Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Centro de Filosofia e Ciências Humanas – CFCH Instituto de História - IH Programa de Pós-Graduação em História Comparada - PPGHC Claudia dos Santos Gomes Arte e representação na propaganda política: uma reflexão comparativa sobre a linguagem visual na construção do poder pessoal militar em Roma (88-44 a.E.C.) Rio de Janeiro 2014 Arte e representação na propaganda política: uma reflexão comparativa sobre a linguagem visual na construção do poder pessoal militar em Roma (88-44 a.E.C.) Claudia dos Santos Gomes CFCH/ IFCS/ IH/ PPGHC Mestrado em História Comparada Orientador: Professora Doutora Norma Musco Mendes Rio de Janeiro 2014 GOMES, Claudia dos Santos. G633 Arte e representação na propaganda política: uma reflexão comparativa sobre a linguagem visual na construção do poder pessoal militar em Roma (88-44 a.E.C.) / Claudia dos Santos Gomes. Rio de Janeiro: UFRJ / PPGHC, 2014. xii, 170 f.: il.; 30 cm. Orientador: Profª Drª Norma Musco Mendes. Dissertação (mestrado) – UFRJ / PPGHC – Programa de Pós-Graduação em História Comparada, 2014. Referências bibliográficas: f. 155-169. 1. Roma – Política e governo - 265-30 a.E.C. 2. Cultura política – Roma - História. 3. Comunicação visual – Aspectos Políticos - Roma. 4. Liderança política – Roma – Estudo de casos. 5. Arte – Aspectos políticos - Roma. I. Mendes, Norma Musco. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em História Comparada. III.Título. CDD 937.02072 . Arte e representação na propaganda política: uma reflexão comparativa sobre a linguagem visual na construção do poder pessoal militar em Roma (88 - 44 a.E.C.) Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro – PPGHC/UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em História Comparada. Avaliada por: _______________________________________________________ Prof. Dra. Norma Musco Mendes – Orientadora (PPGHC-UFRJ) _______________________________________________________ Prof. Dr. André Leonardo Chevitarese (PPGHC-UFRJ) _______________________________________________________ Prof. Dra. Claudia Beltrão da Rosa – (PPGH-UNIRIO) _______________________________________________________ Prof. Dra. Maria Regina Candido (PPGHC-UERJ) Suplente _______________________________________________________ Prof. Dra. Sônia Rebel (PPGH-UFF) Suplente Rio de Janeiro 2014 À querida amiga Vitória que acreditou em mim desde sempre... AGRADECIMENTOS O trabalho de pesquisa é na maior parte do tempo solitário. Felizmente, muitas vezes a necessidade de ajuda faz interagir e é nesse momento que o sonho acalentado durante tanto tempo acontece, pois sem a ajuda dos amigos o trabalho não se realiza. Muitos foram os que de forma direta ou indireta, me auxiliaram no desenvolvimento desta pesquisa, e agradeço a todos por isso. Agradeço primeiramente à Prof.ª Dra. Norma Musco Mendes que aceitou me orientar nesse projeto, disponibilizando seu tempo, carinho, atenção e sabedoria ao ensinar o ofício do historiador. Muitos agradecimentos devo à Prof.ª Dra. Claudia Beltrão da Rosa pela atenção em ouvir, conversar, mostrar os caminhos e as possibilidades de análise de forma tão gentil. Agradeço a todos os meus colegas do grupo de pesquisa. Mais do que colegas, amigos que deram informações, livros, ideias e amizade quando me senti perdida. Agradeço à querida Airan Borges que desde o início dizia: "você vai conseguir"! E aos amigos Diogo Silva e Thiago Pires. Agradeço aos meus "novos" amigos cujos laços de amizade não são medidos pelo tempo de convívio: Débora Casanova, e ao sempre gentil Paulo Duprat. À querida Andreia Tamanini pelas conversas e insights oferecidos no "fórum pro Claudinha" que foram fundamentais à pesquisa iconográfica, bem como ao querido Diego F. Machado, que além do fórum, sempre esteve disposto a ajudar. E não poderia deixar de mencionar Érika Vital, amiga desde a graduação, e lembrar nosso pacto de sempre nos apoiarmos. Agradeço aos amigos da escola Evangelina pela força e amizade nos momentos difíceis e também por me "obrigarem" a me divertir às vezes, particularmente às amigas Lorena Bonomo, Nadia Alchorne, Ana Cristina Santos e tantas outras pessoas não nomeadas, mas não esquecidas. Agradeço especialmente ao prof. Jaime de Souza Júnior pela bibliografia e pelas profícuas discussões sobre os "memes" e a análise crítica do discurso. Por fim, Agradeço à doce amiga Regina Coelli, credora eterna da minha gratidão, pois sem ela eu não teria conseguido superar os obstáculos, e principalmente meus medos e inseguranças. Agradeço à minha mãezinha pelo apoio quando mais precisei. Muitos agradecimentos devo à minha irmã Luciana por toda ajuda e carinho, e especialmente à minha irmã Fernanda, artista plástica, que me orientou, tirou minhas dúvidas acerca das questões técnicas, das nomenclaturas e do fazer artístico. Agradeço as duas por todo amor e carinho nos momentos mais difíceis. “[...] o símbolo, o mito, a imagem pertencem à substância da vida espiritual, e que podemos camuflá-los, mutilá-los, degradá-los, mas jamais poderemos extirpá-los.” Mircea Eliade. Imagens e Símbolos. RESUMO A partir das interações culturais entre Roma e as sociedades helenísticas, esta dissertação problematiza as formas simbólicas ligadas à ideologia de poder de Alexandre o Grande que se tornou um paradigma para os chefes militares no final da República romana, especialmente para Sila, Pompeu Magno e Júlio César. A construção do regime político de caráter pessoal, baseado nas vitórias militares, pode ser identificado nas formas de propaganda e de comunicação política. Nesse sentido, analisamos o processo de construção de um novo sistema de representação imagética do governante romano. No caso específico desta pesquisa, propomos “experimentar” as formas de legitimação do poder político de caráter pessoal (helenístico e romano), construído de acordo com os vetores fundamentais de identificação dos imperatores. Logo, nosso campo de experimentação de pesquisa se alia ao projeto coletivo de pesquisa sob orientação pela Prof. Dra. Norma Musco Mendes, intitulado “Império: teoria e prática imperialista romana”, cujo objetivo principal é a construção de hipóteses de trabalho e a obtenção de argumentos explicativos que permitam observar comparativamente a diversidade, a pluralidade e a singularidade dos processos de formação, expansão, legitimação e desagregação dos impérios. Nossa pesquisa pretende contribuir para o diálogo comparativo entre a equipe de pesquisadores acerca do uso da arte na comunicação política para a construção de um sistema de representação para identificar e legitimar o poder imperial. Ou melhor, a partir do caso romano, investigar como numa sociedade imperial, os fenômenos simbólicos e as formas artísticas atuaram como sustentáculo de poder político. ABSTRACT From the cultural interactions between Rome and the Hellenistic societies this essay discusses the symbolic forms of power linked to the ideology of Alexander the Great who has become a paradigm for the military leaders in the late Roman Republic, especially for Sulla, Pompey the Great and Julius Caesar. The construction of the political regime of a personal nature, based on military victories, can be identified in the forms of advertising and political communication. Accordingly, we analyze the process of building a new system of imagery representation of the Roman ruler. In the specific case of this research, we propose to "experience" the legitimation of political power for personal (Hellenistic and Roman) character, constructed in accordance with fundamental vectors of identifying Imperatores. Thus, our experimental field research joins the collective research project supervised by Prof. Dr. Norma Musco Mendes, entitled "Empire: theory and practice Roman imperialist" whose main objective is the construction of working hypotheses and obtaining explanatory arguments that allow observe comparatively the diversity, plurality and singularity of the processes of formation, expansion and disintegration of empires legitimacy. Our research aims to contribute to the comparative dialogue between the research team about the use of art in political communication for building a system of representation to identify and legitimize the imperial power. Or rather, from the Roman case, investigate how in an imperial society, the symbolic phenomena and the artistics forms acted as bulwark of political power. Abreviaturas ANRW Caes. BC Cíc. Ad Atti Cíc. De Rep. Cíc. Verr. Cíc.Imp Pom. CIL Plut., Alex. Plut., Caes. Plut., Pom. Plut., Sul RPC RRC Suet. Caes. Aufstieg und Niedergang der römischen Welt (Rise and Decline of the Roman World) Bellum Civili (Guerras civis) de Júlio César Carta a Ático De Res publica de Cícero Verrinas de Cícero De Imperio Pompeio de Cícero Corpus Inscriptionum Latinarum Vida de Alexandre Vida de Júlio César Vida de Pompeu Vida de Sila Roman Provincial Coinage, Supplement 2 Roman Republican Coinage Catalogue – M.H. Crawford Vida de Júlio Cesar de Suetônio Lista das Ilustrações Figura 1: Possível retrato Alexandre (a-b) ............................................................................... 80 Figura 2: Cabeça de Alexandre o Grande - Pérgamo ............................................................... 82 Figura 3: Cabeça de Alexandre o Grande - “herma de Azara” - Museu do Louvre ................. 83 Figura 4: Estatueta de Alexandre (a-b) ..................................................................................... 83 Figura 5: Cabeça de Alexandre o Grande - Museu de Pella..................................................... 84 Figura 6: Mitridates VI - Museu do Louvre ............................................................................. 86 Figura 7: Mosaico de Alexandre (a-b) ...................................................................................... 90 Figura 8: Monumento de “Ahenobarbus” - Museu do Louvre (a-b) ..................................... 100 Figura 9: Coluna em mármore de Emílio Paulo ..................................................................... 101 Figura 10: “Sarcófago de Alexandre” ................................................................................... 101 Figura 11: Reconstituição do Teatro de Pompeu Magno (a-b) .............................................. 105 Figura 12: Estátua de Pompeu Magno Cosmocrator - Palazzo Spada .................................. 106 Figura 13: Reconstrução do Forum de Júlio César................................................................. 107 Figura 14: Estátua equestre de Alexandre o Grande - Museu de Nápoles ............................. 108 Figura 15 Tumba dos Cipiões................................................................................................. 117 Figura 16: Retrato de Cipião Africano chamado ‘Sila’ .......................................................... 118 Figura 17: Retrato de Cipião Asiático chamado ‘Mário’ ....................................................... 118 Figura 18: Sacerdote egípcio .................................................................................................. 119 Figura 19: Retrato de Pompeu Magno na época do seu primeiro consulado. ........................ 120 Figura 20: Retrato de Pompeu Magno na época do seu segundo consulado .......................... 121 Figura 21: Retrato de Júlio César - Museu de Tasos .............................................................. 122 Figura 22: Retrato de Júlio César - Museu de Turim ............................................................. 123 Figura 23: Retrato de Júlio César - Museu do Vaticano......................................................... 123 Figura 24: “Monumento de Sila” – Porta Triumphalis (S. Omobono) (a-b-c) ....................... 133 Lista das Moedas Moeda 1. Denário de M. Sergius Silus, Roma ......................................................................... 49 Moeda 2. Tetradracma de Felipe II . ........................................................................................ 78 Moeda 3. Tetradracma Alexandre - Hércules com pele do leão de Nemeia ........................... 79 Moeda 4. Tetradracma de Lisímaco – Alexandre e o símbolo de Zeus-Amon . ........................ 79 Moeda 5. Tetradracma de Antíoco I - Hércules usando a pele do leão de Nemeia. ................ 85 Moeda 6. Tetradracma de Antíoco I - Antíoco I com tiara ..................................................... 85 Moeda 7: Denário Cn. Lentulus – Globo, cetro, grinalda e leme . ......................................... 127 Moeda 8: Denário de M. Brutus. Roma - Retrato de Brutus e Ahala .................................... 130 Moeda 9: Tetradracma de Sila - “New Style” ateniense . ...................................................... 132 Moeda 10: Áureo e Denário cunhado por Sila - Vênus e troféus. .......................................... 132 Moeda 11: Denário L. Vinicius - Vitória carregando palmas e coroas de flores ................... 134 Moeda 12: Bronze de Sila - cabeça laureada de Janus ........................................................... 134 Moeda 13: Áureo de Sila - Triumphator dirigindo quadriga ................................................. 136 Moeda 14: Denário de Fausto Sila - Vênus laureada e troféus ............................................. 138 Moeda 15: Denário de Fausto Sila - Globo cercado por três coroas de flores ...................... 138 Moeda 16: Áureo Pompeu Magnus – Triumphator .............................................................. 139 Moeda 17: Denário de Júlio César – troféu gaulês ................................................................ 141 Moeda 18: Denário de Júlio César - Enéias carregando Anquises ........................................ 142 Moeda 19: Denário de Júlio César - Vênus segurando Vitória ............................................. 142 Moeda 20: Denário de Júlio César - Templo de Clementia ................................................... 143 Moeda 21: Retrato de Júlio César - Pai da Pátria .................................................................. 144 Moeda 22: Retrato de Júlio César - Juno Sospita conduzindo biga ....................................... 145 Moeda 23: Retrato de Júlio César - Niceia ............................................................................. 146 Moeda 24: Retrato de Júlio César - Corinto. .......................................................................... 146 Moeda 25: Denário de Júlio César - Símbolos sacerdotais .................................................... 148 Moeda 26: Denário de Júlio César - Símbolos sacerdotais e elefante esmagando ................ 148 Mapas e plantas Planta 1. Planta esquemática da rota triunfal em Roma .......................................................... 48 Mapa 1. Conquistas romanas de 146 a 30 a.E.C. ..................................................................... 57 Mapa 2. Campanhas de Alexandre o Grande ........................................................................... 69 Mapa 3. Os reinos helenísticos e as ligas gregas ...................................................................... 74 Quadros Quadro 1. Titulatura de Sila, Pompeu e Júlio César usada na cunhagem .............................. 170 Sumário Introdução ............................................................................................................................... 13 Capítulo 1- Discutindo conceitos: ideologia, discurso, arte e visualidade ......................... 21 1.1 Arte e ideologia .................................................................................................................. 25 1.2 Metodologia e Documentação ............................................................................................ 30 1.2.1 Documentação textual ..................................................................................................... 31 1.2.2 Documentação de cultura material .................................................................................. 35 Capítulo 2 - Roma e as transformações políticas do século I a.E.C. ................................. 37 2.1 A conjuntura sociopolítica e o sistema republicano de governo no século I .................... 38 2.2 Ethos social e a ideologia de vitória ................................................................................. 43 2.3 A expansão territorial do império e o elemento militar ..................................................... 50 Capítulo 3 - Alexandre, o Grande e a imagem do poder pessoal ....................................... 63 3.1 Os reinos helenísticos ......................................................................................................... 73 3.2 Alexandre e a estética do poder ......................................................................................... 77 3.3 Alexandre o Grande: uma criação romana? ...................................................................... 88 3.4 A arte helenística e as contribuições à linguagem visual de Roma ................................... 90 Capítulo 4 - Poder e representação – a arte na comunicação política .............................. 96 4.1. A linguagem visual - modos de comunicação política dos romanos................................. 96 4.2 A perfomance teatral e o discurso de poder político ........................................................ 104 4.2.1 Arquitetura .................................................................................................................... 104 4.2.2 O triunfo romano – uma procissão espetacular ............................................................ 110 4.2.3 Retrato – imagines e os ancestrais ................................................................................ 115 4.3 Comunicação política e as moedas romanas - a arte da representação ............................ 124 4.3.1 Sila no Oriente - uma nova forma de comunicação? .................................................... 131 4.3.2 Pompeu – exaltação ao poder pessoal .......................................................................... 137 4.3.3 Júlio César – tradição e inovação ................................................................................. 140 Considerações finais ............................................................................................................. 152 Referências Bibliográficas ................................................................................................... 155 Apêndice ................................................................................................................................ 170 13 Introdução Em dezembro de 2012 o Banco da Inglaterra divulgou a notícia de que poderia em breve estampar nas moedas de £10 imagens de personalidades importantes para a sociedade inglesa, tais como William Shakespeare e Winston Churchill, passando por David Beckham, Mick Jagger, a princesa Diana e os Beatles. Na mesma época, chamou a atenção outra reportagem relativa à capital dos Estados Unidos, Washington - conhecida pela grande quantidade de estátuas que homenageiam celebridades da história americana e do mundo, dentre elas Abraham Lincoln e Mahatma Gandhi, e que hoje estão espalhadas por toda a cidade.1 As imagens, em nossa sociedade, são valiosos suportes que expressam signos, ideias, valores e ideologias. Nessa perspectiva, o professor Dr. Nigel Spivey, da Universidade de Cambridge, no documentário “How Art Made the World” (2005),2 leva os espectadores em uma viagem investigativa a fim de compreender como a arte se constituiu e “moldou o mundo” com a intenção de decifrar a capacidade humana de se comunicar por meio de símbolos. Particularmente, no episódio três - “The art of persuasion”, o pesquisador inicia o capítulo ressaltando os artifícios visuais usados por George Bush em sua campanha e que o ajudaram a ser eleito. A partir daí, o professor volta no tempo, partindo das grandes civilizações do mundo antigo como a Pérsia de Dario I, passando à Macedônia de Alexandre o Grande até chegar a Roma de Augusto, para mostrar que estratégias visuais persuasivas provêm não dos tempos modernos, mas de um mundo com milhares de anos de idade e demonstra como as imagens se tornaram uma arma indispensável no arsenal dos líderes políticos. Desta forma, observamos que a propaganda está presente na maioria das sociedades contemporâneas e no contexto da chamada globalização, onde as trocas culturais são intensas, e as imagens cada vez mais rapidamente são difundidas com as mais variadas finalidades. Segundo Neyde Thelm (1998, p.306), “as imagens são olhadas e compreendidas de forma sincrônica, global e imediata”, destarte a autora esclarece quanto à importância da linguagem visual para a publicização de valores, ideologias e mensagens. 1 As reportagens encontram-se disponíveis nos sites: http://br.omg.yahoo.com/noticias/beatles-mick-jaggerrobbie-willians-podem-estampar-moeda-181402849.html, acesso 01/01/2013 e http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2013/02/ruas-e-pracas-de-washington-tem-estatuas-de-anonimos-efamosos.html, acesso 29/03/2013. 2 Dr. Nigel Spivey é professor na Universidade de Cambridge, onde leciona Arte Clássica e Arqueologia. No documentário produzido pela BBC em 2005, o professor apresenta uma série com cinco episódios mostrando a historia da arte e seu papel no mundo. Mais informações: http://www.pbs.org/howartmadetheworld/interviews/ 14 Quando Roma expandiu suas conquistas em direção ao Mediterrâneo oriental no século II a.E.C., houve uma intensificação do contato e consequente aumento das interações culturais entre os povos que habitavam aquela parte do império. Os romanos dominaram a Grécia e reinos helenísticos e, ao se virem protagonistas da região, inseriram cada vez mais o patrimônio destes “em seu próprio repertório para responder à nova situação” (OLIVA NETO, 2008, p.49). Nesse processo, identificamos referências ligadas à ideologia de poder de Alexandre o Grande, herói paradigma do guerreiro vitorioso e divino, que foram apropriadas e ressignificadas pelos chefes militares romanos. Assim, a presente pesquisa problematiza o processo de transformação do sistema de representação dos imperatores no decorrer do século I a.E.C. tendo em vista que as representações imagéticas contribuíram para o discurso de legitimação política na propaganda e na comunicação política dos chefes militares, especialmente para Sila, Pompeu Magno e Júlio César3 e contribuíram também para discurso visual do regime político de caráter autocrático em Roma, entendido aqui como uma modalidade de poder monárquico “que se concentra na figura de um chefe e pode levar à personalização do poder” (STOPPINO, 1998, p.372). Nossa opção de análise recai sobre a modalidade de poder político militar visto que o controle do exército foi um dos elementos que respaldaram o sistema de governo de caráter pessoal em Roma, consolidado somente com Otávio Augusto no final do século I a.E.C. no regime político do Principado. Segundo Mendes (2006, p.22), a necessidade de um exército permanente e profissional fez surgir as “bases essenciais para o estabelecimento de um poder pessoal” e a ditadura, no caso de Júlio César, foi um dos instrumentos “para obter um poder centralizado e pessoal”. De acordo com Gilvan Ventura da Silva (2001, p.31-2), “a explicação tradicional para a ascensão política de Augusto fundamenta-se no monopólio dos meios de coerção exercidos pelo princeps,4 enfatizando-se o controle estrito mantido por ele sobre o exército”. Um exemplo dessa corrente foi L. Homo (1927, p. 262-3) ao afirmar que “o império é uma monarquia militar e a despeito de todas as aparências sua força residirá sempre no exército; é a ação declarada ou latente do exército que conduzirá gradualmente o regime imperial na via do despotismo militar.” 3 Lucio Cornélio Sila (138-78), Cneu Pompeu (106-48) e Caio Júlio César (100-44). Princeps - o mais eminente cidadão do Estado - era o cidadão que se destacava e ocupava liderança na cidade, consagrado pela popularidade, dignitas e auctoritas na noção estoica de “primeiro entre os iguais”. Após as guerras civis, um novo sistema político foi elaborado em torno das práticas republicanas das relações de poder, centrado na figura do princeps (MENDES, 2006, p.26-27). 4 15 Outra corrente de interpretação defende que outros elementos sustentaram a instauração do novo modelo de governo, como P. Petit (1989, p.193-214), que prefere atribuir ao “Principado uma natureza jurídica, religiosa e/ou sociológica decorrente da retenção política por parte de Augusto de diversos títulos ou princípios característicos da prática política republicana, como por exemplo, o imperium, a tribunicia potestas e o Pontificado Máximo.” Ou seja, após a vitória de Otávio Augusto na batalha de Ácio em 31, a nova configuração política do governo da res publica foi representada pela concentração pelo princeps expresso pelo imperius majus proconsulare dado a Augusto no ano de 23. Todavia, o monopólio das forças de coerção por si não sustenta um regime político por muito tempo, pois há que existir um consenso entre os segmentos da sociedade na condução dos assuntos do Estado visto que o “poder social não é uma coisa ou a sua posse: é uma relação entre pessoas” (STOPPINO, 1998, p.934). Considerando-se a argumentação de Stoppino, lembramos que sobre o Principado augustano, G. Ventura (2001, p.33) ressalta a necessidade de criação de “valores que possam tornar a ação dos agentes do poder constituído algo perfeitamente admissível, legítimo e até mesmo desejável.” Logo, a partir dessas considerações, nossa pesquisa entende que o poder político, baseado nas vitórias militares, perpassou o controle do exército, mas não só. Os chefes militares anteriores a Augusto também se apoiaram nas esferas jurídicas e religiosas da sociedade romana a fim obterem legitimação política no processo de construção do poder pessoal em Roma. A política em Roma caracterizava-se pela áspera e frequentemente dramática disputa entre as famílias (SMITH, 2006, p.313-4).5 Nesse cenário, a arte revelou-se importante instrumento no processo de legitimação do poder pessoal militar do soberano romano, assim como parte da construção de um sistema de representação política do império. O objeto artístico, “convocado a satisfazer as exigências de autorrepresentação dos protagonistas daquelas lutas” ofereceu uma “variada gama de temáticas e soluções formais” (GASPARRI, 2008, p.31) aos agentes do poder político. Sendo assim, um dos nossos objetivos é identificar as formas simbólicas6 e os tipos e modelos das obras de arte gregas e helenísticas, apropriadas e ressignificadas no discurso visual romano, como um dos elementos que serviram para o estabelecimento e sustentação das relações de dominação política. 5 Em relação ao papel das gentes na comunidade romana, especialmente a disputa pelas magistraturas, comando militar e sacerdócios na República tardia, cf. J. Christopher Smith (2006, capítulo 10). 6 Entendemos as formas simbólicas em um amplo espectro de ações e falas, imagens e textos produzidos pelos sujeitos, reconhecidos por eles e por outros, como constructos significativos (THOMPSON, 2002. p.81). 16 As imagens são concebidas, idealizadas, inventadas e produzidas pela sociedade, as quais nos remetem de forma não explícita ao vivenciado, ao visto, ao não visto, ao sentido, ao imaginado, ao sonhado, ao projetado por aqueles que viviam nesta sociedade (BURKE, 2004, p.11). Assim, para investigarmos as representações simbólicas, optamos pela análise das esculturas e da cunhagem dos magistrados, compreendidas aqui como documentos históricos. O estudo das formas de legitimação de poder, a partir das representações iconográficas, baseia-se na ideia de que o “campo icônico e figurativo” representa o mundo em que vivemos “em toda sua diversidade e complexidade” (PAIVA, 2002, p.26-7). Porém, ao analisar as formas simbólicas, não podemos esquecer que a imagem não expressa em si um significado cultural, religioso ou ideológico, como se o significado fosse intrínseco ou existisse independente dessa expressão imagética. Nas palavras de Jean-Claude Schmitt (2007, p.42): [...] Pelo contrário, é a imagem que lhe faz ser como o percebemos, conferindo-lhe sua estrutura, sua forma e sua eficácia social. Dito de outro modo, a análise da obra, de sua forma e de sua estrutura é indissociável do estudo de suas funções. Não há solução de continuidade entre o trabalho de análise e a interpretação histórica. Observar os usos das imagens é uma tarefa difícil, no entanto, recolocá-las “no conjunto do imaginário social,” pode nos ajudar a aferir suas implicações de poder e memória (SCHMITT, 2007, p.45-6). Portanto, constitui nosso objetivo observar a função política das obras de arte, sua dimensão e significado histórico, ou seja, seu papel ideológico e político. Nesse sentido, a proposta de Schmitt dialoga com o trabalho de Peter Stewart quando este examina as características da estatuária romana. Abandonando as categorizações modernas de ‘escultura’, ‘retrato’, ‘arte’ e ‘culto’, o autor considera as estátuas como uma única categoria e analisa suas funções básicas e importância social. Isto é, avalia as estátuas “como objetos de culto, como sinais de interação social entre pessoas ou entre pessoas e deuses, como ferramentas para a autorrepresentação ou exposições de status cultural e prestígio, como propaganda política” (STEWART, 2003, p.7-10). Podemos dizer que o período contemplado na pesquisa se caracteriza pelas mudanças culturais. E as transformações foram condições básicas para a transmissão da vitória para grande parte da sociedade romana: geograficamente por todo o império e, socialmente, em várias esferas da vida. O “esplendor, a memória e a ideologia foram formas de monumentalização conceitual, e como tal, fixavam a glória da vitória e do poder podendo se espalhar material e idealmente” (HÖLSCHER, 2006, p.44). Em Roma, a colocação de estátuas em lugares públicos era cuidadosamente controlada. O rigor na autorização desses 17 elementos visuais, para nós, demonstra a influência e o poder do discurso imagético visual na política. No caso específico desta pesquisa, propomos experimentar as formas de legitimação do poder político de caráter pessoal, construído pelos romanos de acordo com os vetores fundamentais de identificação dos imperatores. A partir das interações culturais entre Roma e as sociedades helenísticas,7 relacionamos a apropriação e releitura pelos romanos do paradigma do Alexandre o Grande que convergiram na ideologia e no sistema de representação imagética do governante romano. A arte, elemento da cultura política, evidencia os usos da linguagem visual como um dos fatores de legitimação de poder político e sustentação de estruturas imperiais. Desta forma, o presente trabalho integra-se ao campo de experimentação de pesquisa coletiva orientado pela Prof. Drª Norma Musco Mendes, intitulado “Império: teoria e prática imperialista romana”, cujo objetivo principal é a construção de hipóteses de trabalho e a obtenção de argumentos explicativos que permitam observar comparativamente a diversidade, a pluralidade e a singularidade dos processos de formação, expansão, legitimação e desagregação dos impérios. A partir das propostas de Marcel Detienne (2004) sobre a prática comparativa de pesquisa, nosso projeto coletivo se preocupa com o estudo de Impérios como uma categoria de análise histórica e nosso campo de experimentação se limita à experiência imperialista romana. Considerando o caso romano, nossa pesquisa pretende contribuir para o diálogo comparativo entre a equipe de pesquisadores acerca das formas de representação do poder político como um veículo de comunicação e seu valor para legitimar a dominação em uma sociedade imperial. Entendemos que um império não sobrevive apenas através das forças de coerção e dos atos de acumulação de riquezas. Sua permanência se dá através de práticas que envolvem a dinâmica dos processos de formação, manutenção e reprodução dos impérios, o qual pode ser definido pelo termo imperialismo. Neste contexto, a investigação está vinculada ao conjunto de problemas relacionados à análise do poder das representações iconográficas produzidas pelo conquistador, as quais podem ser entendidas como práticas imperialistas. Portanto, 7 Segundo A. Momigliano (1991, p.9-26), as sociedades helenísticas se caracterizam pelo encontro de diversas culturas disseminadas na bacia mediterrânea e para além dela; e nossa pesquisa entende que Roma fez parte desses contatos culturais. Interessa-nos particularmente, a partir do final do séc. II a.E.C, além da Magna Grécia, os contatos com as regiões do Mediterrâneo oriental sob domínio romano que compreenderam a Grécia continental, Reino Selêucida, Império Lágida, Ásia Menor, Reino do Ponto, Reino de Pérgamo e os importantes centros artísticos de Alexandria, Antioquia, Atenas, Corinto, Damasco, Rhodes e Pella. 18 pretendemos demonstrar a conexão entre poder e cultura em uma sociedade imperial (SAID, 1995). Nossa dissertação propõe, como uma das hipóteses de trabalho, entender como um viés possível de análise, que o ethos social em relação à guerra e as interações culturais com as novas áreas conquistadas acentuaram o caráter pessoal das relações de poder e reforçaram a cultura política8 baseada no poder pessoal militar em Roma. Tendo em vista que Alexandre o Grande já se apresentava como herói de caráter divino no mundo Mediterrâneo, propomos que além de um paradigma ideológico, o conquistador macedônio foi um paradigma estético de poder pessoal militar. Nesse sentido, consideramos a importância das apropriações das obras de arte e dos modelos estilísticos gregos e helenísticos que contribuíram para transformar a visualidade e a iconosfera de Roma. Nossa hipótese principal é que o domínio romano do Mediterrâneo oriental requereu a construção de uma nova linguagem visual modificando o sistema de comunicação política produzindo um sistema semântico no Império Romano expresso pelo discurso imagético textual e visual das formas artísticas e simbólicas. Esse processo é pensado a partir da proposta de Tonio Hölscher (2004, p.127) onde as formas artísticas criaram um “sistema de comunicação visual” e serviram como veículo de mensagens ideológicas e possibilitaram a comunicação política através do império. A partir da ideia de performance (BEACHAM,2005), propomos como última hipótese de trabalho, que a apropriação e a releitura das formas simbólicas ligadas a Alexandre o Grande e o estilo de arte helenística contribuíram para a esteticização da política atuando como uma performance teatral para a comunicação política em prol da legitimação dos imperatores servindo ao estabelecimento e sustentação das relações de dominação política. Tendo em conta que a História apresenta problematizações e questões atuais, às vezes, originadas em outras áreas do conhecimento, há a necessidade de estabelecer diálogos interdisciplinares (PAIVA, 2002). A ampliação dos interesses para além dos eventos políticos e econômicos, como também a história da cultura, do cotidiano e outros interesses, convidam a expandir a gama de tipologias documentais (BURKE, 2004). De forma, os vestígios de cultura material – as moedas, estátuas, epígrafes, monumentos revelam-se como uma documentação suscetível de ser analisada e cotejada com a documentação textual. Estes 8 A partir do atual debate sobre a República romana, seus avanços teóricos e metodológicos, Karl Hölkeskamp (2010) sugere que a cultura política romana foi uma espécie única, uma variante específica de uma classe política e sublinha a importância do debate sobre as instituições, as hierarquias sociais, enfim, sobre a vida política como um todo. Para tal, o autor analisa o sistema de valores romano, tais como a aristocracia senatorial; concorrência na guerra e a política dentro da aristocracia; a linguagem simbólica dos rituais e cerimônias públicas, monumentos, arquitetura e a topografia urbana. 