E.C.) rei da Numídia. Fiel cliente de Pompeu, conduziu o exército númida na Batalha de
Tapso, na qual as forças pompeianas foram derrotas, e terminou por suicidar-se. Seu filho Juba II (52-23 d.E.C.),
feito prisioneiro aos seis anos de idade, foi exibido no triunfo de Júlio César, e educado na casa imperial romana.
113
Kallixeinos (ou Callixeinos) - descrição preservada em Deipnosophistae 197A-202B de Athenaios (c. 200
a.E.C.) reproduzida em J. Pollitt (1986, p.280) e também M. Beard (2007, nota 58, p.366) menciona a mesma
documentação.
114
acredita que o desfile de Ptolomeu Filadelfo, tipicamente helenístico, pode ter influenciado,
direta ou indiretamente, a forma, a grandeza e aparência do triunfo romano.
Nos comentários antigos, o triunfo aparece repetidas vezes sob a retórica da inovação,
enfatizando a ideia de que os triunfos eram cada vez mais longos e ricos do que foram até
então. Para Beard (2009, p.41), a documentação retorna repetidamente à questão de como as
exibições eram montadas, “como se a representação em si, suas convenções, invenções e
paradoxos, fossem uma parte central do show”. De forma que as descrições da cerimônia do
triunfo “em muitas versões escritas, a representação (ou mimesis) atinge seus limites, e onde o
espectador (ou leitor) é convidado a decidir o que conta como imagem, ou onde esta a
fronteira entre a realidade e a representação desenhada”.
Nesta perspectiva, em um artigo acerca da procissão fúnebre (pompa funebris), Diane
Favro e C. Johanson (2010, p.17-23) propõem a reavaliação das evidências literárias e de
cultura material utilizando a computação gráfica como uma ferramenta de pesquisa. Desse
modo, investigações valiosas podem ser realizadas sobre o impacto experiencial e
propagandístico do funeral em Roma.
Mesmo sendo problemático construir um argumento explicativo sobre o funeral
romano da República média, os autores propõem essa recriação digital da procissão como
uma potencial chave para compreensão da coreografia do evento em meados do segundo
século. A partir dos dados e da visualização obtida, os autores concluíram que a procissão era
“espetacularizada” e a reconstituição do trajeto permitiu concluir que a rota funcionava tanto
como um meio de reunir os participantes, que mais tarde lotariam o fórum durante a oração
fúnebre, como também promover a popularidade do falecido e da família.
Essa abordagem nos fez refletir sobre a procissão triunfal e a questão da visualidade e
da performance, de modo a tentar “experienciar”, mesmo sem os recursos digitais, toda a
aparência, grandeza, música, sons, cheiros e principalmente, imaginar o impacto visual das
obras de arte, do cortejo, o ouro, as esculturas, as representações das batalhas e dos deuses.
Imaginar a aparição do triumphator, vestido como Júpiter, associado ao deus e porta voz da
sua vontade. Todas essas sensações e sentimentos, provavelmente influíam no significado das
cerimônias de triunfo, visto que se relacionavam à demonstração da grandeza dos generais e
do poderio de Roma.
Concordamos com M. Beard (2009, p.41) ao dizer que mais importante do que saber
como foram realmente as procissões, é pensarmos em como os discursos foram lembrados,
embelezados, discutidos, e incorporados à mitologia mais ampla do triunfo romano como uma
instituição histórica e categoria cultural. No entanto, no contexto do século I, a “cerimônia do
115
triunfo, assim como outras instituições em Roma, não escaparia das implicações advindas das
lutas pela supremacia política entre as grandes famílias” e a competição familiar como diz D.
Favro e C. Johanson (2010, p.23) “não seria apenas simbólica, mas espetacular”.
4.2.3 Retrato – imagines e os ancestrais
O retrato helenístico se caracterizava pela adequação do modelo escultórico ao status
social do retratado. Os efebos, por exemplo, eram representados dentro do modelo da “plácida
beleza juvenil” ou, no caso da realeza, expressando inspiração divina, ou ainda no caso dos
filósofos e oradores, cuja atitude de reflexão e de concentração era expressa pela barba. Por
volta do século II, certamente os retratistas gregos tinham um conceito de retrato fiel à
natureza, no sentido de uma fidelidade mimética. Entretanto, nos retratos régios, o realismo
não era comum e a realeza macedônica, por exemplo, tendeu mais à idealização e à
divinização (SMITH R., 1981, p.26). Em contrapartida, o retrato romano no mesmo período
caracteriza-se por um modelo que aspirava à semelhança, distinguido em grande parte, pelas
representações de “homens endurecidos pela batalha, envelhecidos, imberbes, com rugas, às
vezes com cicatrizes faciais, com cabeças raspadas ou calvas, barbeado, olhares para frente e
intensamente realista” (WELCH, 2006a, p.9).
Contudo, não podemos esquecer que todo trabalho artístico é idealizado. Ernest
Gombrich (1981, p.68-79) diz que “não existe corpo humano que seja tão simétrico, bem
formado e belo quanto os das estátuas gregas” porque a escultura buscava a idealização da
forma humana e almejava a representação de um corpo que expressasse os princípios da razão
e do equilíbrio.114 Ou melhor, a criação do artista se vale do planejamento e da elaboração das
formas, linhas e volumes. A arte é uma construção do artista, ela nunca será o registro fiel de
uma experiência visual, mas sim “uma construção fiel de um modelo relacional”. Seguindo
esse argumento, podemos dizer que o realismo romano também seguia uma idealização, e até
mesmo as representações que evidenciavam os defeitos ou a feiura eram propositais. Em
Roma, segundo E. Gruen, o “‘verismo’115 do retrato também serviu para confirmar valores e
concepções caras à sociedade romana” (1992, p.152).
114
Concordam nessa questão: HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins
Fontes, 2000; PISCHEL, Gina. Historia universal da arte 1. Milão: Arnoldo Mondadori Editore. Trad.: Raul de
Polilo, 1966; UPJOHN, WINGERT, MAHLER. História Mundial da Arte I. Difel, S.A. São Paulo. 1975.
115
Verístico (ou Verismo) – do italiano veristic, significa: verdadeiro, fiel à realidade. O verismo, muitas vezes
descrito como "arts and all", é o termo usado para descrever o estilo de representação que mostra as
116
O retrato romano estava ligado às imagines maiorum, técnica de retratos de cera dos
ancestrais colocadas no atrium116 das casas em Roma e profundamente relacionados à
memória dos antigos, tornando-se parte viva da experiência cotidiana e um traço da cultura
romana. O direito de portar imagens de seus ancestrais (ius imaginis) permitia ao membro da
nobilitas ter uma máscara de cera (imago) de si, direito esse transmitido aos seus
descendentes, assim como o privilégio de ter um funeral à custa do Estado.
Na pompa funebris, a imago era usada por um ator que vestia a roupa e as insígnias do
falecido para representa-lo no seu papel durante o cortejo. Outros atores também
desempenhavam papeis de outros antepassados vestidos também com máscaras (POLLINI,
2007, p.237). As imagines tinham uma importante dimensão mágico-religiosa de forma que
estavam presentes em variados aspectos da vida romana. Dada a forte relação entre a política
e religião em Roma, e no mundo antigo em geral, a pompa funebris, sendo um ritual público,
tinha a função de promover a interação coletiva das experiências e valores sociais (POLLINI,
2012, p.25).
H. Flower (2006, p.32-3) esclarece que a palavra imago, abrange muitos sentidos e
nuances de significados sociais. Imagines maiorum é a técnica de retratos de cera dos
ancestrais colocados no atrium. Mas o termo statuae et imagines por outro lado, refere-se a
todas as representações da pessoa, e nesse contexto, imago se relaciona aos bustos e relevos
como oposto da escultura. Já no texto de Plauto, segundo a autora, a palavra imago é usado
para se referir a aparência física em peças que tratam de duplos e disfarces, em que dois
personagens parecem idênticos, quer dizer, em Plauto117 a palavra converge para a ideia de
“semelhança” ou “cópia”. Também R. Daut diz que “a palavra não é usada como termo crítico
ou no contexto de discussão de arte durante a república e não é combinada com nenhum
adjetivo estético” (DAUT, 1975, p.53 apud FLOWER, 2006, p.34).
Ou seja, realmente o termo em si é amplo em sentidos, considerando-se que imagines
possibilitavam reverenciar a importância da atuação dos seus antepassados e sua importância
para a grandeza de Roma. Isto posto, acrescentamos que o uso público das imagens dos
ancestrais sugere que os romanos tinham consciência da função dos retratos de seus
antepassados como símbolo importante em sua cultura. Porém, a principal característica das
imperfeições do indivíduo, tais como verrugas, rugas e sulcos. Esse estilo é característico dos retratos romanos
(cf. Gruen, 1996, p.153). A. Stewart (2006, p.174) diz que o realismo helenístico, “iluminou o caminho para o
verismo republicano romano e seus primos tardo helênicos.”
116
Atrium era a entrada principal da residência romana. Os demais cômodos da casa eram construidos em torno
dele para que fornecesse a luz necessária às divisões que o circundavam.
117
Plauto, Amphitruo 458=T53.
117
máscaras dos ancestrais era sua função política e estudá-las nos ajuda a entender seu papel
tendo em vista uso das imagines como símbolo de prestígio social e político.
As imagines constituíam um fator vital para as famílias manterem sua proeminência e
influência. Inicialmente a competição entre as importantes famílias pelas magistraturas,
segundo Flower (2006, p. 89-90) ensejou a adoção de normas e regras de forma a manter uma
“cordata concorrência nas frequentes eleições, sem perigo para a estabilidade do governo.”
Nesse sentido, a publicização das imagens dos ancestrais pelos aristocratas se dava por meio
de uma grande variedade de suportes, incluindo: estátuas, medalhões, relevos, moedas,
camafeus e inscrições. De modo que as procissões fúnebres atuavam como uma propaganda,
pois a aristocracia apresentava ao público as imagines dos ancestrais (FAVRO e
JOHANSON, 2010, p.16).
Da mesma maneira, os monumentos funerários serviam ao propósito da propaganda
familiar e um exemplo interessante é a tumba dos Cipiões (fig. 15). Segundo Wallace-Hadrill
(2008, p. 221-4), o túmulo recebeu uma grande reformulação em meados do século II,
certamente por Cipião Emiliano Africano, que lhe deu uma fachada arquitetônica elaborada
em “linguagem helenística” acrescentando uma série de retratos de seus antepassados,
incluindo os do próprio Cipião Africano (fig.16) e Cipião Asiático (fig.17) além do poeta
Ênio (Tito Lívio, 38-56). Dois bustos encontrados no começo do século XVII, acredita-se
serem dos Cipiões, mas foram errôneamente identificados como sendo os retratos de Sila e
Mário.
Fig. 15: Tumba dos Cipiões restaurada por Cipião Emiliano na metade do séc. II
Fonte: Coarelli, figura E, 1972, Richardson, 1992 p.360 e Wallace-Hadrill, 2008, p.221.
Para Wallace-Hadrill (2008, p.223), o requinte da fachada ajudou a definir uma nova
moda na prática do sepultamento e também dos monumentos “destinados a impressionar os
transeuntes e não apenas a atender às necessidades internas da família”. Contudo, mais que a
inovação estilística, para o autor, os Cipiões, “exemplificam não tanto o comportamento
118
padrão da nobreza, mas a capacidade romana de se adaptar e explorar com vantagem e de
forma criativa as concepções tradicionais.” Para nós, essa é mais uma evidência de novos
elementos formais e estilísticos contribuindo para as transformações da linguagem visual em
Roma.
Fig. 16: Retrato identificado como Cipião Africano chamado ‘Sila’. Mármore do final do séc. II.
Adquirido em 1897 no Palazzo Barberini, em Roma. Ny Carlsberg Glyptotek Copenhagen.
Fonte: Wallace-Hadrill, 2008, p.222. 118
Fig. 17: Retrato identificado como Cipião Asiático chamado ‘Mário’
Mármore do final do séc. II. Encontrado em Tusculum, Frascati, perto de Roma. Ny Glyptotek Munique
Segundo J. Pollini (2012, p.48-9), esse retrato reflete a tradição barroca da arte helenística.
Fonte: Wallace-Hadrill, 2008, p.222; Pollini, 2012, p.49
Considerando-se esse dado, é possível analisar o binômio tradição/transformação
social em Roma a partir do uso dos discursos textuais imagéticos. No discurso de Mário em
118
Imagem: http://ancientrome.ru/art/artworken/img.htm?id=2431acesso Acesso em: fev 2014
119
107, Salústio indica que as imagines significaram o triunfo de um homo novus sobre as
familias tradicionais. Isto porque ao se comparar aos nobiles, o cônsul argumenta que suas
condecorações militares e cicatrizes tornaram-se suas imagines. Com esta metáfora, Mário se
coloca como a expressão viva do “conceito de self-made do homem público romano”
(FLOWER, 2006, p.16-21).
Eu não posso, para corroborar sua certeza, apresentar as máscaras ou os
triunfos e consulados de meus ancestrais. Porém, se necessário, eu posso
mostrar lanças e estandartes apresentados pelo seu valor, medalhas, outras
condecorações militares, além das cicatrizes sobre meu corpo. Estas são as
minhas máscaras, esta minha 'nobreza', não herdada, como no seu caso, mas
conquistadas através de inúmeros esforços e perigos.
Salústio (Jug. 85 29-30) (grifo nosso)
A passagem confirma a conexão entre ancestralidade, especialmente representados
pelas imagines e a retórica política. Conforme H. Flower (2006, p.22-3), o texto de Salústio
dá a impressão de que Mário evocou os ancestrais à propósito de comparação, mas também
pensando em sua própria imago e futura reputação, uma vez que ele não era mais um
estranho, mas sim um membro da “nobreza de ofício”. Em outras palavas, as imagines
permitiram-lhe chamar a atenção do público para sua figura e ao mesmo tempo competir com
seus rivais aristocratas ao comparar-se aos ancestrais deles. Podemos afirmar que o ius
imagines foi associado aos demais valores que regiam o comportamento político e contribuiu
para ampliar a condição, a autoridade e a popularidade dos aristocratas.
Fig. 18: Sacerdote egípcio da ágora ateniense – retrato naturalista da arte helenística
Museu de Agora. Fonte: J. Pollini, 2012, p.43.
No que concerne ao retrato, retornamos a questão do “realismo” em Roma. E. Gruen
(1992, p.159) descarta a ideia de que o realismo romano foi concebido a fim de se diferenciar
120
do estilo de retrato naturalista helenístico. Até mesmo pelo fato de o retrato grego tardio
possuir características fortemente análogas e algumas vezes indistinguíveis, da produção da
Roma republicana. Na Grécia, nas ilhas, na Ásia Menor e no Egito encontramos o mesmo
fenômeno de retrato naturalista (fig. 18). No século I observamos que “dois processos opostos
estão ocorrendo em ambos os lados do Adriático: ao mesmo tempo que o retrato romano
estava sendo helenizado, o retrato grego estava sendo romanizado” (HARRISON, 1953, p.85
apud POLLINI, 2012, p.44-5). Todavia, o retrato naturalista grego continuou sendo incomum.
Na discussão do naturalismo e idealização dos retratos, os casos de Pompeu e César
nos revelam algumas práticas discursivas interessantes. Em relação a Pompeu, tanto a
documentação textual, quanto de cultura material nos revelam que ele buscava aproximar seu
retrato ao de Alexandre o Grande e são recorrentes alusões feitas à semelhança física e a
juventude do macedônio. Plutarco, por exemplo, descreveu Pompeu como de uma “dignidade
afável” enquanto:
[...] há certa suavidade aumentada pelos seus cabelos e uma flexibilidade nos
contornos de suas faces ao redor de seus olhos, produzindo uma semelhança
muito comentada com a aparência das imagens do rei Alexandre. (Pom. 2.1)
Por sua vez, um retrato de Pompeu (fig.19) da época do seu primeiro consulado,
apresenta uma inclinação da cabeça, o topete e as linhas da testa, reproduzindo as
características da imagem feita por Lisipo (fig.2 e fig.5), talvez com a esperança de que os
espectadores o associassem a Alexandre (RAMAGE, 1995, p.71; POLLINI, 2012, p.50). O
tipo idealizado foi repetido em um posterior busto do período do seu segundo consulado
(fig.20). Esses retratos reforçam o discurso textual que aproximava Pompeu de Alexandre e
corroboram essa intenção de propaganda também no complexo do teatro como vimos na
seção 4.2.1.
Fig. 19: Retrato de Pompeu Magno na época do seu primeiro consulado (c. 70). Composição escultórica visando
semelhança à imagem de Alexandre feita por Lisipo. Museu Arqueológico de Veneza–fonte: J. Pollini, 2012, p.50.
121
Fig. 20: Retrato de Pompeu Magno na época do seu segundo consulado. Origem: Roma
Cópia mármore séc. I d.E.C. de original c. 60-50. Ny Carlsberg Glyptotek. Fonte: Pollini, 2012, p.50
Em relação a César, há uma grande quantidade de descrições físicas na documentação
antiga nos informando de sua aparência, inclusive de sua progressiva calvície e da
conformação estranha de seu crânio, hoje chamada de clinocefalia (J. TOYNBEE, 1978;
BEARD e HENDERSON, 2001; POLLINI, 2012). Suetônio (Caes. 45), por exemplo, diz
que César “era de elevada estatura e pele clara, com membros bem formados, um rosto cheio
e afiados olhos escuros”, tinha também “especial cuidados com sua pessoa, não só com seu
corte de cabelo e rosto barbeado cuidadosamente”. Afirma, ainda que o general lamentou
“amargamente a perda de sua aparência devido a calvície e muitas vezes era alvo de piadas de
seus adversários. E por esta razão aquirira o hábito de pentear os poucos cabelos por cima da
testa”. E ainda acrescenta, com certa ironia, que de todas as honras concedidas ao ditador
pelo Senado, “nenhuma outra aceitou e aproveitou com tão boa vontade como o direito de
usar sua coroa de louros em todas as ocasiões”.
A partir das inscrições, somos também informados sobre as muitas estátuas e retratos
em honra de César. Dion Cássio menciona de uma estátua erguida no templo de Nike na Ásia
c. 74,119 e uma estátua de bronze após a vitória na África em 46, cuja inscrição o denominava
de “semi-deus”.120 Cita também a existência de uma estátua de marfim exibida no Circo, outra
com inscrição “o deus invencível” no templo de Quirinus, e mais uma no Capitólio votada
pelo Senado em 45;121 e em todos os templos de Roma e duas na Rostra em 44.122 Plínio
119
DC, xliii, I 4, 6;
DC, xliii, 45, 14,6
121
DC, xliii, 45, 2-4; cf. Cícero Ad Atticum xii, 45,3; Suetônio 76.
122
DC, xliv, 4, 4-5
120
122
menciona uma estátua de César usando uma couraça (toracata) em seu Forum
123
e Apiano
ainda comenta que muitos templos foram inaugurados ao divino César, sendo que, em um
deles, o ditador foi representado junto à deusa Clementia em um aperto de mãos, de modo que
“enquanto o poder de César era temido, sua clemência era rogada."124
Fig. 21: Retrato de Júlio César. Mármore - Museu de Tasos. Fonte: J. M. Toynbee, 1978, p.38.
Infelizmente, restaram poucas estátuas de César. Mas um busto originário das
províncias gregas apresenta características que levam a afirmar ser a fisionomia do general
(apesar de estar danificada), tais como: a testa franzida, olhos profundos, a projeção das
maças do rosto e o pomo de Adão (fig. 21), e além disso, ela apresenta a descrição de
Suetônio quanto ao cabelo e a franja arrumada sobre a testa abaixo da corona civica. J.
Toynbee (1978, p.37-8) argumenta que por não apresentar a tipologia estilística das obras
realizadas naquela região, o escultor da ilha grega provavelmente viu a estátua de César que
ficava na Rostra em Roma e que foi elaborada antes de seu assassinato.
Contudo, o retrato de Júlio César considerado o mais próximo de sua aparência antes
de seu assassinato, conforme mostram as imagens das moedas e das fontes textuais, é o busto
de Túsculo (fig. 22). Segundo Pollini (2012, p.51), a imagem foi baseada provavelmente em
algum retrato criado entre a data em que César tornou-se ditador em 46 e dictator perpetuus
em 44, quando ele estava por volta dos 54 ou 56 anos. O autor denomina esse modelo de
“César ditador”.
123
124
Plínio, NH, xxxiv, 10 (18)
Apiano, BC, ii, 106.
123
Fig. 22: Retrato de Júlio César. Mármore
Origem: Túsculo. Museu de Antiguidades de Turim. Imagem: Pollini, 2012, p.51
Diferente do modelo “ditador”, outro busto famoso, hoje na sala Chiaramonti do
Vaticano (fig. 23), é denominado por Pollini (2012, p.52) como o modelo “Divus Iulius”
devido à “classicização”, ou seja, após a reinterpretação de Augusto.125 A imagem
classicizada de César pode ser originalmente atribuída a Otaviano para o culto de Divus Iulius
no templo do Forum em Roma. O busto chamado Chiaramonti, segundo o autor, “reformula a
imagem verística de César, conformando-a as preferências ideológicas do classicismo
augustano na fundação do Principado”. Esse retrato enobrecido e rejuvenescido da face
característica de César teria ajudado a Augusto a “transmitir seu novo status de divindade do
Estado.” Essas questões nos auxiliam a pensar nas representações de César nas moedas
romanas.
Fig. 23: Retrato de Júlio César. Mármore. Cópia augustana de original de bronze.
Sala dei Busti – Museu do Vaticano. fonte: Pollini, 2012, p.51
125
Concorda com essa avaliação J. Toynbee, 1978, p.34.
124
Ainda sobre a questão do naturalismo e da idealização, para Gruen (1992, p.170), o
objetivo do retrato verista não foi a reprodução fiel, mas a transmissão de uma imagem
estilizada. O artista deveria incorporar os traços pessoais do indivíduo, assim como na arte
helenística, no entanto, “o contexto romano requeriu mais ênfase” devido ao aumento no
individualismo romano e a nobilitas “se esforçou ainda mais para articular os valores e
princípios comuns” da sociedade. J. Pollini (2012, p.52) corrobora essa ideia ao afirmar que
os retratos foram um meio de expressar materialmente os valores éticos e as virtudes romanas,
tais como severitas, gravitas, constantia, e dignitas.126 Ou seja, o retrato naturalista fez parte
do processo de reafirmação dos valores tradicionais, dos costumes ancestrais (mos maiorum).
Em consonância à ideia acima, também K. Welch (2006a, p.9), afirma que a
“peculiaridade do retrato romano de aparência realista foi uma expressão do competitivo
ethos de glória militar e do duro esforço da coletividade senatorial de compartilhar o poder
entre a própria elite”. Os romanos, ao adaptarem a convenção naturalista da arte tardo
helenística aos seus propósitos, permitiram que o exagero realista definisse os traços da
sociedade romana ao mesmo tempo que a distinguia.
4.3 Comunicação política e as moedas romanas - a arte da representação
A arte de um povo permite vislumbrar um pouco da sua cultura, isto é, sua religião,
política, os modos de vida, pois ela identifica os usos, projeções e disseminação do imaginário
visual na comemoração honorífica de suas realizações. No caso das representações políticas
no mundo antigo, a moeda proporcionou um meio de comunicação de ágil difusão, pois além
de extrapolar os espaços originalmente destinados, a moeda contém uma grande quantidade
de informação em um espaço reduzido, de maneira que era preciso especificar seu significado
e simbolismo em uma messagem compreensível, clara, direta e concisa (ESCALONA, 2011,
p.443).
Nessa direção, Elena Ramírez (2011, p.423) postula que sociólogos, linguistas,
historiadores e psicólogos acreditam que o fenômeno da propaganda compartilha uma série de
aspectos fundamentais, implica dizer, “a propaganda consiste na utilização deliberada,
planejada, racional e metódica de uma série de símbolos linguisticos ou visuais e de técnidas
126
Valores que regiam o comportamento político romano e significam: Severitas (severidade, autocontrole),
gravitas (seriedade, responsabilidade e determinação), constantia (constância ou perseverança em face da
adversidade), dignitas (dignidade no sentido de auto-orgulho). Cf. José Guillén (1994, p.275).
125
psicológicas com a finalidade de transmitir uma mensagem concreta que busca exaltar ou
valorizar uma ideia ou pessoa” a fim de provocar a adesão.
No caso de Roma, observamos que a iconografia numismática do período da
República tardia se caracteriza por uma ampla gama de alegorias. Isto porque a cunhagem
romana foi o mais produtivo campo de experiências iconográficas, apresentando um
multifacetado e extremamente flexível repertório de imagens e símbolos, que “foram
inventados, adotados e combinados uns com os outros em uma variedade quase
desconcertante” (HÖLSCHER, 2006, p.44).
Na República, segundo Pollini (2012, p.5ss), “a aplicação das imagens artísticas
oficiais do Estado foram usadas com certa eloquência, em uma ‘retórica’ de apresentação,
comunicação e comemoração dos ideais e virtudes romanas”. Essa retórica empregada na
estatuária e nos relevos oficiais se assemelha ao panegírico que os romanos chamavam
laudatio. Isto porque o líder romano procurava projetar sua imagem para a política, mas
também para estabelecer perante homens e deuses suas virtudes e conquistas, porque elas
mereciam ser lembradas de uma forma positiva, ad infinitum. Ainda segundo o autor,
preservar o nome através da memória era a essência da imortalidade para os romanos. Desta
forma, a distinção pública a serviço do Estado obtida pelos políticos romanos, lhes facultava
integrar a memória da cidade e não somente na memória privada da família.
Deste modo, a iconografia oficial não serviu apenas para glorificar o líder do Estado,
mas também ajudou a promover suas ambições e objetivos políticos. Segundo Pollini (2012,
p. 69-70), devido a grande “variedade de tipos, frequentes emissões, distribuição
relativamente generalizada e durabilidade” a cunhagem se constituiu em um meio adequado
para a propagação de mensagens políticas”, bem como para a divulgação das realizações e
programas da liderança política.