19 materiais devem ser analisados em sua especificidade, através de um diálogo interdisciplinar com a Arqueologia, a Numismática e a História da Arte. Para melhor operacionalizar a documentação textual e imagética, estabelecemos como recorte cronológico o período do século I antes da Era Comum (a.E.C.),9 mais especificamente a partir da Primeira Guerra Mitridática e o comando de Sila (88) até o assassinato de Julio César (44). O corpus documental imagético visual privilegia a iconografia relacionada aos ensaístas do poder pessoal que nos ajudam identificar apropriações e ressignificações dos signa,10 tipos e/ ou modelos gregos e helenísticos, assim como as referências a Alexandre Magno na comunicação política dos romanos. Além desses elementos, a escolha do nosso recorte temporal advém da observação de que no final da República e começo do Império, especialmente sob Augusto, um “novo vocabulário artístico foi desenvolvido para dar forma e significado às novas ideologias” (POLLINI, 2012, p.3). Com a finalidade de validar as hipóteses de trabalho, organizamos o texto desta dissertação da seguinte forma: O item inicial de nosso trabalho – Discutindo conceitos: ideologia, discurso, arte e visualidade - relaciona a arte e as imagens ao conceito de ideologia e representação nos discursos. Também apresentamos o corpus documental da pesquisa. O capítulo 2 – Roma e as transformações culturais do século I a.E.C. - apresenta o contexto da expansão imperial romana no Oriente a fim de analisarmos o ethos social baseado na laus e na glória militar, bem como o elemento militar e suas relações com a religião e a política no processo de construção do poder de caráter pessoal em Roma. Em seguida, no capítulo 3 – Alexandre, o Grande e a imagem do poder pessoal tratamos do mundo helenístico e das formas de legitimação do poder monárquico de Alexandre o Grande. Neste item traçamos algumas considerações sobre a historiografia do helenismo, a relação entre a vitória militar, a constituição dos reinos helenísticos e a construção dos signa de poder pessoal de Alexandre o Grande. Em seguida, discutimos o paradigma de Alexandre na cultura romana e as interações culturais entre Roma e a arte helenística, bem como as contribuições à linguagem visual de Roma. 9 A maior parte das datas aqui apresentadas são antes de Era Comum (a.E.C.), de modo que não faremos essa indicação salvo alguma data em contrário. 10 Identificamos como signa de poder, os símbolos ligados às vitórias militares, às conquistas territoriais e às alusões mitológicas. Assim como as referências ao próprio Alexandre o Grande, tal como seus feitos heroicos, suas conquistas, a ligação com o divino, e principalmente aos retratos do macedônio que se configuraram como um modelo de representação de poder em si. 20 No capítulo 4 – Poder e representação – a arte na comunicação política - refletimos sobre as transformações na comunicação política dos romanos em contato com o Oriente e a contribuição do helenismo para o Império. Em seguida, optamos por interpretar o valor da heroicização, ascendência/ proteção divina e da divinização pessoal como vetores fundamentais para a construção do sistema de representação dos imperatores no discurso imagético textual e visual. Por fim, nas considerações finais, sintetizamos nossos principais argumentos interpretativos sobre os discursos de legitimação de poder pessoal e a relação dos fenômenos simbólicos e as apropriações das formas estéticas na propaganda e na comunicação política. 21 Capítulo 1 Discutindo conceitos: ideologia, discurso, arte e visualidade A propaganda e a persuasão estavam presentes na vida cotidiana e fizeram parte da esfera política e social da Roma antiga. Pode-se observar também que elas promoveram ou fortaleceram alguns dos princípios ideológicos, consagrados no discurso político, atuantes desde o processo de expansão imperialista da república romana (SALINERO, 2011, p.11). Logo, ao examinarmos o paradigma de Alexandre o Grande e as diferentes maneiras como ele foi apropriado na propaganda e na comunicação política utilizada pelos ensaístas do poder pessoal, nossa pesquisa busca analisar a construção do sistema de representação do soberano em Roma como parte do processo de legitimação de poder pessoal militar. Porém, a ideia de propaganda que mais se aproxima, em nosso entender, do fenômeno no mundo antigo, é a de Jacques Ellul que define propaganda como “o simples, mas importante ato de organizar, selecionar e divulgar informações, usando de persuasão, de síntese e de imagens que estão na memória dos receptores das mensagens.” Além disso, as informações que são passadas “dizem respeito a fatos significativos já ocorridos ou a acontecerem, e atingem as pessoas de forma diferenciada” (ELLUL, 1957 apud GONÇALVES, 2001, p.62). Tendo em vista as interações culturais entre Roma e as sociedades helenísticas como temática central, a pesquisa enfatiza as formas de comunicação política. Para tal, o arcabouço teórico da investigação parte dos pressupostos da “Nova História Política” que ressalta o valor da cultura política para o estudo das relações de poder em uma sociedade. A proposta de Rémond (2003, p.35-6) reabilita a história política supracitada quando afirma suas “relações com os outros domínios: liga-se por vínculos, por toda espécie de laços, a todos os outros aspectos da vida coletiva. O político não constitui um setor separado, é uma modalidade de prática social”. Assim sendo, entendemos o político como “o ponto para onde conflui a maioria das atividades e que recapitula os outros componentes do conjunto social”. Ou seja, o político “dirige em parte as outras atividades, define seu status, regulamenta seu exercício” (RÉMOND, 2003, p.447). Mas como definir o que é o político? Nessa tarefa, Rémond (2003, p.443-5) sugere um sentido mais abstrato, seguindo o que ele tem de mais constante, ou seja, o poder. Para o autor, “a política é a atividade que se relaciona com a conquista, o exercício, a prática do 22 poder”. Nos interessa a relação de poder “que constitui a totalidade dos indivíduos que habitam um espaço delimitado por fronteiras que chamamos precisamente de políticas”. E como todas as atividades e setores têm relação com o político, não podemos representá-lo como um domínio isolado. Deste modo, o autor postula que a História política possibilita observações mais globais em que o político “é um ponto de condensação” e não um fim em si mesmo. Contudo, é preciso ter em vista as especificidades da antiga Roma, de modo que entendemos poder e participação na vida política da República (em nosso caso, no século I) de acordo com Hölkeskamp (2010, p.1) ao propor que esta não envolvia somente as estruturas constitucionais, mas também os valores, as tradições e as práticas que informavam a visão de mundo das elites e das pessoas comuns da mesma maneira, ou seja, a cultura política como um todo. Ao pensarmos a política como um aspecto cultural das sociedades, entendemos que a cultura política expressa uma identidade social que se caracteriza como um conjunto de representações e de visões de mundo. Segundo Woodward (2000, p.3), “a construção das identidades é, assim, tanto simbólica quanto social. Deste modo, existe uma associação entre as identidades de uma pessoa e as coisas que uma pessoa usa”. A representação, como um sistema de significação, enquanto forma de atribuição de sentido, se configura como elemento importante na definição das identidades, pois que ela se expressa através de símbolos. De modo que nas relações entre identidade e cultura política, entendemos que é “por meio da representação que a identidade e a diferença se ligam a sistemas de poder” (WOODWARD, 2000, p.91). Compreendemos poder como a capacidade ou possibilidade de agir, individualmente ou em grupo, e cujo campo de atividade ou “esfera de poder”, é baseado em uma competência específica. O poder político abrange uma ampla esfera e garante a realização das obrigações pertinentes e inseridas ao sistema de organização coletiva, ou melhor, o poder político é ancorado “por uma parte na institucionalização e na legitimação da autoridade e por outra na possibilidade efetiva do recurso à ameaça e, como extrema medida, ao uso da violência.” (T. PARSONS apud STOPPINO, M. 1998, p.933). Pensando nos atributos do Estado, recorremos a Lucio Levi (1998, p.675) quando definiu legitimidade como a existência “em uma parcela significativa da população, de um grau de consenso capaz de assegurar a obediência sem a necessidade de recorrer ao uso da força”. Por esta razão, “todo poder busca alcançar consenso, de maneira que seja reconhecido 23 como legítimo, transformando a obediência em adesão” e busca ser um elemento integrador no âmbito das relações sociais. Considerando que nossa pesquisa objetiva analisar os vetores de identificação e legitimação do poder pessoal militar no império, sugerimos que esse processo não ocorreu exclusivamente pela força, mas aliado a processos políticos, sociais e culturais. Implica dizer que a construção do poder pessoal, envolvia diferentes grupos, e se valeu de mecanismos de legitimação, de dispositivos “teóricos ou práticos” (SILVA, 2010, p.135) para dar suporte ao seu poder político. A partir da acepção de Eliot A. Cohen (2004, p.50) entendemos que “império é um Estado multinacional ou multiétnico que estende sua influência por meio do controle formal e informal sobre outros regimes”. Nirad Chaudhuri acrescenta que não há império sem um conglomerado de nacionalidades de diferentes línguas, culturas e etnias, na qual a hegemonia de uma sobressai sobre as outras. A heterogeneidade e a dominação são da própria essência das relações imperiais. Um império é hierárquico, podendo haver nele “total ou parcial liberdade de indivíduos ou grupos a subir de um nível para outro, mas isso não modifica a estrutura escalonada e estratificada da organização" (apud COHEN, 2004, p.50). Por outro lado, o antropólogo Thomas J. Barfield (2001, p.11-41) ao sintetizar as condições para que um Estado se transforme em um império, afirma a necessidade da criação de um sistema de valores compartilhados, formado com base nos padrões culturais do centro imperial, como um meio de sobrepujar as diversidades locais. A presença imperial é marcada e refletida em todas as variáveis, tais como: formas de organização do espaço, arte, cosmologia, estilo arquitetônico, práticas sociais, rituais e sistemas de representação da legitimidade imperial. Concordamos com T. J. Barfield quanto à prática imperialista de se fazer presente nas variadas formas de organização do espaço e etc. Conquanto, nossos estudos sobre o Império Romano mostram que o compartilhamento dos valores culturais não buscava “sobrepujar as diversidades locais”. Mas dos contatos entre as diversas culturas, ocorreram negociações, apropriações e ressignificações que mostram caminhos de “mão dupla”. Podemos dizer que uma das condições para a construção do “projeto imperial” (WOOLF, 2001, p.311-322) foi a indispensável existência de sistemas voltados para o controle socioeconômico, político, militar e ideológico a fim de impor uma “certa unidade através do império”. De modo que definimos imperialismo como: 24 [...] ação de pensar, colonizar, controlar terras, que não são as suas, são distantes, habitadas e pertencentes a outros povos. É a prática, a teoria e as atitudes de um centro metropolitano dominante, governando um território distante. Pode ser alcançado pela força, pela colaboração política, por dependência econômica, social e cultural. É a criação de uma dinâmica específica da dependência, que sobrevive em determinadas práticas econômicas, políticas, sociais e ideológicas, ou seja, em uma esfera cultural geral. Concluímos, pois, que o imperialismo é um processo da cultura metropolitana, entendida como um conjunto de códigos de identificação, referência e distinção geográfica, controle, autoridade, dependência, vantagem e desvantagem, cuja função é a de sustentar, elaborar e consolidar a prática imperial (SAID, 1995, p.38ss). Nosso trabalho se apoia nas análises de Edward Said, no sentido de que as experiências imperialistas produziram uma “estrutura de atitudes e referências da cultura imperial” que possibilita confrontar as “formas culturais com a história dos impérios e com os mecanismos de integração, existentes no contexto imperial”. Particularmente, nos interessa quando o autor examina o discurso colonial enfatizando o poder das representações e das linguagens coloniais, produzidas pelo conquistador e pelo conquistado como um legítimo campo de pesquisa (SAID, 1995, p.38). Nesse sentido, entendemos representação como processos nos quais indivíduos ou grupos “usam sistemas de significação para produzir significado”, ou seja, os “objetos, pessoas, eventos no mundo não têm em si mesmos qualquer significado fixo, final ou verdadeiro” de modo que “somos nós, em sociedade, que atribuímos significado às coisas e ao mundo que nos rodeia. Os significados, consequentemente, irão sempre mudar, de uma cultura ou período para outro” (HALL, 1997, p.61). Assumindo as representações como sistemas de significação que servem à comunicação social (RODRIGUES, 1983, p.35), utilizamos então o conceito antropológico de cultura semiótica proposto por Clifford Geertz (1989, p.15) ao defender que o homem é um animal amarrado a uma teia de significados que ele mesmo teceu e está amarrado a ela, transformando o comportamento humano em uma ação simbólica, onde os símbolos se tornam inteligíveis no contexto da cultura. Simultaneamente estes símbolos são “tecidos” num processo contínuo e dinâmico. Dessarte, a cultura não constitui um padrão estabelecido de comportamento, mas sim como um sistema que organiza e controla o comportamento do homem. Portanto, nenhum homem está sozinho, ele sempre faz parte de um todo. O conjunto de segmentos que compõem a cultura de um povo é formado pela religião, moralidade, ciência, comércio, tecnologia, política, lazer, o direito e pelo próprio cotidiano. Tal conceito 25 nos permite identificar que a interação do público com a Arte está baseada em associações constituídas num aprendizado (ao longo dos séculos) e da conexão com os símbolos sociais. Daí a necessidade de que a análise sobre arte/ estética não seja apartada da vida social (GEERTZ, 1997, p. 145). 1.1 Arte e ideologia No mundo antigo, as esculturas estavam em todos os lugares, principalmente nos espaços urbanos, pois gregos e romanos concederam à escultura posição central na cultura e no repertório simbólico ao ocuparem lugar de destaque nos espaços públicos (BEARD e HENDERSON, 2001, p.65). O mundo romano foi um mundo de cultura visual dado que as imagens mostravam os assuntos do império em todos os seus modos de vida, econômica, religiosa e social, ajudando a construir uma unidade simbólica entre as diversas pessoas que integravam o mundo romano, enfocando o senso de hierarquia e prestígio individual (ELSNER, 1998, p.12). Jás Elsner, em seu livro Imperial Rome and Christian triumph (1998, p.2), afirma que a dinâmica motivadora da “grande mudança cultural no final da antiguidade” já existia na cultura romana. Para o autor, uma característica dos romanos era “redefinir o presente reinventando livremente o passado” e mais, “uma das características culturais persistentes do mundo romano foi a sua capacidade de se reinventar, preservando a retórica da continuidade” e a arte, como comunicação, serviu a esse propósito. Ainda há muito o que esclarecer sobre as funções das estátuas romanas. Todavia, de acordo com Peter Stewart (2003, p.10), a maioria dos clássicos tinha, em diferentes níveis, consciência da importância social das estátuas como “objetos de culto, como sinais de interação social entre pessoas ou entre pessoas e deuses, como ferramentas para a autorrepresentação ou exposições de status cultural e como propaganda política”. Essa percepção ajuda nossas análises dos discursos de legitimação na construção do poder pessoal em Roma no século I, pois entendemos que as representações dos imperatores, nesse período, se apropriaram de elementos ideológicos ligados ao paradigma de Alexandre o Grande, bem como de modelos iconográficos gregos, configurando a nosso ver, mudanças na linguagem discursiva imagética textual e visual em Roma. Nessa perspectiva, a pesquisa se baseia no conceito de ideologia proposto pelo sociólogo J. B. Thompson. Para o autor, ideologia é como um “sistema de crenças, ou formas 26 e práticas simbólicas”, e importa analisar de que modo às formas simbólicas se entrecruzam com as relações de poder. Ou seja, cabe ao pesquisador observar “como o sentido é mobilizado, no mundo social, e serve, por isso, para reforçar pessoas e grupos que ocupam posições de poder”. Logo, ao estudarmos ideologia a partir desse conceito, examinaremos “as maneiras como o sentido serve para estabelecer e sustentar as relações de dominação” (2002, p.78).11 Para Thompson (2002, p.78), só poderemos compreender os fenômenos simbólicos como ideológicos quando situarmos esses fenômenos nos contextos sócio-históricos. De acordo com este autor, poderemos descobrir se os fenômenos simbólicos estabeleceram e sustentaram relações de dominação “somente ao examinar as maneiras como as formas simbólicas são empregadas, transmitidas e compreendidas por pessoas situadas em contextos sociais estruturados”. Todavia, utilizamos esse conceito de ideologia sem a ideia negativa da concepção marxista de dominação de classe. Ao pensarmos ideologia, nos interessa as maneiras como o sentido, mobilizado pelas formas simbólicas, serve para estabelecer e sustentar as relações de domínio que podem ser entre homens e mulheres, entre grupos étnicos ou entre grupos da elite romana (no nosso caso). Jean-Claude Schmitt (2007, p.11-12), dialoga com as ideias de Thompson, quando afirma que as imagens exprimem e comunicam sentidos, pois “estão carregadas de valores simbólicos, cumprem funções religiosas, políticas ou ideológicas, prestam-se a usos pedagógicos, litúrgicos e mesmo mágicos”. Logo, abordamos a imagem como: [...] a representação visível de alguma coisa ou de um ser real ou imaginário: uma cidade, um homem, um anjo, Deus, etc. Os suportes dessas imagens são os mais variados: fotografia, pintura, escultura, tela de televisor. Mas o termo “imagem” concerne também ao domínio do imaterial, e mais precisamente da imaginação. Não é necessário ver a representação material de uma cidade para imaginá-la. No que concerne às formas simbólicas e sua relação com o contexto social, J. Schmitt lembra que o objeto artístico, de uma maneira geral, está na articulação de diversas formas simbólicas que regem o funcionamento da sociedade de uma dada época, advertindo quanto a 11 Karl Mannheim foi o primeiro pensador a formular uma concepção de ideologia procurando relacionar ideias, doutrinas filosóficas e teóricas com a posição de classe e relacioná-las às condições sócio-históricas. Esse método é descrito como “a sociologia do conhecimento” e tem como objetivo não a denúncia ou a crítica do pensamento do adversário. Seu objetivo “é analisar todos os fatores sociais que influenciam o pensamento, incluindo o próprio, e com isso garantir aos homens modernos uma nova visão de todo o processo histórico” (MANNHEIM, 1998 apud THOMPSON, 2002, p.68). 27 problemas e especificidades da arte, bem como das diferentes formas simbólicas que devem ser observadas pelo historiador das imagens. Segundo Schmitt (2007, p.32-4), “a análise da imagem deve assim levar em conta, tanto quanto os motivos iconográficos, as relações que constituem sua estrutura e caracterizam os modos de figuração próprios de certa cultura e de certa época”. Ao examinarmos os processos políticos no período final da República relacionados à legitimação de poder pessoal militar buscamos nas obras artísticas os símbolos que evidenciam a construção do sistema de representação dos imperatores, que a nosso ver, resultaram das interações culturais entre Roma e o mundo helenístico. Ao examinarmos os mecanismos de formação e manutenção do Império Romano - como uma unidade política integrada sob uma lógica cultural - propomos uma abordagem interdisciplinar dialogando principalmente com a Arqueologia, Numismática e com a História da Arte. Para tal, seguimos a ideia de Richard Bucaille e Jean-Marie Pesez (1989) sobre como os vestígios de cultura material nos trazem o corriqueiro e o cotidiano dentro da sociedade, e por esses motivos, configura-se o estudo da coletividade, dos hábitos, valores e tradições da sociedade em questão. Ao estudarmos os objetos artísticos como vestígios de cultura, e como tal uma tipologia documental passível de análise, concordamos com Ulpiano Bezerra de Meneses (1983, p.112) quando define cultura material como: [...] o segmento do meio físico que é socialmente apropriado pelo homem. Por apropriação social convém pressupor que o homem intervém, modela, dá forma a elementos do meio físico, segundo propósitos e normas culturais. Essa ação, portanto, não é aleatória, casual, individual, mas se alinha conforme padrões entre os quais se incluem os objetivos e projetos. Assim, o conceito pode tanto abranger artefatos, estruturas, modificações da paisagem, [...] ou, ainda, os seus arranjos espaciais (um desfile militar, uma cerimônia litúrgica). Presumindo que as sociedades produzem imagens textuais e icônicas dotadas de símbolos que representam os que nela vivem (COULET, 1996 apud MENDES, 2001, p.39), entendemos as imagens, encontradas nos mais variados suportes, como textos e por isso, suscetíveis ao exame. Essa orientação amplia as possibilidades de análise do historiador quando este identifica as diferentes naturezas dos discursos. Nossa pesquisa considera os textos e as imagens como discursos, e como tal, produtos culturais inseridos nos processos de comunição. Norman Fairclough reconhece o discurso (falado, escrito ou visto) como um tipo de prática social e por isso “formado por relações de poder e investido de ideologias”. A partir 28 desta definição, assumimos o discurso como uma prática tanto de representação quanto de significação do mundo, constituindo e ajudando a construir as identidades, as relações sociais e os sistemas de conhecimento e crenças. O discurso como ação política estabelece, mantém e transforma as relações de poder. Ou seja, “o discurso como prática ideológica constitui, naturaliza, mantém e transforma os significados do mundo de posições diversas nas relações de poder” (FAIRCLOUGH, 1992, p.90-4). Defendemos então o discurso como uma atividade geradora de sentido, isto é, somente no contexto histórico-cultural podemos pesquisar os processos de produção de sentido. Nesta perspectiva, entendemos a documentação como produto cultural, como “formas empíricas do uso da linguagem oral ou escrita, e/ou de outros sistemas semióticos no interior de práticas sociais contextualizadas histórica e socialmente” (PINTO, 1999, p.7-18). Desta forma, ao propormos uma análise dos fenômenos simbólicos, recorremos à documentação, textual e iconográfica, uma vez que se configuram como veículos de mensagens - com o objetivo de analisar algumas características do discurso de poder político produzido pelos ensaístas do poder pessoal. Nesse processo, interessam-nos sobremaneira as características estilísticas dos objetos artísticos provenientes das cidades gregas e helenísticas. Levadas para Roma como butim, ou através do comércio, elas inspiraram os romanos no desenvolvimento de seu estilo artístico. Segundo Beard e Henderson (2001, p.5), a diversificada cultura visual do Império Romano e o “ethos dominante da imitação criativa” ensejaram que trabalhos de arte fossem “copiados e multiplicados, adaptados e parodiados, ao longo dos séculos” de forma que a arte grega foi mediada por Roma. Concordamos com os autores acima, visto que o acesso que temos hoje às obras de arte gregas se constituiu pela mediação dos romanos e que o modo de reprodução dessas obras impediu um modelo único. Contudo, entendemos a “imitação criativa” como a apropriação dos modelos e das formas artísticas relidas e ressignificadas nos processos de interação cultural. No que concerne à linguagem visual, destacamos o trabalho de Tonio Hölscher (2004, p.1-2) que examina a linguagem das imagens artísticas no império como um fator essencial da cultura romana. O autor entende que explorar as formas estilísticas pode ser um meio de analisarmos as identidades culturais, e acrescenta, “não apenas no caso de indivíduos, mas especialmente de grupos maiores, incluindo culturas e épocas inteiras”. Ademais, Hölscher (2004, p.11-2) pensa a arte romana como um “sistema semântico” onde as formas artísticas estão alinhadas com a linguagem. A noção de “sistema semântico” permite ao autor estender a metáfora linguística, e assim apresentar a arte romana como uma 29 cultura visual das ideias, na qual as formas e os tipos não seriam apenas associados à comunicação de significados, eles também adquiriam significado hierárquico dependente da hierarquia cultural de valores. Nessa linguagem romana das imagens, Hölscher identifica em sua estrutura primária, empréstimos tipológicos encontrados nas obras gregas clássicas e helenísticas.12 Esse “sistema semântico” garantiria uma comunicação eficiente com a população multicultural do império e sua eficácia repousaria na repetição constante das formas, criando, assim, um “sistema de comunicação visual.” Tal sistema utilizava formas artísticas parecidas e inteligíveis aos habitantes das diferentes regiões. Observar a padronização da linguagem visual, ou seja, a crescente padronização da mensagem (num processo inconsciente) pode nos dar uma boa medida da gradual formação da identidade cultural dos habitantes do Império Romano (HÖLSCHER, 2004, p.11-12 e127). Consideramos que o processo de expansão territorial, as interações culturais entre Roma e as sociedades helenísticas contribuíram com novas formas e modelos artísticos para a comunicação política visual dos romanos e também na formação do sistema de representação dos imperatores. Nesse sentido, também consideramos que, através da visualidade, podemos superar a percepção da imagem como uma ilustração do trabalho, uma leitura iconográfica, ou ainda, como documento visual que ratifica nossas hipóteses. Para Ulpiano B. Meneses (2003, p.6, 28-30), dentro do campo da cultura, estudar a construção visual do social, seria uma linha de condução coerente, a visualidade como um campo possível de análise, como uma dimensão importante da vida da comunidade. Significa entender a visualidade como ação recíproca entre o objeto e a sociedade. Assim, podemos identificar os significados das imagens em seu contexto sócio-histórico e relacioná-los ao processo de construção do poder pessoal militar como parte de um novo sistema de comunicação e propaganda política em Roma. Ao analisarmos a dimensão visual da sociedade romana, perguntamos não somente o que a arte expressa, mas também o que ela provoca? Segundo William J. T. Mitchell, a cultura visual, composta pelas imagens, é caracterizada como o “estudo da percepção e da representação visual, em particular a construção social do visível e – igualmente importante – a construção visual que deriva do social”13 e, por conseguinte, “devem ser tratadas como componentes do jogo social em causa” (MENESES, 2011, p.260), portanto, devemos procurar 12 O "sistema semântico" proposto por Hölscher parte da análise dos objetos artísticos e de como as formas típicas dos estilos da arte grega clássica e barroca (que eu chamo helenística) foram adotadas como tipos com significados específicos e manipuladas de novas maneiras na arte romana. ‘Tipologia' é entendida como uma ampla gama de esquemas e padrões básicos de representação (estilos) desenvolvidos na arte grega que foram apropriados e explorados com “empolgante flexibilidade” pelos romanos (2004, p.1-21). 13 MITCHELL, 2009, p.339 apud MENESES, 2011, p.248. 30 caminhos para compreendermos a arte e sua faculdade de “provocar efeitos, produzir e sustentar formas de sociabilidade, tornar empíricas as propostas de organização e atuação do poder, etc.” (MENESES, 2003, p.15). Entendemos que a investigação relacionada à visualidade seja de difícil execução, ainda mais em estudos relativos à antiguidade. No entanto, acreditamos que ao analisarmos o objeto visual em seu contexto histórico, encontraremos respostas para os problemas concernentes à construção da iconosfera, ou seja, “o conjunto de imagens-guia de um grupo social ou de uma sociedade num dado momento e com a qual ela interage.” (MENESES, 2005, p.1). Ulpiano B. Meneses (2003, p.30-1) propõe estratégias destinadas a prover as pesquisas e de forma didática, sugere “três focos” possíveis para investigação, sendo eles: o visual – a iconosfera e os sistemas de comunicação visual, os ambientes visuais; o visível – relacionado à esfera do poder, aos sistemas de controle, aos objetos de observação; e por fim, a visão – que seriam os instrumentos, técnicas de observação e os papéis do observador. 1.2 Metodologia e Documentação Martine Joly (2007, p.50) afirma que “não existe um método absoluto para análise, mas opções a serem feitas ou inventadas em função dos objetivos” e tendo em vista nossas propostas teóricas, adotamos então a combinação de metodologias que relacionam análise iconográfica e simbólica aplicável à documentação selecionada pela pesquisa. Nesse sentido, o trabalho busca relacionar alguns discursos imagéticos, textuais e visuais, que nos possibilitem verificar o processo de construção de uma linguagem visual na comunicação política no século I relacionadas aos chefes militares Sila, Pompeu e César. De forma a identificar as opções tipológicas e formais contidas na documentação iconográfica, nosso corpus de documentação de cultura material é composto por objetos escultóricos (esculturas, retratos, relevos e moedas). Nossa metodologia de análise parte da linha teleológica para estabelecer o método idiográfico proposto por Michel Baxandall (2006, p.43-4 e 70). A idiografia tem como base a identificação e a compreensão das singularidades, buscando elementos diferenciadores, e não fórmulas generalizadoras. Implica dizer, a partir da obra procuramos inferir as ações e intenções humanas, observar o objeto e o contexto de forma a estabelecer a relação entre o 31 objeto e as circunstâncias de produção identificando as possíveis intenções do agente envolvido. Ao analisar o processo de legitimação de poder unipersonal de Alexandre o Grande, identificamos a valorização de três aspectos presentes nas culturas orientais e helênica que contribuíram para legitimação política do seu governo, tais como: a heroicização, a ascendência divina e a divinização pessoal. Em Roma, esses elementos de legitimação, aqui entendidos como os vetores ideológicos de legitimação de poder, foram apropriados, relidos, interpretados e utilizados para a construção do sistema de representação dos imperatores cujos principais vetores de identificação foram os seguintes: 1) heroicização - vitória e glória militar e/ou alegorias de conquista; 2) ascendência divina - mitificação familiar e/ou mitologia; 3) divinização pessoal - favorecimentos dos deuses e/ou atributos de divinização; 4) interação dos vetores ideológicos acima descritos ao exemplo de Alexandre o Grande. A documentação de cultura material e textual foi catalogada e descrita com as seguintes informações: suporte material, datação, local de origem, imagem e legenda e transcrição (se houver). Após a escolha das imagens, os dados extraídos da análise da documentação foram classificados, cotejados e interpretados. Após estas considerações acerca do nosso instrumental teórico-metodológicas, apresentamos a seguir o corpus documental que faz parte desta pesquisa. 1.2.1 Documentação textual a) Verrinas, livro IV De Signis de Cícero Filósofo e orador romano, Marco Túlio Cícero (106-43) filho de um rico equestre originário de Arpino, na Itália, ganhou destaque por sua oratória e seu sucesso nos tribunais criminais onde atuava geralmente na defesa. Apesar de sua família nunca ter alcançado o Senado romano, ele garantiu sua eleição para os cargos políticos mais importantes. Os discursos de Cícero são modelos de eloquência e persuasão, e juntamente com suas cartas, são uma das principais fontes para a história da República tardia. Seu estilo elevou a língua latina a uma elegância e beleza que nunca foi superada. 