Temos assinalado ao longo do trabalho, a estreita relação entre a religião e a política
no mundo antigo, mas ao observamos as moedas romanas, os indícios iconográficos dessa
relação se confirmam na grande quantidade de símbolos e alegorias da vida religiosa romana
presentes nesse suporte. Pollini (2012, p.70) recorda que os romanos acreditavam terem
conseguido o maior dos impérios devido a sua pietas e P. Brunt (1978, p.162) afirma que a
diferença entre a ideologia imperial de gregos e romanos é que os últimos acreditavam que
seu império era “universal e querido dos deuses”.
Essa assertiva se confirma ao observarmos as moedas, especialmente a partir do século
I, e verificamos que a característica dominante da autopropaganda romana foi a representação
da relação entre indivíduos e deuses e como reforço da posição do líder e validação dos seus
126
programas e ações. Nesse sentido, a “memorialização tomou diferentes formas, levando à
consagração e deificação de grandes líderes do Estado romano, começando com Júlio César
em 42” (POLLINI, 2012, p.70).
Além dos símbolos rituais e dos deuses do panteão romano, encontramos algumas
imagens simbólicas das moedas também no discurso imagético textual. A partir da
terminologia política romana, Claude Nicolet (1991, p.31) descreve um documento da época
da Guerra Social (c. 90) onde o poder romano é definido como “o império do mundo, o
império para o qual todas as nações, todos os reis, todos os povos consentiram”127, isto é, o
texto evoca a imagem de mundo se referindo a Roma. Esta representação tornou-se cada vez
mais popular, como mostra uma inscrição feita por Pompeu onde ele gravou suas conquistas
na Ásia. Na reprodução feita por Diodoro da Sicília, podemos verificar a referência a Roma
relacionada aos limites do império.
Pompeu o Grande, filho de Gneus, imperator, (...) estendeu as fronteiras do
Império para os limites da terra, e garantiu e aumentou as receitas do povo
romano – ele, pela confiscação de estátuas e imagens criadas para os deuses,
bem como outros valores retirados do inimigo, dedicou à deusa Minerva
12.060 peças de ouro e 307 talentos de prata.
(Diodoro, Livro 40.4)
Para Nicolet (1991, p.32-3), o termo orbis terrarum é mencionado duas vezes
significando as bordas do império, e sendo confundido com oikoumene. O autor enfatiza que
o texto de Diodoro é semelhante à versão de Plínio ao recordar a inscrição da dedicação do
butim de Pompeu ao templo da deusa Minerva, e ainda outro, apresentado no praefatio
(fórmula de anúncio) de seu triunfo, ambos citados por Plínio (NH, 7.97-8).
Outra referência textual que faz menção a ideia de domínio universal é um documento
oficial, a lei Gabinia Calpurnia de insula Deli aprovada em 58 e preservada em inscrição
biligue (CIL, 12.2500), cujo conteúdo mostra a garantia de vantagens fiscais e jurisdicionais a
Delos. Porém, o que vale ressaltar é a expressão orbis terrarum significando “todo o mundo”
foi usada duas vezes texto da lei, e de acordo com Nicolet (1991, p.34), a expressão é uma
“forma simbólica da representação” do Estado romano.
Nas moedas republicanas a simbologia do orbis terrarum pode ser interpretada no
sentido de “dominação universal” e consiste no globo associado com outros temas. Contudo,
no desenvolvimento dessa simbologia, o globo aparece associado a outros símbolos de
dominação, servindo como suporte para outras figuras que reforçam a ideia de posse. O
127
Ver C. Nicolet (1991, nota nº 18, p.50).
127
exemplo mais antigo é um denário (moeda 7) onde o globo aparece entre um cetro com a
grinalda a esquerda e um leme de um navio à direita; no reverso aparece a cabeça do Gênio
(genius) do povo romano. O cetro e o leme/timão claramente ilustram a fórmula terra
marique,128 de origem helenística encontrada em referências a Alexandre e dos monarcas que
reivindicavam serem seus sucessores (NICOLET, 1991, p.35-6).
Moeda 7: Denário de prata de Cn. Lentulus. Rev. Cabeça com diadema do Genius Romano.
Anv. Globo entre cetro com grinalda e leme de navio. Cunhagem militar Espanha c. 75-75.129
Interessante observar que a primeira referência literária para império ou vitória sobre a
“terra e mar” consta do texto De Imperio Pompeio onde Cícero diz: “Uma lei (...) suficiente
para fazer-nos, finalmente parece, ser o verdadeiro mestre de todos os povos e todas as nações
da terra e do mar” (Imp. Pom, 56).
Outro símbolo de dominação apropriado pelos romanos, e que se tornou constante na
iconografia numismática, foi o troféu. Na Grécia arcaica, após a batalha, um símbolo deveria
ser erigido para demonstrar o domínio do vencedor: o troféu (tropaion), armadura do inimigo
ligada a um tronco de árvore formando uma espécie de “manequim monumental”. Com o
passar do tempo, quando Atenas desenvolveu uma política de Estado e passou a simbolizar
suas vitórias com monumentos, o troféu desligou-se da batalha e tornou-se um símbolo de
comemoração.
No período helenístico, as campanhas e as estratégias militares se ampliaram no tempo
e espaço tornando a conquista do poder político mais difícil e o tropaion mudou novamente
de significado. Hölscher (2006, p.29-34) lembra que Alexandre, quando estava na Índia,
prestes a retornar à Babilônia (p.76), não só erigiu um tropaion como também construiu um
altar para sacrifício, de forma que este gesto garantiu um “caráter sagrado e assegurou sua
permanência excedendo em muito a sacralidade normal do tropaia”. Desta forma, o
128
Terra marique – expressão latina que significa “valoroso em terra e no mar.” Ver A. Momigliano, Journal of
Roman Studies, Vol. 32, 1942, p.53-64.
129
Monetário: Cn. Cornelius Lentulus; Moeda: Denário; Período: 76-75 a.E.C.; Local: cunhagem militar na
Espanha; Anv: cabeça com diadema do Genio do povo romano G(enius) P(opuli) R(omani) virado à direita, cetro
sobre o ombro; Insc.: G•P•R; Rev.: Cetro com a grinalda, globo, e leme; Insc: EX-SC / C N.LEN Q (Cn. Cornelius
Lentulus); Ind.: RRC 393/1a; Imagem: Bruce Antonelli http://www.coinproject.com/coin_detail.php?coin=5530
128
monumento de Alexandre “definiu o domínio de todos os deuses gregos a quem ele atribuiu
sua superioridade sobre seus inimigos.”
Roma adotou o tropaeum, como um símbolo de vitória militar, no período de
expansão territorial do século II, sendo que o primeiro monumento com troféus de guerra foi
erigido por C. Domício Enobarbo e Q. Fabio Maximoem 121.130 Significativamente esses
monumentos foram combinados com dois templos dedicados a Marte e Hércules, deuses da
guerra e das expedições. Além disso, essas construções foram colocadas em campos de
batalha em momentos decisivos, de forma que passaram a significar muito mais que o
tradicional tropaion grego, muito além de um simples símbolo de comemoração. Quer dizer,
ao combinar o troféu a um templo, os romanos fizeram com que esses monumentos
passassem a ter um caráter territorial, pois objetivavam imprimir o significado de domínio do
espaço por Roma a todos os que o confrontavam.
Difícil apreendermos o significado do tropaeum em sua totalidade, principalmente nos
campos de batalhas e nas províncias. Todavia, Hölscher (2006, p.34-5) propõe que em um
segundo nível de significado, os monumentos territoriais remetiam à ideia de dimensão
territorial do orbis romanum. Os marcos de vitória e os lugares de culto passaram a
representar uma complexa ideologia ligada ao domínio do estado romano. Nesse sentido, os
troféus não foram somente monumentos (ou imagens) “pós-simbólica de vitórias reais
conquistadas pela força militar: eles também significaram a subjugação concreta”
Contudo, diferente da iconografia das moedas gregas e helenísticas, um aspecto
relevante da numismática romana é a referência aos ancestrais. Esse topos da cultura, iniciada
no final do século II, tomou uma dimensão cada vez maior no cotidiano visual romano. Como
vimos na primeira parte deste capítulo, as imagines possibilitam não só preservar memória,
mas também criá-la. E a moeda permitiu tornar a herança da glória familiar em objeto
concreto, de modo que as imagines foram conectadas ao dinheiro e às aspirações políticas da
aristocracia romana (FLOWER, 2006, p.23).
Originariamente, nos denários da república, predominavam as imagens ligadas ao
Estado. As moedas, que ficavam a cargo dos triúnviros monetários (triumviri monetales),
normalmente jovens no início do cursus honorum, começaram, desde o final do século II, a
utilizar a iconografia das moedas como veículo de comunicação para publicizar a honra das
130
Gnaeus Domitius Aenobarbus (?-88 a.E.C.) e Quintus Fabius Maximus Allobrogicus - Os dois generais
partiram em 121 a.E.C. para a Gália, onde os Arvernos e os Alobrogi se opunham à conquista romana da
Ligúria. Depois de derrotar os dois povos, Q. Fabius recebeu os cognome de Allobrogicus e comemorou seu
triunfo exibindo Bituitus, o rei dos Arvernos.
129
famílias, através da representação da imagem dos antepassados (CRAWFORD, 1983, p.728,
CLARK, 2007, p.137; ZANKER, 2008, p.31).131
Com a prerrogativa da cunhagem, as famílias da oligarquia senatorial exploraram em
proveito próprio a referência aos ancestrais que passou a caracterizar a cunhagem romana.
Tais imagens foram de vital interesse na educação dos grupos que apoiavam o governo
aristocrático. “A grande variedade de tipos e inscrições foi, certamente, também um resultado
da intensa competição política e social em Roma durante a República tardia” (FLOWER,
2006, p.79-81). Algumas emissões visavam o exército e comumente eram usadas para pagar
os soldados, entretanto essas moedas circulavam e as mensagens eram vistas pela comunidade
em geral, alvo frequente da propaganda política.
Podemos nos perguntar se a complexa iconografia era entendida pelas pessoas comuns
do império? Segundo H. Flower (2006, p.82-3), é preciso considerar o papel das imagens na
vida cotidiana. Mais especificamente, é preciso notar que as imagines dos antepassados eram
exibidas constantemente nas construções, em estátuas e pinturas. Além disso, a autora
argumenta que o cidadão comum tinha acesso aos temas políticos e mitológicos, nos jogos ou
no teatro, de forma que a comunidade estava habituada a fazer observações sobre os assuntos
contemporâneos. A familiaridade com as imagens permitiu que a iconografia numismática
fosse concebida com “diferentes significados para espectadores de sofisticação diferenciada”,
o que explicaria a complexidade do repertório pictórico ao misturar representações dos deuses
(facilmente entendidas) e mensagens políticas (pouco mais complexas).
A partir dessas considerações, concordamos com Flower (2006, p. 65 e 83) ao dizer
que é temerário afirmar que o cidadão comum não tenha sido capaz de interpretar as imagens
que se tornaram obscuras para nós. O aumento da sofisticação iconográfica mostra como os
antepassados e suas conquistas foram poderosa e flexível ferramenta na política das famílias
romanas. Contudo, importa ressaltar que o “vocabulário de símbolos dirigia-se a audiência
que já tinha conhecimento sobre retratos dos ancestrais obtido de muitas fontes e vários meios
artísticos”.
Um exemplo do conhecimento das imagines pela comunidade, e também de inovação,
é um denário do ano de 54. Tradicionalmente, vemos que a imagem do ancestral ocupava o
131
Em relação à cunhagem romana, Luiz A. Corrêa do Lago (2004, p.14) resume o sistema monetário romano:
“A república romana desenvolveu, no final do séc. III a.C., um novo sistema monetário baseado no denário de
prata (equivalente a 10 asses de bronze), possivelmente introduzido em 212-211 a.C., e que permaneceria a base
do sistema monetário romano por mais de 400 anos. De fato, Augusto, o primeiro imperador romano (27a.C a 14
d.C) manteve o denário e introduziu a cunhagem regular do aureus, (equivalente a 25 denários de prata) antes
cunhado apenas ocasionalmente. O sistema fixou por dois séculos e meio as moedas de bronze, de latão e de
cobre, com a emissão do sestércio equivalente a ¼ de denário, e suas sub-divisões.”
130
reverso das moedas, enquanto que o anverso era reservado às imagens dos deuses. Porém, a
iconografia numismática romana que cada vez mais seguia o caminho do individualismo e
esse padrão foi quebrado por M. Bruto (futuro assassino de César) em 54 ao estampar os
retratos dos seus famosos antepassados L. Brutus e C. Ahala (moeda 8) para celebrar a
imagem dos supostos tiranicidas. A nosso ver, a iconografia dessa moeda se configura como
uma dentre as variadas técnicas de persuasão visual.
Moeda 8: Denário de M. Brutus. Roma (54) Anv. Retrato de L. Junius Brutus virada à direita.
132
Rev. Retrato de C. Servilius Ahala virada à direita
Em relação ao binômio tradição/ transformação representado pelo uso do retrato nos
denários republicanos, no entender de Wallace-Hadrill (2008, p.224-5), significava a intenção
de persuadir e a moeda de M. Bruto seria “um gesto projetado para proclamar os valores
republicanos tradicionais”, contudo a moeda expressa também uma inovação da forma, “em
uma linguagem helenística que aponta o caminho para a monarquia”. Para o autor, esse é um
exemplo da capacidade romana de se adaptar e explorar, com vantagens, “a reformulação
criativa das concepções tradicionais”.