32 As Verrinas são os discursos que Cícero proferidos no ano de 69 por ocasião do processo iniciado em Roma contra Gaius Verres, propretor da Sicília, por abusos cometidos durante seu mandato na província da Sicília. Neste discurso, Cícero enumera as ações do magistrado como questor, proquestor, como legado e como pretor urbano acusando Gaius Verres de abusos em seu governo na província de 73 a 71. Quanto aos motivos concretos do processo, os delitos na Sicília, o orador editou quatro livros, sobre a jurisdição, sobre o trigo, sobre as estátuas e sobre os suplícios. Logo após o mandato, grande parte dos sicilianos virou-se para Cícero, que fora questor nessa região cinco anos antes, para que este acusasse em seu nome o ex-governador de um crime que se assemelha no direito moderno ao crime de concussão, mas que na época romana, tinha limites mais amplos. Em 71, Pompeu promete reformar e restaurar os tribunais penais e o caso de Verres foi um escândalo. Cícero então com 36 anos, no início de sua carreira política, viu nesse episódio a oportunidade de apoiar a política de Pompeu em favor da ordem equestre, sem quebrar a ligação com a nobilitas. Falando dos defeitos atribuídos aos senadores como classe e para salvar o prestígio do grupo, segue a linha de que o senado deve condenar Verres e assim apagar as más impressões. Neste texto, Cícero fala do roubo de objetos artísticos efetuados por Verres enquanto pretor na Sicília. Inicialmente, sobre o roubo das obras artísticas de Praxisteles, Míron e Policleto pertencentes a Caio Heyo, assim como de outros sicilianos que tiveram seus objetos saqueados pelo ex-governador. Particularmente, nos interessa o Livro IV - De Signis, a possibilidade de obter indícios quanto o papel e valor dos objetos artísticos provenientes, tanto da península, quanto das cidades do oriente helenístico para a sociedade romana. Também nos possibilita ter informações a respeito da importância desses objetos nas comunidades de onde elas provinham, bem como entrever, de certo modo, a visualidade da cidade de Roma a partir dos relatos do orador contidos no texto. b) De Imperio Pompeio de Cícero O De Imperio Pompeio é um discurso de Cícero em favor do comando de Pompeu e com essa preleção o orador se associou publicamente ao comandante militar, o que o ajudou a garantir apoio político para sua propria eleição ao senado no ano de 64. Na longa guerra contra o rei Mitrídates VI do Ponto, a Lei Gabínia (67) conferiu a Cneu Pompeu poderes 33 militares ilimitados sobre os mares para combater a ação dos piratas. Esta lei foi complementada pela Lei Manília (66) que estendeu seu comando ao continente para deter Mitrídates. Cabe ressaltar que esse documento é importante para a compreensão do funcionamento da política em Roma e do governo no leste do Mediterrâneo. Particularmente, esse documento importa à problemática de nossa pesquisa, pois evidencia a importância do discurso político para a análise da construção do poder pessoal, uma vez que o texto de Cícero engrandece as qualidades de Pompeu, mas não nega o caráter monárquico dos poderes concedidos a ele. c) Comentários da Guerra Civil - Bellum Civili de Júlio César Caio Júlio César (100 - 44), patrício, líder militar e político romano, desempenhou um papel importante no período final da República romana e notabilizou-se pelas conquistas militares. Como literato, César destacou-se ao narrar os próprios feitos e suas obras que chegaram aos nossos dias colocam-no entre os grandes escritores da língua latina. Seus relatos sobre a guerra na Gália e a posterior guerra civil, evidenciaram sua inteligência e capacidade literária e transformaram essas obras em clássicos da literatura universal. Nos livros De Bellum Civili, César conta sua versão das guerras civis em Roma, o contexto que antecedeu a travessia do Rio Rubicão, a Batalha de Farsália e a morte de Pompeu. A narrativa, aparentemente simples, serviu como manobra política e também como propaganda das suas ações militares em Roma. Esse texto serve às nossas hipóteses de trabalho para demonstrar a interiorização do paradigma de Alexandre o Grande em César. d) Vidas paralelas de Plutarco Plutarco (c. 45–120 d.E.C.), pertenceu a uma família importante, nasceu em Queroneia na Beócia, perto de Delfos. Ocupou várias magistraturas, sendo favorecido pelos imperadores Trajano e Adriano. Sua formação intelectual foi em Atenas, onde se consagrou como biógrafo e filósofo. Proveniente de uma elite romanizada revelou-se inserido na cultura imperial. Foi um filósofo platônico, autor de uma coleção denominada "Moralia" ou "Ensaios de Ética", no formato de diálogo, muitos deles dedicados a temas filosóficos, mas nem todos relacionados à ética. Plutarco é mais conhecido como autor de "Vidas paralelas" no qual associou pares de estadistas gregos e líderes militares romanos de acordo com a representação 34 histórica, de caráter ou por determinada virtude. Nesse projeto, conservou sua alteridade/ resistência ao optar pela composição em grego ao invés do latim, “o qual representa uma fase distinta no processo contínuo de negociação cultural que tornou possível a coexistência entre os gregos e romanos” (MENDES, 1999, p.315). Dos 50 pares que compunham a obra, restaram somente 23. Porém, mais especificamente, nossa pesquisa se aterá a “Vida de Alexandre”, “Vida de Sila”, “Vida de Pompeu” e “Vida de Júlio César”. A escolha dessa documentação, cronologicamente posterior aos eventos em análise, deve-se ao fato dela demonstrar a importância dos heróis gregos e romanos na sociedade romana como modelos representacionais e permite pensar em como as representações discursivas sobre Sila, Pompeu e César, ainda eram importantes mais de um século dos eventos ocorridos. Por outro lado, podemos pensar que ao elaborar esses textos, Plutarco mostra a preocupação em produzir um discurso de comparação entre romanos e gregos, ou seja, de valorização da sociedade e a cultura grega sob o domínio de Roma. Além disso, ao ler o texto (em seu aspecto discursivo imagético) tentamos uma nova forma de analisar a documentação (FAVERSANI, 2013b, p.149). e) A vida dos doze Césares - de Suetônio. Por fim, Divus Iulius, também uma obra posterior, escrita por Caius Suetonius Tranquillus, nascido por volta dos anos 69-70 d.E.C., e morto entre os anos 140-150 d.E.C. Advogado e estudioso de retórica foi um erudito professor de gramática. Protegido de Plínio, por recomendação deste, obteve do imperador Trajano o ius trium liberor um e o tribunato militar. À época de Adriano desempenhou o cargo de magister epistularum (secretário particular), mas tendo entrado na intimidade da Corte, logo caiu em desgraça por ter atraído as atenções da imperatriz Sabina. Segundo Sobral (2007, p.9), muitas críticas ao biógrafo advêm da sua origem humilde e são abalizadas por Plínio ao aludir sua condição financeira. Contudo, a convivência e a influência de Plínio na sua produção intelectual demonstra seu convívio com a sociedade aristocrática no trabalho do biógrafo. Suetônio teria elaborado as “Vidas dos Doze Césares” a partir das fontes do meio palaciano e dali retirado o conjunto de acontecimentos do Império. As informações disponíveis sobre a vida e obra de Suetônio não nos permite saber com exatidão o papel político do autor no panorama do governo imperial. Porém, sua posição como secretário ab epistulis latinis permitia o acesso a uma volumosa fonte documental, e ao ser responsável pela 35 correspondência latina do império, possibilitou buscar informações utilizadas nas biografias (SOBRAL, 2007, p.10). De sua produção, apenas uma parte chegou até nós. Sua obra “De Vita Caesarum” conservou-se quase que por inteiro, e mesmo faltando o começo da vida de Caio Júlio César, esta obra nos ajuda a entrever a imagem e importância de sua vida e das ações políticas do período analisado em nossa pesquisa, sem esquecer que as descrições de Suetônio foram representações discursivas, fruto do seu próprio tempo político. Nesse sentido, podemos entrever na Vida de César, a “gênese do Principado” ao mostrá-lo como um predestinado, um homem de ação, que trabalha obstinadamente na realização de seu destino; revelando um homem excepcional, com traços tirânicos, mas com virtudes admiráveis (BRANDÃO, 2013, p.67-68). Esse texto é importante, pois ele permite vislumbrarmos, em algumas passagens, importantes imagens representacionais de César que nos permite imaginar serem ecos do contexto histórico do ditador. 1.2.2 Documentação de cultura material A documentação de cultura material é composta por objetos artísticos: esculturas, bustos, relevos, mosaico e moedas ligadas a Sila, Pompeu e Júlio César e nosso objetivo é relacionar as imagens com os eventos políticos e as vitórias militares como uma das formas de propaganda e comunicação em Roma. Em relação às moedas, nossa análise é iconográfica e não numismática, contudo, sem negligenciar as informações que esta tipologia documental oferece. Segundo Wilfried Koch (2001, p.141-145), a “escultura é a arte de plasmar corpos desde os primórdios da história”, e lembramos que as moedas, antes de tudo, são primeiro esculpidas ou modeladas para que se faça um molde para a fundição. E partir disso, tudo que se diz da escultura feita com metal e, portanto, metal fundido, pode ser aplicado às moedas. Para além do aspecto técnico e iconográfico, ressaltamos que a documentação numismática tem uma grande importância nos estudos históricos, pois elas apresentam evidências arquitetônicas, assim como diferentes projetos políticos, tais como a romanidade, história familiar, história cívica de Roma e do império (MEADOWS, 2009, p.56) e a análise dessa documentação possibilita identificar diferentes níveis históricos. A referida documentação é constituída de legendas e fórmulas abreviadas da titulatura e representações pictóricas que possibilitam ao historiador um escopo interpretativo ampliado. 36 Nosso trabalho buscou na bibliografia as informações imagéticas e interpretação de diversos autores, mas tem como base de referência numismática o catálogo especializado no período republicano em Roma, o Roman Republican Coinage (RRC) de M. H. Crawford de 198314, editado em dois volumes pela Cambridge University Press, o catálogo de moedas do British Museum Coins15 e o catálogo Retratos e Propaganda: faces de Roma editado pelo Banco Central do Brasil. A documentação numismática relativa a Alexandre o Grande encontrada na historiografia do helenismo foi aferida a partir das informações do catálogo de Martin Jessop Price The Coinage in the name of Alexander the Great and Philip Arrhidaeue publicado pela The British Museum Swiss Numismatic Society em 1991. De forma a obter boas imagens e otimizar a análise iconográfica, recorremos a fotos de grande definição disponibilizadas em vários catálogos virtuais na Internet16 que são confrontadas com as informações do Roman Republican Coinage (RRC) e com o catálogo de Martin Price. Do mesmo modo, as reconstituições e as obras de arte citadas neste trabalho, quando necessário, foram também apresentadas em imagens dos sites especializados.17 14 As moedas aqui analisadas estão indicadas segundo o catálogo Roman Republican Coinage (RRC). Roman Republican Coins in the British Museum E Ghey, I Leins (eds) https://www.britishmuseum.org/research/publications/online_research_catalogues/rrc/roman_republican_coins.aspx 16 Utilizamos as imagens disponíveis em sites reconhecidos, como: < http://www.coinproject.com/>, < http://www.forumancientcoins.com/>, < http://www.wildwinds.com/>, <http://www.tesorillo.com/ >, <http://davy.potdevin.free.fr/Site/home.html>, < http://www.forumancientcoins.com/catalog/roman-and-greek-coins.asp?vpar=553>, < http://www.museumsurplus.com/AlexanderCoinsPAGE1.htm> e < http://www.coinsoftime.com/Articles/Coins_of_Alexander_the_Great.html> 17 As imagens das obras de arte foram indicadas em numeração sequencial (fig. nº) e as imagens das moedas foram também indicadas em numeração sequencial (moeda nº), bem como os mapas (mapa nº) ao longo do texto. 15 37 Capítulo 2 Roma e as transformações políticas do século I Há muito que o imperialismo antigo, mais especificamente, o imperialismo romano é foco da atenção de muitos de pesquisadores.18 Um número considerável de estudos têm investigado as causas que levaram a mudanças no sistema de governo republicano e a instauração do sistema de governo do Principado, modelo romano de poder pessoal. A formação do Império Romano foi um longo processo que durou séculos e podemos identificá-lo como uma unidade política de grande complexidade. Do Lácio ao Império, Roma foi “uma das mais vastas, mais coerentes construções política e militares de todos os tempos” (DUBY, 1989, p.11). Durante a expansão territorial no século II e todo século I, devido à conquista das regiões orientais, das Gálias, complementada pela conquista das margens do Mediterrâneo, aumentaram enormemente o fluxo de riquezas, escravos, terras, alterando alguns aspectos econômicos, políticos e sociais da República. Ao se tornar uma cosmopolis, Roma rompeu as bases de uma cidade-estado clássica, o que trouxe novos desafios e situações que estavam em desacordo com a forma tradicional do governo romano. A transformação de Roma em um império mundial não comportou mais a forma de governo baseada em uma aristocracia dominada por conflitos políticos que agravavam os problemas sociais, principalmente em questões relativas ao campesinato e de administração das províncias. O século I foi marcado por diversas transformações, dentre elas: dificuldade das instituições garantirem os interesses da República ante os interesses privados; disputa de poder no interior da elite romana devido às rivalidades políticas; criação de alianças entre as lideranças políticas; violência na vida pública; ilegalidades constitucionais; necessidade de um exército profissional e permanente (MENDES, 2006, p.22). A instauração do Principado, sistema de governo caracterizado pela concentração de poder nas mãos de um único governante, foi iniciado por Otaviano em 31, estabilizando o império. Porém, antes de Otávio Augusto se tornar princeps em Roma, houve outros ensaios de poder pessoal, sustentado pelo poder do exército, mas não só. A construção do poder 18 Destacamos os trabalhos de HOMO, 1927; FOWLER, 1931; SYME, 1939; WIRSZUBSKI, 1968; CARCOPINO, 1974; BRUNT, 1982; ALFÖLDY, 1989; GRUEN, 1994; SHOTTER, 1994; WALLACEHADRILL, 1997, FLOWER, 2010. 38 pessoal militar no período final da República se utilizou também de elementos ideológicos e simbólicos que serviram para legitimar a forma de dominação política de caráter autocrático. Ao tratar do Principado augustano, Karl Galinsky (2005, p.8) postula ter sido este um momento de numerosas transformações e experimentações na sociedade e na política romana. Para o autor, não houve uma ideologia rígidamente elaborada, mas sim ideias e valores que foram compartilhados, articulados e debatidos entre Augusto e seus colaboradores, principalmente no âmbito da política e da religião, que se tornaram legado dessa época. Um exemplo bem sucedido dessas experiências, segundo o Galinsky, foi o forum de Augusto, onde as referências às origens míticas da gens Iulia tornaram-se a maior ideologia de seu governo, e em nosso entendimento, uma das formas de legitimação do governo do princeps. Diante de tal colocação, consideramos válido argumentar que as transformações e experimentações relacionadas aos chefes militares no contexto das guerras civis do século I relacionam-se às diferentes formas de propaganda e comunicação política utilizadas pelos ensaístas do poder pessoal. Nossa pesquisa busca analisar a construção de um sistema de representação dos imperatores em Roma como parte do processo de legitimação de poder pessoal militar, e que resultaram em uma nova forma de comunicação política visual observável através da iconografia e das obras de arte. 2.1 A conjuntura sociopolítica e o sistema republicano de governo no século I A res publica, visualmente expressa pela sigla SPQR (Senatus Populusque Romanus – o Senado e o Povo Romano), sempre presente nas insígnias militares e nas construções públicas, representava a atuação conjunta de um Conselho Consultivo (o Senado), das Assembleias e dos Magistrados. De acordo com Cícero (De Rep. 25), as instituições eram centradas no domínio da lei emanada pelo princípio da soberania do povo, o qual concedia às leis um “caráter divino e afastava o domínio do homem sobre o homem”. Para o exercício do poder era preciso ter dignidade (dignitas) e autoridade (auctoritas),19 qualificações que norteavam a vida pública e privada do cidadão romano. Entretanto, o sistema de governo era efetivamente controlado pela aristocracia, pois que esta controlava o Senado e em consequência, “a política e a vida pública” (MENDES, 2009, p.94-5). 19 Auctoritas (autoridade e prestígio) mais do que um poder legal, é antes um poder moral. O termo é usado em relação a grupos ou pessoas que comandam. Neste sentido, os textos jurídicos e literários falam de auctoritas do povo (populi), do imperador (principis), dos magistrados, juízes e jurisconsultos, de um pai ou pais. Ver A. Berger, 1953. 39 No desenvolvimento das práticas institucionais, a República romana congregou a sociedade camponesa (aspecto interno) e o estado de guerra constante (aspecto externo). Tal articulação conferiu uma concepção sociopolítica aos romanos, “baseada no respeito à tradição e costumes dos ancestrais e na ação”, fazendo de Roma um Estado conquistador (MENDES, 1988, p.30). A fim de analisarmos a construção do poder pessoal militar no século I, faremos algumas considerações sobre o sistema republicano, sobre a ideologia de vitória e uma breve contextualização da expansão imperialista e das conquistas militares de Sila, Pompeu e Júlio César. A partir da segunda guerra púnica, houve grandes mudanças nas estruturas sociais e econômicas que contribuíram para o empobrecimento do campesinato itálico e a proletarização20 da plebe urbana que habitava Roma. Além disso, o aumento das diferenças sociais e o antagonismo entre senadores e equestres, recrudesceram as tensões e conflitos na sociedade, inclusive dentro da própria oligarquia romana, principalmente à época e após as frustradas tentativas de reforma dos irmãos Gracos entre 133 a 122, fizeram emergir no seio das elites dirigentes dois grupos com interesses opostos, mas cujo tema principal era as questões sociais. Nesse modelo tradicional, alguns historiadores avaliam esse momento da história republicana através de um viés polarizado expresso pela ideia de patrícios e plebeus, optimates e populares.21 Pensando a questão em outro sentido, Ronald Syme no livro The Roman Revolution (1939) analisa os grupos oligárquicos e em especial, a aristocracia senatorial, abandonando a perspectiva constitucionalista. Nesse trabalho, a proposta é uma revolução social, que também implicaria uma revolução cultural, configurada como o triunfo da periferia sobre o centro. Ou seja, quando a composição do antigo governo foi alterada com a ascensão da elite colonial ao seio da aristocracia romana, a Revolução consistiu no deslocamento da ideologia aristocrática romana para uma ideologia italiana municipal visto que “a elite romana estava tão ávida pelos despojos das conquistas que descartou prontamente as ásperas virtudes ancestrais” (SYME, 1939, p.8 e 453). Para o autor, houve uma ruptura entre República e Império. Mas essa leitura é criticada por Andrew Wallace-Hadrill (1997, p.5-6) em alguns aspectos, tais como o uso dos conceitos de classe social e burguesia, além da imagem prematura de uma Itália como uma nação unitária, como só o foi no período augustano. 20 Referimo-nos ao termo “proletário” como a última classe censitária do sistema romano, ou seja, ao individuo que não possuía nenhum recurso a não ser os filhos (a prole). A proletarização na Roma antiga está vinculada ao processo de constante endividamento dos pequenos agricultores e a formação de um crescente contingente populacional ocioso nos centros urbanos. 21 Destacamos os trabalhos de HOMO, 1928; FINLEY, 1983; GRANT, 1988, ALFÖLDY, 1996; POLO, 1994; COLLARES, 2009. 40 Porém, o autor não abandona o conceito de Revolução cultural sugerido por Syme e propõe ir além da esfera política e do social ao analisar as questões ideológicas e culturais. Nesse sentido, lembramos que a crise da nobreza (nobilitas) se dava também no âmbito da legitimidade política, assim como a sua principal instituição no século I, o Senado. A proposta de Wallace-Hadrill (1997) é uma análise da sociedade romana como a transformação de um sistema cultural para outro visto que os componentes políticos são entrelaçados pela cultura. Essa visão é importante em nossa pesquisa, pois nos ajuda compreender a adoção de modelos artísticos, culturais e filosóficos de uma sociedade por outra e nos auxilia a esclarecer o processo que levou as elites consentirem na concentração de poderes, concretizada somente por Augusto. Wallace-Hadrill (1997, p.12) observa que no período republicano, a nobilitas detinha o poder sobre aspectos sociais tais como as tradições e a memória. Implica dizer que os mesmos dominavam o processo de “invenção” e “reinvenção” da tradição; dos códigos civis e das práticas religiosas, enfim, aspectos relacionados à cultura ancestral. Porém, na época tardo republicana, segundo o autor, houve uma crise da autoridade da oligarquia dominante devido à gradativa transferência da autoridade do Senado, sobre alguns aspectos, para a figura do princeps. Destarte, podemos pensar esse momento sob a ótica de mudanças culturais ocorrendo no império, sem a ideia de ruptura como propõe Erich Gruen (1994), ao analisar o período final da República não como um evento “bom ou ruim”, mas como uma avaliação das inovações e das continuidades na política romana. Gruen ressalta que grande parte dos historiadores assume que os conflitos civis do século I como uma cadeia “longa e ininterrupta” de acontecimentos que culminariam inevitavelmente no fim do sistema republicano de governo, e que a guerra civil é o símbolo do colapso da República. Devemos então questionar se as últimas décadas da república seriam “uma era revolucionaria ou de declínio?” Na opinião de Gruen (1994, p.4-5), a noção de um equilíbrio entre a inovação e a continuidade pode ser mais adequada, e sugere abordar a questão de forma diferente, perguntando: “quão bem a res publica absorveu e adaptou-se à mudança?”. Outro estudo que pensa a república romana, e de muitas formas seu fim como regime político, é o trabalho de Harriet Flower (2010) que elabora uma análise sobre as mudanças e continuidades do período republicano ressaltando a questão da cronologia e da periodização. Para a autora, elas são importantes, mas não podem fazer o historiador refém, cabendo à relativização, e a uma nova e diferente periodização baseada na “evolução da vida política da comunidade romana”. Sem abandonar os sistemas de periodizações existentes, ela sugere que 41 a “cronologia política pode e deve ser útil tanto em complemento, como em contraste com outros esquemas de datação e épocas”. Flower (2012, p.4-16) diz que o estudo “foi concebido como uma tentativa de criticar, articular, e, finalmente, para dissolver o conceito de uma única, monolítica República em Roma”. O conceito de várias repúblicas auxilia pensar no sucesso de alguns sistemas e práticas políticas e o fracasso de outros, isto porque, ao observar as variadas mudanças políticas, faz emergir os padrões de estabilidade e instabilidade. A sugestão de Flower (2010, p.33-4) nos ajuda a esclarecer o contexto histórico para a “interpretação de várias repúblicas, e mostrar como elas cresceram, o que as ajudou a florescer, e em que circunstâncias cada uma chegaram ao fim”. Segundo a referida proposta, o longo período republicano foi dividido em seis repúblicas de forma a analisar as diferentes práticas e tempos políticos. Nessa datação interessa-nos a sexta e última república denominada “República de Sila”, iniciada em 88 e seguida por períodos de transição, triunviratos, e ditaduras.22 Essa distinção advém, segundo a autora, do marco importante e pouco valorizado que foi a reforma de Sila. Embora o ditador tenha usado os nomes tradicionais para os órgãos do Estado, o sistema imposto por Sila foi fundamentalmente diferente de tudo o que existira. O Senado, por ele ampliado, tinha um caráter e função diferente de qualquer órgão anterior. Em essência, a nova constituição foi baseada no Estado de direito imposto por um sistema de tribunais, em vez das práticas e deliberações tradicionais da política, como por exemplo, as discussões apresentadas pelos tribunos da plebe perante o povo no Fórum (FLOWER, 2010, p.29). Harriet Flower e E. Gruen dialogam no sentido de sistematizar uma resposta à pergunta sobre como a república se adaptou às mudanças. Essa abordagem torna-se útil à pesquisa visto que nossa análise observa os esforços de construção e legitimação do poder pessoal, evidenciando transformações político-culturais assim como continuidades na sociedade romana. No mesmo sentido, Wallace-Hadrill (2008, prefácio, xix) acredita que a transformação política do mundo romano está conectada à transformação cultural. Para o autor, não foi a mudança cultural que causou a mudança política, nem a refletiu, mas representaram processos intrinsecamente ligados. 22 Não é possível discorrer sobre todos os argumentos e dados oferecidos para justificar a periodização apresentada pela autora. No entanto cabe indicar que dentre os treze períodos cronológicos, incluindo as seis repúblicas, nosso recorte temporal se insere na denominada sexta (e última) República que se inicia em 81 e foi precedida pelo denominado período transição de 88-81 com a ditadura de Sila até 44 com a morte de César. Ver H. Flower, Roman Republics de 2010, Introdução e capítulo II. 42 Nossa visão do século I, deve-se em muito aos textos de Cícero, e de outros autores, que enfatizam a perda da cultura e dos valores republicanos. E há um texto de Cícero que ilustra bem o que Harriet Flower (2010) e Wallace-Hadrill (2008) apresentam como uma “nostalgia de uma época de ouro na história romana”. Se voltarmos às fontes, como sugere Fábio Faversani (2013a, p.105), “veremos inúmeras mortes da República”, pois discursos lamentando crise da república ocorreram diversas vezes. Na verdade, a nossa geração, embora tenha herdado a res publica como se fosse uma obra-prima que, com o tempo, foi perdendo as cores e a clareza de seus contornos. Sofrendo sucessivas restaurações, a pintura não retoma suas cores originais. Pelo contrário, ao final, o que restou foram apenas os contornos da obra-prima original (Cíc, De Rep. 5.2). Fábio Faversani (2013a, p.109-110) propõe pensar a República e Império como “tendo múltiplas fronteiras” de forma a considerar a separação entre os dois regimes não como ruptura, mas como uma fronteira e “sendo fronteira, há separação e ligação entre as várias ‘Repúblicas’ e ‘Impérios’ que podemos construir analiticamente”. Diante de tais colocações a respeito das mudanças, das transições políticas e da periodização nos estudos romanos, e tendo em vista que nosso trabalho enfoca a visualidade e a linguagem imagética na comunicação política, nada mais natural do que compartilharmos a representação gráfica oferecida por Faversani sobre essa questão: 43 2.2 Ethos social e a ideologia de vitória Poucos fenômenos da história humana podem ser definidos verdadeiramente como ‘universais’. Um deles é certamente a guerra, isto é “lei de natureza e invenção humanas, de instinto espontâneo e construção jurídica”. Seja ela ‘internacional’ ou ‘interna’, ‘regular’ ou ‘irregular’, ‘de conquista’ ou ‘de defesa’, etc., o denominador mínimo comum residente no conflito é de possuir (pelo menos) duas partes opostas. Ele comporta necessariamente a elaboração de táticas e estratégias e recorre a todos os possíveis recursos à disposição, material e, podemos dizer, ‘imaterial’. Contamos entre esse último o componente religioso, ou seja, o apoio de um ou mais deuses e a celebração de atos rituais específicos (FERRI, 2010, p.25). As guerras em Roma interagiram com a construção do ethos social fundamentado na laus23 e glória militar. Segundo William Harris (1979, p.11-2), “o êxito militar permitia reclamar, e em grande parte obter, a mais alta estima dos seus concidadãos”. Portanto, podemos dizer que as noções de laus e glória justificavam a posição dos nobiles, os que possuíam o poder e a riqueza, “os quais se auto perpetuavam no Senado e repartiam entre si os títulos e a posição de patronos da res publica: os principes civitatis.” Até o final do século II, devia ser incomum um homem chegar ao consulado sem uma experiência substancial de comando militar. A importância do consulado, para além do poder político, representava encargo da guerra, pois era na guerra que quase todos os cônsules encontraram suas maiores responsabilidades, mas também as maiores oportunidades. Tanto que nas três primeiras décadas do século II “mais de três quartos dos cônsules participaram ativamente na guerra”.24 Nas palavras de Salústio: [...] tão grande era o desejo de glória que invadia os homens. [...] Para homens assim nenhum esforço era excessivo, nenhum solo áspero ou escarpado, nenhum inimigo em armas aterrador: tudo estava dominado pelo valor (virtus). Pois havia uma forte competição entre eles pela glória: cada um se apressava a abater um inimigo, escalar uma muralha e ser visto realizando tal proeza [...] (Sal. BC, 7.3-6) Cícero e Salústio mencionam com frequência a laus e glória como metas obviamente desejáveis para os romanos, tema esse encontrado não só nos discursos, mas também em textos filosóficos, históricos e nas cartas. Isso demonstra que esse comportamento estava presente entre os romanos, herdado dos aristocratas do século II e talvez anterior. Essa característica política aparece quando observamos as eleições. Por exemplo: além dos 23 laus - louvor, elogio, aprovação e mérito. A partir da obra de Lívio, W. Harris analisa os consulados de 199 a 168 e constata que dos 68 cônsules que ocuparam o cargo no período, “mais de três quartas partes” deles participaram ativamente na guerra (Harris, 1979, p.257, Nota adicional IV). 24 44 cônsules, os pretores que celebraram triunfos25 elevavam a reputação militar e dificilmente um triumphator perderia a eleição ao consulado seguinte (HARRIS, 1979, p.26 e 31). A ânsia pela glória (cupido gloriae) aparece nas inscrições monumentais que se referiam, na maioria das vezes, às proezas guerreiras ou as colocando em relevo. Nessa intenção, foram erigidos importantes monumentos como a coluna de C. Maenius (cônsul vitorioso em 338) ou as columnae rostratae de C. Duilius (c. 260) e de M. Emílio Paulo (c. 255). Além disso, aumentou o número de estátuas, não mais no fórum, mas no alto do Capitólio. Para Welch (2006a, p.3-4), esse fato demonstra as “sementes do culto militar romano do indivíduo, um culto competitivo que obteve sua independência durante a República tardia”. O advento da guerra para os romanos estava estreitamente relacionado à religião e podemos vê-la refletida nos festivais, como por exemplo, em março quando havia uma “série de rituais inter-relacionados, a maioria em honra do deus Marte”. Esses ritos guerreiros, mesmo sendo arcaicos, “continuavam a manter sua significação em fins da República, e mesmo sob o Principado” (BELTRÃO, 2012, p.127). E a rotina da guerra era tão importante que podemos ver seu reflexo no calendário religioso, na arquitetura, nas representações pessoais e artísticas dos romanos, enfim, no cotidiano de Roma. Nosso conhecimento sobre a religião romana parte de um corpo limitado de material, que revela, na maioria das vezes, uma expressão religiosa ligada ao Estado e na qual transparece, para nós modernos, a ideia de que a atividade pública é mais importante que a vida religiosa individual. Há ainda a pressuposição de estudiosos contemporâneos que relacionam os aspectos práticos da vida romana (como a arquitetura, o urbanismo e a guerra) à religião romana. Além disso, diferente da maioria das religiões atuais, o material disponível sobre a religião antiga “mostra a falta de uma intervenção divina direta, a falta de milagres, a falta de mitos de atividades divinas, e mesmo a falta de profetas” (BELTRÃO, 2006, p.137140).26 Contudo, as interações entre homens e deuses se davam, quase sempre, através de constantes rituais na urbs, isto porque os deuses romanos eram também cidadãos, participando das ações do Estado, envolvidos nos rituais “tanto na forma de auspícios como de sacrifícios”. Podemos imaginar que os rituais eram complexos e daí “inferir alguns dos princípios pelos quais foram realizados”. Segundo Claudia Beltrão (2006, p.141), um ponto 25 O triunfo pretoriano era um acontecimento relativamente raro, mas revela como um general elevava seu mérito e valor ao triunfar (HARRIS, 1979, p.31). 26 Em relação aos estudos sobre a religião romana ver: BEARD, M.; NORTH, J.; PRICE, S., 1997; SCHEID, J. 2003; BELTRÃO, 2006; RÜPKE, J, 2007. 45 importante é que “o sacrifício era feito estritamente segundo as regras e tradições, que necessariamente tinham que ser respeitadas”, seguido da habilidade dos sacrificantes, pois ela permitiria a comunicação entre homens e deuses. Ou seja, os rituais, em seus variados tipos, eram essenciais nas interações entre homens e as divindades e marcavam os eventos públicos e as celebrações do Estado. Nesse sentido, há muitos indicativos de que agentes políticos “contavam com a religião e com os deuses como fatores importantes na determinação dos eventos e na garantia de suas reivindicações de autoridade e comando”, talvez não decorrente das atitudes religiosas, mas “encontravam seu modo de expressão nas competitivas atividades religiosas dos indivíduos poderosos” (BELTRÃO, 2006, p.145). Diante desses argumentos, e como disse Giorgio Ferri (2010), entendemos que a guerra é um objeto de estudo per se. Porém, aqui interessa-nos principalmente um aspecto relacionado à guerra e à religião que é o comando supremo na guerra (imperium militae) e o caráter sagrado das ações dos generais e seus exércitos. Segundo N. Mendes (2004b, p.19), o exercício do poder romano baseava-se na dignitas e na autorictas e guiavam a vida pública e privada do cidadão. E o imperium, antigo atributo dos reis, seria a projeção, no interior da civitas, da onipotência de Jupiter Optimus Maximus, e, portanto, significa o conjunto da autoridade suprema e a fonte de toda a ação política (NORTH, 2006, 263-5). Inicialmente, a posse do imperium27 foi dividida entre os dois magistrados maiores,28 mais tarde surgiram o pretor urbano e o pretor peregrino. O cônsul, depois de inaugurado (inauguratio) pelo colégio dos áugures, tinha a prerrogativa de consultar os auspícios (auspicius), ou seja, estava ligado à divindade e tornava-se seu intérprete (LINDERSKI, 1986, p.2169-79). O magistrado escolhido pelo povo detinha então, o poder inerente a Júpiter, “força transcendente, ao mesmo tempo criativa e reguladora, capaz de agir sobre o real de submetê-lo a uma vontade” (MENDES, 2004b, p.20). A prerrogativa de consultar os auspícios convertia o cônsul em intérprete da vontade de Júpiter, poder esse, materializado através da concessão de várias honras, tais como: ocupar acentos especiais nos teatros e espetáculos; vestir a toga praetexta (branca com uma larga 27 Imperium, ii (impero) n. – poder, soberano, ordem, mando, autoridade; governo, domínio; comando militar, magistratura; estado (ALMEIDA, 2008, p.329). 28 Magistrados maiores (cum imperio eram o cônsul, o pretor e o ditador) e os magistrados menores (sine imperio eram os censores, edis, questores e tribunos da plebe). Eleitos anualmente, eles usufruíam poder de caráter administrativo (potestas) que conferia, dentre outros, o direito de fazer editos, direito de vida e de morte e o comando militar. 46 banda ornada de púrpura) e pelo direito ao séquito dos lictores29 portadores dos fasces30 e em número determinado pela magistratura (MENDES, 2004, p.19). O significado destas honras e insígnias usadas pelos magistrados eram facilmente identificadas, configurando a nosso ver, uma das formas de representação visual do poder político e religioso. Os cônsules e pretores eram eleitos pe1a Assembleia Centuriata, no entanto somente pela lei de império31, votada pela Assembleia Curiata formada por 30 lictores e sob a presidência do pontifex maximus, era conferido o imperium. Em momentos de perigo da res publica, um ditador (dictador), ou seja, um magistrado excepcional era escolhido pelo Senado e nomeado pelos cônsules e designado para uma missão especifica. Este, “unificava os poderes do imperium repartido entre os dois cônsules, por um período limitado de seis meses” (BEARD, 2007, 219-244). Ou seja, a lei consolidava o caráter jurídico e sagrado envolvidos na concepção de imperium relacionado também ao direito augural.32 Os colégios sacerdotais romanos, não devemos esquecer, estavam ligados diretamente à vida política da cidade. Segundo Beard, North & Price (1998, p.18): A estrutura básica dos colégios sacerdotais romanos é atribuída a Numa e assumida para o período republicano arcaico, quando já existiam os três maiores colégios sacerdotais: os pontífices, os áugures e os dois homens para o sacrifício (duoviri, depois decemviri sacris faciundis); um quarto colégio, os fetiales, talvez tivesse uma importância comparável aos três primeiros. Estes quatro colégios, cujos membros eram geralmente vitalícios, eram consultados pelo Senado em sua área de responsabilidade. Com a expansão territorial de Roma, tanto as atribuições sacerdotais, como os rituais também sofreram transformações. Um exemplo, de acordo com Beltrão (2012, p.121) foram as declarações de guerra realizada pelos fetiales, que não eram mais passíveis de execução 29 Lictores - oficiais estabelecidos por Rômulo, a exemplo dos etruscos. Normalmente eram pessoas de baixo estrato social, porém eram homens livres. A hierarquia determinava o número de lictores que acompanhavam o magistrado: o ditador era acompanhdo por 24, os cônsules eram acompanhdo por 12 e os pretores eram acompanhados por seis. Suas funções consistiam em: 1. caminhar em procissão ante os magistrados com os fasces; 2. compelir o povo a saudar os magistrados; 3.caminhar diante do magistrado em fila indiana; 4. se os magistrados pronunciassem as palavras: Eu lictor, adde virgas reo, et lege em eum age, atingia o culpado com os fasces e cortava-lhe a cabeça. Dictionary of Romans Coins. Disponível em: http://www.forumancientcoins.com/numiswiki/view.asp?key=Lictores acesso nov 2013. 