Diferente de Wallace-Hadrill, não acreditamos que a linguagem helenística per se
apontava o regime autocrático. No entanto, a necessidade dos romanos de comunicação
política, no contexto das mudanças culturais, fez com que Roma encontrasse na adoção do
estilo, nos temas e ideologias das sociedades helenísticas, a forma e a linguagem que atendia
aos seus projetos ideológicos (THOMPSON, 2002, p.78).
Como foi discutido no capítulo primeiro, entendemos a alteração do regime político no
império como processos de continuidades e transformações (FLOWER, 2010, prefácio, x), daí
inferirmos que a iconografia das moedas revela a capacidade da elite romana em utilizar a
linguagem visual nos processos de mudança cultural e política.
A partir das imagens, observamos a construção de um discurso de poder pessoal, visto
que
132
a cunhagem romana permitia que os agentes utilizassem este suporte para enviar
Exemplo de referência iconográfica a um ancestral conhecido pela comunidade, ao mesmo tempo exemplo de
inovação. Denário de M. Junius Brutus; Anv. Insc.: BRVTVS; Rev. Insc.: AHALA; Ind.: RRC 433/2. Imagem:
Classical Numismatic Group http://www.cngcoins.com/Coin.aspx?CoinID=42562
131
mensagem e discursos políticos, dentre as muitas possibilidades discursivas. Todavia, não
constitui objetivo desse trabalho uma investigação numismática do corpus documental, mas
sim uma análise iconográfica buscando identificar os significados da autorrepresentação no
discurso visual dos imperatores romanos. Desta forma, analisaremos na seção a seguir,
moedas relacionadas aos generais Sila, Pompeu e César.
4.3.1 Sila no Oriente - uma nova forma de comunicação?
Em relação a Sila, além de sua ação efetivamente política e da demonstração de poder
através do novo exército, interessa ao nosso trabalho a atuação do ditador e sua proposta
política no âmbito ideológico a partir da análise de seus discursos imagéticos.
Segundo Santangelo (2007, p.13-4), há muito que se reconhece a importância dos
motivos religiosos na propaganda política e ideológica de Sila, mas a primazia da religião na
sua estratégia imperial não foi avaliada adequadamente. Para o autor, o uso que Sila fez do
“parentesco entre Vênus e Roma, em suas relações com o Oriente grego é extremamente
importante, e deve ser estudado como um aspecto crucial na consolidação do império”. Isto
porque Sila conseguiu explorar o tema, que já circulava no Oriente há várias gerações, para o
bem de sua própria agenda política, e transformá-lo em uma "teologia política da vitória”.
Em decorrência do saque dos santuários e templos, no início da campanha do Oriente,
o general foi abertamente hostilizado no mundo grego, o que seria um problema para sua
política local. Tentando reverter a situação, Sila erigiu troféus em Queroneia e dedicou dois
tropaea aos deuses Nike/Vitória, Ares/Marte e Afrodite/Vênus. Mas para Tonio Hölscher
(2006, 32-3) esse ato foi uma demonstração local de sucesso militar, visto que com os troféus,
Sila objetivou não só demonstrar que venceu um inimigo, Mitridates VI, mas também incluir
o Oriente grego no domínio romano.
Entretanto, podemos ver os contornos do projeto político ao verificarmos que o
ditador escolheu estampar os tropaea em suas moedas não só em Atenas (moeda 9), mas
também em Roma (moeda 10). De forma que a mensagem de Sila alcançou tanto o mundo
grego, assim como a capital do império. Todavia, devemos ressaltar que a iconografia do
reverso confere destaque aos símbolos da religião romana que estão no centro da moeda (o
urceus e o lituus)133, principalmente o lituus que aparece maior que o próprio troféu (símbolo
133
Os signa da religio romana nos possibilitam identificar a relação com os colégios sacerdotais romanos. Entre
os objetos ligados a religio e aos rituais encontrados na iconografia augustana e em moedas republicanas temos:
132
de vitória) e nos possibilita sugerir que Sila evidenciou seu imperium ao destacar o símbolo
do colégio dos áugures.
Moeda 9: Tetradracma de Sila c. de 82-1. Segundo J. Camp (1992) este modelo se refere ao chamado “New
Style” de tetradracma ateniense. O par de troféus talvez se refira aos troféus erigidos por ele em Queroneia.134
Moeda 10: Áureo e Denário cunhado por Sila. Anv. Vênus com Diadema, Cupido de pé segurando um ramo de
Palma. Rev. Urceus (jarro) e lituus entre dois troféus.135
Há muito que a habilidade e estratégia militar de Sila mostrou ser crucial para as
vitórias de Roma, como por exemplo, o caso da guerra africana conforme já mencionamos.
Vale lembrar que após aquela ocasião, Boco generosamente financiou jogos e a construção no
Capitólio de uma estátua equestre em homenagem a Sila quando este foi pretor em 97. Um
relevo encontrado perto da igreja de Sant'Omobono (fig. 24a-b) pode ter feito parte da base do
monumento de Boco, tão bem conhecido a partir de descrições literárias (Plut. Marius 32, Sul.
o lituus - cajado com ponta em espiral - representava o colégio dos áugures; o apex - chapéu com a ponta de
algodão - representava o colégio dos flamines dialis; a caixa de incenso, acerra, o jarro de libações, assim como
os ramos de louro, representavam os quindecimuiri sacris faciundis; o simpuvium, a concha - representava o
colégio dos pontifices; a patera - os pratos de oferenda - representava o colégio dos septemuiri epulonum
(ZANKER, 2008, p. 151-7).
134
O reverso mostra uma coruja sobre jarro entre um par de troféus, além de borda decorada. Indicação: British
Museum. Fonte: CAMP, John et al, 1992, p.449.
135
Aureo e Denário de Sila; Período: 83-84 a.E.C.; Local: cunhagem militar; Anv. Vênus com Diadema,
Cupido de pé segurando um ramo de Palma. Insc.: L·SVLLA; Rev. Jarro (urceus) e lituus entre dois troféus.
Insc.: IMPER(ator), ITERVM – Imperator mais uma vez; Ind.: RRC 359/1 e 359/2; Diferente de M. Crawford
(RRC - 1983) que data esta moeda em 84-83 a.E.C., para J. Camp (1992, p.449) Sila cunhou em Roma esse
aureo e o denário provavelmente em 82-81, pois se referem à vitória em Queronéia.
Imagem: http://davy.potdevin.free.fr/Site/crawford4-2.html.
133
6). É possível que a escultura tenha sido construída em 91, como base para a estátua
representando a captura de Jugurta por Sila, que foi demolida por Mário em 87. Para
Santangelo (2007, p.206), depois que Sila voltou do Oriente, provavelmente reconstruiu o
monumento, porém fazendo algumas mudanças iconográficas com a intenção de dar novos
significados aos símbolos ligando-o ainda mais ao seu governo.
Fig. 24a: “Monumento de Sila” – Porta Triumphalis (S. Omobono). Século I.
Escudo com cabeça elmada entre dois troréus - Musei Capitolini Centrale Montemartini-Inventario: MC2749136
Fig. 24b: “Monumento de Sila” – Porta Triumphalis (S. Omobono). Século I. Escudo com cupidos segurando
coroa, águia, sustentado pela Vitória - Musei Capitolini Centrale Montemartini - Inventario: MC2750.137
Santangelo vê uma analogia entre as duas coroas de flores penduradas para fora do
ramo de palmeira e os dois troféus, pois ao apresentar as quatro coroas penduradas no ramo de
palmeira, “presumivelmente simbolizavam as muitas vitórias” do ditador, sendo que nesse
monumento, deveria “ecoar a estratégia iconográfica” de Sila em Roma (fig. 24c). Crawford
também faz analogia entre coroas de flores e vitórias militares ao constatar a relação entre
coroas e vitórias em guerra como demonstra um denário posterior de L. Vinicius que
apresenta a mesma representação iconográfica (moeda 11).
136
137
Imagem: http://en.centralemontemartini.org/content/search. Acesso em: out 2012
Imagem: http://en.centralemontemartini.org/content/search. Acesso em: out 2012
134
Fig. 24c: “Monumento de Sila” (detalhe)
Coroas de flores, próxima ao ramo de palmeira
Símbolos das vitórias de Sila
Moeda 11: Denário L. Vinicius. Roma (52).
Rev: Vitória andando para a direita, carregando palmas
decoradas com quatro coroas de flores - Ind. RRC 436/1
Analisando as moedas emitidas por Sila, podemos identificar a representação de
imagens que podem ser associadas ao seu programa político. Ao observarmos novamente o
áureo e o denário (vide moeda 10), além da referência à vitória no Oriente expressa pela
simbologia do troféu, encontramos também a imagem de Vênus próxima ao nome do ditador.
Na opinião de Santangelo (2007, p.207) essa alusão é significativa, mas não foi
adequadamente analisada, pois os estudiosos interpretam a iconografia como uma
característica da propaganda pessoal de Sila ligada ao cenário político romano. O autor
defende o contrário ao sugerir que a imagem de Vênus desempenha um papel muito
importante nas relações de Sila com o mundo grego, enquanto ainda não estava investindo na
Itália como demonstra um bronze de 82 (moeda 12) cuja iconografia não tem referencias ao
oriente.
Moeda 12: Bronze de Sila de 82. Anv: cabeça laureada de Janus. Rev: proa à direita. Ind. RRC 368/1138
138
Monetário: L. Cornelius Sulla; Moeda/tipo: bronze (As); . Insc: L•SVL•IMP – L(ucius) SVL(la) IMPE(rator);
Ind.: RRC 368/1; Imagem: Classical Numismatic Group - http://www.cngcoins.com/Coin.aspx?CoinID=24371
De volta à Itália, Sula não precisava explorar o mito do parentesco com Vênus tão intensamente como fez no
Oriente. Na verdade, apenas a colônia de Pompéia é conhecido com segurança de ter recebido o nome Veneria, o
que pode indicar a presença de cultos itálico. Significativamente, o motivo Vênus desapareceu da iconografia de
moedas que ele emitiu na Itália durante o Civil Guerra, provavelmente em 82 a.E.C (RRC 367 e 368), sendo
substituída pela cabeça de Roma com capacete e pela cabeça laureado de Janus. Contudo, “o eco” do parentesco
entre Roma e Vênus chegaram Itália, graças à circulação do aureo e denário (RRC 359) e contribuiu para esse
aspecto da auto-representação de Sila (SANTANGELO, 2007, p.219).
135
As referências à Vênus provêm de eventos ocorridos quando Sila estava no Oriente.
Primeiro ele teria tido um sonho com Afrodite, durante o qual seu exército era conduzido pela
deusa portando os sinais de Marte. Mas após profanar o templo da divindade, o general foi
acusado de ímpio e teria sido repreendido pelo sacerdote da deusa. Contudo, reconhecendo-o
como romano e, por conseguinte, um descendente e protegido de Afrodite, o oráculo
“ordenou-lhe enviar presentes para Delfos em honra ao santuário da deusa.”139 Tendo em
vista as implicações de poder que este ato poderia lhe garantir, Sila cumpriu a ordem e enviou
um machado e uma coroa de ouro do santuário.
A partir desse evento, Santangelo sugere que o reconhecimento da ascendência mítica
de Sila, representante e comandante militar do povo romano, pelo oráculo deveu-se ao mítico
parentesco com os troianos, pois no final do século II os romanos já eram conhecidos como
“os descendentes de Enéias”. Pronto para explorar esse significado político, o general adotou
o epíteto de Epaphroditos (fascinante, charmoso) ligando-se ainda mais a deusa do amor.
Nessa direção, é significativo que o nome adotado por Sila na Itália não foi Epaphroditos,
mas sim Felix (SANTANGELO, 2007, p.209).
A mencionada passagem de Apiano sobre o sonho com Afrodite nos ajuda a
compreender sua estratégia iconográfica. Percebemos que após a Guerra Mitridática e do
contato com o mundo grego, Sila encontrou o caminho para desenvolver esta ligação
mitológica e explorá-la no projeto de domínio imperial romano. A temática da ascendência e
do parentesco com os deuses foi aproveitada no Oriente para justificar o domínio romano. Ao
mesmo tempo, Sila usou as referências para seus interesses individuais em Roma, como
mostra a correspondência oficial entre o nome Epaphroditos e Felix, confirmada por um
senatus consultum do ano de 82, sendo adicionado ao seu tria nomina (SANTANGELO,
2007, p.210).
A temática do relacionamento especial de Sila com os deuses em Roma, a nosso ver,
tinha como objetivo se retratar como o legítimo representante do império, além de se colocar
como único e verdadeiro defensor da res publica. Podemos identificar essa ideia ao analisar
uma moeda que o general cunhou no ano de 82 e cuja estampa do reverso traz a imagem de
um triumphator dirigindo a quadriga, em uma clara referência a sua pessoa pois não há
atributos de divindade, segurando as rédeas e caduceu enquanto é coroado pela deusa Vitória,
acompanhada da legenda ligada ao seu imperium (moeda 13).