30 Fasces - são hastes de madeira com uma lâmina (machado). Os fasces originarios da civilização etrusca, passaram a Roma antiga simbolizando o poder e a competência de um magistrado e o poder coercitivo do Estado. O machado (securis) indicava os autores de crimes hediondos e inexpiáveis indicando que teriam que ser cortados da sociedade (literalmente, cabeças cortadas). Dictionary of Romans Coins. Disponível em: www.forumancientcoins.com/numiswiki/view.asp?key=Fasces acesso nov 2013. No interior da urbs, os fasces não portavam as lâminas (C. BELTRÃO, 2014, informação verbal) 31 A lex curiata de imperium (lei que delegava autoridade soberana) a formalidade do consulado começava pelas eleições nos comícios centuriatos, seguida da tomada dos auspícios, na qual o cônsul prestava seus votos (votum) à tríade capitolina, efetuando igualmente o sacrifício ritual para Jupiter Optimus Maximus (SCHEID, 2003, p.185). 32 Cf. Jersky Linderski, “The Augural Law” (1986). 47 como em períodos anteriores33 porque os conflitos se davam agora muito longe da urbs de modo que o ritual sofreu mudanças em sua execução, porém, sem perder o fundamento do ritual que era definir as condições de garantia divina da ação bélica. Do mesmo modo, a expansão territorial do século II e I aumentou consideravelmente o número e a duração das campanhas militares romanas, assim como a complexidade das relações entre cidadãos e os estrangeiros. Na sequência, o sistema de magistraturas teve que se adaptar às exigências advindas das conquistas, como por exemplo, o aumento do número de magistrados investidos de poder supremo. Nesse sentido, podemos detectar a ligação entre a religião e a guerra observando as “práticas sociais e políticas romanas”. Um exemplo é o costume de reunir os comitia centuriata, ou seja, a assembleia do povo em armas, fora do pomerium,34 no Campo de Marte o que demonstra que “o espaço sagrado de Roma, marcou sempre uma rigorosa fronteira que mantinha as atividades guerreiras fora da urbs.” Outro exemplo é a proibição dos exércitos se reunirem no exterior do muro sagrado e o general vencedor somente ser “autorizado a entrar na urbs à frente de suas tropas na cerimônia do triunfo” (BELTRÃO, 2012, p.127). Nesse sentido, a decisão do Senado em conceder um triunfo sinalizava que a elite político-militar da República reconhecia sua realização frente ao populus Romanus (HÖLKESKAMP, 2006, p.483) e permitia ao general vitorioso percorrer as ruas de Roma (planta 1) em um carro de guerra, intitulado imperator e revestido dos atributos de Júpiter (VERSENEL, 1970; MENDES, 2004b; BEARD, 2007). Desta forma, a ligação entre o magistrado revestido de imperium e Júpiter era o aspecto fundamental da cerimônia de triunfo. O “triumpho, a honra máxima reservada aos imperatores” evidencia como os “rituais garantiam o caráter sagrado das ações dos generais e seus exércitos” (BELTRÃO, 2012, p.127). Enfim, o poder de exercer o comando supremo na guerra afirma a relação entre as 33 Fetiales - colégio sacerdotal composto por vinte membros. Era encarregado dos ritos de declaração de guerra e paz: uma delegação de fetiales, conduzida pelo pater patratus e acompanhada por um condutor da erva sagrada (a verbena) colhida na Arx, demanda ao inimigo a reparação de um dano. Ao fim de trinta ou trinta e três dias, em não havendo a satisfação, o pater patratus retornava à fronteira, acompanhado pelo verbenarius, e lançava um longo dardo no território inimigo, pronunciando a fórmula da declaração de guerra. Contudo, com a expansão, tornou-se inviável transportar os sacerdotes ao local dos conflitos e ritual então ganhou nova forma. “Um pedaço de terra na urbs, perto do templo de Bellona, foi designado, por lei, “terra inimiga”, e era ali que os fetiales passaram a realizar seu ritual.” (BELTRÃO, 2012, p.120-129). 34 Assinala o espaço da fundação da cidade de Roma. Os prédios deveriam ficar a certa distância desse espaço que determinava o lugar inicial da cidade. O pomerium tinha relevância jurídica. Os soldados deveriam dispor das armas para entrar nessa parte sagrada, exceto nos dias do ritual do triunfo. A importância política advinha da impossibilidade de alguém que detivesse o imperium, ou comando de homens, ter que deixar suas armas, para entrar na cidade, pois entrar na cidade portando armas era um desrespeito ao espaço sagrado delimitado (AZEVEDO, 2012, p.439; SCHEID, 2003, p.61-3). 48 duas instâncias da sociedade romana. Ademais, a procissão triunfal expressava visualmente, na linguagem das imagens, a relação entre as esferas político-religiosa da tradição romana. Planta 1 - Esquema da rota triunfal em Roma. In: BEARD, M. The Roman Triumph, 2007, p.335. Além dos rituais, a relação entre a guerra e a visualidade em Roma, pode ser também observada através dos monumentos. Segundo Harris (1979, p.20-1), em meados do século III, os monumentos e os triunfos promoviam a fama dos comandantes vitoriosos, pois “praticamente de onde se olhasse os lugares públicos podia-se ver os títulos de glória dos aristocratas, baseados em sua maioria no êxito da guerra.” Isto porque os generais construíam seus próprios templos manubiais, muitos deles prometidos no campo de batalha para as divindades protetoras, pago ex manubiis (com a receita da guerra). Nessas construções, os triunfadores não perdiam a oportunidade de exibir imagens, de pinturas e estátuas, relacionadas às suas vitórias. Para K. Welch (2006a, p.5) os templos sobreviventes no forum Holitorium e a Área Sacra do Largo Argentina demonstram que com o passar do tempo, esses templos foram “projetados com uma iconografia arquitetônica cada vez mais original” de forma que cada um dos monumentos “disputava a atenção do espectador e, assim, evocava a vitória específica do general para sempre”. Um exemplo interessante de monumento de guerra que representa a realização pessoal foi o de Cipião Africano que erigiu em 190 um arco sobre o Clivus 49 Capitolinus35 cuja descrição de Tito Lívio (37.3) fala de nove estátuas de bronze douradas e um par de cavalos. Provavelmente as estátuas seriam retratos do triumphator e de sua família. Mas é na cunhagem romana que a prática de autopromoção pode ser observada ostensivamente. De acordo com M. Crawford (1983, p.727-28), após a Lex Gabínia de 139,36 aumentou o interesse pelo ofício da cunhagem visto que os monetários tinham uma considerável liberdade na seleção das imagens nas moedas, tornando-se mais ousados em suas escolhas iconográficas, além de ser mais uma maneira de mostrar as pretensões políticas ao conhecimento público. Ainda segundo K. Welch (2006a, p.5), não é surpresa que os temas eram na maioria militares e, a nosso ver, a ousadia na escolha das imagens se configurava mais um meio de propaganda política. Um exemplo significativo da temática bélica é um denário de 116 emitido por M. Sergius Silus cujo tema faz referência ao avô (pretor em 197) que perdeu a mão numa batalha (moeda 1). A iconografia tem Dea Roma com elmo de um lado e de outro um cavaleiro brandindo uma espada na mão esquerda e empunhando uma cabeça decepada por meio de um gancho, no lugar da mão direita ausente. Esta iconografia, segundo Welch (2006a, p.5-6), revela práticas reais de guerra. Moeda 1. Denário de M. Sergius Silus, Roma c. 116-115.37 Podemos dizer então que o ethos designa as características morais, sociais e afetivas que definem o comportamento de uma determinada pessoa ou cultura, da mesma forma que se refere ao espírito motivador das ideias e dos costumes. No caso da sociedade romana, o ethos baseado na vitória militar (laus e gloria) foi fundamental para a cultura política republicana e 35 A via principal para o Capitólio Romano, o Clivus Capitolinus começa na início do Forum Romano, como uma continuação da Via Sacra. 36 Em relação à substituição do voto oral pelo secreto contribuíram: lex Gabinia de 139 a.E.C. nas eleições, pela lex Cassia de 137 a.E.C., e pela lex Papiria de 131 a.E.C. tiveram grande impacto na prática dos nobres fiscalizarem os votos (MENEZES, P., 2012, p.50). 37 Ind.: RRC 286/1; Anv.: Cabeça de Roma (Dea Roma) com elmo; Insc.: ROMA*/EX.S.C; Rev.: cavaleiro brandindo uma espada na mão esquerda e empunhando uma cabeça decepada por meio de um gancho, no lugar da mão direita ausente; Insc.: Q/M SERGI/SILVS, Imagem: http://www.coinproject.com/siteimages/91-3900Sergius.JPG 50 as imagens ancestrais ocuparam um lugar de grande destaque na ideologia política (GRUEN, 1992, p.154). Na República média, os aristocratas romanos almejavam colocar suas estátuas especialmente ao redor do comitium próximo à cúria, e também no Capitólio, próximo ao templo de Júpiter. Esse desejo é facilmente explicado pela vontade de associar suas estátuas, ou de seus ancestrais, aos pais fundadores, pois esses locais davam a impressão que também eles tinham tido um papel importante na história da cidade. Mas a edificação de estátuas nos lugares públicos era cuidadosamente controlada e estátuas desautorizadas eram retiradas pelos censores regularmente (Plínio, História Natural, 34.30). O fortalecimento de uma aristocracia de ofício naturalmente levou ao desenvolvimento de grande número de anúncios públicos focados especialmente sobre o sucesso militar das elites dominantes, e serviu para justificar posições sociais privilegiadas. No final do século IV, troféus assinalavam vitórias e estátuas honoríficas votadas pelos magistrados, tornaram-se importantes elementos decorativos na cidade (HÖLSCHER, 1978 apud FLOWER, 2006, p.70). No entender de Flower (2006, p.63-4), “as imagines eram poderosos lembretes visuais, apresentados no funeral. A própria imago de um homem era a sua recompensa final por alcançar a alta magistratura e, portanto, parte do objetivo de um aristocrata, pois as imagines dos seus antepassados, serviam como um meio para chegar a esse objetivo.” 2.3 A expansão territorial do império e o elemento militar A expansão territorial é um aspecto importante no processo de construção do poder político de caráter pessoal em Roma, pois a política de conquista romana alterou a configuração do exército, tendo em vista que a partir da Segunda Guerra Púnica ocorreram mudanças nas estruturas sociais e econômicas, recrudescendo as tensões e conflitos sociais, inclusive dentro da própria elite. Para Géza Alföldy (1996, 65-70), a expansão territorial trouxe transformações ao Estado e à sociedade romana, haja vista que a estrutura econômica e a ordem social foram submetidas a condições mais complexas. Isto se deve à permanência dos exércitos cada vez mais distantes da urbs e por períodos de tempo mais longos, além de fazer com que muitos camponeses, ao retornarem, se vissem arruinados e impossibilitados de pagarem suas dívidas. Alguns esforços foram feitos para suprir a carência de contingente militar, desde a diminuição 51 da qualificação ao serviço militar e disponibilidade de soldos, sem, contudo, solucionar o problema.38 Um dos aspectos sociais observados em nossa pesquisa, em relação ao poder autocrático romano, é a questão militar, visto que os soldados cada vez mais recorreram “a indivíduos capazes de lhes fornecer o que o Estado não lhes pudera oferecer”, ou seja, recorreram aos chefes militares como forma de obter recursos (FINLEY, 1985, p.144-5). Nesse contexto, se faz necessário mencionar as reformas de Caio Mário (157-86). Para o historiador Brian Campbell (2002, p.23) desde o inicio do século IV Roma já reconhecia a necessidade de recompensar os soldados pelos serviços prestados através de um subsídio diário a título de ajuda de custo, e foi a partir dessa prerrogativa que Caio Mário conseguiu aumentar seu contingente militar para a guerra contra Jugurta39, de forma que o exército adquiriu novas configurações no século I. Mário, um homem novo (homo novus), originário de Arpino conseguiu enriquecer como cavaleiro e publicanus40. Devido ao sucesso militar, obteve apoio político possibilitando sua nomeação ao comando supremo da guerra na África junto ao seu primeiro consulado no ano de 107. Para essa jornada, Mário fez uma reforma militar ao abrir o exército a todos os cidadãos, legalizando um processo iniciado no século anterior pela elite de Roma (SANTOSUOSSO, 2001, p.13) e possibilitou a incorporação dos proletarii. Dessa forma, o cônsul converteu-os em soldados profissionais o que, na prática, tornou o exército um efetivo permanente. Após essa mudança, o exército entra no cenário político como instrumento dos chefes militares, sendo controlado através do butim e pela promessa de distribuição de terras (ALFÖLDY, 1996, p.129). Os soldados, por sua vez, buscavam ingressar nas fileiras de generais vitoriosos porque, nesses exércitos, os soldados adquiriam butim e escravos, além de recompensas generosas e “donativos distribuídos durante os triunfos” pelos chefes vencedores (CAMPBELL, 2002, p.23). 38 Em relação aos processos censitários para qualificação militar ver A. Santosuosso (2001), capítulo 1 “All, rich and poor, Well-Boran and commoners, must defend the Estate” 39 Após a morte do rei Massinissa do reino cliente da Numídia (ao lado da província da África), Roma dividiu o país entre os dois jovens príncipes em 118. O príncipe Jugurta, que servira com Cipião Emiliano, era cavaleiro renomado e soldado nato. No entanto, a divisão o desagradou, pois Roma deu-lhe a parte ocidental e “mais primitiva do país”. Na sequência, Jugurta assassinou os italianos residentes no reino, o que fez Roma declarar guerra a ele (GRANT, 1988, p.164). 40 Publicanus – cidadão da ordem equestre que servia de intermediário entre o Estado e os contribuintes. Em 218 a lex Claudia proibia que senadores exercessem cargos relacionados ao comércio, serviços financeiros ou iniciativas fiscais. Essas atividades seriam exercidas por equestres ricos, através de corporações que empregavam libertos, indivíduos especialistas e escravos Porém, uma parcela menor dos cavaleiros permaneceu como uma pequena nobreza e continuou a exercer seu papel no exército (PIRES, 2012, p.46). 52 Segundo Adrian Goldsworthy (2011, p.46), este teria sido um estágio significativo na transição de um “exército de reserva de cidadãos recrutados em um corte transversal das classes proprietárias para um exército profissional”. Para Goldsworthy e Homo, ao recrutar os muito pobres, Mário contribuiu para a transformação do papel do exército na política e para o fim do sistema republicano. O Senado, também teve seu papel para a inserção e consolidação do exército na política. A fim de garantir as vitórias militares e administrar as novas províncias, o sistema de prorrogação e os governos de províncias foram ampliados pelo Senado em virtude dos numerosos conflitos. Um exemplo dessas inovações constitucionais é dado por Tito Lívio ao relatar as disposições do Senado quando prorrogou o comando militar de P. Cornélio Cipião, durante a segunda Guerra Púnica, para que este fosse à África enfrentar Aníbal e terminar a guerra que se prolongava por dezesseis anos (Tito Lívio, Ab Urb Condita, 30, 1). Da mesma forma, Políbio também relata a guerra com os cartagineses, na metade do século II, ocasião na qual o Senado teria confirmado os “comandos militares dos magistrados e pró-magistrados republicanos, prorrogando suas atribuições ou até mesmo substituindo os últimos, caso considerasse necessário” (COLLARES, 2009, p.17). Nas palavras de Políbio O cônsul, ao partir com seu exército, investido pelo povo e pelo Senado, parece ter realmente autoridade absoluta nos assuntos relacionados à realização de seus empreendimentos; [...]. O cônsul também depende do Senado fazer com que realize ou não suas aspirações e seus projetos, pois os Senadores têm o direito de substituí-lo ou de prorrogar seu comando uma vez terminado seu mandato anual (Historias, 6, 15). Conforme atesta Políbio, essas atribuições dos cônsules já faziam parte da tradição republicana. Desde o século IV as magistraturas cum imperium41 podiam ser prorrogadas mediante aprovação do Senado e após os comícios centuriatos sugerindo, desde já, a existência dos chamados pró-magistrados. No entanto, sabemos que a partir do século II, não era incomum magistrados delegarem comandos menores a seus próprios subordinados, devido à expansão territorial (BRENNAN, 2004, p.39-40). Além disso, desde a lei Hortênsia de 287 havia a possibilidade dos chefes militares obterem comandos por meio da atuação dos tribunos da plebe na Assembleia Tributa. Podemos dizer que na visão tradicional da historiografia expressa, por exemplo em L. Homo, a perda do controle absoluto do Senado sobre o exército se iniciou quando este perdeu 41 Magistrados cum imperium - Caberia governar as províncias um magistrado em exercício (pretor) ou que já havia saído do cargo (propretor ou procônsul). Os governadores de província possuíam amplos poderes em virtude do imperium de que estavam revestidos. Cf. NORTH (2006, p.264) 53 sua conformação cidadã e passou a ser um exército de profissão. Para Homo, no último século da República, os comícios da plebe proporcionaram aos “ambiciosos generais” grandes comandos militares e serviram a políticos como Sila, Crasso, Pompeu e César alcançarem o poder pessoal, ou seja, o poder militar estaria na “origem do futuro regime imperial” (1928, p.195-206). Entretanto, convém notar que no caso dos mencionados generais, realmente as vitórias militares permitiram a eles obter grande soma de recursos financeiros, mas principalmente poder político, laus e glória, reforçando ideologia de heroicidade através da guerra e das vitórias militares. Mas não se pode esquecer que o ethos guerreiro era um elemento importante da sociedade romana e vale lembrar o caso de C. Mário, que através de suas efetivas vitórias militares, permitiram a um ‘homem novo’ se tornar cônsul na República, fato até então inédito. Considerado herói pelo povo, desde a guerra africana, foi nomeado para deter os germanos, derrotando os teutões e os cimbros, além de ser reeleito cônsul todos os anos, contrariando a lei e a tradição. Ao voltar a Roma (100), conseguiu seu sexto consulado devido à glória militar. Todavia, na sequência do conflito com os germanos, e após a Guerra Social42 com a vitória militar de Roma e política dos aliados (WALLACE-HADRILL, 2008), surgiram problemas nas províncias orientais, principalmente após a ascensão do rei Mitridates VI43 do Ponto e a sua política de expansão territorial. Esses conflitos no Oriente interessam à pesquisa, pois esse foi um dos cenários onde a guerra, o exército, as riquezas, as interações culturais constituíram elementos importantes do processo de construção do poder pessoal militar, quer dizer, esse foi o palco onde se destacaram os atores políticos privilegiados pela pesquisa. Inicialmente, L. Sila destacou-se na vitória final na guerra da Numídia graças a uma manobra, orquestrada por ele (lugar-tenente de Mário), que convenceu Boco, rei da Mauritânia, a trair Jugurta e entregá-lo aos romanos. Porém, diferente do que esperava Mário, 42 Guerra Social (socii, aliados) ou mársica (90-87) - foi o conflito entre Roma e os aliados italianos iniciada em 91 após a persistente recusa dos romanos em atribuir o direito de cidadania romana aos aliados italianos. A revolta centrou-se nas regiões meridional e central da península, envolvendo povos de língua osca dos Apeninos centrais, principalmente os marsos, samnitas, e os lucanos, além da cidade de Piceno. Os aliados constituíram um Estado independente. As autoridades romanas perceberam que as concessões aos italianos não podiam mais ser negadas. O cônsul L. Júlio César apresentou um projeto (Lex Julia) concedendo a cidadania romana a todos os italianos leais, assim como aos que se dispusessem a depor as armas (GRANT, 1988, p.168-169). 43 Mitridates VI Eupátor, rei do Ponto (132 - 63 a.E.C.), envolveu-se em três conflitos com Roma nas chamadas Guerras mitridáticas: Primeira Guerra (88-84 a.E.C.) L. Sila conseguiu expulsar Mitrídates da Grécia; Segunda Guerra (83-81 a.E.C.): o cônsul Lúcio Licínio Murena teve a incumbência de executar as cláusulas do tratado de paz entre Roma e o Ponto, acusando o rei de rearmar seus exércitos e iniciou nova guerra; Terceira Guerra: (7565 a.E.C.) Mitrídates foi finalmente derrotado por Pompeu. 54 a missão de comandar um exército para lutar no Oriente foi dada a Sila, cônsul de 88 e cujas habilidades já haviam sido demonstradas nas campanhas da África e na Guerra Social. Mário tentou retirar o comando de Sila, mas este não aceitou o afastamento e com suas tropas da Ásia Menor, marchou sobre Roma que caiu sem resistência, desafiando o governo republicano. Essa foi uma clara demonstração de lealdade do novo exército a um general (MENDES, 1988, p.66) e a primeira vez na história que a urbs foi palco de uma guerra civil. De volta à Grécia, Sila logo retomou Atenas e sem demora seguiu para a Ásia Menor. Lá chegando, pôs fim a guerra e negociou um acordo de paz bastante generoso com Mitridates. Por esse tempo, em Roma, Mário havia se unido aos cônsules do ano de 87, e em um contexto político violento, realizou massacres, além de iniciar seu sétimo consulado, vindo a falecer poucos dias depois. Após voltar do Oriente, Sila retomou a cidade com a ajuda de uma guarda pessoal de dez mil homens, conhecidos como ‘Cornélios’, que promoveram um massacre, matando seus inimigos, inclusive quarenta senadores e 1600 cavaleiros, cujas terras foram confiscadas e distribuídas entre os ex-legionários. Após assembleia no Senado, Sila delineou o projeto de proscrições e também os massacres e confiscos (Plut. Sul. 30). É interessante observar que apesar dessas ações conturbadas, Sila se colocou como restaurador da República e para tal resgatou a ditadura em 81, sem prazo de término, magistratura que havia sido abolida desde o século III (Plut. Sul. 33,1). Seu projeto de reestruturação foi elaborado segundo a facção que o apoiava, o Senado. Sua atuação foi conservadora e buscou legislar para restabelecer o monopólio e a autoridade do Senado na prática política através de novas leis, prejudicando a assembleia Tributa, criando assim, um sistema diferente de tudo que existiu antes. Acreditamos que com essas leis,44 o ditador desejava evitar que outro fizesse o mesmo que ele. Contudo, não deixa de ser irônico o fato de que foi o próprio Sila quem rompeu o poder senatorial ao apoiar seu poder político na força do exército. Nesse cenário, inicia a ascensão de um jovem general, Cneu Pompeu, ligado a Sila, e que prontamente mostrou suas habilidades militares ao acabar com a oposição na Sicília e na África. Segundo Plutarco (Pomp. 13, 4-5) o cognome Magnus45 foi atribuído pelo próprio Sila. Após estas vitórias, mesmo com a relutância de Sila, o general foi premiado com um 44 Em relação às mudanças de Silva cf. A “República de Sila” conforme proposta de Flower (2010, p.22ss). Para detalhes sobre as leis e reformas políticas cf. GRANT, 1988; e principalmente SANTANGELO, 2007 e FLOWER, 2010. 45 Sila teria sido o primeiro a saudá-lo como ‘Magnus’ desde sua campanha na África, mas somente a partir do pró-consulado na Espanha que Pompeu começou a usar o nome oficialemente. Segundo Plutarco, Pompeu passou a “inscrever-se em suas cartas e ordenanças Pompeius Magnus, pois o nome tornou-se conhecido e já não era desagradável” (Pom. 13, 3-5). Em 66 a.E.C., Cícero também se referiu a ele deste modo no discurso De Imperio Pompeio (Cíc. Imp Pom., 67) 55 triunfo (provavelmente em 81) mesmo sendo tão jovem. Nesse ínterim, Pompeu, derrotou M. Lépido46 e ofereceu seu exército para ajudar no conflito contra Sertório na Hispânia. Sem poder recusar a oferta, o Senado nomeou Pompeu procônsul em 77 (Plut. Pom.17-18) pondo fim à guerra com facilidade e voltou à Itália com grande fama militar. Por essa ocasião, o jovem Pompeu já estava sendo comparado ao grande conquistador macedônio Alexandre Magno. Na segunda metade da década de 70, se destaca outro importante agente político do período. Roma enfrentava várias agitações e uma delas foi uma revolta liderada por Espártaco, gladiador trácio, que conseguiu reunir escravos fugitivos e derrotar quatro exércitos romanos. As autoridades, então, confiaram o comando contra os revoltosos a Marco Licínio Crasso que recebeu o imperium proconsular e demonstrou sua competência ao marchar com um exército de quarenta mil homens (71) contra Espártaco e vencê-lo na Apúlia. Por essa ocasião, Pompeu e Crasso, embora suspeitando um do outro, preferiram unir esforços e candidataram-se ao consulado no ano 70. Do ponto de vista legal, ambos estavam inaptos à eleição, pois não desmobilizaram seus exércitos, e Pompeu era inelegível, pois nem mesmo havia assumido seu posto como senador. Contudo, a essa altura, uma figura tão popular como Pompeu, a lei não foi impedimento e o Senado cedeu à eleição (Plut. Pom. 22,1,5). Foi mais uma demonstração de como o apoio do exército permitia aos chefes militares manipular a política romana. Após a eleição, os dois cônsules se empenharam na restauração dos poderes dos tribunos, abolidos na reforma de Sila, diminuindo assim, o monopólio do Senado sobre os tribunais. Crasso, pessoa amável e lisonjeira, sabia explorar os laços de amizade, decidiu permanecer em Roma ampliando seus recursos financeiros e sua influência política. Pompeu, por sua vez, aguardava uma oportunidade de aumentar ainda mais sua reputação militar, o que não tardou a acontecer devido aos problemas com a pirataria no Mediterrâneo. Desde o século anterior, quando Roma enfraqueceu a ilha de Rodes e sua força naval, os piratas intensificaram suas ações. Porém, no início da década de 60 aumentaram os sequestros, os ataques à costa italiana e às vilas. Além disso, estavam comprometendo cada vez mais o fornecimento de trigo à população romana. Nesse cenário, Pompeu foi nomeado 46 Marcus Aemilius Lepidus – patrício, tornou-se cônsul em 78. Foi chamado a Roma para acabar com a revolta dos camponeses que foram destituídos de suas terras para os colonos de Sila. Contudo, ao ver irrealizável o mandato do senado, decidiu unir-se à revolta. Pompeu obrigou-o a abandonar a Itália e refugiar-se na Sardenha onde morreu. 56 pela lei Gabínia47 para a tarefa de acabar com a pirataria, sendo-lhe atribuídos vastos poderes e disponibilizados imensos recursos em homens, dinheiro e abastecimento. Pompeu não decepcionou e no prazo de três meses conseguiu livrar os mares da ameaça. Mas no ano seguinte (66) recrudesceram os problemas no Oriente e apesar da relutância do Senado, foi aprovada a lei Manília48 em favor do seu comando, que teve inclusive o apoio de Cícero, que na ocasião, reforçou seu discurso, comparando-o a Alexandre o Grande ao evocar o epíteto Magnus (Imp Pom.67). Pompeu continuou no Oriente por mais quatro anos, e quando venceu Mitridates, além de explorar o Cáucaso (65), resolveu a situação da Ásia ocidental. Nessa ocasião, o general anexou o reino do Ponto à Bitínia formando uma única província. Também a região da Síria foi transformada em província romana, incluindo a importante cidade de Antioquia, sendo afastado o último rei selêucida. Quanto ao pequeno reino judaico, e sua velha capital Jerusalém, foi permitida a dinastia dos Asmoneus (macabéia) continuar no governo como um monarca cliente dos romanos (GRANT, 1988, p.178-9). Ao cercar as novas províncias de reinos clientes,49 Pompeu garantiu o comprometimento dos governantes em defender as fronteiras. Em troca, Roma dava aos reis plenos poderes nos assuntos civis e os apoiava contra movimentos internos de subversão. Dessa forma, os romanos se isentavam das despesas de administrar esses territórios. Essa organização do Oriente próximo foi a maior do que qualquer outra já empreendida e mostrou não só a capacidade militar, mas também administrativa de Pompeu ao aumentar a receita anual de Roma em pelo menos 40% (GRANT, 19988, p.180). As guerras com Mitridates VI duraram quase vintes anos, somando os intervalos, e causaram grandes transtornos. Entretanto, ampliaram o poder e o envolvimento de Roma no Oriente e os três grandes estados que sucederam o império de Alexandre o Grande, a Macedônia, o selêucida e do Egito, tornaram-se área de domínio ou de influência romana50 47 Lei Gabínia – Aulo Gabínio, tribuno da plebe em 67 a.E.C. aprovou uma lei que garantiu a Pompeu poderes para liderar a guerra contra os piratas. 48 Lei Manília – Nessa lei, o tribuno C. Manílio propôs em 66 a.E.C. o prolongamento do mandato de Pompeu para resolver o conflito com o rei Mitridates do Ponto. 49 Princípio romano de clientela - a diplomacia romana fundamentava-se em um princípio de fundo religioso e moral, que norteou as relações com os aliados. A Boa Fé (fides) era uma relação recíproca, que implicava, por parte do vencedor, obrigações de clemência, proteção, moderação, e selava os compromissos diplomáticos. Pode-se compará-la aos laços de clientela, base da vida social, econômica e política da aristocracia romana. Ao aplicar este princípio na política externa, Roma criou uma clientela estrangeira, além de servir também como justificativa jurídica e religiosa da ação militar romana em defesa dos seus sócios e reinos aliados (noção de guerra justa) (MENDES, 1988, p.46). 50 Cronologia dos territórios conquistados na República séc. III e II a.E.C.: Sicília 241; Sardenha 238; Córcega 227; Macedônia 146; África Proconsular 146; Ásia 133-129; Narbonensis 121; Cilicia 100; Cirenáica 74; Creta 57 (mapa 1). Pompeu, por seu lado, obteve aliados importantes nessas regiões, principalmente em África. Conquanto, se por um lado, os conflitos no Oriente trouxeram riqueza e ampliaram a influência na região, por outro lado, forçaram o governo republicano a estender os comandos militares tornando-os quase independentes. E o caso de Pompeu ilustra bem a situação. Ao se apoderar de enorme quantidade de despojos, o jovem general aumentou o soldo dos seus soldados (Plut. Pom. 45.3) garantindo assim sua fidelidade, além de se tornar o homem mais rico de Roma, posição ocupada até então por Crasso. Mapa 1: Conquistas romanas de 146 a 30 a.E.C. In: Craige B. Champion, Roman Imperialism: Readings and Sources, 2004, p.12 Entretanto, a nosso ver, algumas ações se revelam ainda mais significativas do poder que o imperium proconsular dava aos chefes militares. No caso de Pompeu, por exemplo, a fundação da cidade de Nicópoles no local onde venceu o rei Mitridates, e outras quarenta cidades que foram criadas ou restauradas em todo o Oriente, em consonância a tradição urbanística dos monarcas helenísticos, comprovam seu poder. Essas medidas foram tomadas em grande parte sem consultar o Senado e demonstram de modo geral, sua posição de monarca absoluto no Oriente por aquela ocasião. Também no sentido da construção de seu 68-67; Síria 64-63; Bitínia e Pontus 64; Chipre 58; Aquitania, Lugdunenese e Bélgica 58-52; África Nova (Numídia) 46; Egito 30 (N. Mendes, 2006, p.295). 58 poder pessoal, o jovem general recebeu variadas honrarias das comunidades orientais, prenunciando “as personagens imperiais que estavam para surgir” (GRANT, 1988, p.180). Por essa altura, comparar Pompeu ao herói conquistador Alexandre o Grande era perfeitamente natural. Entretanto, ao final da campanha de Pompeu, pairava na atmosfera política romana o medo de que este agisse como Sila. Mas ao desembarcar em 62, o general dispensou suas tropas para alívio de todos e regressou a Roma esperando celebrar seu triunfo.51 Pompeu também esperava que o Senado ratificasse os acordos no Leste, assim como proporcionar parcelas de terras aos seus veteranos. Porém, suas aspirações foram frustradas por adversários, principalmente Lúculo e M. Catão,52 ao mesmo tempo em que Crasso também teve suas reivindicações negadas pelo Senado.53 Nessa conjuntura, vale destacar que a construção do poder pessoal em Roma foi um processo no qual as circunstâncias da política externa, a princípio, bem como no plano interno, fizeram aumentar e/ou aprofundar as prerrogativas de poder dos magistrados romanos. A aristocracia romana, no século I, não tinha a coesão necessária para controlar a força crescente dos generais, ao mesmo tempo em que os problemas externos requeriam soluções rápidas. E, apesar da nobilitas temer os grandes generais e sua influência sobre o exército, o Senado não podia prescindir da intervenção deles para manter o equilíbrio da República. O caso de Pompeu é emblemático dessa situação como vimos nos episódios dos piratas e da guerra com Mitridates VI, pois diante de uma situação de perigo, e apesar dos receios, foram dados muitos poderes e atribuições a um só homem. No entender de L. Homo (1928, p.226), as leis Gabínia e Manília asseguraram a Pompeu um papel importante na estrutura republicana e deram início ao fugaz regime do “Principado de Pompeu” prenúncio do que seria estabelecido por Otávio. Nesse sentido, é significativo o discurso De Imperio Pompeio de Cícero em prol do comando de Pompeu, pois permite entrever indícios da ideologia de poder conferido a um cidadão, segundo ele, dotado de “inteligência divina”, “proteção divina”, “conhecimento, autoridade e fortuna” e “habilidade militar”.54 Ou seja, podemos ver que nesse momento, as 51 Discutiremos os triunfos de Pompeu no capítulo 4. Lúculo foi substituiu no comando na Ásia Menor por ocasião da segunda Guerra Mitridática e M. P. Catão (descendente de Catão o censor) tribuno em 62 bloqueou sistematicamente os pedidos de Pompeu. 53 Em 61 a.E.C., uma companhia de publicanos pediu a redução no preço do arrendamento das receitas asiáticas, alegando que elas estavam se mostrando menos lucrativas que o previsto. Crasso apoiou essa reivindicação, mas Catão, alegando o acordo anteriormente celebrado, convenceu o Senado a rejeitar o pedido. 54 Respectivamente em De imperio Pompeio, 42, 48, 49,64. 52 59 linhas da construção de um novo sistema político, já estavam sendo desenhadas. Mas esse novo sistema, construído em torno da figura do princeps e pautado nas práticas republicanas, estava imbuído de práticas relacionadas ao poder autocrático. É importante considerar que o modelo de poder pessoal que os romanos acabaram por admitir, a partir do conceito do princeps, concedido àquele cuja liderança e destaque advinham da sua dignitas e autorictas, acabou por se estabelecer somente com Otaviano, pois, no período de Pompeu, o ideal republicano ainda era muito forte. Mas após um segundo período de guerras civis, Augusto soube configurar, através da concentração da tribunicia potestas (iniciativa legislativa e amparo dispensado ao povo), do pontificatus maximus (mediador entre os homens e os deuses) e do imperium majus (comando supremo) consolidar e integrar o imperium à realidade imperial. De forma que o Principado foi a modalidade romana de poder pessoal, “podendo ser chamado de ‘monarquia republicana’” (MENDES, 2006, p.26-7). Retornando aos chefes militares, vale lembrar que cada vez mais, entrava na cena política e militar a figura de outro jovem general, Caio Júlio César (100-44), patrício ligado pelo casamento de sua tia Júlia a Mário. Foi questor na Hispânia (69) e edil (65). Em 63 conseguiu se eleger pontifex maximus, o que lhe garantiu grande prestígio, mas não sem a ajuda financeira de Crasso. Foi enviado como procônsul à Hispânia Ulterior em uma operação contra os lusitanos (61) e devido a essas vitórias foi-lhe concedido o triunfo. Mas César também desejava candidatar-se ao consulado em 60 e, se entrasse na cidade antes da procissão triunfal, perderia tal direito. Foi quando pediu autorização para candidatar-se às eleições por procuração, mas seu pedido foi negado pelos esforços de Catão. Ou seja, por essa ocasião, os senadores frustraram simultaneamente Pompeu, Crasso e César. Esquecendo suas discordâncias pessoais, os três grandes generais se uniram em uma aliança informal, um pacto privado, a princípio secreto, mas que logo se tornou público e conhecido como primeiro Triunvirato. Como era de se esperar, eles obtiveram o consulado em 59 e conseguiram aprovar uma série de medidas em favor das suas próprias reivindicações. César contou com os triúnviros para ajudá-lo em sua carreira política ao obter um comando especial de cinco anos. Logo ele partiu para a província (58), de onde se lançou à conquista da Gália continental. As operações dessa campanha são bem conhecidas devido aos escritos do próprio César55 que, tendo em vista sua prolongada ausência, publicou tais livros para justificar suas ações militares, bem com aumentar seu prestígio em Roma. 55 A Guerra das Gálias (Bellum Gallico), assim como a subsequente Guerra Civil (Bellum Civili) relatam os conflitos militares de César. Ver capítulo 1, item documentação. 