139
Apiano, Guerras Civis (Bellum Civili, 1. 97). Cf. Santangelo (2007, p.207-8) e a discussão sobre o sonho de
Sila com Afrodite e as recomendações do oráculo.
136
Moeda 13: Áureo de Sila e Lúcio Manlio Torquato (82 a.E.C) - Anv. Cabeça de Roma com elmo.
Rev. Triumphator dirigindo quadriga segurando as rédeas e caduceu e coroado pela deusa Vitória voando pela
esquerda. Ind. RRC 367/2140
O tema do triunfo era antigo em Roma, variando sempre entre a figura de Júpiter,
Vitória, Juno e Apolo representando o triumphator
141
em moedas emitidas até aquele
momento. O diferencial da iconografia de Sila está na imagem que representa a celebração
específica da sua vitória no Oriente, sugerindo que o triumphator seja ele próprio, um humano
dirigindo a quadriga, e não uma divindade. Além disso, para Santangelo (2007, p.220), a cena
é uma “antecipação da iminente celebração, ambas em nome de Roma, pois ao final da Guerra
Civil, a causa da República estava na vanguarda e Sila interessado em representar a si mesmo
como o restaurador vitorioso do regime”.
As imagens das moedas 10 e 13 nos ajudam a compreender aspectos importantes da
autorrepresentação de Sila. Para Santangelo (2007, p.213), o líder marcou época na história
romana ao ampliar a comunicação com o mundo grego de forma pessoal e inovadora. No caso
do cognomem, lembramos que Cipião e Metelo tinham se tornado Africano e Numídico
devido aos seus feitos militares nessas regiões. Outra inovação de Sila foi se denominar
Epaphroditos (na Grécia) e Felix (em Roma) explorando a dimensão religiosa da cultura
grega e romana.
Através da relação com Vênus, ele tentou convencer os gregos de que, em certa
medida, compartilhavam o mesmo legado dos romanos ao reforçar, primeiro: que os romanos
eram descendentes de uma filha de Zeus, Afrodite (deusa do amor e da convivência social).
Em seguida sugeria que os romanos, mesmo tendo lutado contra os gregos, eram descendentes
dos troianos e por isso permanecia o parentesco e o legado cultural entre os dois povos. Para
140
Monetário: L. Cornelius Sulla com L. Manlius Torquatus; tipo: Aureo; Local: cunhagem militar; Anv. Insc.:
L•MANLI - T – PRO Q – L(ucius) Manli(us) T(orquatus) PRO Q(uestor); Rev. Insc.: L•SVLLA•IMP – L(ucius)
SVLLA IMP(erator); Indicação: RRC 367/2; Imagem: Numismatica Ars Classica - http://arsclassicacoins.com.
Acesso em: out 2013. Foi emitido também denário com a mesma iconografia: Ind. RRC 367/3.
141
Alguns exemplos dessa iconografia estão em RRC 271/1 de 125 a.E.C.; RRC 350/1e de 86 a.E.C. e RRC
364/1d de 83-82 a.E.C.
137
Santangelo (2007, p.241), o potencial de uma identidade tão ambígua era óbvio: “Roma era de
alguma forma parte do mundo grego, e ainda irremediavelmente diferente dele. Ela (Roma)
tinha o direito de interferir nos assuntos gregos, e ao mesmo tempo poderia apresentar-se
como um poder independente e uma força externa.”
Os temas da ascendência foram constantes no discurso romano, mas foi com Sila que
eles foram utilizados pela primeira vez em um propósito político explícito, no cenário mais
amplo do império. Nessa questão, concordamos com as conclusões de Santangelo (2007,
p.222-3) ao dizer que a religião contribuiu na estratégia de comunicação política quando
Roma se voltou às origens. No Oriente, a primeira estratégia no confronto com a cultura grega
foi o culto a Afrodite. Ao mesmo tempo em que na urbs, o tema foi explorado na medida em
que envolveu a questão da fundação de Roma e de Vênus, na qualidade de filha de Júpiter,
ligada ao povo de Roma. Para o autor, a experiência de Sila mostrou que as “semelhanças
entre estes dois mundos poderia ser tão surpreendente como as diferenças”.
No contexto das reformas do exército, das mudanças do local da autoridade do Estado
para o comando individual, os líderes militares aproveitaram as possibilidades que a
propaganda ideológica nas cunhagens permitia, e nesse sentido, a ligação com o divino foi
fundamental para a comunicação política como mostrou a iconografia inovadora da moeda do
triunfo de Sila (POLLINI, 2012, p.73). Isto porque, além da apropriação do símbolo (troféu) e
dos temas (ascendência e proteção divina), na construção de uma “teologia política”, a
estratégia ideológica de Sila foi ressaltar a ligação ancestral entre os dois povos.
Entendemos que Sila deu o “ponta pé inicial” rumo a uma nova orientação
iconográfica das moedas romanas do século I e sua estratégia imagética foi primordial para
entendermos a comunicação política de Roma com a parte oriental do império. Ademais, ao
se retratar na quadriga triunfal (quadrigae triumphator) diretamente ligado a deusa Vitória, o
ditador abriu um precedente, a princípio tímido, de representação de um romano, um chefe
militar vivo em uma moeda.142
4.3.2 Pompeu – exaltação ao poder pessoal
Já evidenciamos as aproximações de Pompeu à imagem de Alexandre o Grande
encontradas nos textos antigos, e também nas contundentes representações escultóricas.143
142
Nossas conclusões acerca dessa iconografia tiveram a contribuição dos pesquisadores do grupo de pesquisa,
particularmente do pesquisador Diego Santos Ferreira Machado.
143
Através da arquitetura, no triunfo e nos retratos.
138
Todavia, na linguagem das moedas percebemos que a opção iconográfica do general não
seguiu a aludida semelhança fisionômica com o macedônio. Diferente do herói grego,
identificamos alguns símbolos e temas já utilizados nas moedas de Sila, contudo, observamos
que a tópica das mensagens de Pompeu se relaciona às vitórias militares e estreitamente
ligada à ideia de favorecimento divino.
Exemplos dessa representação são os denários emitidos pelo genro de Pompeu, Fausto
Sila (filho do ditador) em 56, e cuja iconografia recorda os triunfos militares do general
utilizando diferentes referências visuais. Essa série de moedas se divide em dois tipos
principais (moedas 14 e 15). A primeira moeda mostra a cabeça de Vênus ricamente adornada
e no reverso três troféus além dos símbolos do sacerdócio de Pompeu (lituus e jarro). O outro
tipo exibe a cabeça de Hércules vestindo a pele de leão (mais uma referência a Alexandre?),
apresentando no reverso um globo encimado por uma corona civica,
144
e cercado por três
pequenas grinaldas. Abaixo uma espiga de trigo e um mastro de navio aparecem contornando
a grinalda menor.
Moeda 14: Denário de Fausto Cornélio Sila. Roma (56 a.E.C.)
Anv. Vênus laureada com diadema, atrás, cetro. Rev. Três troféus entre jarro e lituus. Ind. RRC 426/3
Moeda 15: Denário de Fausto Cornélio Sila. Roma (56 a.E.C.) Anv. Cabeça de Hércules vestindo pele de leão.
Rev. Globo cercado por três pequenas coroas de flores e acima uma grande coroa, abaixo aplustre e espiga de
trigo. Ind. RRC 426/4
144
Corona civica ou corona quercea – era uma grande honra militar, atrás somente do triunfo, era um símoblo
de distinção pessoal. Era concedida ao cidadão que havia salvo a vida de um cidadão em batalha. Feita na forma
de uma coroa de carvalho, azinheira ou castanheira.
139
Os elementos iconográficos das moedas de Pompeu foram mencionados por Dion
Cassio (42,18,3) em duas ocasiões: ao descrever seu sinete, onde estavam representados três
troféus e um globo; e ao relatar a procissão triunfal em 61 quando o general representou
"enormes e dispendiosamente decorados (...) troféus do mundo todo" evocando suas
conquistas (NICOLET, 1991, p.37). A partir dessas descrições, podemos deduzir que as
coroas de louros obviamente simbolizavam o contexto triunfal de Pompeu, mas M. Beard
(2007, p.21) acrescenta que poderiam ser também uma referência à vitória contra os piratas e
o aumento do abastecimento de grãos para Roma em 57, haja vista a representação da espiga
na moeda.
Porém, mais importante para nossa pesquisa é um aureus emitido por Pompeu (moeda
16). Segundo M. Beard (2007, p.19-20) essa moeda reproduziria em miniatura o “grande dia
de Pompeu”, isto é, o dia da procissão triunfal e pode ter sido cunhada com a finalidade de
distribuí-los “para os que não podiam testemunhar a cerimônia”. A imagem parece referir-se
ao seu pró-consulado na África, por isso a representação de Dea Africa e a borda em forma de
coroa de louros (insígnia do general, também usada pelos soldados na procissão).
Outra ligação da moeda com Pompeu aparece na inscrição MAGNVS e também pelo
jarro e o lituus que eram os símbolos do seu sacerdócio. No reverso, aparece um cavaleiro
numa cena de triunfo, justificada pela presença da Vitória. O triumphator segura a palma,
ratificando a cena triunfal, pois o ramo é um dos símbolos da deusa. A inscrição PRO·COS
(pro consul) refere-se à prorrogação do imperium (supremo poder militar).
Moeda 16: Áureo Pompeu Magnus - triumphator. Anv. Cabeça da África vestindo a pele de elefante, jarro e
lituus, símbolos do sacerdócio. Rev. Pompeu dirigindo quadriga triunfal, com palma na mão direita.
Acima, deusa Vitória com grinalda. Ind. RRC 402/1b145
145
Áureo de Cn. Pompeu: Localização: Roma; Anv.: Cabeça da África vestindo a pele de elefante, jarro e lituus,
símbolos do sacerdócio. Borda em forma de uma coroa de louros; Insc.: MAGNVS; Rev.: Pompeu dirigindo
quadriga triunfal, com palma na mão direita. Acima, deusa Vitória com grinalda. Insc.: PRO•COS (pro consule) Ind.:
RRC 402/1b; Imagem: British Museum. - http://davy.potdevin.free.fr/Site/crawford5.html. Acesso em: out 2012.
140
Não sabemos exatamente a qual dos três triunfos o aureus de Pompeu está ligado, ou
se a imagem serviu como uma sinopse de sua carreira.146 Nesse sentido, M. Beard (2007,
p.20) nos esclarece que aliada à finalidade econômica, este tipo de moeda serviria como um
lembrete para “reimaginar o espetáculo, talvez anos depois, ou a milhas de distância”, quer
dizer, a imagem serviria como uma lembrança da performance original do triunfo. Entretanto,
além de criar e manter viva a memória de sua glória militar, essa imagem apresenta um “passo
a mais” rumo à individualização na iconografia de poder pessoal.
Assim como Sila, Pompeu também se retratou na quadriga triunfal conectando seu
pró-consulado a proteção da deusa Vitória, reforçando assim a mensagem de favorecimento
divino, em conjunto com as insígnias ligadas ao augurato. Porém, diferente de Sila, ele não
exibiu a representação de Roma e sim de África junto ao seu cognomem Magnus, pois esta
região estava relacionada aos seus objetivos políticos e militares, conforme vimos
anteriormente.
Entendemos que a moeda reforça sua condição de imperator, servindo como um
poderoso discurso de exaltação ao poder e à sua glória pessoal, lembrando que as vitórias
militares eram intrinsecamente ligada à ideia de favorecimento dos deuses. Eram, portanto,
um dos atributos de heroicização e divinização do imperator.
4.3.3 Júlio César – tradição e inovação
Se compararmos as cunhagens de Sila e Pompeu às cunhagens de César, estas
constituem um conjunto bem maior de imagens, as quais veicularam variada gama de
informações. No entanto, a fim de alcançar os objetivos da pesquisa, analisamos somente as
moedas cesarianas cujo o tema e símbolos remetem à nossa problemática. Nesse sentido,
escolhemos as moedas relacionadas aos vetores de legitimação de poder, buscando interpretar
como os discursos imagético textual e visual contribuíram na construção do poder político de
César.
Em relação à iconografia do cavaleiro, encontramos semelhanças entre a moeda de Pompeu com uma moeda em ouro
de Felipe II onde o cavaleiro dirigindo a biga é a deusa Nike. A representação da biga e dos cavalos é bem próxima da
representação do aureo de Pompeu. Ind.: Sylloge Nummorum Graecorum (SNG) ANS 258
Disponível em: http://www.coinproject.com/coin_detail.php?coin=236799. Acesso em: out 2012.
146
Para M. Beard (2007, p.19-20), esse aureus foi cunhado para celebrar um dos triunfos de Pompeu, c. 80, 71,
ou 61 a.E.C. A pessoa mais próxima do cavalo é, presumivelmente, seu filho, pois filhos de generais em triunfo
parecem ter partilhado regularmente o carro.