60 O objetivo de César certamente era suplantar Pompeu como chefe militar ao ser enviado a regiões pouco conhecidas dos romanos. O general se aventurou, mesmo que por pouco tempo, em uma região onde nenhum outro comandante romano havia estado antes, além de construir uma ponte sobre o rio Reno, comprovando mais uma vez sua excelência como chefe militar (e da engenharia romana). Essa façanha impressionou muito a opinião dos metropolitanos naquele momento. Por essa ocasião, a aliança entre os triúnviros foi renovada. Pompeu e Crasso foram nomeados cônsules para 55 e cada um recebeu um comando especial de cinco anos. Pompeu recebeu as províncias hispânicas, que governou indiretamente, através de legados, permitindo que ele permanecesse em Roma administrando o fornecimento de trigo ao mesmo tempo em que seguia a vida política da República. César, como previsto, teve o comando na Gália também prolongado por mais cinco anos, período em que novamente mostrou suas habilidades militares ao capturar o chefe dos gauleses e conquistar as Gálias.56 César esperava estabelecer uma rede de clientes, assim como Pompeu fez no Oriente, e alcançou seu objetivo, pois o grande território foi reduzido à condição de súdito, sujeito a um tributo anual a Roma. Com a anexação dessas terras, o conceito e o caráter do Império Romano mudou, pois não era mais um domínio exclusivamente mediterrâneo, mas sim um vasto conjunto de territórios da Europa continental e setentrional (GRANT, 1988, p.199). Podemos dizer que o sucesso militar de César adveio da tradicional máquina de guerra romana, mas não só. Suas qualidades pessoais fizeram a diferença: cavaleiro exímio, literato, estrategista e detentor de uma resistência admirável transformaram-no em modelo e herói militar. Nos momentos difíceis, tão logo tomava as decisões necessárias, movimentava suas tropas rapidamente, impossibilitando aos inimigos acompanhá-lo. Essa particularidade o fez, muitas vezes, prestar tributo à sorte, pela qual ficou famoso. Por conta de suas ações heroicas e por sua eloquência (inferior somente a de Cícero) conquistou prestígio, a admiração e a lealdade de suas legiões, consolidando a fidelidade de seus soldados. Ao terminar a campanha no Ocidente, César voltou sua atenção à política em Roma. A situação dos triúnviros havia desmoronado gradualmente. Crasso e seu exército foram destruídos na Mesopotâmia. Em 54, Júlia (esposa de Pompeu e filha de César) faleceu e com ela o laço pessoal que ligava os dois generais e o resultado foi a crescente tensão entre os dois. Após várias tentativas infrutíferas de acordo com os senadores, César transpôs o Rubicão 56 Estudos sobre os gauleses ver: GUYNVARC'H, Christian-J; FRANÇOISE, Le Roux. A Civilização Celta. Lisboa: Publicações Europa América, 1993; CUNLIFFE, B. The Celts. A very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2003. 61 (49), violando a fronteira sagrada do território romano57, dando inicio à guerra civil da qual saiu vencedor. Para além de sua vitória, César lançou um programa de reformas políticas, sociais e administrativas em Roma, tais como: reduzir o problema das dívidas, distribuir terras nas colônias e províncias, reformar leis e o sistema de cobrança de impostos na Ásia e recompensar muitos de seus partidários com lugares no Senado. Lançou também uma série de grandiosos projetos de construção, como o templo de Venus Genetrix, além da reforma do calendário. Para isso, ele foi nomeado cinco vezes ditador e reviveu a ditadura após trinta anos da ditadura de Sila. Usou o título de imperator como uma denominação especial e pessoal, demonstrando sua grandeza militar, que superara muitos outros (CANFORA, 2002, p.311). Nomeado ditador perpétuo, Júlio César (Plut. Caes, 57, Suet. 76,1) teve sua efígie estampada nas moedas, demonstrando assim, sua posição política e o culto a sua personalidade. Mas César ainda buscava rivalizar com Alexandre o Grande “na mesma parte do mundo em que Alexandre invadira”, e para isso planejava conter o poderoso reino da Dácia em uma nova guerra. Entretanto, seus anseios foram interrompidos quando três dias antes de sua partida para o Oriente, os senadores reuniram-se no teatro de Pompeu, e numa conspiração, assassinaram o ditador. Após essa breve contextualização e retornando à discussão sobre as transformações políticas do final do século I, concordamos com H. Flower de que as evidências mostram que a velha República, “baseada em um grupo de nobiles essencialmente iguais, não mais existia”, assim como revelam a mudança nas práticas políticas ao observarmos o confronto entre Pompeu e César (FLOWER, 2010, p.170). Por não haver nenhum grupo, seja no Senado ou fora dele, capaz de mediar a situação, ou que tivesse autoridade suficiente para controlar o exército fazendo com que os soldados deixassem de seguí-los como clientes, “a desagregação da cultura republicana produziu, um padrão de senhores da guerra com os exércitos clientes” (FLOWER, 2010, p.32). Diante de tais colocações e a título de conclusão deste capítulo, lembramos Domingo P. Suárez (1996, p.17), ao afirmar que através das contradições entre a polis dos basileus helenísticos e a civitas republicana, é possível observar que as práticas helenísticas 57 Rubicão - o rio marcava a divisão entre a província da Gália Cisalpina e o território da cidade de Roma, limite mais próximo de Roma ao qual poderia chegar um general com suas legiões. Tal medida visava impedir que os generais dispusessem dos contingentes militares na cidade. Segundo Suetônio, César teria então proferido a famosa frase alea jacta est ("a sorte está lançada"). O autor também descreve como César parecia indeciso ao se aproximar do rio e atribui a decisão de atravessar a uma aparição sobrenatural (Suet. Caes. 32) 62 interagiram no processo de formação do Império Romano, de forma que Roma foi definindo sua personalidade, adaptando os modelos gregos à satisfação das suas próprias necessidades em um processo autônomo. Certamente, as monarquias helenísticas, como o regime imperial romano, surgiram de determinadas circunstâncias, que em realidade evidenciaram as mudanças culturais daquelas sociedades, bem como de suas instituições. Nesse sentido, podemos enfocar a formação do poder pessoal romano, que de algum modo encontra correspondência nos princípios de poder político presentes nas monarquias helenísticas. Pode-se dizer que a construção do poder de Alexandre o Grande se apoiou em princípios legitimadores de poder político, os quais identificamos como vetores de identificação e legitimação de poder pessoal. Todavia, o primeiro elemento de legitimação, presente tanto nas sociedades gregas, como posteriormente nos reinos helenísticos, se dava primeiramente através da vitória e da glória militar, e como vimos ao longo deste capítulo, também foi traço da cultura e da política romana. Entretanto, se fizermos um paralelo entre os valores da kalokagathia (a soma de todas as virtudes) dos reis helenísticos que o capacitava para a realização do bem supremo e para a felicidade de seus súditos, com as qualidades ideais que embasaram o poder do princeps equivale em Roma à ideologia da Virtutes Principis, ou seja, as virtudes da clementia,58 a dignitas, equitas e a pietas (ESCALONA, 2011, p.453). Ou seja, as virtudes do soberano helenístico certamente apresentam sentidos equivalentes aos ideais de legitimação política dos romanos. Entendemos a política de Roma no século I, aliada a outros fatores, caminhou em direção à ideologia de poder autocrático do tipo helenístico. Portanto, parece-nos evidente que o paradigma de Alexandre, o Grande interagiu com as noções já existentes em Roma, desde inícios da República, as quais permitiram a construção do ethos social vinculado à glória, à vitória militar e à posição divinizada dos imperatores, cuja ação permitiu a criação do laus imperii (império de louvor) e a noção de um império ilimitado (BRUNT, 1978, p.162). Logo, a apropriação do paradigma de Alexandre pelos generais romanos em conflito, durante o final do período republicano, contribuiu para acentuar o caráter pessoal do poder destes. 58 Clementia - considerada tanto um atributo pessoal, como uma virtude pública do cidadão durante a República, fazia parte do código de conduta romana. Na República tardia, os romanos usavam para elogiar as supostas qualidades de seus antepassados, que incluía, entre outros clementia, misericordia, mansuetudo, temperantia, lenitas, benevolentia. Segundo M. López (2013, p.471), com Júlio César, a noção de clementia mudou para a noção de conduta misericordiosa com os demais. 63 Capítulo 3 Alexandre, o Grande e a imagem do poder pessoal Alexandre o Grande, considerado um dos maiores generais do mundo, uma figura quase lendária, permanece no imaginário social. E suas imagens ajudam a manter vivo o mito: seja através das obras de arte, dos livros, ou mesmo dos filmes, o conquistador macedônio permanece ícone de herói na atualidade. Nesse sentido verificamos que, para além da ideologia de vitória militar, Alexandre o Grande também utilizou as obras artísticas como uma forma de publicizar sua ideologia legitimadora de poder autocrático. Em seu aspecto discursivo, a arte permite que a linguagem das imagens e o sentido simbólico das representações sirvam à comunicação política. Os objetos artísticos, por sua vez, também podem ser analisados em seu aspecto funcional quando buscamos compreender a função estética das obras de arte na dimensão de seu significado histórico (STEWART, 2003; SCHMITT, 2007). Neste capítulo objetivamos analisar a construção das representações de Alexandre o Grande, isto é, identificar os modelos e as formas artísticas como expressão do desenvolvimento da linguagem das imagens na comunicação política em seus discursos visuais. Para tal, antes faremos algumas considerações sobre o helenismo, sobre as ações do general macedônio no decorrer de suas campanhas militares e a formação dos reinos helenísticos. O período helenístico é uma construção historiográfica moderna e o termo surgiu a partir da publicação do livro chamado Geschichte des Hellenismus (História do helenismo) escrito por Johann Gustav Droysen em 1836. Ao fixar os limites cronológicos entre a morte de Alexandre o Grande (323) até o fim da dinastia independente dos lágidas do Egito (31), o autor nomeou o período de ‘helenismo’ e até os dias atuais a historiografia utiliza esses marcos temporais para designar a época ‘helenística’. No entanto, o interesse de Droysen era relacionar o contexto da unificação do Estado alemão à “unificação” empreendida por Alexandre e seus sucessores, mas também significava a fusão das culturas grega e oriental que forneceu um solo fértil para surgimento do cristianismo (BOSWORTH, 2006, p.9-10). Na maior parte do século XX, de certo modo, o período helenístico foi relegado e, se comparado a outros períodos da antiguidade, é pouco conhecido, configurando uma lacuna intelectual. Esse quadro adveio da ideia negativa de que esse momento histórico assinalava o epílogo da civilização clássica com a perda de seus valores e qualidades, pois já não comungava do espírito cívico grego e das instituições democráticas. Quer dizer, as visões 64 eurocêntricas desenvolveram estudos tendenciosos, nos quais a civilização helenística caracterizava-se como uma civilização inferior devido ao contato com as sociedades orientais. Esse pensamento não é mais aceito pelos estudiosos atuais, no entanto, de alguma forma, permanece arraigada a ideia de Alexandre como fundador de novos tempos (BOSWORTH, 2006, p.10). O cenário historiográfico mudou, principalmente a partir da década de 1980, quando se observa um interesse e aprofundamento nos estudos históricos, culturais e arqueológicos do período. De acordo com Sales (2005, p.576), os estudos têm evidenciado “o peso e importância da época Helenística como um dos mais fecundos períodos da história humana”. Ou seja, o período helenístico é importante não só pelo que ele significou no mundo antigo, mas também pelo que representou em épocas posteriores. Apesar de sua visão apologética e das generalizações acerca da culta grega, concordamos com Pierre Lévêque (1987, p.57) ao dizer que as instituições helenísticas estavam carregadas “de futuro,” tanto prática quanto ideologicamente se pensarmos na arte e na filosofia grega. As conquistas de Alexandre o Grande sobre o Império persa abrangeram uma extensão territorial inusitada até aquele momento e integrou de forma mais intensa o Egito, Ásia Menor, o Ponto, a Síria e Palestina, a Mesopotâmia, além de uma parte da Índia. Todavia, é necessário lembrar que a nova configuração geopolítica não inaugurou o contato entre as duas regiões, visto que a Grécia mantinha relações com o Egito e o Oriente há muitos séculos. O que se percebe foi uma intensificação das trocas comerciais e culturais proporcionada pela unificação territorial liderada pelas elites gregas e macedônias e pela instauração dos novos impérios, principalmente o Lágida, Selêucida e Macedônio. No entanto, quando falamos do helenismo como um movimento que levou a cultura grega para o Oriente, é preciso ressaltar que nem a cultura grega e nem a dos povos do antigo Império Persa se configuravam como um bloco uniforme. Ou seja, não podemos atribuir ao mundo helenístico uma homogeneidade cultural e ignorar as diferenças regionais de um território imenso e heterogêneo como o que se constituiu no final do século IV.59 Contudo, ao olharmos a Hélade, é possível identificar elementos comuns, especialmente o idioma e o panteão religioso com suas práticas e rituais característicos dos povos helênicos. Apesar das nuances e das diferenças regionais, os elementos culturais gregos 59 Concordamos com L. Levine (1998, p.16-17) ao definir o helenismo como o meio cultural, amplamente grego, dos períodos helenístico, romano e uma extensão mais limitada do período bizantino. Por helenização, o autor considera o processo de adoção e adaptação desta cultura em um nível local, significa dizer que a helenização não deve ser vista como um processo homogêneo, mas repleto de especificidades locais, resultado do encontro da cultura grega com as múltiplas e variadas culturais locais dispostas no Mediterrâneo, no Egeu e para além desses dois mares. 65 foram levados ao Oriente pela inserção de comerciantes, pensadores, filósofos, artistas, viajantes e soldados que difundiram usos, costumes e as instituições gregas nesses espaços. Mesmo assim, não há evidências de que as populações locais tenham adotado a língua e a religião do conquistador de maneira universal. O mundo helenístico, formado a partir do encontro e contato de variadas sociedades, é caracterizado pela intensa troca cultural entre aquelas populações. Nesse sentido, partimos da premissa que nenhuma cultura existe de maneira isolada, sendo o resultado das interações entre diversas tradições culturais, para assim, compreendermos como ocorrem as transformações nas diversas culturas. Seguindo o raciocínio estabelecido por Sahlins (1990, p.180), “a cultura é historicamente reproduzida e alterada na ação”, o que significa dizer que existe sim uma “transformação estrutural”, e consequentemente, há também uma “mudança sistêmica” porque a cultura se encontra inserida na própria História e por isso está em constante movimento, não permanecendo estática ou pré-definida. Ou seja, a reprodução cultural é sempre uma alteração, quer dizer, para a cultura se manter, ela deve se modificar para continuar sendo ela mesma. Sahlins conclui que a cultura funciona como um espaço de encontro, “uma síntese de estabilidade e mudança, de passado e presente, de diacronia e sincronia”. Implica dizer, no momento em que as culturas grega e oriental se encontraram a partir das conquistas de Alexandre Magno, podemos “admitir que os agentes envolvidos diretamente nesses encontros nunca mais foram os mesmos.” (CHEVITARESE, 2007b, p.20)60 Nessa perspectiva, é importante reconhecer algumas das estratégias que permitiram que os diversos grupos se mantivessem unidos e sentindo-se “identificados culturalmente” se reconhecessem como iguais. O pertencimento a um grupo, a uma sociedade, é uma construção social e cultural que pode ser analisado a partir de “interpenetrações do patrimônio simbólico cultural” e das apropriações e ressignificações que possibilitam entender o surgimento da identidade cultural (BUSTAMANTE, 2006, p.111). Nesse sentido, a civilização helenística constitui-se de uma série de continuidades e transformações sociais, econômicas e culturais entre as sociedades grega e oriental. Nessa direção, a difusão do idioma grego, das técnicas, do comércio, das artes, além do desejo das elites locais que buscavam ascender no contexto das novas monarquias, contribuiu como vetores da helenização das sociedades orientais. 60 Para uma discussão sobre as várias possibilidades de contatos antes do quarto século a partir da perspectiva de M. Sahlins, ver A. Chevitarese (2004). 66 Por outro lado, não se pode ignorar que o contato dos gregos (que também nunca se constituíram numa unidade cultural) com as antigas civilizações da Pérsia, Babilônia e Egito possibilitou o confronto dos ideais de simplicidade e democracia dos gregos com a extravagância e o luxo das monarquias orientais. Certamente o contato foi desigual em ambos os lados, digamos assim, ao longo de quase três séculos produziu uma cultura heterogênea na região. Segundo J. Sales (2005, p.572), a civilização helenística não partilhava mais dos ideais da civilização grega clássica como o “nacionalismo” helênico, da polis ou do espírito cívico das instituições democráticas. É certo que Alexandre não acabou com o modelo de civilização clássica, no máximo pode ter precipitado um processo que já se desenhava. Porém, com as conquistas territoriais, Alexandre levou o ideal de cosmopolis, que na perspectiva estoica de Zenão, seria um mundo sem fronteiras, assim como a imagem do monarca ideal (MOSSÉ, 2001, p.119). Destacamos a importância das cidades no contexto helenístico, pois a urbanização se apresentou como um ponto em comum nessas sociedades. A prática de fundação de grandes cidades, tais como Alexandria, Pérgamo, Antioquia, Éfeso, Cirene, costumeira entre os reis helenísticos, a começar pelo próprio Alexandre, serviram posteriormente como centros irradiadores do desenvolvimento citadino, mas principalmente como forma de estender o paradigma cultural grego. Entretanto, segundo Bosworth (2006, p.17-18), poucas são as evidências de uma missão cultural nas ações fundadoras do conquistador macedônio e, ao que parece, a maioria das “Alexandrias” foram criadas objetivando serem bases militares. Todavia, algumas dessas cidades tinham recursos capazes de suportar a expansão das mesmas. Ainda segundo o autor, ocorreu que os colonos gradualmente usaram a renda para construções típicas da cultura helênica como teatros e ginásios. Podemos dizer que, diferente da civilização grega, com seu “espírito cívico”, o nacionalismo helênico e as “instituições democráticas”, que nunca constituíram um império, as posteriores monarquias helenísticas, deram ênfase às cidades. As metrópoles voltadas a oikoumene61 ensejaram laços diplomáticos, assim como direitos locais aos estrangeiros. Esse novo traço citadino atraiu as mais variadas populações e culturas aos centros urbanos. Na 61 José Sales explica que a visão ecumênica e cosmopolita dos novos tempos é bem traduzida pelo cínico Diógenes: “Sou um kosmopolítes (cidadão do mundo)”. Assim como pelo estoico Zenão que concebia um mundo sem fronteiras ou Estados, onde todos os cidadãos fossem iguais e unidos por sua expressa vontade e por um forte sentimento de amor coletivo (cf. María Daraki, Gilbert Romeyer-Dherbey, El mundo helenístico: cínicos, estoicos y epicúreos, Madrid, Ediciones Akal, 1996 apud SALES, 2007, p.577). 67 configuração imperial do mundo helenístico, “o papel das novas cidades ‘gregas’ não foi político” (SALES, 2005, p.571-2), mas, principalmente, cultural. Para P. Lévêque (1987, p.15), Alexandre percebeu que um meio possível de tentar a “unificação progressiva” do império seria através das trocas comerciais. Habilmente impôs a moeda única, as do tipo macedônicas com o padrão Ático em substituição aos pesados daricos (as moedas de ouro cunhadas pelo Grande Rei, Dario I). O comércio de espécimes animais ou vegetais, mas principalmente as trocas humanas em consequência das estradas, canais, portos, lagos, barcos que ele construiu ou reconstruiu ensejaram as comunicações. Ao conquistar o Egito e a Ásia, conseguiu a interpenetração das civilizações helênicas e orientais, e na sequência, facilitou a maior interação entre as comunidades. O jovem príncipe, “apaixonado pelas coisas do espírito, e que carregava consigo a Ilíada com anotações de seu mestre” (LÉVÊQUE, 1987, p.17), cuja educação foi confiada ao filósofo Aristóteles, desde os treze anos de idade estudou filosofia, história e poesia através de Homero, Heródoto e Eurípedes, aprofundando-se na cultura helênica. Preparado para a sucessão, seguindo a tradição macedônica, iniciou-se na guerra combatendo ao lado do pai em Queroneia, já mostrando seu potencial militar. Quando Felipe foi assassinado,62 Alexandre tinha vinte anos e como filho mais velho, foi aclamado rei pelo exército. Alexandre III logo mostrou suas habilidades de comando, seguindo o exemplo do pai. Pelo lado materno, foi muito influenciado pela tradição mística de sua mãe Olímpia63 que teve papel relevante na personalidade do futuro rei. Iniciada nos mistérios de Samotrácia (Plut. Alex. 2.2) reforçava a crença divina do filho, reverenciando-o como um legítimo deus. De forma que o jovem príncipe foi criado venerando seus antepassados míticos e acreditando em sua ascendência duplamente divina: pelo lado do pai como descendente de Hércules, enquanto ligava-se a Aquiles e Príamo pela dinastia da mãe (Plut. Moralia, 2.1), tanto que foi celebrar essa ligação em Tróia quando chegou à Ásia (Plut. Alex. 15.8–9) reproduzindo, de algum modo, a epopeia de Homero. 62 Felipe II – (382-336 a.E.C.) Filho do rei Amintas III, governou a Macedônia entre 359 a 336 a.E.C. na época em que o país estava dominado pelos ilírios. Felipe formou um exército forte e eficaz que aliado as suas habilidades militares, libertou o reino. A região fazia fronteira com a Grécia e o mundo considerado bárbaro, mas após os conflitos com a Tessália e a intervenção de Tebas garantiu seu lugar de autoridade no cenário grego. O rei mostrou-se moderado em relação aos derrotados ao demonstrar grande clemência. Mas Felipe também soube usar a força como instrumento de dominação quando necessário. Foi assassinado por Pausânias de Oréstide (Plut. Alex, 10.8) 63 Em uma aliança com a casa real molossiana, Felipe casou-se com Olímpia (sua quarta esposa), pertencente à família real dos Molossos, os Eácidas que se diziam descendentes de Aquiles. O rei repudiou-a mais tarde para casar-se com Cleópatra, uma nobre macedônia. Este arranjo significava que Olímpia seria uma concubina e seu filho, um bastardo. Acredita-se em seu envolvimento na conspiração pela morte do rei. 68 A ideia de descendência divina não era novidade no mundo grego. Existiram antes de Alexandre III algumas experiências de governos autocráticos legitimados pela ascendência mítica. Clearco, por exemplo, instaurou em Eracleia do Ponto64 uma tirania proclamando-se filho de Zeus (LÉVÊQUE, 1987, p.16). E o próprio Filipe II, pouco antes de sua morte, representou a si mesmo em um conjunto estatuário onde ele figurava à frente dos doze deuses olímpicos. O rei havia iniciado, na entrada da área sagrada da cidade de Olímpia, uma construção para acomodar estátuas de ouro e marfim (materiais tradicionais das imagens de culto). De acordo como Bosworth (2006, p.19) não sabemos exatamente a intenção do rei, pois o monumento foi concluído após seu assassinato, mas as imagens dele mesmo, de seu pai Amintas III e de seu filho, levam a pensar em culto heroico. Para o autor, Alexandre quis exibir “três gerações de governantes quase divinos e que culminavam nele próprio.” Contudo, a análise do modelo de governo grego e macedônio revela o porquê da guerra ser tão importante para os basileus helenísticos. No mundo antigo, cabia ao governante provar sua heroicidade de forma a conferir legitimidade a seu governo. Os Deinomenidas e os Batíadas de Cirene, por exemplo, buscaram legitimar suas respectivas dinastias insistindo em “fundações heroicas e no significado cósmico do ato de governar” (MITCHELL, 2011, p.146153). Ou seja, o modelo de fundação das colônias gregas e o culto ao herói fundador constituía uma prática do mundo grego. Nesse sentido, o primeiro ato de legitimação de poder empreendido por Alexandre foi confirmar-se como chefe pelo seu exército. Este, reunido em assembleia, realizou uma cerimônia ligada à tradição relacionada às origens da dinastia macedônia, que desde os tempos arcaicos, heroicizava e mitificava seus antepassados. Claude Mossé (2001, p.84-7) nega a existência de qualquer transgressão das regras políticas ou religiosas nas ações de Alexandre ao subir o trono visto que o empreendimento militar era o elemento chave na ideologia de governo e identidade da polis. Ao examinarmos as campanhas do macedônio, percebemos que o rápido resultado de suas expedições no Leste e seus atos heroicos tiveram grande impacto nas sociedades gregas e orientais. Seus feitos militares e as conquistas territoriais, em pouco mais de uma década, formaram um império de proporções inimaginadas e foram fundamentais para a construção de sua imagem de herói. O início das campanhas de Alexandre ocorreu assim que ele se confirmou como sucessor do pai e continuador do domínio da Grécia. Logo empreendeu guerras simultâneas 64 Clearco (c. 401-353 a.E.C.) foi tirano de Heracleia Pôntica (na costa do mar Negro, na Turquia), uma antiga cidade na Bitínia, então Ásia Menor. 69 nas montanhas da Trácia e no Danúbio, e conseguiu submeter algumas tribos celtas no curso dessa campanha. A habilidade e a coragem prontamente lhe conferiram fama. Ao mesmo tempo, algumas cidades gregas ao sul se agitaram e iniciaram movimentos contra a dominação Macedônica. Tebas liderou a revolta, mas foi rapidamente vencida pelo novo rei que arrasou a cidade, assassinando e reduzindo a escravidão os sobreviventes (Plut. Alex. 11.12), sendo as únicas exceções os templos e da casa do poeta Píndaro.65 Mas, assim como fez seu pai, foi generoso e benevolente com a cidade de Atenas. Pouco depois da vitória sobre a Grécia, Alexandre mobilizou o exército macedônio, bem como os contingentes da Liga Helênica66 e invadiu o Império Persa (mapa 2). Mapa 2. Campanhas de Alexandre o Grande. Fonte: Glenn Bugh, The Cambridge Companion to the Hellenistic World, 2006. p.xxiv Na Ásia Menor libertou Sardes (a velha cidade real da Lídia) e depois Éfeso. Nomeou um macedônio como governador e deu-lhe o título de sátrapa67, proibiu a pilhagem, manteve os impostos e reconstruiu Tróia, demonstrando intenção de governar a região. O encontro entre Alexandre e Dario aconteceu em Isso (333), na costa sudeste da Ásia Menor. Ao 65 "nos é dito que Alexandre preservou a casa de Píndaro, o poeta, e os descendentes de Píndaro" (Arriano, Anabasis I.9.10). 66 A Liga Helênica (união das cidades gregas) - Ao perceberem a ameaça do norte (Macedônia), os atenienses propuseram uma aliança com as outras cidades gregas para combater o rei macedônio, mas já era tarde. A Liga não tinha recursos suficientes e caíram sobre as forças de Filipe na Batalha de Queroneia. O objetivo de Filipe II era conquistar a Grécia e depois o império Persa. 67 Sátrapas - governadores das províncias, chamadas satrapias no antigo império Persa dos aquemênida. Após a conquista, Alexandre manteve basicamente o mesmo sistema administrativo. 70 perceber a derrota, o rei fugiu para além do rio Eufrates. Alexandre apoderou-se da tenda real e dos tesouros deixados para trás, assim como da família do rei. Ao chegar ao Egito, Alexandre foi recebido em Mênfis como libertador e, ao que parece, mudou os rumos das conquistas. Dominar o Egito não constava no programa da Liga de Corinto,68 de forma que ele tomou o “cuidado de não anexá-lo ao império”, respeitando sua autonomia ao evitar nomear um sátrapa (MOSSÉ, 2004, p.30). No antigo império dos faraós, Alexandre celebrou jogos gregos e fez sacrifícios aos deuses egípcios, ao mesmo tempo em que colocou a dupla coroa do Egito e solicitou a investidura divina do oráculo de Amon, que os gregos chamavam Zeus Amon. Após peregrinar no deserto e chegar a Siwah, o sacerdote teria dito que Alexandre era filho de Zeus. Segundo Plutarco,69 o episódio não foi nada mais que um erro de pronúncia do sacerdote egípcio. Verdade ou não, o fato é que, a partir desse momento e no decorrer das conquistas, o herói usará essa prerrogativa de ascendência divina como elemento de legitimação política. Depois de um ano no Egito, Alexandre avançou pela Ásia, atravessou o rio Eufrates e depois o Tigre atrás do rei Dario. Uma a uma, as antigas capitais caíram sob seu poder, e após os babilônios se renderem, Alexandre oferece sacrifício a Marduk e se faz reconhecer “rei das quatro partes do mundo”. Em Susa recuperou um grupo de estátuas roubadas por Xerxes dos atenienses. Em Persépolis, infelizmente, deixou a soldadesca incendiar a bela cidade. Podemos dizer que na realidade o império persa já havia ruído e não deixa de ser simbólico Alexandre encontrar as estátuas dos tiranos Hermódio e Aristogíton, roubadas de Atenas cento e cinquenta anos antes e devolvê-las aos seus donos. Após o assassinato de Dario pelo sátrapa da Bactriana, o vitorioso general concedeu funeral solene ao antigo rei e proclamou-se herdeiro dos aquêmenidas.70 Porém, desejando conquistar a Índia, Alexandre novamente demonstra suas habilidades militares ao vencer a batalha contra Poro, mas perdeu seu cavalo Bucéfalo durante esse combate. Rumando em direção do rio Ganges, o exército fatigado por tão prodigiosa façanha, se recusou a continuar. 68 Liga de Corinto – Após a vitória em Queronéia, Filipe II emergiu como o poder dominante do mundo helênico. Agindo com diplomacia, não humilhou as cidades vencidas. A hegemonia macedônica foi estabelecida sobre a Grécia em uma reunião convocada pelo macedônio (337 a.E.C.), que incluía todos os estados gregos, exceto Esparta. A Liga garantiria a paz geral, a autonomia interna dos Estados, exceto para suprimir revoluções e uma aliança sob o comando de Filipe, que logo declarou guerra contra o Império Persa. 69 And some say that the prophet, wishing to show his friendliness by addressing him with "O paidion," or O my son, in his foreign pronunciation ended the words with "s" instead of "n," and said, "O paidios," and that Alexander was pleased at the slip in pronunciation, and a story became current that the god had addressed him with "O pai Dios," or “O son of Zeus” (Plut. Alex. 27.9) 70 Dinastia aquemênida (c. 550–330 a.E.C.) - primeiro Império Persa, foi um império iraniano fundado no século VI a.C. por Ciro, o Grande e situado no Sudoeste da Ásia. Por volta do século V a.E.C. estendia-se do vale do Indo até a fronteira nordeste da Grécia, posteriormente também controlaria o Egito - o que fez dele o maior império até então. 71 Porém, antes de voltar, o general ergueu na margem ocidental do rio Hífaso doze altares rodeando uma coluna cuja inscrição dizia: “Aqui parou Alexandre” (LÉVÊQUE, 1987, p.13). De volta à Babilônia, sua morte (323) repentina o impediu de prosseguir com seus planos de conquistar Cartago e o Ocidente71 (Plut. Alex. 68 1,2). Vale destacar que em sua empreitada, Alexandre acrescentou às possessões de seu pai (o reino da Macedônia e a Liga Helênica) nada menos do que Império Aquemênida. Podemos dizer que, aliando sua genialidade militar, sua força e heroicidade, Alexandre morreu chefe da liga helênica, “faraó do Egito”, “rei das quatro partes do mundo” na Babilônia, “o Grande rei” após a morte de Dario e “Senhor da Ásia”. Não sem razão Alexandre se tornou modelo de conquistador e herói militar, admirado por generais como Pirro, Pompeu, César e Augusto, e denominado “o Grande” em Roma. Todavia, para além das conquistas territoriais, percebemos mudanças na ideologia de poder relacionadas ao jovem general. Ainda na Ásia, observamos que seu papel foi o de libertador das cidades gregas da tutela persa. Porém, foi em solo egípcio, que identificamos o início da progressiva divinização das ações e da pessoa de Alexandre. No Egito, o herói foi saudado pelo sacerdote de Amon no oásis da Líbia como o filho de um deus e, portanto, ele também um deus. Na visão racionalista e cética de alguns estudiosos, como por exemplo, Arnold Toynbee (1975, p.128-9), esse evento demonstra que a divinização do general macedônio teve apenas finalidade diplomática, pois “um deus oficialmente reconhecido podia ditar leis às criptodivindades, às cidades-estados, sem menosprezar-lhes formalmente a soberania”. Difícil pensar que Alexandre não percebeu as vantagens que tiraria da sua divinização, considerando que o culto ao soberano, ao deus vivo e epifâneo, seria “capaz de fornecer indispensável unidade a um império desmedido, para além da diversidade das terras, dos povos, das religiões” (LÉVÊQUE, 1987, p.15). Todavia, não podemos esquecer que ele era um homem do seu tempo, tinha o exemplo de seu pai e, ao que parece, estava predisposto a pensar-se divino. A afirmação do oráculo de Siwah quanto à ascendência olímpica de Alexandre, após tantos atos de bravura, conquistas, vitórias e façanhas bem sucedidas nos campos de batalha, fazia todo sentido para ele e para seus companheiros de armas, crer em sua heroicidade 71 Segundo Michael Flower (2000, p.132) as fontes são unânimes em dizer que Alexandre pretendia fazer campanha no oeste, mais precisamente com as cidades gregas da Sicília e o sul da Itália de forma a libertá-las do dominio de Cartago. Para A. B. Bosworth (2006, p.11) não há dúvidas que foi creditada a Alexandre um desejo ilimitado para a conquista. Embora Arriano (7. I.3-4) relate que algumas de suas fontes afirmaram a intenção de Alexandre em seguir ao Ocidente, ele mesmo não tinha certeza quanto às intenções de Alexandre. Uma discussão sobre os planos futuros de Alexandre está em A. B. Bosworth 1988. 