141
Ao longo do trabalho, temos mostrado a arte como um elemento do discurso político,
que através de muitos suportes, foram utilizados para o envio de mensagens. No caso do topos
heroico de César, vale lembrar que teria sido no templo de Hércules, em frente a uma estátua
de Alexandre que o jovem César expressou seu veemente desejo pelas vitórias e glórias
militares iguais àquelas do general Macedônio (Plut. Caes. 11,5-6; Suet. Caes. 7,1). Como
uma performance teatral, também vimos que o triunfo e a arquitetura ajudaram a materializar
e publicizar o aspecto alexandrino de heroicidade, ligado à ideologia da glória militar. No
entanto, antes das performances triunfais em Roma, há uma cunhagem militar do ano de 48 na
qual encontramos indícios da mensagem de glória de César como comandante militar. A
moeda apresenta uma cabeça feminina com diadema, talvez a representação da Clementia. No
reverso, um troféu entre símbolos referentes à vitória sobre a Gália: o escudo, o capacete
gaulês e o carnix147 encimado por cabeça de lobo (moeda 17). 148
Moeda 17: Denário de Júlio César – troféu gaulês - cunhagem militar (48-47).
Anv. Cabeça feminina com diadema e coroa de folhas de carvalho (talvez Clementia)
Rev. Troféu de armas gaulesas, machado encimado pela cabeça de lobo. Ind. RRC 452/2
Outro topos da apropriação da imagem de Alexandre o Grande presente na
documentação textual e imagética de César são as referências à sua ascendência divina. Esse
tema aparece nos textos posteriores que relataram a genealogia divina da família, bem como o
favorecimento dos deuses (Plut. Alex. 2,1; 4) os quais estão em perfeita conexão com o
discurso visual das moedas. Entretanto, as referências à ancestralidade divina não constitui
uma novidade, pois os romanos já utilizavam essa ideia em sua propaganda muito tempo
antes do século I (Smith, 2006, p.32-50).149 Percebemos, então, que a originalidade de César
foi a intensidade e a escala de veinculação dessas imagens em variados discursos. Por
exemplo, sabemos por Suetônio (Caes. 6-8) que no funeral de sua tia Júlia, César não somente
147
Carnyx - utilizado pelos povos celtas desde a Idade do Ferro, este instrumento de sopro, como um tipo de
trompete de bronze com uma forma alongada e decoração encimando.
148
Também a iconografia da moeda RRC 468/2 apresenta a mesma ideia de vitória militar sobre os gauleses.
149
Christopher Smith (2006, p.32-44) discute a questão das genealogias lendárias e históricas das origens
familiares como um processo de autoinvenção, e um elemento estrutural e constante no discurso político romano.
142
associou sua familia aos antigos reis como também à deusa Vênus, ancestral mítica dos
romanos.
Nesse sentido, Flower (2006, p.83)
lembra que os Iulii já haviam utilizado a
representação de Vênus em emissões desde o século anterior.150 No caso de César, a ideologia
aparece claramente em uma moeda cunhada na África, talvez com a intenção de ser
conduzido como ditador pela segunda vez.151 Na imagem, o general anuncia sua ascendência
ao explicitar a ligação e o favorecimento divino, colocando Vênus coroada de um lado e
Enéas e Anquises no anverso (moeda 18).
Moeda 18: Denário de César. Anv. Vênus Genetrix com diadema.
Rev. Enéias carregando Anquises e segurando o Palladium. Ind. RRC 458/1152
Moeda 19: Denário de César. Anv. Retrato de César. Rev. Vênus segurando Vitória com a mão direita estendida
e descansando cetro sobre estrela Ind. RRC 480/5a153
150
O denário de Lucius Julius L.F. Caesar, de 103 a.E.C. mostra a cabeça de Marte com elmo e Vênus Genetrix
no carro para a esquerda, puxada por dois cupidos (RRC 320/1).
151
César foi ditador pela primeira vez em 49 (discussão sobre primeira ditadura cf. Canfora, 2002, p.325ss),
ditador pela segunda vez em 47 a.E.C., ditador pela terceira vez em 45 a.E.C., ditador pela quarta vez em 44
a.E.C., ditador perpétuo em 44 a.E.C. Ver apêndice, quadro da titulatura de Cesar nas cunhagem.
152
Monetário: Júlio César; Local: norte da África. Período: 47-46 a.E.C. Rev. Insc: CAESAR; Ind.: RRC
458/1; Imagem: Numismatica Genevensis S.A http://davy.potdevin.free.fr/Site/crawford5-2.html. Acesso em:
nov 2013.
Esta moeda é uma clara referência à origem mítica da gens Julia, descendentes de Iulius, filho do herói troiano
Enéias e neto de Vênus. A iconografia se refere ao momento em que o herói salva seu pai. Quando Júlio César
atravessou o rio Rubicão em 49 a.E.C., ele também começou a bater sua própria cunhagem em quantidades
enormes, em oposição às moedas do Estado. Era um anúncio de que César apresentou-se como uma autoridade
independente e paralela ao Estado, e também começou a usar seus monetários, criando uma estrutura fiscal
paralelo ao do Estado no início dos anos 40 (THOMPSON, N. 2007, p.89).
143
Outra referência à origem gentílica encontra-se numa cunhagem (moeda 19) que além
de aludir às vitórias na Espanha e na Gália, traz uma inovação na tipologia monetária ao
substituir a tradicional imagem de um deus ou herói cultuado pelos romanos, pela sua efígie e
a representação Vênus Victrix, a deusa protetora da gens (FLORENZANO, 1989, p.33),
reforçando assim, a preocupação gentílica e o caráter divino do passado mítico de sua família.
Entretanto, a aproximação de César com Alexandre não seu deu apenas pela ideia de
heroicidade e ascendência divina. César também aliou ao seu discurso a ideia de clementia, de
forma que encontramos essa mensagem nas imagens que os textos antigos relatam com
veemência, assim como pela auto propaganda no Bellum Civili, no qual César dá mostras de
sua clemência para com os inimigos, até mais do que o próprio Alexandre o Grande, teria
feito. Porém, não podemos perder de vista que o general objetivava construir um discurso
carregado de valores e ideias que cooptasse para si não só os soldados, mas também as
famílias aliadas de Pompeu após o conflito.
Como vimos anteriormente, uma das virtutes principis que se relaciona a kalokagathia
dos reis helenísticos era a clemência e esta foi uma prática utilizada por César durante e
depois da Guerra civil, tanto que a Clementia Caesaris chegou a ser venerada como deusa e
segundo Plutarco (Caes. 57,4) o Senado decidiu em 45 construir um templo (moeda 20).
Moeda 20: Denário de Júlio César e P. Sepullius Macer.
Anv. Templo tetraestilo com globo no frotão e ao redor a inscrição CLEM–ENTIAE–CAESARIS 154
Além de célebre por sua brilhante carreira militar, como político, César conseguiu se
consolidar como paradigma de bom estadista e hábil diplomata ao aplicar a clemência aos
153
Monetário: Júlio César e P. Sepullius Macer; Período: 44 a.E.C.; Localização: Roma; Anv: retrato de César
laureado com estrela; Insc: CAESAR. IM P(etaror)M; Rev: Vênus segurando Vitória com a mão direita
estendida e descansando cetro sobre estrela. Insc: P • SEPULLIVS – MACER; Ind: RRC 480/5a.
Imagem: Classical Numismatic Group - http://www.cngcoins.com/Coin.aspx?CoinID=115031
154
Denário de C. Julius Caesar e P. Sepullius Macer; Local: Roma Período: 44 a.E.C. Anv.: Templo tetrástilo
(4 colunas na fachada) com globo em frontão; ao redor, inscrição. Borda pontilhada; Insc. CLEM–ENTIAE–
CAESARIS; Rev.: Desultor segurando as rédeas na mão esquerda e chicote na mão direita; atrás ramo de palma
e grinalda, borda pontilhada; Rev. Insc.: P·SEPVLLIVS – MACER; Ind.: RRC 480/21; Imagem: British
Museum / http://davy.potdevin.free.fr/Site/crawford5-2.html
144
rivais. Segundo López (2011, p.91ss), os motivos da clemência cesariana causaram
controvérsias desde a antiguidade, assim como na historiografia contemporânea que discute se
a aplicação desta teria sido com o objetivo de suscitar uma nova política (e o desejo de se
diferenciar de Sila), ou se “era resultado de suas próprias convicções”.
O fato é que a proverbial clementia de César foi colocada em prática na sua carreira
militar e política, e aparece repetidadas vezes nos livros da Guerra Civil. O texto mostra que
ao longo, e após o conflito, César não aplicava duras represálias aos adversários garantindo
um “mecanismo de dominação política e coesão social”. Além disso, o militar garantiu
vínculos de amicitia com as grandes comunidades.155
Outro importante topos alexandrino foi o retrato, visto que esse foi um elemento que
se mostrou fundamental para seu discurso visual de poder político ao publicizar os atributos
divinos do general macedônio, e também dos seus sucessores no contexto helenístico. Nessa
questão, nossas análises nos levam a afirmar que César também se apropriou dessa estratégia
iconográfica. A nosso ver, o aparecimento do retrato de César nas moedas confirma
visualmente seu poder político, além de representar um “divisor de águas” ao se retratar em
vida, como Alexandre, em moedas de Roma (moeda 19, 21, 22).156
Em 44, César recebeu o título de Pai da Pátria, possivelmente acompanhado do direito
de estampar seu retrato. Essa hipótese se baseia em duas moedas (RRC 480/19 e 480/20) que
exibiam a imagem de César com a legenda Parens patriae (moeda 21). Porém, segundo J.
Toynbee (1978, p.30), a relação entre a titulação de Parens Patriae e o retrato, não se sustenta
ao verificarmos que a cunhagem com essa titulatura só foi emitida depois de sua morte.
Moeda 21: Denário de Júlio César com cabeça velada e laureada, littus à frente e Apex atrás. Inscrição:
CAESAR–PARENS·PATRIAE (Pai da Pátria). Ind. RRC 480/19 157
155
César, Guerras Civis, Livro I 13,5; 22; 23, 1-2 (clementia). Livro I 60 (amicitia) com os habitantes de Osca,
os Calagurri, e também o povo de Tarraco, de a Lacetani, de Ausetani e os lurgavonenses.
156
As moedas com retrato de Júlio César foram agrupadas por M. Crawford na série RRC 480/2 a 480/20.
157
Denário de Júlio César e C. Cossutius Maridianus; Período: 44 a.E.C. Local: Roma Anv. cabeça velada e
laureada de César, littus à frente e Apex atrás; Insc.: CAESAR–PARENS·PATRIAE (Pai da Pátria) Rev. Insc.:
COSSVTIVS /MARIDIANVS/A/A/A/FF (formando uma cruz); Ind.: RRC 480/19; Imagem: Numismatica Ars
145
Essa questão suscita algumas dúvidas. M. Bieber (1974), por exemplo, afirma que o
Senado autorizou o retrato de César nas moedas antes de sua morte. Por outro lado, Sydenham
aceita que a autorização senatorial tenha sido dada antes, mas acredita que as moedas foram
emitidas somente após sua morte no mês de março do ano de 44.158 Já Carson (1957, p.52)
argumenta que o retrato de César foi uma progressão natural e refletiu sua eminente posição
em Roma, e não necessariamente uma reivindicação à monarquia. O fato é que ainda não
sabemos com certeza se o Senado votou a permissão do retrato de César acompanhando o
título nas moedas emitidas na Itália, mas certamente incomodou os conservadores.
Moeda 22: Denário de César em 44. Anv: Cabeça de César laureada e lituus. Insc. CAESAR DICT•QUART.
Rev. Juno Sospita159 conduzindo biga para a direita brandindo lança e escudo. Ref. RRC 480/2a160
Já mencionamos nesse capítulo que a cunhagem republicana começou a diversificar
sua iconografia a partir dos últimos anos do século II, quando os tres uiru monetales
começaram a estampar as efígies de seus ancestrais. No entanto, até então, nunca alguém em
vida teve seu retrato em moedas. Entretanto, vimos que as moedas de triunfo de Sila e
Pompeu insinuavam a representação de um cidadão vivo.
Classica http://arsclassicacoins.com Acesso em: set 2012.
Essa iconografia representa César como pontifex maximus, mas por essa ocasião ele também era águre. Segundo
Beltrão (2013, p.236) os pontífices e áugures dividiam competências relativas aos dois principais campos da
religião romana, repectivamente: os auspicia - relacionados aos sinais enviados por Júpiter e os sacra relacionados com os sinais enviados pelos seres humanos às divindades.
158
M. Bieber, The Development of Portraiture on Roman Republican Coins em RNRW e Sydenham, I, p.xxxiii
apud M. Florenzano (1988, p.33).
159
O culto de Juno Sospita advinha do Lanuvium no Lácio. T.P. Wiseman (1971, p.241), no entanto, observou
que os Mettii são encontrados em Ligúria e no Vale do Pó, etnicamente celtico e daí especulou-se que Mettius
tenha "adotado um tipo de moeda do Lanuvium para desviar a atenção de sua origem".
160
Denário de C. Julius Caesar e M. Mettius; Período: 44 a.E.C. Local: Roma Anv.: efígie de César laureado e
lituus à esquerda; Insc.: CAESAR DICT[ator]•QUART[us] (ditador pela quarta vez); Rev.: Juno Sospita
conduzindo biga para a direita brandindo lança e escudo; Insc.: M METTIVS; Ind.: RRC 480/2a; Imagem:
Classical Numismatic Group http://www.cngcoins.com/Coin.aspx?CoinID=85107. Acesso em: set 2013.