72 divina. De acordo Bosworth (2006, p.19-20), a rivalidade com Hércules, e mais tarde com Dionísio, encontrada nas evidências arqueológicas, sugerem que o herói se fazia da mesma essência dos seus modelos divinos. Não se pode esquecer que no contexto grego do período arcaico e clássico, como refere Aristóteles,72 a basileia ao contrário da tirania, era baseada no excesso de virtude (arete) do indivíduo, da família, nas ações pessoais ou na soma de todos esses aspectos. Por isso a importância das façanhas militares e das conquistas territoriais para Alexandre, pois a natureza de sua autoridade vinha da ideologia da vitória (MOSSÉ, 2004, p.142). O chefe macedônio buscou, pelo menos perante os gregos, afastar a imagem de tirano. Em Atenas, por exemplo, ele foi deificado como deus invicto (aniketos theos), fato esse que serviu para mostrar que sua legitimidade relacionava-se às divindades e aos heróis do mundo helênico (MITCHELL, 2011, p.148). Contudo, é inegável que a partir do contato com o Oriente, Alexandre reforçou ideia de chefia militar, unindo-a a ideia de realeza. Na Grécia, somente os heróis e os fundadores de cidades recebiam culto. No Oriente, por outro lado, as monarquias teocráticas já existiam há milênios, como por exemplo, no Egito onde o Faraó era um deus em si, ou no caso da Mesopotâmia onde o soberano era o arauto dos deuses. Foi neste cenário complexo que Alexandre encontrou as condições favoráveis para a fundação do culto real, ou seja, um novo culto de adoração a um deus-herói que combinava as características divinas e humanas às qualidades heroicas tendo em vista sua propagada descendência de Hércules e Aquiles e de Zeus-Amon (ao mesmo tempo). Ao impor o culto à sua pessoa, resultado do culto à divindade greco-egípcia, vemos o germe da monarquia helenística, produto da fusão entre a concepção grega que legitimava o poder, e a concepção oriental que legitimava o direito divino (LA VEGA, 1995, p.35). É sabido pela documentação que Alexandre exibia uma afinidade crescente com as instituições, práticas e valores dos vencidos, o que teria irritado alguns de seus oficiais macedônios, mas que não era totalmente fora de sintonia com as atitudes helênicas. Entendemos que ao levar a cultura grega para o leste, o conquistador também absorveu as tradições e as práticas orientais: adotou hábitos persas, respeitou os novos súditos e se casou com uma nobre persa.73 Mais do que a extensão territorial, as conquistas do general possibilitaram o aumento dos contatos entre os povos do Mediterrâneo, criando maior 72 Politica 1288 a 15-19; 28-29. Roxana (c.340-309 a.E.C) –Após vencer o local, o conquistador casa-se com a princesa em uma cerimônia de acordo com os ritos iranianas (327 a.E.C.) e depois de sua morte, ela deu à luz a Alexandre IV. 73 73 familiaridade, mas sem excluir a possibilidade de tensão entre as identidades (GRUEN, 2006, p.297). Certamente Alexandre não foi, efetivamente, o fundador de uma nova era. Mas podemos dizer que, a partir dele e dos eventos posteriores ao fim do seu império, vemos indícios de novos modelos de sociedade política que possibilitaram igualmente novos sistemas imperiais “portadores do germe da futura cosmogonia romana” centrados na concepção de monarquia personalista e individual inserida na ideia de universalismo cosmopolita (LA VEGA, 1995, p.34). Por último, concordamos com Bosworth (2006, p.22-3) que a campanha de Alexandre caracterizou-se pela contínua aquisição de poder militar e recursos da Macedônia, ampliados pelas vastas reservas de ouro do Império Persa. Mas a monarquia alexandrina, baseada na conquista externa e no acúmulo de forças militares, a partir da sua morte, foi dispersa pelas contendas posteriores. Para o autor, na prática, Alexandre teve pouco efeito concreto sobre os regimes que o sucederam, mas continuou a ser um símbolo de invencibilidade e de um Império mundial. No contexto da formação dos reinos helenísticos, conforme veremos a seguir, podemos dizer que as extraordinárias façanhas militares e o seu significado heroico contribuíram para a ideologia legitimadora de poder político que tornaram Alexandre o Grande paradigma de poder autocrático que chegou a Roma. 3.1 Os reinos helenísticos O surgimento dos principais Estados do mundo helênico foi o resultado de uma série complexa de eventos. Porém, a personalidade influente de Alexandre o Grande permaneceu, mesmo após sua morte, deixando marcas em seus sucessores. Uma geração e meia de guerras quase constantes entre os macedônios, os diádocos (Diadokhoi), mostra o contexto em que foram formados os reinos helenísticos. A mistura de várias tradições e a força da personalidade dos sucessores foram elementos integrantes da realeza helenística (ADAMS, 2006, p.28). No processo de conquista, Alexandre não organizou nenhuma nova estrutura de governo imperial, pois sua abordagem tinha sido recompor as instituições persas existentes ao dividir as funções de cada satrapia nas mãos de seus comandantes gregos ou macedônios. Na falta de algum deles, o próprio Alexandre era o encarregado. Porém, o macedônio errou ao 74 não escolher um sucessor, pois com sua morte repentina, o império foi repartido entre os generais mais próximos. Foi deste grupo, e posterior dinastia, que surgiram os três grandes impérios helenísticos (ADAMS, 2006, p.29), isto é, o Império Ptolomaico no Egito, Império Selêucida na Ásia e Império Antígona na Macedônia (mapa 3). Além desses, houve a manutenção e/ ou consolidação de pequenos reinos no Ocidente e no Oriente próximo. Mapa 3. Os reinos helenísticos e as ligas gregas. Fonte: Glenn Bugh, The Cambridge Companion to the Hellenistic World, 2006. p.xxvi Após as guerras de sucessão, houve um razoável equilíbrio de poder entre as três grandes monarquias helenísticas nascentes da reorganização geopolítica do império. Esses monarcas vincularam sua própria dinastia à figura de Alexandre o Grande, que havia se tornado referencial de monarca divino. E nos posteriores processos de sucessão, os reis helenísticos (basileus) passaram a ser legitimados pelo direito dinástico, como fonte de justificação régia, mas também como verdadeiros sucessores do império alexandrino (ADAMS, 2006, p.48-49). A desintegração do império alexandrino e a instauração de “realezas por toda parte” demonstra o estabelecimento da monarquia como instituição. E muitos foram os fatores que contribuíram para essa ideologia política, dentre eles, a filosofia pitagórica e estoica ao desenvolverem a ideia do “homem forte e providencial” na qual o rei significava a lei viva e encarnada (nomos empsychos) justificada pelo caráter divino (LÉVÊQUE, 1987, p.51). Para F. Walbank (1984, p.81-9), outro fator importante era a representação do rei como guerreiro e lembra que foi na sequência das vitórias militares que os diádocos assumiram seus títulos 75 reais. Ainda segundo esse autor, a população era sensível às vitórias, pois acreditavam na vontade dos deuses definindo a monarquia. E o rei, ao ser vitorioso, podia proteger seu povo, ser o salvador (soter) e benfeitor (euergetes). Vemos que os diádocos uniram à ideologia de vitória ao ideário das teocracias orientais onde o soberano era visto como filho das divindades, sendo eles mesmos divinos. Esses elementos nos ajudam a compreender o estabelecimento das monarquias helenísticas. Nesse sentido, Julián Escalona (2011, p.445ss), a partir da ‘Teoria das três funções’ de G. Dumizél,74 observa que o monarca helenístico recebia seu poder (basileia) ao manifestar as funções de guerreiro, governante e sacerdote. Vimos na seção anterior que Alexandre, seguindo a tradição, legitimou seu poder demonstrando suas habilidades militares. Nos reinos helenísticos, o monarca antes de tudo é um militar, mas principalmente, um guerreiro agraciado pela Vitória. Ou seja, o êxito militar revelava a proteção dos deuses, bem como o aspecto divino do monarca. A função de governante, por sua vez, se revela na ideologia de líder e protetor do povo. Um exemplo dessa propaganda pode ser encontrado no Egito ptolomaico que conseguiu unir sua dinastia às tradições egípcias. Mais especificamente, encontramos em uma moeda póstuma de Ptolomeu III, 75 uma iconografia que traz o governante representado com a coroa radiante do deus Hélio e o tridente de Poseidon. Mas é no reverso que a mensagem de protetor/provedor se explicita pela representação da cornucópia, símbolo de fartura. Além dessa mensagem visual, não se pode esquecer o epíteto de Evergeta, ou seja, “o benfeitor” estava associado ao faraó helenístico. A última, e não menos importante função monárquica foi a atribuição sacerdotal dos reis helenísticos. O basileus era o celebrante dos ritos religiosos, e também das cerimônias de caráter ancestral como, por exemplo, a presidência do Areópago. Esses serviços conferiam uma aura de sacralidade, além de acentuar o engrandecimento da linhagem dinástica, vinculando-o à divindade. Isto é, a associação entre a divindade e o humano, fundamental para a ideologia monárquica helenística, fez do rei a personificação das virtudes (do divino) quando este se colocou como defensor da humanidade, garantindo assim sua glória. O basileus, como espelho da divindade, buscava exibir as qualidades essências que o rei deveria reunir tais como a clemência (epieikeia), a justiça (diakaiosyne) e a beneficência (eunonia) (LA VEGA, 74 Dumezil, (1969, p.195) “a soberania mágica e jurídica, vigor guerreiro, e em quanto ao terceiro mais complexo, ainda adverte o fator comum as suas manifestações: saúde e alimentação, abundância de homens e de bens, vinculação ao solo e também paz, aspiração ao doce e tranquilo de uma idade do ouro.” 75 Ref. Catalogue of Coins of the British Museum: CM BMC 103. 76 1995, p.41). Para Ettore Quaranta, seguindo ou não o pensamento estoico da virtude, “a maioria dos monarcas dedicou-se à philanthropia, pelo menos no que se refere à ajuda às cidades gregas” (2005, p.191). Nesse ponto, vale ressaltar que a filosofia contribuiu para a realidade imperial, na medida em que a necessidade de legitimação do poder monárquico, primeiro por Alexandre e mais tarde por seus sucessores, deu origem a uma literatura sobre a realeza ideal tendendo a deificação dos reis. Tanto o epicurismo como o estoicismo, preocupados com a ética, o autocontrole e a eliminação das paixões serviram ao ideal do sábio, e depois no ideal do rei justo. No Império romano, encontramos exemplos de conselheiros que combinavam os papeis de mentores da moral e da filosofia junto aos imperadores. Nesse sentido, o estoicismo estruturou a ética que serviu como diretriz para as ações políticas, bem como a base para “reprovação moral de um imperador específico ou de suas ações” (GILL, 2006, p.36-7). Nos séculos II e I, essas correntes filosóficas tornaram-se elemento importante para a constituição ideológica do imperialismo de Roma. Para J. Davidson (2002, p.202), os romanos, atraídos pela gravitas e pela autorictas, fizeram com que pensadores se dispusessem a “temperar e adaptar seus ensinos éticos e políticos às pautas e postulados dos estadistas e soldados romanos”. Em outras palavras, a ideia de cosmopolis passou ao Estado concreto e o “modelo de excelência moral não corresponderia mais ao ideal contemplativo”, e sim ao estadista romano capaz de se distinguir ao servir sua comunidade.76 Podemos ver que os romanos se apropriaram de aspectos do patrimônio cultural, bem como da realeza helenística (ADAMS, 2006, p.28). Podemos dizer que o culto aos monarcas helenísticos também se estabeleceu como parte das homenagens excepcionais que se concediam em agradecimento aos benefícios políticos que estes proporcionavam à cidade, mas não só. Para Maria H. de La Vega (1995, p.33-4), “estas honras e cultos aos reis eram uma expressão das complexas relações existentes entre os reis e as cidades que tinham como base fundamental a evergesiai”. Para a autora, o culto ao monarca helenístico teve como modelo o culto divino, e sua organização foi seguida pelas várias cidades, e é interessante notar que acabou sendo completamente integrado à vida religiosa e cívica das comunidades. As cidades, então, tornaram-se palco da propaganda dos reis e a fundação e urbanização das cidades helenísticas estava estreitamente relacionada à publicização do poder do soberano. A edificação de monumentos e prédios públicos como teatros e ginásios 76 Para filosofia no período helenístico ver Sharples (2006). Estudos sobre filosofia estoica e epicurista ver: Hankinson e Inwood (2006). Para Roma ver Novak (1999). 77 serviram para a educação dos jovens, além de tornarem-se centros difusores da cultura helênica atraindo não só indivíduos das elites locais, bem como de outras regiões do mundo grego (QUARANTA, 2005, p.192). 3.2 Alexandre e a estética do poder A fim de analisarmos como a arte serviu ao processo de legitimação do poder, observamos que para além dos feitos militares, no plano ideológico, importava também a Alexandre os elementos iconográficos e simbólicos ligados à legitimação do seu poder monárquico. Interessa-nos o significado político e o modo como Alexandre publicizava seu poder e legitimidade através da linguagem das imagens. Em relação à arte helenística, Ernest Gombrich (1981, p.74) diz que esta se caracteriza pela harmonia entre as formas da arte grega clássica e a necessidade de expressão de sentimentos, muitas vezes dramáticos e impactantes. Para o autor, “a arte helenística adorava obras tumultuosas e veementes, desejava ser impressionante”, isto por que o estilo rebuscado expressava os níveis de complexidade social daquelas sociedades. A profusão de ornamentos e detalhes na arquitetura combinavam com as recém-fundadas cidades como Antioquia e Pérgamo, por exemplo. Jerome J. Pollitt (1986), afirma que o interesse e a importância dada ao estudo da arte deste período na atualidade estão relacionados ao contexto de criação desses objetos. Para o historiador, a arte helenística foi produzida por diferentes povos, ao mesmo tempo em que circulava pelas diferentes regiões do império. De forma que a conjuntura de produção da arte helenística se assemelha ao contexto moderno onde se produz e consome arte (e imagens) de regiões e povos distintos. Beard e Henderson (2001, p.5), por sua vez, afirmam que o mundo incorporado por Roma (as cidades e reinos helenísticos), era “uma fervente multicultura mundial”. Para os autores, “o helenismo estava em todo lugar, e não menos na Grécia, mas em todo Mediterrâneo”, e o que chamamos de arte grega foi mediada pelo pensamento romano. Já para Andrew Stewart (2006, p.158), a arte grega mudou profundamente sob Alexandre. A partir da análise da escultura, pintura, arquitetura e urbanismo, o autor acredita que a cominação de um jovem rei, audacioso e sugestivo, aliado a um conjunto de artistas extremamente talentosos contribuiu para que a arte grega não fosse apenas reproduzida ou 78 repudiada, mas que o “ideal helenístico, na arte e nas letras, foi envolver o passado de forma criativa.”77 Ao examinarmos os bustos, estátuas, moedas e mesmo as cerimônias religiosas, referentes ao herói, encontramos: o uso da tiara ou diadema (a fita com nó na nuca) adotado por ele após a morte de Dario; a estátua equestre e do esquema do cavaleiro sobre cavalo, atributos de autoridade e poder, além da representação com os cornos de carneiro para mostrar sua relação com Zeus Amon. Podemos dizer que Alexandre utilizou os signa e esquemas iconográficos existentes na cultura mediterrânea, do Egeu e Oriente próximo, principalmente os ligados a simbologia representativa da sua heroicidade, ascendência divina e deificação pessoal. No entanto, essa iconografia foi progressivamente reinterpretada e modificada. Nesse sentido, podemos identificar as mudanças iconográficas que Alexandre introduziu na cunhagem, e que aos poucos, se tornaram muito comuns no mundo antigo. Inicialmente, o herói usou um modelo iconográfico que não era novo na Macedônia, pois desde que a casa real alegou descendência de Hércules, vários reis já haviam usado a imagem do semideus em suas cunhagens, inclusive Felipe II utilizou no anverso de uma moeda a cabeça de Hércules usando a pele do leão de Nemeia (moeda 2). Moeda 2. Tetradracma (c. 355-348). Anv. Hércules usando a pele do leão de Nemeia. Rev. Felipe II a cavalo, levantando a mão e cavalgando para a esquerda.78 A inovação de Alexandre foi trazer um novo significado à imagem de Hércules junto à imagem de Zeus. Pollitt (1986, p.25ss) propôs analisar esse desenvolvimento a partir de duas fases. A primeira seria a fase mais tradicional desse modelo imagético, e o simbolismo está na imagem de Hércules como um protótipo de Alexandre, ou seja, “um herói conquistador e ancestral cujos atos de bravura subjugaram as forças bárbaras e trouxeram glória para a cultura grega da qual o próprio Alexandre era uma espécie de encarnação”. Zeus, 77 Para Stewart (2006), a arte helenística apresenta uma série de inovações iniciadas com o reinado de Alexandre. A partir da escultura, pintura, arquitetura e urbanismo, e também das inovações temáticas e mesmo comportamentais, tais como as coleções, por exemplo, o autor discute as inovações do período helenístico. 78 Tetradracma de prata de Felipe II; Localização: Anfípolis; Inscrição: ΦΙΛΙΠΠΟΥ; Indicação: Le Rider 110 (D51/R93); Imagem: Classical Numismatic Group http://www.cngcoins.com/Coin.aspx?CoinID=84023 79 por sua vez, representa não somente o ancestral dos reis macedônios, mas também o árbitro e juiz das conquistas heroicas. Isto é, a iconografia significa que Alexandre, organizou os gregos e macedônios numa força pan-helênica contra o Império persa como um dos doze trabalhos de Hércules. A propaganda dessa nova ideia pode ser observada nas moedas cunhadas em Alexandria em c. 325 (moeda 3). De acordo com T. Hölscher (1971, apud FLORENZANO, 1989, p.27), as fisionomias de Alexandre e Héracles foram manipuladas nas esculturas e nas moedas conscientemente para tornarem-se semelhantes. Moeda 3. Alexandre o Grande. Mênfis - Egito (c. 332-323). Anv. Cabeça de Hércules usando a pele do leão de Nemeia (talvez o retrato de Alexandre)79 Moeda 4. Tetradracma de Lisímaco (c. 305-281). Alexandre, o Grande com tiara no cabelo que segura os chifres, símbolo de Zeus-Amon. Imagem destina-se a mitificar e deificar o herói macedônio.80 A segunda fase iconográfica das moedas de Alexandre acontece após a conquista do Egito e a visita dele ao oráculo em Siwah de onde saiu como o próprio filho do deus Amon. Nesta etapa, a simbologia sugere que Alexandre não seria mais o descendente de Hércules, mas sim o filho vivo de Zeus cujas façanhas heroicas, como as do próprio Hércules, fizeram dele um deus, indicada pelos chifres de carneiro, símbolo de Zeus-Amon (moeda 4). 79 Tetradracma de prata de Alexandre; Local: Menfis, Egito; Rev.: Zeus Aetophoros sentado em um banco (diphros) à esquerda, segurando a águia e cetro, com um vaso a seus pés. Inscrição: AΛEΞAN∆POY; Ind.: M. J. Price, nº.3971; Imagem: Berlim, State Coin Collection -http://ww2.smb.museum/ikmk/object.php?id=18202968. Acesso em: dez 2013. 80 Tetradracma de prata de Lisímaco, rei da Trácia; Local: oficina de Lampsaco; Anv.: A tiara com o chifre de Amon que segura o cabelo destina-se a mitificar e deificar a imagem; Rev.: Atena Nikephoros sentada à esquerda, segurando Nike na mão direita estendida, cotovelo esquerdo descansando sobre escudo, lança para trás; herma a esquerda exterior; Insc: ΒΑΣΙΛΣΩΣ – ΛΥΣΙΜΑΧΟΥ; Ind.: Price nº. 3971, Thompson 59; Imagem: British Museum http://ww2.smb.museum/ikmk/object.php?id=18202968 Acesso em: dez 2013. 80 A partir desses modelos iconográficos, podemos ver uma importante mudança no sentido simbólico das imagens de Alexandre que são importantes ao nosso entendimento do processo de construção do poder monárquico. De acordo com Pollitt (1986, p.26), o melhor dessas moedas está na sutil transformação da cabeça de Hércules tornar-se o retrato de Alexandre, e podemos constatar essa significativa mudança quando comparamos a efígie das moedas alexandrinas com os diversos retratos esculpidos nas quais podemos identificar a testa saliente, a boca estreita e o pousar de lábios que de alguma forma se remetem a serenidade e a beleza do sorriso arcaico das estátuas dos kouroi (rapaz) ligado à ideia da arete (virtude) grega. Em relação ao retrato de Alexandre, uma importante descoberta arqueológica ocorrida em 1978 trouxe mais evidências aos pesquisadores. O arqueólogo grego Manolis Andronikos afirmou ter descoberto o local de sepultamento dos reis macedônios na pequena cidade de Vergina, no norte da Grécia, antiga capital macedonia de Aigai (Αἰγαί). Segundo o arqueólogo, mesmo com a transferência da capital para Pella sob o reinado de Arquelao (413399), o costume de sepultar os reis na antiga capital permaneceu. A tumba encontrada estava praticamente intacta e os astefatos indicavam ser o local de sepultamento de Felipe II, pai de Alexandre o Grande. Estudos feitos em 2010 confirmaram que o crânio masculino encontrado apresenta um traumatismo consistente com as informações de que Felipe II sofreu uma lesão facial ainda em vida. Na tumba foi encontrado um conjunto escultórico que compõe uma cena de caça e supõe-se representarem o rei e seu filho. Segundo Nigel Spivey (2005), das esculturas encontradas pelos arqueólogos, uma pequena cabeça sugere ser um retrato de Alexandre III, pois apresenta semelhança fisionômica com as imagens encontradas em diversas representações de Alexandre o Grande (fig. 1a-b). Fig. 1a: Possível retrato Alexandre Fig. 1b: Possível retrato Alexandre (perfil) Escultura proveniente da tumba Felipe II em Vergina - Museu de Macedônia. Imagem: N. Spivey, 2005. 81 Sabemos que Alexandre fez de Lisipo81 o escultor da corte e decretou, de acordo com Plutarco, que nenhum outro artista seria autorizado a fazer sua imagem. Seus bronzes criaram um novo cânone escultórico ao mostrar um herói quase homérico, “arrojado e jovial, pronto a fazer um mundo novo” (STEWART, 2006, p.159). Esses retratos, portanto, tornaram-se a imagem oficial de Alexandre, a imagem que ele gostaria que seus súditos guardassem na memória (POLLIT, 1986, p.20). Plutarco também revela que essas imagens conseguiram expressar não só a arete de Alexandre, mas também seu ethos e seu caráter pessoal, a imagem de alguém cujo papel era governar e cuja natureza o fez apto para tal, como podemos ver nas duas passagens a seguir: As estátuas na qual melhor transmite a aparência de Alexandre são as de Lisipo, que era o único por quem ele queria ser retratado. Pois foi este artista que capturou exatamente essas características distintivas, ou seja, a postura do pescoço ligeiramente virados para a esquerda e aquela flexibilidade dos olhos que tentaram imitar muitos dos sucessores e amigos (Plut., Alex., 4.1) E quando Lisipo modelou sua primeira estátua de Alexandre, que representou o olhar com o rosto voltado para os céus (como, aliás, muitas vezes, Alexandre fez olhar, com uma ligeira inclinação da cabeça para um lado), alguém gravou esses versos na estátua, não sem alguma plausibilidade, “A estátua de bronze parece proclamar, olhando para Zeus: Eu coloco a terra sob o meu domínio, você, Ó Zeus, se mantenha no Olimpo.” Por esta razão, Alexandre decretou que somente Lisipo deveria fazer seus retratos. Apenas Lisipo, ao que parece, trouxe seu verdadeiro carater ao bronze e deu forma à sua essencial excelência. Outros, na ânsia de imitar a inclinação do seu pescoço e a expressiva flexibilidade do olhar, não conseguiram preservar a sua viril e leonina qualidade. (Plut., Moralia, De Alexandri Magni Fortuna aut Virtute 2.2.3) É significativo que o modelo escultórico criado por Lisipo buscou representar Alexandre similar ao leão, ligando a força do animal à bravura do herói, tipologia de representação que já existia na arte grega do século IV. Contudo, a inovação foi que além da cabeleira leonina com madeixas caindo sobre a testa, o modelo lisipiano aliou a inclinação da 81 Lisipo (c. 390 a.E.C) - natural de Sicíon no Peloponeso, autodidata na arte da escultura, fez grandes inovações estéticas no século IV ao modificar as proporções do corpo humano estabelecidas por Policleto. Fazendo a cabeça menor (um oitavo do corpo), tornou as estátuas mais esbeltas, assim como as atitudes mais naturalistas. Lisipo foi provavelmente o artista mais criativo e influente de todo o período helenístico. Durante os primeiros 75 anos do período, ele e seus alunos, criaram uma nova tipologia de monumentos e concebeu inovações estilísticas que seriam utilizadas na arte helenista por séculos. Famoso, tornou-se o escultor preferido da corte de Alexandre o Grande (POLLITT, 1986, p.47). 82 cabeça ao olhar levantado (anastole).82 Segundo E. Quaranta (2012, p.3), o “olhar levantado pode ser em direção a Zeus, pai de Alexandre”. Esse modelo representacional influenciou a arte helenística, principalmente nas estátuas heroicas, assim como se tornou parte do padrão iconográfico dos reis helenísticos, sendo usado durante séculos por “homens menores que gostavam de se colocar como dignos sucessores de Alexandre” (POLLITT, 1986, p.20). Infelizmente, o retrato original de Alexandre feito em bronze por Lisipo não sobreviveu até nós. Porém, não é difícil identificar em várias representações do general macedônio as características descritas por Plutarco, ou seja, o cabelo, a inclinação do pescoço e o olhar erguido. Mas qual deles seria o mais próximo do original? O célebre busto proveniente da cidade de Pérgamo, datado de cerca de 180, segundo Pollitt (1986, p.20) transmite a força dramática dos retratos de Lisipo, mas a face saliente, as linhas de expressão, olhos arredondados e o cabelo de caprichosos caracóis pertencem claramente ao estilo daquela cidade (fig. 2). Fig. 2: Cabeça de Alexandre o Grande. Origem: Pérgamo de c. 200. Museu Arqueológico de Istambul. fonte: J. Pollit, 1996, p.20. Por sua vez, o monumento que apresenta uma imagem possivelmente feita em vida é a chamada “herma de Azara” (fig. 3). Esse retrato é considerado a melhor réplica romana do original de Lisipo que sobreviveu e apresenta a inscrição: ‘Alexandre, Filho de Felipe’. E mesmo que não houvesse a inscrição, o retrato apresenta as distintivas características citadas por Plutarco, tais como a forma como o cabelo se eleva acima da testa, pois a anastole do cabelo foi o traço marcante das representações de Alexandre (POLLITT, 1986, p.21). 82 Essas conclusões advêm em parte das discussões sobre o tema do retrato com o grupo de pesquisa, especialmente com a pesquisadora Andreia Tamanini. 83 Ainda segundo Pollitt (1986, p.22) há uma impressionante similaridade entre a herma de Azara e uma pequena estátua em bronze (fig. 4a-b) que também se encontra no Louvre. A semelhança sugere que ambas, a herma e a estatueta, foram feitas a partir do mesmo original, fato que ajuda a avaliar “o efeito da composição envolvida no retrato de Lisipo”. Fig. 3: Cabeça de Alexandre o Grande - “herma de Azara”. Cópia romana de original final do séc. IV Museu do Louvre – fonte: J. Pollit, 1996, p.21. Fig. 4a: Estatueta de Alexandre com uma lança83 Fig. 4b: Estatueta de Alexandre (detalhe) Contudo, um busto menos conhecido, descoberto em Yannitsa, cidade próxima a capital macedônia de Pella, seria provavelmente a obra que mais se assemelha ao original de Lisipo (fig. 5). A longa cabeleira que tipifica esta cabeça é característica das imagens do herói e expressa o espírito da "lenda de Alexandre". Pollit (1986, p.21) acredita ser este o protótipo de Lisipo para a imagem oficial do rei devido a sua relativa sobriedade e pelo modo como o 83 Bronze baseado talvez em uma estátua de Lisipo de c. 330-325 a.E.C. – Museu do Louvre - A estatueta representa Alexandre como um conquistador, com lança em sua mão esquerda, enquanto a direita segura uma espada e veste um toucado. Imagem: http://www.louvre.fr/en/oeuvre-notices/alexander-spear. Acesso em: jan 2014. 84 tratamento geral dos olhos e dos cabelos foram feitos. Para o autor, esta obra aproxima o busto do estilo grego do final do quarto e início do terceiro século. Fig. 5: Cabeça de Alexandre o Grande - Mármore. Museu Arqueológico de Pella O retrato pode ser datado do tempo de Filipe V ou Perseus (c. 200-150). fonte: J. Pollit, 1996, p.21. As escolhas estilísticas de Lisipo refletem o desejo e a necessidade de Alexandre ter uma imagem oficial. Inicialmente o escultor foi um artista tradicional, mas com espírito inovador e atendendo a necessidade de seu patrono, “se preocupou particularmente com a aparência e o efeito que sua obra teria sobre os espectadores”. O artista parece “ter sido dotado de uma sutil e sofisticada (...) ‘mentalidade teatral’ no sentido de que muitas de suas obras foram projetadas para surpreender e emocionar àqueles que as viram” (POLLITT, 1986, p.48). No entanto, a nós, não importa saber se Alexandre tinha realmente essas características fisionômicas ou não. A questão central aqui é perceber que através das imagens, carregadas de estratégias iconográficas e ideológicas, tornaram-se um discurso visual que serviu ao processo de legitimação de poder. Sua imagem oficial, o retrato, parece ter sido importante para ele promover-se e afirmar seu domínio nas áreas que conquistava. Cabe ressaltar que Alexandre criou um estilo, ou mesmo uma marca visual que se tornou a sua própria imagem, ao usar sua face para se tornar reconhecível em todo lugar. Ele inventou o que podemos chamar de retrato político e uma estratégia inédita até aquele momento (SPIVEY, 2005), e que se revelou eficaz. Nessa direção, observamos que rapidamente os diádocos buscaram estabelecer suas monarquias e garantir também sua legitimidade entre as populações locais que viviam em suas fronteiras. Da mesma forma, coube também aos sucessores estabelecidos nas cidades gregas instituir e legitimar o regime político de conformação pessoal das monarquias helenísticas, conforme já mencionamos. 85 Nesse sentido, encontramos na iconografia dos reis helenísticos, mais particularmente nos reinos da Macedônia, selêucida, lágida e do Ponto, referências às imagens e símbolos de Alexandre, assim como seu retrato, deixando entrever aspectos da estratégia ideológica de legitimação política na arte propagada pelos seus sucessores. Mais especificamente, as moedas do mundo helenístico oferecem ao pesquisador uma documentação preciosa, pois permitem avaliar diferentes estratégias iconográficas.84 Podemos observar, por exemplo, a estratégia de legitimação de poder sucessório empreendido por Antíoco I descendente de Selêuco I, fundador da dinastia selêucida no território da antiga Babilônia. Com o objetivo de se afirmar como legítimo sucessor, o novo rei veiculou a imagem de seu pai (moeda 5) como seu ancestral e fundador da dinastia, e para tal, enfatizou a data de retorno do diádoco à Babilônia como o marco inicial da dinastia (c. 300). Logo em seguida, Antíoco (moeda 6) buscou assegurar seu próprio papel como soberano e legitimar seu poder inserindo sua própria imagem no anverso das moedas (ERICKSON, 2010, p.92-94). Moeda 5. Tetradracma de prata de Antíoco I (c. 280 a.E.C) Anv: Hércules usando a pele do leão. Rev: Zeus Aetophoros sentado em um banco (diphros) à esquerda, segurando a águia e cetro, com um vaso a seus pés.85 Moeda 6. Tetradracma de Antíoco I (c. 270 a.E.C) Anv: Antíoco I com tiara virado à direita, rejuvenescido e idealizado. Rev: Apolo sentado à esquerda sobre ônfalo86 84 Devido aos limites deste trabalho, nos ateremos somente ao exemplo de Selêuco e Antíoco I, não sendo possível avaliarmos os vários exemplos de apropriação efetuados pelos diádocos e seus descendentes. Cf. DODD, 2009; MEADOWS, 2009; ERICKSON, 2010. 85 Emissor: Antíoco I; tipo: Tetradracma – prata; Ind.: Houghton and Lorber 2002: nº 36; Imagem: Erickson, 2010, p.256. 86 Emissor: Antíoco I; tipo: Tetradracma; Insc.: ΒΑΣΙΛΕΩΣ ΑΝΤΙΟΧΟΥ; Rev. Rev: Apolo sentado à esquerda sobre ônfalo examinando seta na mão direita e na mão esquerda descansando sobre arco aterrado, ATP em exergo ΘΕ monograma Ind.: Houghton and Lorber 2002: nº 311.2; Imagem: Erickson, 2010, p.263. 86 As imagens mostram que os reis da dinastia selêucida se apropriaram do esquema representativo inaugurado por Alexandre, e posteriormente reformulado para atender às necessidades de seu contexto político. Selêuco I, por exemplo, utilizou os signa utilizados nas primeiras moedas de Alexandre reafirmando sua ligação com o mesmo. Por sua vez, Antíoco I, no objetivo de confirmar a si mesmo como legítimo governante, utilizou em sua representação a tiara dos reis persas que Alexandre adotou após derrotar Dario. Além da apropriação dos modelos iconográficos das moedas, muitos são os exemplos de apropriação e ressignificação encontrados nos discursos visuais dos reis helenísticos ao longo dos séculos. Porém chamamos a atenção para o exemplo de Mitridates VI do Ponto, cuja liderança militar causou nada menos do que três guerras, e envolveu dois dos grandes generais romanos, Sila e Pompeu, como vimos no capítulo anterior. O rei do Ponto, cuja dinastia, em suas origens, não era grega, visto que remontava a um príncipe de Cios no Mar Negro, tinha se helenizado de tal maneira que Eupátor podia ser considerado o último dos grandes monarcas helenísticos (LÉVÊQUE, 1987, p.45). Alegando uma suposta dupla ascendência, Mitridates se ligava de um lado, a Ciro e Dario e por outro lado descendente de Alexandre e Selêuco I Nicator. Na escultura em questão, Mitridates é representado em um estilo puramente grego e de forma análoga aos retratos de Alexandre (fig. 6). O soberano foi concebido vestindo a pele do leão de Nemeia e somente pelas longas costeletas e o perfil geral identifica o rei do Ponto, caso contrário, poderia ser tomado como um dos muitos retratos póstumos de Alexandre. Mitridates é apresentado, nesse retrato, de forma perfeitamente idealizada, como se ele fosse o novo Alexandre-Hércules (SMITH, R. 1981, p.35). Fig. 6: Mitridates VI – Mármore do primeiro quarto do séc. I. Museu do Louvre Fonte: J. Pollitt, p.3687 87 Imagem: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Mithridates_VI_Louvre_white_background.jpg.Acesso em:jan 2014. 87 Diante de tais evidências, podemos dizer que a realeza e autoridade de Alexandre, no decorrer do processo de conquista territorial, desligou-se do comando militar e passou à sua pessoa. Esse novo modelo de monarquia, que já não era grega e nem apenas oriental, uniu os valores das monarquias macedônia e persa. Da união destas, resultou o modelo de monarquia helenística, pessoal e hereditária, fundada inicialmente sobre o direito de conquista e posteriormente sobre o direito divino e pessoal. Alexandre criou uma identificação pessoal, uma imagem que foi o seu retrato. A partir de sua fisionomia, elabororou uma estratégia iconográfica utilizando os signa e esquemas imagéticos conhecidos das populações do antigo Império Persa e Egípcio de modo a afirmar e publicizar sua divinização e heroicidade. É possível sugerir que a linguagem visual contribuiu para o discurso de dominação, para legitimar e sustentar o poder monárquico de Alexandre entre as populações conquistadas, assim como para a própria população grega. Nesse sentido, a imagem criada por Lisipo para o jovem rei, revela a força do discurso visual a serviço da ideologia do poder autocrático do conquistador macedônio, permanecendo no imaginário social ainda por muito tempo após sua morte. Mais que isso, as conquistas de Alexandre o Grande “deram forma ao cenário mundial não só para os reis e príncipes que disputaram seus territorios depois de sua morte, mas para os romanos também” (BEARD e HENDERSON, 2001, p.18). O mito de Alexandre e a prática dos reis helenísticos, através da experiência visual, evidenciaram aos imperatores aspectos de legitimação de poder autocrático tais como: heroicização, ascendência divina e divinização pessoal. Na cultura romana, esses vetores ideológicos legitimadores de poder foram expresso pela ideologia da vitória e glória militar, mitificação familiar e pelo favorecimento dos deuses. Podemos dizer que as experiências helenísticas contribuiram ao processo de construção do poder pessoal militar em Roma e estão relacionadas ao paradigma ideológico de Alexandre por este apresentar-se como o conquistador do mundo, paradigma de glória militar, para Sila, Pompeu e César, “assim como o modelo para sucessivos imperadores romanos” (BEARD e HENDERSON, 2001, p.17). A título de conclusão desta seção, podemos dizer que as evidências deste estudo sugerem a pertinência da nossa segunda hipótese de trabalho ao verificarmos que o herói macedônio foi o paradigma de chefe e herói militar no mundo helenístico e romano, mas não só. O paradigma de poder autocrático de Alexandre o Grande foi construído por meio de experiências visuais e de práticas iconográficas que buscaram estabelecer a representação do soberano contribuindo para o discurso imagético dos generais romanos também como um 88 paradigma estético de poder pessoal militar corroborando nossa teoria de que as formas e práticas são eficazes instrumentos para reforçar pessoas, ou grupos, em suas posições de poder (THOMPSON, 2002, p.78). 