As moedas que representavam seus cargos políticos ajudam a esclarecer a cronologia da questão do retrato.
Sabemos que César manteve até 26 de janeiro de 44 a.E.C a quarta ditadura. Podendo ter ocupado o cargo até até
o dia 15 de Fevereiro, quando Cícero (Phil 2,87) refere-se a César na Lupercalia como Dictator Perpetuus
(Mcquarie University) disponível em: http://www.humanities.mq.edu.au/acans/caesar/Portraits_Provinces.htm
Acesso jan 2014.
146
Todavia, encontramos efígies de César em duas moedas datadas antes de 44
provenientes das cidades de Niceia e Corinto. Uma delas é um bronze cunhado em Niceia por
volta de 48-47 (moeda 23) e traz a efígie de César com a face limpa, as “maçãs do rosto
salientes, o queixo proeminente, o pescoço longo e fino com ‘pomo de Adão’”, segundo J.
Toynbee (1978, p.30) em um “perfil um tanto idealizado” como o olhar ligeiramente
inclinado para cima que lembra os retratos de Alexandre e dos reis helenísticos. A moeda de
Corinto (moeda 24) por sua vez, “se aproxima dos denários emitidos pelos monetários oficiais
de Roma e apresenta uma interpretação mais naturalista da fisionomia de César”, mas ambas
estão em consonância aos cânones do retrato romano do período republicano.
Moeda 23: Bronze de Júlio César e C.Vibius Pansa - Niceia (c. 48-47).
Anv. Retrato de César. Rev. Nike para direita, segurando coroa de flores na mão estendida e palma sobre o
ombro esquerdo; monogramas à esquerda e a direita. Ind. RPC 2026.18161
Moeda 24: Bronze de Júlio César - Corinto (c. 46-44)
Anv. Retrato de César laureado. Rev. Belerofonte montando em Pegasus. Ind. RPC 1116.162
161
J. Toynbee apresenta este tipo como o primeiro a apresentar o retrato de Júlio César. C. Vibius Pansa fazia
parte da facção cesariana em Roma e provavelmente devia o proconsulado ao seu patrono. O único outro retrato
de César em vida da série provincial seria o RPC 1116. Ambas precedem a primeira aparição de seu retrato em
Roma em janeiro de 44 a.E.C. Jocelyn Toynbee (1978, p.30 fig.24) data de 48-47 a.E.C., segundo BMCGC
Pontus (Catalogue of the Greek Coins in British Museum) p.153 nº8, 9, PL. 31 nº13, enquanto que o RPC 1 data
de 47-46 a.E.C. Local: Bitínia , Niceia; Anv: retrato de César; Insc: NIKAIEΩN; Rev: Nike para direita,
segurando coroa de flores na mão estendida e palma sobre o ombro esquerdo; monogramas à esquerda e a
direita; Insc: EΠI ΓAIOY OYIBIOY ΠAN∑A (Magistrate Gaius Vibius Pansa); Enxergo: VLS (data).
Imagem: Classical Numismatic Group
http://www.coinarchives.com/a/lotviewer.php?LotID=632086&AucID=1149&Lot=405&Val=9b349592fcfdb42
ddb89330e95ea7719
162
Essa moeda provincial pode ter sido cunhada durante a vida de César. J. Toynbee (1978, p.31) assume a
datação 46-44 a.E.C. (assim como Vessberg 1941, pl.7, n.6; Sydenham, 1952, p.178, n.1069, pl28; Crawford,
1974, n.480, 19, pl.57). O RPC data em torno de 44-43 a.E.C. A legenda anverso ler LAVS IVLI CORINT
(referindo-se à cidade de Corinto) com a cabeça laureado de César. O reverso L CERTO AEFICIO C IVLI (O)
147
Ao se retratar em vida nas moedas, César se apropriou de uma prática helenística de
afirmação e legitimação de poder, antes mesmo de fazê-lo em Roma. Mas, diferente de
Alexandre, sua imagem não foi totalmente idealizada, pois buscou uma semelhança ao
modelo, seguindo o estilo naturalista romano, um verismo que tentava idealizar as
características morais importantes da identidade romana. De modo que “os romanos
adaptaram a convenção naturalista da arte tardo helenística aos seus propósitos (...) O exagero
realista serviu para definir os traços da sociedade romana e mantê-la distinta” (GRUEN,
1992, p.170). Ou seja, César inovou ao ressignificar uma prática imagética da monarquia
helenística conformando-a aos padrões artísticos e culturais dos romanos.
No entanto, observando o repertório imagético de César, identificamos muitos
símbolos da religião romana. Na cunhagem republicana, os motivos religiosos eram
freqüentes assim como as imagens dos deuses do panteão e a personificação das virtudes. Não
podemos esquecer que “a religião sempre foi orgânicamente conectada ao Estado romano”
(MORAWIECKI, 1996, p.37) e foi esta, mais do que qualquer outra instituição romana, que
garantiu autoridade política.
Lembramos que os dois principais colégios sacerdotais de Roma eram o dos Pontífices
e dos Áugures. O pontifex maximus, junto aos outros membros, tinha o importante papel de
aconselhar o Senado sobre todos os assuntos referentes aos sacra; aconselhar o povo em
temas da lei familiar (adoção, herança, etc) e manter os registros do Estado. Os Áugures
tomavam os auspícios, ou seja, sabiam da determinação divina, além de supervisionar os
rituais referentes aos auspícios (BELTRÃO, 2006, p.143). Juntos, os colégios “asseguravam a
legitimidade das ações políticas e da segurança do Estado” (STEWART, R. 1997, p.170).
Por sua vez, Júlio César assumiu muitos dos ofícios sacerdotais mais importantes e
influentes em Roma, sendo eleito Flamen Dialis em 87 ou 86, pontifex em 73, pontifex
maximus em 63 e augur em 47 cuja eleição para pontifex maximus foi “uma das mais bem
sucedidas manobras políticas de César” (CANFORA, 2002, p.52). Outros nobiles já haviam
concentrado sacerdócios em Roma, a novidade é como César vai utilizar as funções
sacerdotais no discurso imagético das moedas.
De acordo com Morawiecki (1996, p.47-8) não havia na cunhagem romana um
símbolo que significasse o cargo de pontifex maximus, nem outro meio de representar a
IIVIR (L. Certus Aeficius e C. Iulius, duoviri). Corinto foi destruída em 146 a.E.C e re-fundada em 44 a.E.C. por
César como o Laus Iulia Corinthiensis, e provavelmente comemorou a refundação da cidade por César. Pegasus
era uma imagem tradicional, e aparecia nas moedas mais antigas do estado grego independente de Corinto
(Mcquarie University).
Imagem: Classical Numismatic Group - http://www.cngcoins.com/Coin.aspx?CoinID=140316. Acesso em: set
2012. disponível em: http://www.humanities.mq.edu.au/acans/caesar/Portraits_Provinces.htm. Acesso jan 2014.
148
combinação de vários ofícios. Antes, os instrumentos rituais como o jarro e lituus, por
exemplo, simbolizavam as funções dos principais colégios.
César inovou ao criar uma nova tipologia ao acumular símbolos de sacerdócio em um
novo projeto iconográfico construído em paralelo à formação de sua base política (moedas 25
e 26). O conjunto de vários símbolos, que individualmente referiam-se a variados sacerdócios,
em conjunto vão se referir à posição de pontifex maximus (MORAWIECKI, 1996, p.47). Para
o autor, os receptores dessas imagens não viam os ofícios individualmente, mas sim a soma
deles constituindo a autoridade religiosa de César.
Moeda 25: Denário de Júlio César. Anv. Deusa Ceres com coroa de trigo. Rev. Símbolos religiosos culullus,
aspergillum, jarro e lituus. A legenda informa titulação de cônsul pela terceira vez, ditador pela segunda vez,
Augure e Pontifex maximus. Ref. RRC 467163
Moeda 26: Denário de Júlio César. Anv.: simpulum, aspergillum, machado e apex são simbolos sacerdotais dos
164
rituais religiosos. Rev.: elefante esmagando dragão é um símbolo tradicional do poder. Ind.: RRC 443/1
Nesse novo repertório de imagens, César enfatizou sua autoridade religiosa, primeiro
como pontifex maximus e mais tarde como um augur, um ofício tradicionalmente ligado à
163
Denário de Júlio César; Local; incerto; Periodo: 46; Anv Insc.: COS•TERT–DICT•ITER; Rev. Insc.:
AVGVR/ PONT·MAX (cônsul pela terceira vez, ditador pela segunda vez, Augure e pontifex maximus); Ind.:
RRC 467/1a; Imagem: Numismatica Ars Classica NAC AG - http://arsclassicacoins.com Acesso em: set 2013.
164
Denário de Júlio César; Local: em movimento; Periodo: c. 49-48; Insc: CAESAR; Imagem: Numismatica
Ars Classica NAC AG - http://arsclassicacoins.com. Acesso em: set 2012.
A acumulação de implementos religiosos criou uma nova concepção iconográfica pretendia significar suprema
autoridade de César.As moedas que representam imagens religiosas (RRC 443 cunhadas em 49-8 aC e RRC 467
em 46 a.E.C), foram cunhadas enquanto Roma estava no período da guerra civil.
149
legitimidade política e ao direito de comando do exército (moeda 21), ou seja, exaltou o
significado da sua autoridade religiosa, visto que a concentração de poder político ocorreu
paralela à acumulação de sacerdócios e a consequente autoridade religiosa. Morawiecki
(1996, p.55) sugere que o “poder político de César foi a soma de várias funções políticas e
religiosas.” Podemos encontrar nas cunhagens, além dos símbolos de vitória militares, os
símbolos religiosos bem como a acumulação dos cargos politicos e religiosos reforçando seu
poder.165 Não podemos esquecer que tal cunhagem tinha como objetivo primeiro o pagamento
de suas tropas.
Christofer Smith (2013, p.276-7) apresenta uma hipótese que nos ajuda a pensar mais
profundamente a questão da religião e da iconografia. Ao analisar a feriae Latinae o autor
percebeu que a relação entre essa cerimônia e a Liga Latina166 envolvia “o ritual que cercava
as primeiras atividades do exército latino”. Contudo, com a expansão e a fundação das
colônias, concessões foram feitas para que se mantivesse o festival, em decorrência de sua
importante posição nas ações preliminares da guerra. Segundo o autor, a feria Larinae está
“claramente ligada ao conjunto cada vez mais complexo dos rituais que cercam a guerra
romana no império em expansão”.
Para o autor, no contexto inicial do Lácio, o mecanismo local de estabilidade foi
adquirindo atributos cada vez mais simbólicos na relação de Roma com as comunidades
aliadas, especialmente no contexto da preparação para a guerra. Importante lembrar a
importância que o festival tinha ao garantir ao cônsul o poder de imperium, ou seja, garantia o
comando do exército. Diante disso, C. Smith (2012, p.277-8) sugere que César teria
interrompido a guerra em 49 e também em 44 para presidir o feriae Latinae mantendo seu
poder de imperium. Isto porque este “festival foi uma oportunidade para César demonstrar
concordia e harmonia entre a aristocracia, a concordia criada e promovida por ele mesmo
como resultado de sua vitória" (SUMI, 2005, p.67).
Se as hipóteses dos autores estiverem corretas, é mais um indício da importância,
naquele momento, da religião para o comando e controle do exército. A criação da tipologia
religiosa revela que a construção do poder político pessoal de César perpassava a religião para
o controle da força militar (demonstrada pelo esforço em presidir o ritual), o que explica a
165
Ver quadro das titulaturas nas moedas de César apêndice.
A Liga Latina (século VII - 338 a.E.C.) foi uma confederação de aproximadamente 30 aldeias e tribos latinas,
próximas de Roma, e foi estruturada a fim de assegurar a defesa mútua das cidades. A expansão do poder
romano gradualmente levou ao domínio sobre a liga. A renovação do tratado da Liga em 358 a.E.C. estabeleceu
formalmente a liderança de Roma, mas provocou a Guerra Latina (343-338 a.E.C.). Após a vitória romana, a
Liga foi dissolvida. Ver Peter N. Stearns, The Encyclopedia of World History, Houghton Mifflin, 2001, p.76-78.
166
150
utilização também dos símbolos da religião romana na construção da nova linguagem
imagética de César para a comunicação política em Roma.
Alexandre, ao se deparar com as dificuldades da guerra na Índia, “ergueu altares em
honra do deuses olímpicos”, demonstrando a importância de signos religiosos no discurso de
poder político (HÖLSCHER, 2006, p.32). Nesse sentido, Pollini (2012, p.73) sugere que no
“período final da República, a associação com os deuses foi levada muito longe, com a
representação do líder como divino, seguindo a tradição encomiástica (laudatória)
estabelecida há muito tempo pela monarquia helenística”.
Ao se retratar nas moedas romanas, como Alexandre, César se apropriou de uma
pratica helenística criada pelo Macedônio como forma de publicizar sua mensagem de poder
político e divino. No entanto, ao unir a tipologia do retrato aos símbolos dos ofícios religiosos
romanos na mesma série de moedas,167 César ressignificou o modelo iconográfico
alexandrino. Nesse sentido, cabe observar que o acúmulo de poderes ou funções expressos na
titulatura de César faz lembrar as três funções dos reis helenísticos ressignificadas em Roma
como: guerreiro/imperator, lider do povo/tribunicia potestas e sacerdote/pontifex maximus.
Segundo David Wardle (2006, p.110), César cumpriu suas responsabilidades em
relação à religião do Estado, quando foi magistrado e comandante militar. E ao explorar as
possibilidades de autopromoção oferecidas pelo sistema religioso e mais tarde pela posição de
poder supremo (ditadura), César estava bem próximo ao paradigma romano. De modo que as
ações de César são coerentes se pensarmos nelas como inovações na prática política e não
como uma ruptura da ordem. Logo, concordamos com Flower (2010, p.164-9), no sentido de
que a criação de uma nova linguagem visual fez de César mais um “homem do seu tempo do
que um forasteiro visionário”.
Diante do exposto e a título de conclusão do capítulo, podemos dizer que Sila foi
fundamental nesse processo ao criar a “teologia política da vitória” ligando Roma ao ideário
mítico-religioso dos povos helênicos através do parentesco de Roma com o Oriente ao criar
uma identidade ambígua em relação aos gregos: ao mesmo tempo igual e tão diferente. Além
disso, Sila utilizou a mesma “teologia” no final da guerra civil, ao se colocar como o
“refundador de Roma” em sua representação triunfal ligado a deusa de forma a garantir à
comunicação política, a partir do vetor ideológico da proteção divina, no caso específico, a
proteção da deusa Vênus.
167
Ver série Crawford RRC 443 e 467 e a série 480/12-16 e 480/18 com cabeça velada.
151
Por outro lado, Pompeu reforçou a sua imagem de imperator através da exaltação das
suas excepcionais vitórias e conquistas militares. Vale notar a ênfase dada ao número de
triunfos, superando o próprio Rômulo. Nos triunfos e no complexo do “teatro-templo”
pompeiano a encenação e a representação das conquistas sobre os quatro continentes serviram
como uma constante reafirmação da ideologia de heroicização, ou seja, da ideologia da glória
militar romana.
No entanto, foi César quem conseguiu maior equilíbrio no binômio tradição/
transformação na construção de uma linguagem iconográfica nas moedas plenamente
associada aos novos rumos do sistema de governo de Roma. Através das prerrogativas
sacerdotais, da mensagem de favorecimento divino e do progressivo culto aos líderes, ele
conseguiu publicizar sua ideologia de poder político, aproveitando com sucesso as
possibilidades do discurso imagético. Diferente de Sila e Pompeu, César caminhou na direção
da divinização pessoal como atestam as inscrições epigráficas das estátuas, que não chegaram
até nós, talvez por essa razão.
Por fim, diante de tais colocações e das evidências imagéticas apresentadas,
confirmamos nossa última hipótese de pesquisa ao verificarmos que os discursos imagéticos
publicizados pelos chefes militares se configuraram como uma performance teatral
(BEACHAM, 2005) e contribuíram para a esteticização da política romana. Nesse sentido, as
inovações nas representações dos imperatores se deram através de uma nova linguagem
visual com a finalidade de garantir a comunicação e legitimação, dentro e fora de Roma,
contribuindo assim para o estabelecimento e sustentação das relações de dominação política.
Importante considerar a arte como elemento da cultura política capaz de transmitir a
ideologia de vitória para grande parte da sociedade romana, formando um patrimônio
simbólico cultural. Para Hölscher (2006, p.44), o “esplendor, a memória e a ideologia são
formas de monumentalização conceitual, e em tais formas fixaram a glória da vitória e do
poder propagados material e idealmente”.
152
Considerações Finais
O desenvolvimento da pesquisa revelou em primeiro lugar que nossa visão acerca do
contato entre romanos e gregos estava equivocada. Devido ao paradigma da arte e da cultura
grega clássica, nossa percepção era quase a mesma de Horácio: “a Grécia conquistada,
conquistou o feroz vencedor e introduziu as artes no agreste Lácio”.168 No entanto, o contato
entre Roma e o mundo helenístico era antigo e verificamos que as interações entre os dois
povos se deram de forma muito mais complexa, revelando um diálogo constante e renovável
(WALLACE-HADRIL, 2008).
Certamente, as conquistas territoriais ampliaram as interações culturais entre ambos e
intensificando o diálogo e a transferência de recursos, material humano e intelectual para a
Península nos últimos dois séculos a.E.C. Nesse contexto, identificamos mudanças e
continuidades na sociedade romana no âmbito do direito, da religião, da economia e na
política. Nesse movimento, chamou nossa atenção o elemento militar, que sofreu
transformações de ordem prática, mas não só, visto que a expansão territorial acirrou as
disputas e o ethos militar acentuando o traço da cultura política baseada no prestígio e na
glória militar, base da formação do poder político de caráter pessoal.
Nessa percepção, a análise confirmou a relevância do paradigma ideológico e
carismático de Alexandre o Grande para o mundo romano devido à importância do caráter
guerreiro e heroico. Entretanto, essa importância se revelou a partir da releitura das práticas
discursivas de legitimação de poder autocrático, baseadas na heroicização, ascendência divina
e divinização pessoal. Os imperatores se apropriaram das imagens e das práticas simbólicas
alexandrinas em seus discursos políticos, de forma que Alexandre o Grande ofereceu aos
generais romanos, além de um modelo ideológico, um modelo estético de poder pessoal
militar.
Mas não só. Para estabelecer a comunicação política tanto no Oriente, como na
política interna, Roma transformou a vitória militar em memória a fim de estabelecer poder
político. Sila foi fundamental nessa iniciativa ao explorar o parentesco entre Afrodite e os
romanos na relação com o Oriente como forma de legitimar sua autoridade na região. Em
Roma, a agenda política do ditador foi se colocar como o protegido de Vênus e refundador da
República, transformando seu discurso político em uma “teologia política da vitória”. A
168
“Graecia capta ferum victorem cepit et artis / intulit agresti Latio” (Epistola, II, 1, 156)
153
adoção dos temas, símbolos, mitologia e estilo artístico garantiu uma comunicação política
mais eficiente com o mundo helenístico, bem como a construção de uma nova linguagem
visual, resultado de um novo sistema semântico de formas artísticas e simbólicas produtoras
de comunicação política romana. Nesse sentido, as obras de arte foram um veículo eficaz na
propaganda ideológica do poder pessoal.
Inicialmente, nosso objetivo era identificar os signa helenísticos apropriados pelos
romanos na construção do poder pessoal militar. Porém, a pesquisa revelou estarmos
enganados quanto essa ideia, porque até o momento, encontramos somente dois símbolos
gregos nas moedas dos imperatores: o troféu e o globo. Contudo, ao analisarmos os textos, os
monumentos, as estátuas, os triunfos e os retratos, enfim as imagines, percebemos que o
chefes militares se apropriaram e ressignificaram elementos ideológicos e estilísticos do
mundo helenístico em seus discursos imagéticos contribuindo para a esteticização da política
romana e na formação de novas formas de representação dos imperatores, evidenciando os
processos de transformações culturais do império.
Pompeu buscou legitimar seu poder político a partir da ideologia de poder autocrático
romano pertencente à tradição republicana, expresso pelo título de princeps. No entanto, o
general não deixou de usar a linguagem helenística em suas representações, seus retratos,
semelhantes à imagem de Alexandre, bem como pela ideia de domínio do mundo, expressa
pela monumental estátua de Pompeu cosmocrator no complexo do teatro e pelo conjunto de
imagens exibidas em seus triunfos, principalmente o do ano de 61.
Tanto Pompeu, como Júlio César usaram o tema e os elementos do triunfo e do
augurato como símbolos de representação do poder pessoal em suas cunhagens. Entretanto,
César foi o mais competente, digamos assim, na apropriação da linguagem helenística. O
estilo artístico e os topoi alexandrino foram relidos com êxito pelo ditador ao aliar os
símbolos de vitória militar aos signa da religião de modo a reforçar sua autoridade religiosa e
política. Tanto isto é realidade que a fórmula cesariana dos signa legitimadores da autoridade
sacerdotal e política, além do retrato (herança de Alexandre o Grande) foram adotadas na
prática discursiva e nas representações visuais de Otavio Augusto e de sucessivos
imperadores romanos.
A pesquisa objetivou analisar os discursos de legitimação do poder político, pois
entendemos discurso como uma prática tanto de representação quanto de significação do
mundo, constituindo as identidades e as relações sociais. Mais especificamente, analisamos a
arte como elemento da cultura política capaz de transmitir ideologia, pois a prática ideológica
constitui, naturaliza, mantém e transforma os significados do mundo e as relações de poder
154
(FAIRCLOUGH, 1992, p.90-4). Logo, ao pensarmos ideologia como um sistema de crenças
ou como formas e práticas simbólicas, examinamos o modo como essas formas se
entrecruzam com as relações de poder, em suma, como o sentido serve para estabelecer e
sustentar relações de dominação (THOMPSON, 2002, p.78).
Nesse sentido, as narrativas, os monumentos e os triunfos foram fundamentais para a
constituição da autoimagem, identidade e a formação da “memória cultural” romana, pois “a
cada nova guerra, cada cidade saqueada, cada povo conquistado, cada triunfo era a expressão
do poder romano, apoiado pelos deuses e, portanto, moralmente legítimo” (HÖLKESKAMP,
2006, p.487). Podemos dizer que a paisagem de Roma foi adquirindo mais e mais textura e
pluralidade com o surgimento de novas mídias, ou seja, com a chegada de toda espécie de
objetos trazidos pelos generais após as conquistas, bem como os seus significados, alterando a
iconosfera de Roma.
Esperamos ter demonstrado através da análise intertextual e da interpretação dos
símbolos, que os lideres políticos souberam utilizar as formas simbólicas em seus discursos
imagéticos para sua propaganda política. Todavia, eles construíram ao mesmo tempo uma
nova e complexa linguagem iconográfica identificada nos textos, monumentos e moedas
romanas. Nesse sentido, o viés comparativo foi importante, pois as categorias de análise da
documentação textual e de cultura material, cotejadas e interpretadas, indicaram que as
apropriações simbólicas constituíram os vetores ideológicos de legitimação de poder pessoal
militar em Roma.
Por fim, devemos ter em mente que a opinião pública é um fator de inquestionável
importância no sucesso operacional de qualquer governo. Através de vários meios, os agentes
oficiais promulgam imagens de si mesmos e de suas agendas políticas, através de jornais,
revistas, TV e Internet “somos bombardeados com imagens dos líderes que orquestram o
próprio governo”. Por sua vez, na antiguidade, a persuasão visual dos reis, imperadores,
chefes políticos e religiosos, dependia da escultura, da pintura e da cunhagem como veículos
visuais para sua autopromoção assim como de sua ideologia de poder (POLLINI, 2012, p.69).
155
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170
Apêndice
Quadro 1 – Titulatura de Sila, Pompeu e Júlio César usada na cunhagem.
Inscrição – L. Sila
L·SVLLA/ IMPER ITERVM
(Imperator mais uma vez)
L•SVLLA•IMP
(Imperator)
Indicação RRC*/ Ano
359/1 (84-83 a.E.C.)
Inscrição – Pompeu Magno
MAGNVS/ PRO•COS
(Proconsul)
Indicação RRC/ Ano
402/1b
(c. 80, 71 ou 61 a.E.C.)
Inscrição – Júlio César
CAESAR
CAESAR DICT ITER
(Ditador pela segunda vez)
CAESAR IMP COS ITER
(Imperator Consul pela segunda vez)
CAESAR COS TER
(Consul pela terceira vez)
CAESAR COS TER DICT ITER AVGVR PONT MAX
(Consul pela terceira vez, ditador pela segunda vez, Áugur
e Pontifex Maxumus)
C CAES DICT TER
(Ditador pela aid a a vez)
CAESAR DICT QVART
(Ditador pela quarta vez)
CAESAR DICT QVART COS QVINC
(Ditador pela quarta vez, Consul pela quinta vez)
CAESAR IMP
(Imperator)
CAESAR DICT PERPETVO
(Ditador perpétuo)
CAESAR DICT IN PERPETVO
(Ditador perpétuo)
CAESAR IMPER
(Imperator)
CAESAR PARENS PATRIAE
(Pai da Pátria)
CLEMENTIAE CAESARIS
(Clemencia de César)
367/2 (c. 82 a.E.C.)
368/1 (c. 82 a.E.C.)
Indicação RRC/ Ano
443 (49-48 a.E.C.)
452/1-5 (48-47 a.E.C.)
458 (47-46 a.E.C.)
468/1-2 (46-45 a.E.C.)
456 (47 a.E.C.)
457 (47 a.E.C.)
466 (46 a.E.C.)
467 (46 a.E.C.)
475/1-2 (45 a.E.C.)
480/2 (44 a.E.C.)
481 (44 a.E.C.)
480/3-5 (44 a.E.C.)
482 (44 a.E.C.)
480/6-14 (44 a.E.C.)
480/15-16 (44 a.E.C.)
480/17-18 (44 a.E.C.)
480/19-20 (44 a.E.C.)
480/21 (44 a.E.C.)
* Indicação RRC refere-se ao catálogo Roman Republic Coinage de H. Crawford, 1983.
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