3.3 Alexandre o Grande: uma criação romana? A imagem de Alexandre perpassou vários séculos, mas na Roma do século I, o mito aparece como “sinônimo de poder” seja para se comunicar com as elites políticas, seja para se comunicar com as novas populações que compunham o império. Todavia, essa imagem sofrerá mudanças significativas no decorrer dos períodos históricos. Parte da historiografia acredita que o “mito de Alexandre” se iniciou com o próprio, a fim de atingir seus objetivos ao se apoiar na ascendência de Júpiter-Zeus, ou ainda quando adotou os trajes da realeza persa como uma forma de comunicação com as populações locais.88 Outra corrente historiográfica encontra indícios para afirmar que a criação se deu após a morte do conquistador macedônio.89 Não é possível dentro dos limites deste trabalho, comentar todo o processo de construção do imaginário alexandrino. Mas podemos dizer que o mito entrou em Roma através dos escritos de Ptolomeu, Aristóbulo e Clitarco repletos de uma visão positiva, pois apresentam Alexandre como um “soberano corajoso, generoso e, sobretudo, ‘universal’, uma vez que foi o primeiro a conseguir agregar sob uma mesma égide diferentes povos e nações”. Na literatura latina, Plauto90 foi o primeiro a mencionar Alexandre como símbolo da glória militar. Ou seja, nesse período, podemos dizer que Roma absorveu o mito do macedônio (com ressalvas à realeza) pelo viés heroico-militar, como um modelo de herói patriótico “especialmente depois das vitórias alcançadas na luta contra Cartago” (VIZENTIM, 2007, p.2). Porém, Cícero foi o primeiro a expressar a ideia de que Alexandre não era bom exemplo de governante. Apresentando uma dúbia avaliação, Cícero ora admirava a genialidade militar, ora reprovava “os valores morais do general macedônio” (VIZENTIM, 88 Cf. Erkinger Schwarzenberg, “The Portraiture of Alexander”, In: Alexandre le Grand. Image et Réalité (1975) e Paul Goukowsky, Essai sur les origines du mythe d’Alexandre, (1978 e 1981). 89 Cf. Margaret Bierber, Alexander the Great in Greek and Roman Art (1974) e François de Polignac “From the Mediterranean to Universality? The Mythe of Alexander, Yesterday and Today” (1999). 90 Tito Macio Plauto (c. 230-180 a.E.C.) dramaturgo romano que viveu durante o período republicano. As 21 peças preservadas até os dias atuais datam do período entre os anos de c. 205 e 184 a.E.C. Suas comédias estão entre as obras mais antigas em latim conservadas até os dias de hoje. De acordo com Marilena Vizentim (2007, p.2), a menção de Plauto a Alexandre está na peça Mostellaria ou “A casa assombrada” (vv.775-777) de c.197 a.E.C. 89 2007, p.6). No entanto, cabe lembrar que no caso do orador, a crítica se destinava na realidade a César, isto porque o conquistador da Gália não escondia sua admiração pelo herói grego (Suet. Caes, 7,1 e Plut. Caes. 11,5-6), o que para Cícero era evidência dos projetos de realeza de César. Ao criticar Alexandre o Grande, Cícero censurava a César e a instauração de uma monarquia. Uma obra do século I d.E.C que vale ser lembrada é História de Alexandre, o Grande de Quinto Cúrcio. O autor teria escolhido o general macedônio como “objeto de seu estudo em função de sua grande popularidade no mundo romano de fins da república”, visto que nessa época, a personagem teria tido influência decisiva para Pompeu, César, Marco Antônio e Otávio Augusto. Marilena Vizentim (2009, p.163) sugere que a obra de Cúrsio foi “um dos exempla sobre os quais refletiu toda uma tradição de moralistas, de teóricos políticos e de filósofos da história”. Segundo a autora, escritores como Cícero, Tito Lívio e Lucano, ao se referirem a Alexandre, na realidade buscavam denegrir as citadas personalidades políticas. De forma que Alexandre, “teria se convertido em exemplo e protótipo para a referência de acontecimentos e personagens da própria história de Roma” (PEJENAUTE RUBIO, 1986, p.46 apud VIZENTIM, 2009, p.163). Nesse sentido, M. Beard (2013, p.51-2) propõe que os escritores romanos não se limitaram a tomá-lo apenas como modelo, mas que “eles mais ou menos inventaram o ‘Alexandre’ que conhecemos”. É certo que os romanos não criaram a história, até porque eles dependiam dos escritos provenientes do período de Alexandre, porém é certo que nenhum dos contemporâneos ou sucessores imediatos se refereriram a ele com o epíteto de ‘Alexandre, Megas’. Nesse sentido, ‘Alexandre o Grande’ é muito mais uma criação romana do que grega. Parte dos autores que escreveram sobre Alexandre Magno, o fez no século I d.E.C, inclusive Suetônio e Plutarco que compõem nossa documentação. Esses escritores, segundo a autora, estavam “destinados a ver a história através do filtro romano, interpretar e ajustar o que eles liam, a versão das conquistas, a luz da expansão imperialista característica do seu próprio tempo político”. Um indício da dualidade do mito alexandrino em Roma, a nosso ver, encontrava-se nas ruínas de uma imponente casa da cidade de Pompeia, e onde foi descoberto de um mosaico que ocupava um lugar de destaque na residência. O tema da imagem mostra a épica batalha entre Alexandre o Grande e Dario III na cidade de Isso. O mosaico, que seria uma derivação de uma pintura original grega, representa o herói macedônio no momento de tensão, no corpo a corpo com o inimigo, no instante do choque entre duas ideologias: a civilização e a barbárie (SPIVEY, 2005). O mosaico de Alexandre, como é conhecido (fig. 7a-b), representa 90 a fundação do império, “como se nós víssemos, o momento de inauguração da era helenística” (BEARD, HENDERSON, 2001, p.13ss). Fig. 7a: Alexandre em seu cavalo Bucéfalo (detalhe) Fig. 7b: o Rei Dario III (detalhe) Mosaico de Alexandre, originalmente da Casa do Fauno em Pompeia c. 100. (detalhe) Retrata a batalha de Isso. Museu Nacional Arqueológico de Nápoles. fonte: M. Beard, 2001, p.14-15 A obra é a representação de um tour de force, cheio de tensão e dramaticidade, característica da temática e da arte helenística, “desejosa de impressionar” (GOMBRICH, 1981, p.74). Entretanto, a imagem romana apresenta certa ambiguidade, pois ao mesmo tempo em que apresenta o herói em seu momento de vitória, a cena exibe a expressão de Dario, que se eleva acima da batalha, com braço estendido na direção de Alexandre, atraindo a atenção para sua figura de forma a capturar a simpatia do espectador (BEARD, 2013, p.45). Nosso entendimento é que essa ambivalência expressa visualmente as transformações e dicotomias que a figura do herói apresenta quando analisamos a documentação textual. Entretando, o mais importante é constatar que Alexandre o Grande foi uma figura crucial na cultura romana ainda no século I d.E.C. e posteriormente (POLLITT, 1986, p.3; BEARD, HENDERSON, 2001, p.17-8). 3.4 A arte helenística e as contribuições à linguagem visual de Roma Arnaldo Momigliano afirma que um dos quatro fatores da vitória do imperialismo romano foi “a cooperação de intelectuais gregos com políticos e escritores italianos na criação de uma nova cultura bilíngue que deu sentido à vida sob o domínio romano” (1975, p.9). Paul Veyne, por sua vez, trata do Império de Roma como um império greco-romano argumentando 91 que o idioma oficial da metade ocidental era o latim enquanto que no Oriente próximo era o grego. E não só, para ele, os romanos também helenizaram o Ocidente quando levaram à Gália monumentos em estilo grego e helenístico, além de escolas filosóficas e de retórica “de nome e conteúdo grego” (VEYNE, 2009, Prólogo). É certo que os romanos aprenderam o grego e estudaram filosofia na Grécia, porém, devemos relativizar esses pontos de vista, pois o mundo romano foi um espaço representativo de múltiplas experiências e no qual podemos refletir sobre a dinâmica do confronto entre identidades e alteridades no território imperial. Nesta seção faremos algumas considerações que nos ajudarão a refletir sobre as mudanças culturais em Roma envolvendo a arte helenística para avaliarmos as mudanças na visualidade e na iconosfera 91 romana para que possamos analisar o papel da arte no discurso e na comunicação política do século I. A fim de pensar os contatos entre romanos e gregos, refletiremos sobre essas questões, a partir do contato romano e as sociedades itálicas, e posteriormente com as sociedades helenísticas do Oriente. Pensando helenização e romanização92 do ponto de vista da cultura, como processos semelhantes de interações culturais decorrentes dos contatos, nos reportamos ao trabalho de Andrew Wallace-Hadrill (2008). A partir de uma ampla tipologia documental, o autor analisa a construção das identidades romanas examinando vários aspectos tais como: idioma, arquitetura, moda, utensílios, dentre outros. De forma que as transformações culturais em Roma estão associadas aos conflitos com as sociedades itálicas ao mesmo tempo em que ocorria a expansão e a intensificação dos contatos com as sociedades helenísticas do Oriente, o que contribuiu para as mudanças em ambas as sociedades. Para Andrew Wallace-Hadrill (2008, p.26) as conquistas de Alexandre o Grande, estenderam o poder grego para o Oriente provocando importantes transformações sociais, assim como no Ocidente Mediterrâneo ao interagir com Roma. Mais especificamente, no processo de expansão romana pela península, segundo o autor, com o objetivo de tornar “a Itália romana, os romanos tornaram-se helenísticos”, pois o helenismo foi a arma cultural da conquista, tendo em vista que o papel da helenização foi integrar o processo de romanização na região. Recordando o conceito de Marshall Sahlins de que as sociedades se transformam como um modo de se reproduzirem e permanecerem as mesmas, entendemos que no processo 91 Ulpiano B. Meneses (2003), ver capítulo 1, p.30. Em complemento a nota 59, a helenização possibilitou o fluir das ideias, da filosofia, da arte, da arquitetura, enfim das crenças e modos de vida gregos entre os romanos. Este foi um processo lento, pois os contatos existiam desde há muito, contudo, após a conquista do Sul de Itália e da Sicília, acentuou-se com as conquistas da Grécia e das províncias orientais no séc. II a.E.C 92 92 de interações culturais entre romanos e helenos, a apropriação, a propagação e ressignificação se configuraram como parte de um processo contínuo de transformação cultural, visto que “a transformação de uma dada cultura também é um modo de sua reprodução” (SAHLINS, 1990, p.174). Ao se converterem em patronos dos intelectuais dos gregos (escritores e artistas), a elite romana garantia “sustento à ideologia de dominação, baseada em uma superioridade cultural que se apoia na herança grega” (SUÁREZ, 1996, p.22-3). No contato entre romanos, italianos e gregos, constata-se não um diálogo perpetuamente renovável, mas sim “um conjunto de trocas em que o Helênico (...) é constantemente reproduzido, sem de modo algum diminuir a identidade romana ou Itálica” (WALLACE-HADRILL, 2008, p.26). Nesses processos, nos interessa compreender o visual como um elemento relevante nos processos de helenização. Pensando na visualidade, lembramos a importância dos despojos de guerra como fator relevante para as mudanças na iconosfera romana, visto que os objetos artísticos exibidos em triunfo pelos generais romanos, além de impactantes, contribuíram no processo de formação da nova linguagem visual no império. Para K. Welch (2006b, p.98 e 102), foi com a expansão territorial romana que a arte grega passou a ser recorrente nas cidades e nas casas da aristocracia, principalmente na região da Campânia. A autora afirma que a adoção do estilo grego ocorreu tanto na prática do butim de guerra como na cultura. Por volta do final do século III houve a maciça chegada em Roma de espólio de guerra trazido por generais como Marcelo em 211, seguido por vários outros. Os espólios foram muitas vezes utilizados tanto no embelezamento de monumentos públicos como também em casas, de forma que “os romanos levaram a guerra para dentro de casa”. No entanto, a aquisição de butim, em especial das obras de arte, segundo a lei, ainda permanecia prerrogativa do Estado. Não era comum objetos dessa natureza e origem serem adquiridos por particulares (GASPARRI, 2008, p.31). Nesse sentido, o processo contra Gaius Verres93 demonstra que neste período o cidadão não podia tomar para si as obras de arte sem a permissão do Senado, mesmo ele sendo um pró-magistrado. Além dessa informação, o discurso de Cícero nos oferece elementos relevantes sobre a visualidade e as contribuições gregas à iconosfera romana. É interessante observar que o orador menciona obras e artistas “famosos”, mais especificamente obras dos escultores Policleto e outra de Míron (Verr. 4,3-5; 93,43). Importante ressaltar que através dessa 93 Verrinas de Cícero - ver capítulo 1, item documentação. 93 menção, o documento revela indícios da individualização e a valorização que os artistas do período clássico começaram a ter no contexto grego, particularmente de Atenas.94 Em outra passagem Cícero acusa G. Verres de ter roubado uma estátua do templo de Júpiter em Siracusa. Para destacar o delito, o orador menciona que havia “em todo mundo” três esculturas de Júpiter Imperator no mesmo estilo (artístico), uma se encontrava em Macedônia e foi colocada no Capitólio por Tito Flaminino, a segunda encontrava-se no Ponto e a terceira estava em Siracusa. Esta última foi mantida no templo para o culto dos cidadãos por Marcelo quando este venceu a cidade (214), antes de ser roubada por C. Verres (Cíc. Verr. 130). Segundo o orador, as esculturas eram “belíssimas” e tinham o mesmo “estilo”. Entendemos que ao mencionar nomes de artistas do período clássico, assim como referenciar “estilos” escultóricos, Cícero revela que sua audiência tinha conhecimento das obras e dos artistas gregos. A nosso ver, usar essa informação como algo importante na acusação do réu, demonstra o valor que as obras artísticas já haviam adquirido diante da elite romana. Além do butim de objetos artísticos, destacamos outro fator importante na transformação da visualidade de Roma que foi o comércio de obras de arte como objetos de consumo. Nesse sentido, a Itália se beneficiou da produção artística existente nas cidades da Magna Grécia, assim como do contato (e do comércio) com os numerosos centros de produção do Oriente, tais como Atenas, Corinto, Pérgamo e Alexandria. Houve também a imigração de artífices trazendo com eles sua experiência na produção e reprodução. Esse parece ter sido um traço da paisagem artística helenística que os itálicos puderam explorar. Em contra partida, no mesmo período, segundo Carlo Gasparri (2008, p.32) conhecemos os importantes centros artísticos que já haviam organizado a produção “segundo tipologias e fórmulas padronizadas – estátuas, hermas, relevos, parapeitos de poços (puteoli), selecionando um repertório de modelos figurativos imediatamente reconhecíveis” para atender as grandes residências como demonstra a correspondência de Cícero referindo-se a uma encomenda. Paguei a Lucio Cincius, de acordo com sua carta, os vinte mil e quatrocentos sestércios pelas estátuas de Mégara. Os seus Hermes em mármore de pentélico com cabeças de bronze, sobre o qual você fala na carta, me agradando até agora, por isso quisera que mande juntamente com as estátuas, outros objetos que pareçam apropriados a esse lugar, de minha preferência e a seu bom gosto, em maior quantidade e o mais rapidamente possível, mas especialmente aqueles que te parecerem apropriadas ao ginásio e ao pórtico. (Carta a Ático, 4, I 8) 94 Não nos ateremos aqui sobre a discussão da individualização e o valor da obra de arte ou do artista. Para maior esclarecimento ver Germain Bazin, História da História da Arte, 1989. 94 Para Wallace-Hadrill (2008, p.360-5) há duas direções observáveis nesse fenômeno: a primeira é distinguir entre butim genuinamente grego reservado para os generais, e o segundo é a reprodução das obras de arte para o mercado romano, segundo ele, para os novos ricos. O comércio “de artigos de luxo” na República tardia se manteve nas elites, mas não somente na elite política de Roma, pois incluiu também as elites das cidades italianas, visto que a aquisição de objetos luxuosos foi um modo de demonstrar igualdade e prestígio social. Fazendo uma pequena digressão, lembramos que a recuperação e reprodução de modelos escultóricos do passado se iniciaram apenas em época helenística. Segundo Gasparri (2008, p.28-9), após a instauração da dinastia atálida de Pérgamo, um reino carente de precedentes históricos, surgiu à necessidade de cultivar uma nova imagem. A opção foi se colocar como uma dinastia defensora da cultura grega, ligada ao ideal da supremacia cultural e política de Atenas. Com esse objetivo, nada melhor para expressar poder político do que a criação de monumentos. Nesse processo, o modelo escolhido foi o “patrimônio temático e formal” da Atenas de Péricles. Os atálidas então buscaram a “criação ex novo de um sistema de mitos e de imagens” para decorar os novos edifícios públicos e de culto como uma das formas de suprir a ausência de tradição e como um elemento de coesão e de reforço da identidade local. Com esse objetivo, se apropriaram dos modelos decorativos dos monumentos da Acrópole de Atenas e elaboram essas formas em uma nova temática (não mais dos deuses contra os gigantes elaborados por Fídias)95 mas com temas históricos como as guerras entre gregos e persas, ou mesmo as lutas entre os dinástas de Pérgamo e os gálatas. Consideramos que os soberanos de Pérgamo ao proporem um novo modelo iconográfico para os monumentos públicos criaram uma nova linguagem visual para atender suas necessidades de comunicação política, não somente entre seu povo, mas também para seus vizinhos, que tais como eles, se consideravam herdeiros da cultura e da política grega. Os monumentos erguidos em Pérgamo traduziram “pela primeira vez na história da arte antiga, a reprodução de réplicas intencionais de grandes obras de arte” (GASPARRI, 2008, p.28-9). O movimento de apropriação das obras clássicas de Atenas pelos reis de Pérgamo teve reflexos na esfera privada. Podemos comprovar esse reflexo a partir de uma descoberta, 95 Fídias (c. 490-430 a.E.C.) - escultor ateniense, foi responsável pela construção do Partenon na Acrópole de Atenas. Criou as imagens religiosas mais importantes e provavelmente supervisionou e projetou sua decoração escultórica geral. Reformado entre 447 e 432 a.E.C., o Partenon representava o ápice do programa construtivo de Péricles, ao que parece tinha como objetivo elevar Atenas a uma posição de predominância cultural e política entre os gregos. O programa temático dos conjuntos escultóricos buscava exaltar Atena, a deusa protetora da cidade e glorificar seu povo, seus deuses e suas vitórias. As estátuas criadas por Fídias estabeleceram para sempre concepções gerais de Zeus e Atena. (Enciclopedia Britannica) 95 dentre muitos exemplos, de uma estátua de Diadoumenos96 do final do século II encontrada em Delos e que reproduz uma famosa obra de Policleto de Argos do século V, comprovando a atividade (organizada e sistemática) de suprir a demanda por bens artísticos. Nesse sentido, assinalamos que nas residências da aristocracia romana foram encontradas “reelaborações tardo-helenísticas” assim como reproduções das obras famosas do passado. Esses achados são evidências de que diante da dinâmica de transformações socioeconômicas das regiões conquistadas por Roma, “os mesmos centros artísticos do mundo grego, espoliados no passado pelos generais romanos, tornam-se agora os produtores de obras de arte a serviço da rica clientela constituída pelos seus descendentes” (GASPARRI, 2008, p.30-1). Ao analisar gregos reproduzindo gregos e romanos reproduzindo gregos, Mary Beard e Henderson (2001, p.100) perceberam que tanto os mestres das obras-primas clássicas, como para seus sucessores helenísticos, não se limitavam a cópia passiva ou robotizada. Isto porque helenísticos e romanos valorizaram, desenvolveram e repensaram o mesmo cânone e repertório estilístico das grandes obras (clássicas) a partir das quais encontraram suas próprias possibilidades expressivas. A tradição escultural helenística pertencia ao processo contínuo de reprodução e nos ajuda compreender um pouco sobre as apropriações das obras artísticas gregas pelos romanos. Por fim, sugerimos que o contato entre romanos e as sociedades helenísticas, principalmente com as comunidades itálicas existentes há muitos séculos, e posteriormente com as sociedades do Oriente próximo, contribuíram nas mudanças sociais, políticas e econômicas desses grupos. Mais especificamente, pensamos nas apropriações estéticas acentuadas com a prática do butim e com as trocas comerciais que aumentaram a exposição e possibilitou o contato dos romanos com obras de arte e de objetos de luxo originários do mundo helenístico e contribuíram sobremaneira para as mudanças na visualidade da cidade. Acreditamos que as interações culturais entre essas sociedades foram fator importante para as transformações na linguagem visual e na iconosfera de Roma. 96 Diadoumenos - cópia helenística de finais do século II a.E.C. a partir de original de bronze de Policleto (c. 450-425). Proveniente de Delos – Museu Arqueológico Nacional de Atenas (inventário 1826). Imagem:http://www.flickr.com/photos/belenymiryam/4738782841/sizes/l/in/photostream/ acesso Jan-2014 96 Capítulo 4 Poder e representação – a arte na comunicação política A arte fascina tanto pelos aspectos estéticos, como por seus aspectos simbólicos. Para além da função estética, entendemos que os objetos artísticos são também formas de discurso e nos interessa examinar seu significado político e seu uso como um meio de expressão e comunicação. Após a leitura do livro Augusto e o poder das imagens de Paul Zanker (2008), chamou nossa atenção à importância dos discursos imagéticos visuais em Roma como uma das formas de propaganda e como as imagens são um elemento indispensável no arsenal dos líderes políticos. Mais especificamente, nos atraiu o período anterior ao principado augustano, pois identificamos novos modelos imagéticos nas representações ligadas aos ensaístas do poder pessoal militar em Roma. Discutimos como a guerra se configurava num traço marcante da política romana e como foi igualmente importante para a sociedade vê-la representada. Nesse sentido, K. Welch (2006a, p.3) ressalta a ideia de T. Hölscher (1978) ao propor que a distinção da arte romana esteve ligada aos desenvolvimentos políticos no século IV e a formação da nobreza patricioplebeia, pois a competição pelas magistraturas fez a nobilitas explorar o significado da guerra através das manifestações artísticas. Quer dizer, investigar a iconografia possibilita observar um dos aspectos da concorrência aristocrática na competitiva política romana. Nosso propósito neste capítulo visa identificar como as formas artísticas serviram para a comunicação política, assim como as ideologias e as formas simbólicas contribuíram para a construção da linguagem visual nos modelos de representação pessoal dos imperatores. 4.1. A linguagem visual - modos de comunicação política dos romanos Karl Hölkeskamp (2006, p.481) afirma que a memória coletiva ajuda a um grupo ou sociedade articular uma consciência de suas características definidoras de sua unidade e, portanto, “constitui uma base essencial para a sua autoimagem e identidade.” O autor postula o conceito de “memória cultural” como o conceito referente ao conhecimento que a sociedade compartilha coletivamente, isto é, o “conjunto peculiar de certezas e convicções que a sociedade tem de si mesma”. Significa dizer que a memória cultural é a principal fonte para os padrões de percepção, e para o quadro de interpretação do próprio ambiente social. Além 97 disso, o corpo de conhecimento cultural nunca é arbitrário ou selecionado de forma aleatória, pois, por um lado, ele tem a função educativa de disciplinar e integrar os membros da sociedade e, assim, reforçar sua coesão, e por outro, o conhecimento cultural compartilhado possui uma dimensão normativa da sociedade. De modo que a relação entre as formas e os meios de memória, de um lado, e seu conteúdo cultural socialmente condicionado, que atendiam às necessidades romanas de sentido e orientação por outro. Nesse sentido, os lugares públicos adquiriam particular importância, pois eles materializavam os locais das decisões políticas, as festas religiosas e a comunicação diária entre os cidadãos, ou seja, a cultura política foi, em um nível estrutural, “moldada pela lógica do espaço e da espacialidade, directness e densidade”. Daí, a conexão entre templos, estátuas e outros monumentos, cuja respectiva “localização e espaço formavam o físico, bem como a paisagem mental cheia de significados e mensagens políticas, histórica, sacral e mítica. (...) experimentado diretamente, pelos cidadãos romanos, como espectadores, no sentido concreto de andar olhando ao redor” (HÖLKESKAMP, 2006, p.482-3). Observamos essa lógica espacial na Grécia, onde todos os soldados eram cidadãos, as qualidades de luta e combate eram os valores da sociedade cívica. O modelo do cidadão era o ideal dos heróis míticos bem como a virtude física (arete). A partir de Alexandre percebeu-se que além das campanhas de conquista ou defesa dos grandes territórios, havia a necessidade de legitimação da própria posição de governante conseguida através da ideologia de vitória e da glória militar com vimos no capítulo anterior. Mas além dessa legitimação, os líderes helenísticos precisavam encontrar um modo para estabilizar e solidificar seu poder político, “transformando sucessos concretos em conceitos estruturais de poder” (HÖLSCHER, 2006, p.28). Daí, o uso na comunicação política de uma iconografia inspirada em suas vitórias militares. Do mesmo modo os romanos perceberam essa necessidade. Mas como transformar sucesso militar, de natureza efêmera, em poder político? Os gregos, e principalmente os romanos, obtinham prestígio social e poder político através de suas vitórias guerreiras, as quais foram publicizadas por meio da celebração de rituais e por uma política de construção de monumentos. Desta forma, concordamos com Hölscher (2006, p.27), no sentido de que as manifestações simbólicas fixam e perpetuam conceitualmente a superioridade e o domínio do vencedor. Não podemos esquecer que os monumentos são em si poderosos signos de poder, eles “re-presentam” entidades políticas, Estados e estadistas em um sentido literal: tornando-os presentes no espaço público. Como bem lembra Le Goff (1992, p.526) o monumento tem 98 como característica “o poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas - um legado à memória coletiva”. E as vitórias militares se tornaram ideologia a serviço do poder político através da linguagem iconográfica monumentalizada nas distintas expressões artísticas romanas. Nas poleis clássicas, o significado primeiro dos monumentos políticos foi a celebração de personagens e eventos locais. No entanto, Roma visava alcançar uma comunicação “em larga escala” a fim de alcançar amplo poder político e governabilidade. Daí, o desenvolvimento de uma linguagem iconográfica mais complexa para dar a estas mensagens uma expressão visual eficiente. Nesse sentido, a política imperial conseguiu transmitir, por todo império, as mensagens de glória e vitórias militares por meio de manifestações políticas, ações coletivas e dos monumentos públicos. A eficiência com que os romanos conseguiram comunicar essas mensagens de poder constitui uma singularidade do Império Romano. Significativamente, na Atenas clássica, onde a alegoria política foi aplicada em grandes monumentos de Estado, e depois pelos soberanos helenísticos, que muito exploraram a monumentalidade para fins políticos. No entanto, foi no Império Romano que a linguagem iconográfica apresentou uma complexidade maior, através da ampliação do repertório alegórico e simbólico. O esplendor e a memória foram monumentalizados conceitualmente e a glória, assim como o poder político, fixada pelas formas artísticas como uma maneira de transmitir física e ideologicamente o poderio de Roma. Com a expansão territorial, Roma se deparou com as seguintes questões: como transmitir a mensagem de sucesso militar e estabilidade do governo? Como transformar a guerra, um evento efêmero (limitado no tempo e espaço) em um bem ilimitado, universal e eterno? Para Hölscher (2006, p.34-5), o sucesso romano está na transformação das conquistas militares em valores sociais e políticos. Com esse objetivo, lançou mão de diferentes meios e formas, explicitadas a partir de três tópicos principais: Participação nos rituais - o ritual foi um modo de envolver os cidadãos nos resultados das guerras e fazer com que participassem pessoalmente das celebrações de vitória. Certamente a religião, em seu aspecto ritual, ajudava a monumentalizar e transmitir memória à posteridade. Monumentos – a monumentalização pública contribuiu para perpetuar a memória dos sucessos e da glória militar. Daí a utilização das pinturas, butim de guerra, objetos de arte, edifícios da cultura romana e de entretenimento (teatro, termas, pórticos) para o engrandecimento de Roma. 99 O triunfo – a celebração do triunfo servia para a materialização da ideologia e da glória romana ao incluir o cidadão, que não participou das lutas, informando-o sobre a campanha através das pinturas representando as batalhas decisivas, modelos de cidades capturadas, personificação das terras, rios ou montanhas, retratos dos inimigos derrotados, as inscrições informando sobre os lugares de conquista, dentre outras representações visuais. Na prática, os romanos tiveram que transformar o impacto imediato da celebração de um triunfo, por exemplo, em algum conceito ideológico. Era necessário perpetuar a memória do êxito guerreiro para as gerações futuras, e um meio eficiente para alcançar esse fim foi o discurso visual. Nesse sentido, ergueram-se vários monumentos para testemunhar as vitórias militares, mas que atuaram também como instrumentos de legitimação dos poderes extraordinários concedidos aos generais, contribuindo para o sistema de representação política dos imperatores. Houve duas maneiras de conceituar glória e atos de prestígio militar em imagens: através de um tema significativo ou pela escolha estilística e da forma na representação, e ambos os meios foram explorados na arte romana num grau extremo. Na maioria dos monumentos romanos, o tema da guerra é representado em um conjunto de cenas de ações que se repetem de forma quase estereotipada (HÖLSCHER, 2006, p.43). Nesse sentido, Erich Gruen (1992, p.141ss) acrescenta que além da temática guerreira, há evidências de como a representação foi importante para a comunicação visual na política imperialista direcionada ao Oriente, principalmente a partir do século II. Dois relevos históricos nos ajudam a pensar sobre a questão estilística na arte romana para a comunicação política no contexto da expansão de Roma. O relevo L. Domício Enobarbo (Domitius Ahenobarbus) mostra o ritual do lustrum, ligado à censura, provavelmente de 132 e reconstruido em 32 d.E.C. por Enobarbo quando este era legado de M. Antônio. Porém, importa ressaltar a diferença estilística entre as partes, assim como seu possível significado. O primeiro lado mostra a cena do census e ao centro, o solene sacríficio em honra ao deus Marte (fig.8a) e o outro lado do relevo mostra uma cena de thiasos de Netuno – representando o casamento de Poseidon com Anfitrite (fig.8b). Para E. Gruen, o significado é claro: a cena do thiasos significa a estabilidade e controle romano do Mediterrâneo, e a cena sobre a censura tinha empregado artistas helênicos para produzir uma cena puramente romana que transmitisse os valores do mos maiorum (tradição ancestral). Acerca da diferença estilística, a representação do censo serviria para demonstrar a “gravitas (dignidade e seriedade) de comportamento e ligação com a tradição.” Por outro lado, a magnificiência estilística do lado do thiasos marinho demonstraria a 100 adaptação de um assunto puramente helênico para enunciar a própria conquista de Roma, e essa combinação deu força ao monumento (GRUEN, 1992, p.146-7). Fig. 8a: Monumento de “Ahenobarbus”– relevo c. 100 ou anterior - Museu do Louvre. 97 Cena do sacrifício em honra ao deus Marte (detalhe cena do lustrum - purificação) Fig. 8b: Monumento de “Ahenobarbus”– Glyptoteck Munique. Cena do cortejo nupcial de Poseidon e Anfitrite.98 (detalhe) Por sua vez, Cécile Giroire (2007, p.15-6) interpreta que a diferença estilística como a justaposição de diferentes princípios, indica que o artista desejou fazer cada situação de acordo com seu tema cultural de origem e garantir assim a comunicação. Já para M. Beard e Henderson (2001, p.98), há várias hipóteses para explicar a diferença entre os estilos escultóricos. Pode-se “argumentar que não há nada especificamente 'romano' na escultura, no monumento como um todo”, que “toda a linguagem adotada pelos escultores decorre do repertório grego em seu sentido mais amplo” ou ainda que fosse um “ensaio de justaposição e contraste de estilos”. Todavia, esses autores alegam que sem 97 Imagem:http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Altar_Domitius_Ahenobarbus_Louvre_n2.jpg. Acesso em: jan 2014 Anfitrite - ninfa do mar e esposa de Poseidon (COTTERELL, 1999, p.76) Imagem: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Sea_thiasos_Amphitrite_Poseidon_Glyptothek_Munich_239_front_n3. jpg. Acesso em: jan 2014. 98 101 conhecermos a estátua ou grupo de estátuas, que estavam sobre a base, permanecerá a duvida sobre a mensagem estilística. O outro exemplo é o relevo comemorativo da vitória de Emílio Paulo99 na Batalha de Pidna (fig. 9), descrito por Luiz Marques (2011) como uma “concepção de figuras em posição não paralela100 ao plano de fundo, como se nota no cavalo que se volta para o fundo do relevo no centro do fragmento superior”. Para o autor, esta escultura exemplifica a operação de transferência cultural e dá inicio a “experiência da apropriação do friso grego pelos romanos, apropriação fundamental para toda a história da arte romana” e dele “emerge uma nova concepção das relações entre relevo e espaço, típica da arte romana” posterior. Fig. 9: Mármore da coluna de Emílio Paulo (detalhe) c. 168 - Roma. A Conquista da Macedônia, O rei Perseu e a Batalha de Pidna - Museu Arqueológico de Delfos. fonte: E. Gruen, 1992, p.171.101 Fig. 10: “Sarcófago de Alexandre” c. 325-311. Origem: Necrópole de Sidon (atual Líbano) As imagens documentam de forma vívida a importância do tema da caça e das batalhas régias na arte helenística Museus Arqueológicos de Istambul. fonte: J. Pollitt, 1986, p.38-39.102 99 Lucius Aemilius Paullus Macedonicus (c. 230-160 a.E.C.) - general que derrotou o rei Perseu (último rei da dinastia dos Antígonas) em Pidna durante a Terceira Guerra Macedônica. A exemplo do triunfo de Marco Claudio Marcelo, de 211 a.E.C., descrito por Plutarco (Vida de Marcelo), e do de Flaminino, de 197 a.C., descrito por Tito-Lívio, também no triunfo de Emílio Paulo via-se um enorme aparato de obras-primas da arte grega, cujo impacto aprofunda ainda mais a influência artística da Grécia sobre a urbs. Entre as esculturas trazidas a Roma, conta-se a estátua de "Atena" de Fídias, colocada por Emílio Paulo no templo da Fortuna (MARQUES, 2011). 100 Significa o estilo escultórico em que as figuras do relevo se estendem para fora do fundo em pelo menos metade da sua profundidade (alto relevo) diferente das esculturas em baixo relevo onde as figuras se estendem apenas ligeiramente do plano de fundo. 101 Imagem: http://www.mare.art.br/detalhe.asp?idobra=3552 Acesso em: nov 2013 102 Imagem: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Alexander_Sarcophagus.jpg Acesso em: Nov 2013 102 Por sua vez, Beard e Henderson (2001, p.97) postulam que o friso apresenta elementos gregos e romanos entrelaçados em uma composição ‘tensa’, de forma que o conjunto iconográfico não fez emergir automaticamente o grego e o romano, “mas um perfeito continuum.” Erich Gruen (1992, p.143) sugere que a inspiração do monumento de Emílio Paulo é o chamado sarcófago de Alexandre (fig.10), obra do final do século IV (Plinio HN, 34.66) onde quatro dos seis painéis, incluem “cenas de batalha com guerreiros montados e soldados de infantaria (...) combinações análogas às do relevo de Paulo” evidenciando que a forma e o conteúdo helenísticos têm um significado simbólico muito importante. Ao relembrar a importância do triunfo romano na guerra da Macedônia, esse monumento ‘helênico’ de gênero e estilo familiar, provavelmente teria um grande impacto sobre os visitantes de Delfos. O monumento serviria também para que os gregos reconhecessem “instantaneamente os sucessos romanos imortalizados pela sua própria arte além de mostrar que o vencedor romano pertencia as suas tradições culturais”. A escultura, sendo direcionada à audiência helênica, “escolheu a convenção grega para dramatizar a conquista romana” e que “o monumento de Paulo destinava-se a mostrar tanto a participação como o controle de Roma sobre o mundo cultural do Mediterrâneo oriental” (GRUEN, 1992, p.143). A teoria de E. Gruen se torna fundamental a nossa pesquisa, pois abre caminho para pensarmos a apropriação dos temas e do estilo grego na construção da linguagem visual romana tinha como finalidade a comunicação com o Oriente helenístico. A proposta também se coaduna com o conceito de cultura semiótica de Clifford Geertz. O antropólogo recomenda que “para ser do uso efetivo no estudo da arte, a semiótica precisa ir além da consideração dos signos como meio de comunicação, como código a ser decifrado; ela precisa avançar em direção à consideração dos signos como maneiras de pensar, como idiomas a serem interpretados” (GEERTZ, 1983, p.120). A teoria de Geertz reforça nossa opção de análise a partir da proposta de Hölscher (2004) do uso dos temas e tipologias gregas apropriadas pelos romanos em suas opções artísticas. E com o propósito de entender as formas artísticas em Roma e a formação dessa nova linguagem política, Jás Elsner (1998, p.13) afirma que uma maneira de construir um background cultural coerente e conectar as pessoas do império, foi dar ênfase ao compartilhamento da herança cultural baseada nos mitos e na literatura grega clássica e romana. Indício significativo dessa assertiva é a apropriação do mito de Tróia por Roma. Segundo E. Gruen, Roma não teve necessidade prática de um ancestral mítico troiano antes da 103 segunda metade do século IV. Contudo, ao final do terceiro e início do segundo séculos, fezse necessária uma imagem diferente, daí o anseio em demonstrar raízes na Antiguidade distante, assim como reivindicar uma participação na cultura comum do Mediterrâneo oriental. Assim, o “jogo das lendas aumentaram os laços que ligavam gregos e romanos.” (GRUEN, 1992, p.50-1; 2006, p.301).103 Por isso, os sucessos militares deveriam vir acompanhados de demonstrações que evidenciassem as qualidades civilizadas dos vencedores. Adotar um troiano em sua origem possibilitou aos romanos pertencer ao mundo grego, ao mesmo tempo em que se distinguia dos próprios gregos. Para o Gruen, a conexão entre Tróia e Roma permitiu ainda um simbolismo de proeminência na península que deu aos romanos legitimidade cultural sobre os itálicos. No plano externo, nas conquistas orientais, o ascendência troiana dava legitimidade ancestral ao conquistador romano. A partir da ideia de “memória cultural” (HÖLKESKAMP, 2006, p.487), entendemos que a especificidade romana se constituiu em “conectar maneiras visíveis e invisíveis, explícitas e implícitas, espaciais e conceituais num amplo espectro de diferentes meios de comunicação - monumentos, imagens e textos” às mensagens de origem lendária e marcos exemplares, formando uma “topografia sacral de um lado, e os locais de memória e monumentos de vitórias guerreiras, do outro”, configurando uma topografia “de acúmulo de memória”. Dado tais evidências e propostas apresentadas pelos autores sobre a comunicação política entre Roma e o Oriente nos leva a concluir que foi imprescindível ao império transformar vitória militar em memória para obtenção do poder político. Com o objetivo de se comunicar com a população romana e também com as populações conquistadas, Roma buscou se apropriar de modelos estilísticos gregos em um “continuum” com a arte romana, além de abraçar os mitos e tradições que davam legitimidade a sua dominação. Seguindo a relação entre a forma e a função da imagem, retemos como ideia central que a nova linguagem visual em Roma desenvolveu um sistema semântico no Império Romano expresso pelas formas artísticas e simbólicas produzindo um novo sistema de comunicação política confirmando nossa terceira hipótese de pesquisa de que o domínio romano no Mediterrâneo oriental ensejou um novo “sistema de comunicação visual” que serviu como veículo de mensagens ideológicas através do império. 103 Erich Gruen (2006, capítulo 14) discute as origens lendárias entre gregos e romanos, além de examinar as ficções inventivas que atravessaram divisões étnicas e culturais dos gregos, fenícios, egípcios e romanos. 104 4.2 A perfomance teatral e o discurso de poder político Michel Foucault pensa a questão do poder sem olhar as autoridades ou agências, onde normalmente estão situados, mas sim, olhando as táticas e estratégias que ele chama de "discurso" (1980, p.51). Nesse sentido, Richard Beacham (2005) analisa o teatro de Augusto como um fenômeno cultural que nos ajuda a compreender aquela época. Para o autor, o teatro augustano (a arquitetura, as peças, a pessoa do imperador, etc.), em seu conjunto, atuou como uma performance, onde as mensagens de patrocínio, riqueza, popularidade, poder, piedade e proezas militares, foram um modo de ‘fazer crer’. Em essência, a teatralidade, o espetáculo e a pompa ajudaram a “definir as expressões sociais, políticas e estéticas do Principado”. Dessa forma, a ideia de performance teatral ampliou nossa percepção quanto às modalidades de discurso para analisarmos as representações dos imperatores no conjunto da comunicação política em Roma. Nessa seção falaremos de três elementos que a nosso ver se configuram como discursos políticos imagéticos utilizados pelos generais romanos: a arquitetura, a procissão do triunfo e o retrato. 4.2.1 Arquitetura Ao usarem as habilidades helênicas para decorar a cidade, os edifícios públicos, nas comemorações e nos templos, “os romanos colocaram em exposição não só o seu gosto pela arte grega”, mas também o manejo e manipulação de sua arte (GRUEN, 1992, p.140-1). Para E. T. Salmon (1982, p.100) a “escultura helenística, pintura e detalhes arquitetônicos, escrita helenística e os modos de pensamento passaram a ser rapidamente notados e ecleticamente imitados em Roma, e a hegemonia de Roma assegurou sua transmissão rápida em outras partes da Itália.” Concordamos que a hegemonia romana possibilitou a transmissão, e por conseguinte, a apropriação dos modelos helenísticos. E na perspectiva da expansão de Roma sobre a Itália, ao analisar o urbanismo, os monumentos, a sofisticação dos utensílios e a linguagem artística (período a período) Wallace-Hadrill (2008) afirma que os romanos foram os primeiros no jogo da apropriação cujo o ponto de referência permaneceu o Oriente. A apropriação de modelos helenísticos na escultura e arquitetura romanas pode ser identificada nas realizações (ou projetos) urbanísticos relacionados aos generais aqui pesquisados. Porém, a arquitetura se configura em um amplo campo de análise e, dentro dos 105 limites desse trabalho, abordaremos dois exemplos da relação entre arquitetura e discurso político relacionado a Pompeu e César. A arte e arquitetura desempenharam um papel importante na fixação dos eventos na consciência pública e na memória (BEARD, 2007, p.19), e segundo Diana Favro (1996, p.57ss), Pompeu adicionou tensão às convenções romanas de patrocínio e obtenção de gloria. Isto porque, após suas campanhas no leste, ele se impressionou com os grandes teatros de pedra de Metilene na ilha de Lesbos, inclusive “esboçando planos de construir um igual em Roma, maior e mais magnífico” (Plut. Pomp. 42). Fig. 11a: Reconstituição do Teatro de Pompeu Magno - Até hoje há muitas tentativas de reconstituir o design arrojado e luxuoso do complexo. Esta reconstrução tridimensional, baseado em desenhos do século XIX, mostra o Templo de Vênus Victrix (parte inferior à esquerda) com vista para o auditório; além dos pórticos, jardins e uma galeria de escultura. fonte: Mary Beard (2007, p.23) Fig. 11b: Reconstituição do Teatro de Pompeu Magno104 O Senado já havia negado em 154 a construção de um teatro de pedra em Roma argumentando que tal estrutura encorajaria o povo a disperdiçar seu tempo em performances fomentando a sedição. Contudo, quase 100 anos depois, Pompeu burlou o impedimento ao 104 Disponível em: Hypothetical 3D visualisation of the theatre of Pompey based on the work of L. Canina,created by Martin Blazeby, King's College, London. Acesso em: jan 2014. 106 unir o templo de Vênus Victrix à cavea do teatro chamando os assentos em curvas de simples ‘degraus’ até ao santuário (fig. 12). Apesar de algumas críticas a artimanha para a construção do edifício, outros celebraram a obra do jovem general, pois a grandeza e magnificiência do conjunto arquitetônico extendeu a fama de Roma, e aumentou ainda mais a glória do patrono do teatro.105 A literatura antiga fala que a decoração do complexo do teatro de Pompeu foi feita com o espólio de guerra (Plínio, HN 7,34; 35,114; 35,59). E o projeto constitui um monumento ao triunfo do general, pois uma procissão era encenada enquanto os tesouros eram exibidos aos visitantes através dos pórticos (BEARD, 2007, 24-6). Esses elementos nos permite sugerir que a visualidade de Roma estava mudando cada vez mais devido ao contato com os objetos e obras artísticas helenísticas e gregas do período clássico. Chamamos a atenção para uma estátua que representava Pompeu cosmocrator (fig. 12), e que ficou para a história devido à morte de César aos pés dela (Plut. Caes. 66). Possivelmente a escultura foi butim, e segundo Maria H. de La Veja (2005, p.275), essa representação, na esteira do triunfo de 61, constituiu uma demonstração simbólica de Pompeu como o “dono do mundo” ao sustentar o globo, símbolo de domínio universal. Fig. 12: Estátua de Pompeu Cosmocrator – Mármore - séc. I - Palazzo Spada em Roma Estilo helenístico, nudez heroica, e o globo, símbolo de domínio. fonte: M. Beard, 2006, p.213. 105 A construção, as esculturas e a magnificiencia do complexo do templo-teatro de Pompeu ver Mary Beard (2009, p.22-28) e John W. Stamper (2005, p.89). 107 Hoje se sabe que o corpo é uma peça antiga, mas a cabeça é de época moderna, de forma que o rosto que pensávamos ser de Pompeu, se revelou falso (BEARD e HENDERSON, 2001, p.212). No entanto, seus atributos admitem a ligação com o complexo do teatro: a escala monumental, o tronco de palmeira que dá suporte a estátua é uma planta ligada a vitória e ao triunfo, além da mão segurando o globo que simboliza a conquista do mundo (BEARD, 2007, p.26). As aproximações de Pompeu com Alexandre Magno na função de cosmocrator, evidentes nessa escultura, levaram o general muito mais ao luxo e à suntuosidade oriental do império alexandrino do que suas pretensas qualidades de agregar diferentes povos sob seu comando (VIZENTIM, 2007, p.4). Por outro lado, Júlio César, ao que parece, tinha uma ideia clara das possibilidades propagandísticas do patronato arquitetônico. Segundo Favro (1996, p.60ss), ao se eleger edil em 65, César honrou seu pai com elaboradas perfomances incluindo jogos e combates com animais selvagens e gladiadores, além de aproveitar e exibir o material para o ‘show’ no caminho do Forum até o Capitólio. César usou os jogos para homenagear seu pai, mas também para restaurar o monumento em honra das vitórias de seu tio Mário, e assim glorificar seu ancestral, e consequentemente sua gens. Dos empreendimentos urbanísticos de César, o Forum Iulium (fig.13) foi a mais simbólica das suas iniciativas. Quando estava no campo de batalha, César havia prometido um templo a Vênus Victrix, protetora de Pompeu, em troca de seu apoio. Contudo, ao redefinir e expandir o Forum, César construiu um magnifico templo para Vênus Genetrix, ancestral dos romanos e em particular dos Iulii. Fig. 13: Reconstrução do Forum de Júlio César O templo foi dedicado em 46 à Vênus Genetrix. fonte: J. Pollit, 2012, p.164 108 A concepção arquitetônica das obras de César remontam ao estilo helenístico ocidental106 (CARCOPINO, 1974, p.581-3). Com essa finalidade, o general contratou um ateniense “impregnado de recursos gloriosos e puros” do helenismo como responsável pela direção final das suas oficinas e construções, fato que indignou Cícero (Ad Atti. XIII, 35.1). César também decidiu adornar seus edificios com esculturas de artistas próximos ou contratados por ele, exceto uma. A obra, dentre as esculturas do butim, escolhida epecialmente para adornar o Forum Iulium foi uma famosa estátua esquestre de Alexandre o Grande (fig.14). Esse bronze, criado na corte alexandrina por Lisipo, foi levado da Grécia para Roma e colocado no meio do fórum onde César substituiu a cabeça original (Silv.1.1.8488) da escultura pela sua própria (Pollini, 2012, p.164).107 Fig. 14: Estátua equestre de Alexandre o Grande - bronze. Origem: Herculanum Museu Arqueológico de Nápoles. Fonte: Pollini, 2012, p.165108 Aqui vale ressaltar que nos períodos helenístico e romano, os cavaleiros, carros de combate e os cavalos eram atributos de autoridade e poder. De acordo com A. Chevitarese (2007a, p.109-112), esses elementos de valorização social eram encontrados nos textos e imagens antigos. Como um discurso visual, o esquema iconográfico do cavaleiro, montado sobre o cavalo, segurando uma lança (às vezes com inimigo caído ao solo) constitui uma 106 Refere-se ao estilo da arte helenística das regiões próximas à bacia do Mediterrâneo, dos centros artísticos da Grécia, Ásia Menor e Egito, com destaque para as cidades de Atenas, Corinto, Alexandria, Rodes e Pérgamo principalmente. 107 Estácio (Publius Papinius Statius, c. 45-95 d.E.C.) descendente de gregos, foi poeta e professor. Em sua obra Silvae, recapitula a vida e a influência do pai sobre ele. Foi o primeiro poeta romano que descreveu longamente em seus poemas obras de arte e arquitetura, dando informações preciosas sobre a cultura material do período. Ver Betty Rose Nagle. The Silvae of Statius. Indiana University Press, 2004, p.1-31. 108 Imagem: http://weather.vouhead.gr/wxbucephalus.php?lang=en. Acesso em: abr 2014. 109 tipologia bem conhecida nas culturas helênicas e/ou que estavam em contato, como no caso de Roma.109 Esse modelo sugere poder e autoridade do cavaleiro (principalmente com a lança) e “refletiria a esperança de proteção que o cavaleiro - entendido como um homem poderoso proporcionava aos simples e indefesos, às cidades e ao território contra as forças inimigas”. Ou seja, nesta tipologia representacional, “a ênfase do significado recaía basicamente no contexto militar e no reforço do status político-econômico gozado pelo rico e poderoso na sociedade” (CHEVITARESE, 2007a, p.112-3). Desse epísódio, constatamos a permanência do esquema iconográfico (aqui, o cavalo com as patas dianteiras levantas aumentando a dramaticidade) como tema e símbolo de vitória e poder social levado para Roma na forma helenística da escultura de Alexandre. Alterar a estátua de um grande artista como Lisipo, hoje em dia seria considerado uma ato de ‘vandalismo artístico’, mas para nós, é mais uma evidência de que César buscava associar sua imagem àquela de Alexandre, assim como o fez Pompeu ao aproximar sua fisionomia a do herói macedônio. Não obstante, constatamos que grande parte das intervenções de restauração e/ou construção foi em lugares de culto. Podemos inferir desses exemplos que a relação entre laus e glória militar, intrinsecamente ligada a religião, perpassou a lógica urbanística de Pompeu e Júlio César, pois ambos parecem ter seguido o padrão de seus antecessores na restauração ou na fundação novos templos na cidade com os despojos de suas vitórias militares. No caso da construção do teatro de Pompeu, podemos dizer que não foi de todo uma invenção, pois o edifício se encaixava em uma longa tradição italiana de “teatro-templos” (BEARD, NORTH & PRICE, 1998, p.123). Da mesma maneira, o templo de Vênus Genetrix construído por César ligava-se ao aspecto religioso, visto que o general desejava mostrar o quanto era agraciado pela deusa em suas vitórias militares, bem como a mensagem da ancestralidade divina dos Iulii, materializada por um ‘descendente’ da deusa, em forma de monumento. Todavia, a inovação não foi temática, mas na forma dessas mensagens, pois tanto a construção de Pompeu quanto de César revelavam o butim ‘decorativo’, o que evidencia as constribuições da visualidade artística grega à iconosfera romana. 109 André Chevitarese (2007b, p.103-124) mostra, a partir dos textos bíblicos, do texto de Josefo (Antiguidades judaicas 8:41) e das imagens em moedas e amuletos, a importância social, política e econômica do cavaleiro para àquelas sociedades, como um grande símbolo de vitória. Em nosso recorte de pesquisa identificamos a utilização do esquema iconográfico do cavaleiro sobre cavalo por Felipe II (moeda 2), por Alexandre o Grande, e também por Júlio César, na escultura e também na iconografia numismática (moeda 24). 110 4.2.2 O triunfo romano – uma procissão espetacular Emílio Paulo percorreu a Via Sacra, desde a Porta Triumphalis até o templo de Jupiter Optimus Maximus no Capitólio em triunfo após derrotar Perseu, o último rei da dinastia Antígona. Entre as esculturas trazidas do Oriente, Emílio Paulo dedicou ao templo da Fortuna à estátua da deusa Atena, obra célebre do escultor grego Fídias (MARQUES, 2011). Também M. Claudio Marcelo e Tito Q. Flaminino110 triunfaram em Roma exibindo cativos, além de uma enorme quantidade de obras de arte grega. O relato mostra que a cerimônia do triunfo era espetacular, magnífica, e naturalmente um acontecimento importante na cidade (HÖLKESKAMP, 2006, p.483). Pois essa era a única ocasião na qual um general tinha autorização para entrar na urbs à frente de suas tropas e representava a maior honraria que um general poderia ter. O evento proporcionava à população um espetáculo onde eram exibidos cativos de guerras, às vezes monarcas como no caso do rei Perseu, riquezas e obras de arte, sendo esta, uma prática profundamente arraigada na mentalidade romana. Já observamos a relação entre a religião e o triunfo romano no capítulo dois. Nesta seção gostaríamos de verificar o caráter performático do ritual, ao enfocarmos o significado da procissão triunfal (pompa triumphalis) e de todo o aparato que a integrava. Podemos seguramente afirmar que a cerimônia permitia o envio de mensagens, agregadas a uma série de discursos visuais, a começar pelo personagem principal: o triumphator. Segundo Versenel (1970, p.56, 95-96), ele era vestido com a Vestis Triumphalis: a tunica palmata - assim chamada após ramos de palmeiras serem bordadas nela - e a toga picta, devido à cor roxa, além de ornamentos dourados, adicionados posteriormente. Na cabeça, o general (e também dos soldados) usava a corona laurea, símbolo do triunfo, muitas vezes chamada corona triumphalis, descrita por Lívio (10, 7.9) como uma coroa de ouro pesado, colocada na cabeça do triumphator por um servus publicus, encarregado de dizer as palavras bem conhecidas: “és um homem, lembre-se!” Desde os primeiros tempos da cidade, a pompa triumphalis celebrava as vitórias romanas, pelo menos era o que os romanos acreditavam, datando as origens da cerimônia até seu mítico fundador Rômulo, ou ainda aos primeiros reis. A exibição de cativos, do butim, de outros troféus, além dos soldados desarmados, vestindo togas e coroas de louros, seguiam o 110 Marcus Claudius Marcellus (268-208 a.E.C.) general e cônsul da República romana, comandou o exército durante a Segunda Guerra Púnica e responsável pela tomada de Siracusa (Sicília) no período de 214 a 212 a.E.C. Titus Quinctius Flamininus (228-174 a.E.C.) general romano e admirador da cultura grega, combateu os macedônios e em 196 a.E.C. e anunciou a libertação dos estados gregos. 111 cortejo aclamando canções obscenas e alusivas ao seu general. Tudo isso fazia do evento uma cerimônia muito alegre. Também havia em algum momento da procissão, dois bois brancos, enfeitados com guirlanda e chifres dourados, que eram sacrificados a Júpiter (BEARD, 2009, p.8). Principalmente a partir do século II, o triunfo esteve intimamente ligado à expansão imperial romana com implicações culturais e econômicas, como demonstram os triunfos de M. Marcelo e E. Paulo. Mais que uma narrativa de conquista, as mudanças no modo de vida da população urbana podem ser identificadas através da arte, por exemplo, dos elementos decorativos, das estátuas, dos objetos de luxo e até mesmo no uso do mármore em Roma. Nessa perspectiva, lembramos que entre os prisioneiros, muitos eram artistas e artesãos, e trouxeram com eles a experiência do mundo helênico (WALLACE-HADRILL, 2008, p.356360; WELCH, 2006b, p.102ss). Ao desfilar os frutos das conquistas, todo o tipo de bric-a-brac, a procissão servia como um microcosmo dos próprios processos de expansão imperial e “trouxe a riqueza do lado de fora para o centro do Império”, e certamente o exotismo dos despojos de guerra, juntamente com as representações da conquista, apresentava a expansão imperial aos olhos do povo. Interessa-nos especificamente a exibição das obras de arte na cerimônia, bem como o conjunto de elementos da procissão que teatralizavam o discurso e a comunicação política em Roma, pois além do impacto financeiro das conquistas111, a “exibição de espólio triunfal mudou o ambiente visual da cidade” (BEARD, 2009, p.160). Não obstante, a quantidade de metais preciosos, as estátuas de ouro maciço, os milhões de escravos, retratos feitos de pérolas, relíquias de Alexandre, e tantas outras extravagâncias descritas seriam realidade? Mary Beard pondera sobre o exagero do triunfo ao analisar os relatos antigos. Para a autora, assim como em todas as outras cerimônias, é significativo observarmos o processo, a percepção e a posterior “re-apresentação” do evento. De modo que o triunfo, como narrativa, apresenta “exageros, distorções, e amnésia seletiva” como parte do processo (BEARD, 2009, p.37-41). Políbio (6, 15, 8), por exemplo, ao análisar as instituições romanas do século II, descreveu o triunfo como "um espetáculo em que os generais trazem diante dos olhos do povo romano uma impressão vívida de suas realizações". Isto é, o triunfo, além de exibir o sucesso, 111 Em relação ao afluxo de recursos para Roma no séc. I a.E.C. ver: HORDEN, P.; PURCELL, N. The corrupting sea: a study of Mediterranean history. Oxford (UK), Blackwell, 2000; ANDREAU, Jean. L’economie du monde romain. Paris:Ellipses, 2010, e OUZOLIAS, Pierre. l`Economie agraire de la Gaule, apercus historiques et perspectives archeologiques. Université de Franche-Comté: 2006 (doutorado) especialmente p.25-8. 112 “re-apresentava e re-promulgava a vitória” de forma a trazer para o centro do império as regiões mais distantes. No século II, o triunfo “comemorou a nova geopolítica que a vitória tinha trazido” (GRUEN, 1992; BEARD, 2009). Na expansão do século I, o caso de Pompeu é emblemático. Por vários meses o general adiou seu triunfo para fazê-lo coincidir com seu próprio dies natalis quando completaria 45 anos (BEARD, 2009, p.72-5). Na ocasião, segundo Plutarco, Pompeu foi igualado a Rômulo, pois assim como o herói fundador de Roma, ele também triunfou três vezes e sobre três continentes: primeiro sobre a África (Mauritânia), o segundo sobre a Europa (Espanha e a vitória na Guerra Social), e por último sobre a Ásia de Mitridates. Certamente a impressão era de que o triumphator tinha conquistado o mundo inteiro, “no mais esplendido de todos os triunfos” (Plut. Pom. 45). Pela primeira vez em Roma, um carro triunfal seria puxado por elefantes. Contudo, os animais eram grandes demais para atravesar as ruas, frustrando parte do cortejo, mas tal escolha estava ligada ao mito do “retorno vitorioso do deus Baco após a conquista da Índia encenada em uma carroça puxada por elefantes”. Além disso, Pompeu desfilaria identificado com Alexandre o Grande ao dizer que usava o manto que pertencera ao próprio macedônio, além de um carro “cravejado com pedras preciosas” (Plut. Pomp. 14,4; 46,6; 46,1). Pode-se ver que os relatos apresentam muitos exageros, mas de acordo com M. Beard (2009, p.14-7, 30), apesar de todas as críticas como as de Apiano e Plínio, se pode depreender da documentação a ênfase na dimensão grandiosa dos eventos, descritos sempre como “sem precedentes na história romana”. Entretanto Pompeu marca sua semelhança com o herói macedônio principalmente pela “necessidade da vitória como elemento essencial do poder, ou seja, pela ideia de que a vitória militar confere a certos indivíduos da elite a plenitude do poder num país conquistado e lhe dá o direito a um status sobre-humano” (MARQUAILLE, 1996, p.19 apud VIZENTIN, 2007, p.4). Nesse sentido, entendemos que a imagem de Alexandre primeiro serviu como protótipo do herói militar, e posteriormente, passando à representação do imperator romano. Assim como Pompeu, Júlio César também elaborou seus triunfos de forma a exibir suas conquistas e qualidades militares. Quando concluiu a guerra civil, César celebrou quatro desfiles triunfais refentes às vitórias nas guerras na Gália, seis anos após a rendição de Vercingentorix, assim como o triunfo sobre o Egito, o Ponto e a Numídia em 46, após retornar da vitória em África (CANFORA, 2002, p.149 e 267). 113 No desfile, César exibiu cativos régios como o filho de Juba I112 e uma rainha acorrentada, Arsinoe (irmã de Cleópatra). Desfilaram, dentre outras coisas, estátuas representando os rios Ródano, Reno e Nilo (evocando a imensidão de suas conquistas), uma cópia reduzida do Farol de Alexandria arrematado por uma chama (Floro, II, 13, 88), além das famosas palavras “VENI, VIDI, VICI!” (Suet. Caes. 37). Por fim, seguindo a tradição, César foi “vestindo púrpura em um carro puxado por cavalos brancos, e quando terminou a cerimônia, desceu o capitólio até sua residência escoltado por quarenta elefantes, em cujo dorso havia tocha acesas” (Suet. Caes. 37) Mas assim como Pompeu, César também teve problemas com seu carro triunfal quando este quebrou no primeiro desfile da série de triunfos. O veículo partiu-se ironicamente em frente ao templo de Felicitas onde o triunfador quase caiu e ainda teve que esperar um carro substituto. Além disso, na procissão, seus soldados cantavam musicas sobre sua calvície que o deixaram desgostoso (Suet. Caes. 37). Afora os acidentes, nos interessa identificar as transformações nas performances das procissões triunfais advindas do contato com as sociedades helenísticas. No Oriente, J. Pollitt (1986, p.46) lembra que nas procissões, além das representações de caçadas e cenas de batalha, havia também monumentos que celebravam as conquistas dos governantes em representações ligadas aos feitos militares ou aos deuses. Porém as evidências são limitadas e exclusivamente literárias. Plínio, por exemplo, menciona obras do pintor Apeles, que parecem se encaixar nessa categoria: a figura da "Guerra (Polemos), com as mãos amarradas atrás das costas andando com Alexandre em um carro triunfal", "Castor e Pollux com Alexander e a Vitória e "Antigonos, vestindo uma couraça, marchando junto com seu cavalo" (HN 35.9396). De acordo com Pollitt (1986, p.46) e Beard (2007, p.168) Kallixeinos de Rodes113 descreveu a procissão de Ptolomeu II Filadelfo (c. 276) em Alexandria, ocasião na qual foi apresentada imagens de Alexandre e de Ptolomeu seguidas pelas imagens da Virtude, da Vitória e uma personificação da cidade de Corinto. Pollitt (1986, p46), pensa que as referências literárias chamam a atenção para “pinturas e esculturas triunfais romanas” e sugere que a arte helenística teve alguma influência sobre a procissão do triunfo em Roma. Da mesma maneira, M. Beard (2009, p.168) 112 Juba I (c. 85-46 a.E.C.) rei da Numídia. Fiel cliente de Pompeu, conduziu o exército númida na Batalha de Tapso, na qual as forças pompeianas foram derrotas, e terminou por suicidar-se. Seu filho Juba II (52-23 d.E.C.), feito prisioneiro aos seis anos de idade, foi exibido no triunfo de Júlio César, e educado na casa imperial romana. 113 Kallixeinos (ou Callixeinos) - descrição preservada em Deipnosophistae 197A-202B de Athenaios (c. 200 a.E.C.) reproduzida em J. Pollitt (1986, p.280) e também M. Beard (2007, nota 58, p.366) menciona a mesma documentação. 114 acredita que o desfile de Ptolomeu Filadelfo, tipicamente helenístico, pode ter influenciado, direta ou indiretamente, a forma, a grandeza e aparência do triunfo romano. Nos comentários antigos, o triunfo aparece repetidas vezes sob a retórica da inovação, enfatizando a ideia de que os triunfos eram cada vez mais longos e ricos do que foram até então. Para Beard (2009, p.41), a documentação retorna repetidamente à questão de como as exibições eram montadas, “como se a representação em si, suas convenções, invenções e paradoxos, fossem uma parte central do show”. De forma que as descrições da cerimônia do triunfo “em muitas versões escritas, a representação (ou mimesis) atinge seus limites, e onde o espectador (ou leitor) é convidado a decidir o que conta como imagem, ou onde esta a fronteira entre a realidade e a representação desenhada”. Nesta perspectiva, em um artigo acerca da procissão fúnebre (pompa funebris), Diane Favro e C. Johanson (2010, p.17-23) propõem a reavaliação das evidências literárias e de cultura material utilizando a computação gráfica como uma ferramenta de pesquisa. Desse modo, investigações valiosas podem ser realizadas sobre o impacto experiencial e propagandístico do funeral em Roma. Mesmo sendo problemático construir um argumento explicativo sobre o funeral romano da República média, os autores propõem essa recriação digital da procissão como uma potencial chave para compreensão da coreografia do evento em meados do segundo século. A partir dos dados e da visualização obtida, os autores concluíram que a procissão era “espetacularizada” e a reconstituição do trajeto permitiu concluir que a rota funcionava tanto como um meio de reunir os participantes, que mais tarde lotariam o fórum durante a oração fúnebre, como também promover a popularidade do falecido e da família. Essa abordagem nos fez refletir sobre a procissão triunfal e a questão da visualidade e da performance, de modo a tentar “experienciar”, mesmo sem os recursos digitais, toda a aparência, grandeza, música, sons, cheiros e principalmente, imaginar o impacto visual das obras de arte, do cortejo, o ouro, as esculturas, as representações das batalhas e dos deuses. Imaginar a aparição do triumphator, vestido como Júpiter, associado ao deus e porta voz da sua vontade. Todas essas sensações e sentimentos, provavelmente influíam no significado das cerimônias de triunfo, visto que se relacionavam à demonstração da grandeza dos generais e do poderio de Roma. Concordamos com M. Beard (2009, p.41) ao dizer que mais importante do que saber como foram realmente as procissões, é pensarmos em como os discursos foram lembrados, embelezados, discutidos, e incorporados à mitologia mais ampla do triunfo romano como uma instituição histórica e categoria cultural. No entanto, no contexto do século I, a “cerimônia do 115 triunfo, assim como outras instituições em Roma, não escaparia das implicações advindas das lutas pela supremacia política entre as grandes famílias” e a competição familiar como diz D. Favro e C. Johanson (2010, p.23) “não seria apenas simbólica, mas espetacular”. 4.2.3 Retrato – imagines e os ancestrais O retrato helenístico se caracterizava pela adequação do modelo escultórico ao status social do retratado. Os efebos, por exemplo, eram representados dentro do modelo da “plácida beleza juvenil” ou, no caso da realeza, expressando inspiração divina, ou ainda no caso dos filósofos e oradores, cuja atitude de reflexão e de concentração era expressa pela barba. Por volta do século II, certamente os retratistas gregos tinham um conceito de retrato fiel à natureza, no sentido de uma fidelidade mimética. Entretanto, nos retratos régios, o realismo não era comum e a realeza macedônica, por exemplo, tendeu mais à idealização e à divinização (SMITH R., 1981, p.26). Em contrapartida, o retrato romano no mesmo período caracteriza-se por um modelo que aspirava à semelhança, distinguido em grande parte, pelas representações de “homens endurecidos pela batalha, envelhecidos, imberbes, com rugas, às vezes com cicatrizes faciais, com cabeças raspadas ou calvas, barbeado, olhares para frente e intensamente realista” (WELCH, 2006a, p.9). Contudo, não podemos esquecer que todo trabalho artístico é idealizado. Ernest Gombrich (1981, p.68-79) diz que “não existe corpo humano que seja tão simétrico, bem formado e belo quanto os das estátuas gregas” porque a escultura buscava a idealização da forma humana e almejava a representação de um corpo que expressasse os princípios da razão e do equilíbrio.114 Ou melhor, a criação do artista se vale do planejamento e da elaboração das formas, linhas e volumes. A arte é uma construção do artista, ela nunca será o registro fiel de uma experiência visual, mas sim “uma construção fiel de um modelo relacional”. Seguindo esse argumento, podemos dizer que o realismo romano também seguia uma idealização, e até mesmo as representações que evidenciavam os defeitos ou a feiura eram propositais. Em Roma, segundo E. Gruen, o “‘verismo’115 do retrato também serviu para confirmar valores e concepções caras à sociedade romana” (1992, p.152). 114 Concordam nessa questão: HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2000; PISCHEL, Gina. Historia universal da arte 1. Milão: Arnoldo Mondadori Editore. Trad.: Raul de Polilo, 1966; UPJOHN, WINGERT, MAHLER. História Mundial da Arte I. Difel, S.A. São Paulo. 1975. 115 Verístico (ou Verismo) – do italiano veristic, significa: verdadeiro, fiel à realidade. O verismo, muitas vezes descrito como "arts and all", é o termo usado para descrever o estilo de representação que mostra as 116 O retrato romano estava ligado às imagines maiorum, técnica de retratos de cera dos ancestrais colocadas no atrium116 das casas em Roma e profundamente relacionados à memória dos antigos, tornando-se parte viva da experiência cotidiana e um traço da cultura romana. O direito de portar imagens de seus ancestrais (ius imaginis) permitia ao membro da nobilitas ter uma máscara de cera (imago) de si, direito esse transmitido aos seus descendentes, assim como o privilégio de ter um funeral à custa do Estado. Na pompa funebris, a imago era usada por um ator que vestia a roupa e as insígnias do falecido para representa-lo no seu papel durante o cortejo. Outros atores também desempenhavam papeis de outros antepassados vestidos também com máscaras (POLLINI, 2007, p.237). As imagines tinham uma importante dimensão mágico-religiosa de forma que estavam presentes em variados aspectos da vida romana. Dada a forte relação entre a política e religião em Roma, e no mundo antigo em geral, a pompa funebris, sendo um ritual público, tinha a função de promover a interação coletiva das experiências e valores sociais (POLLINI, 2012, p.25). H. Flower (2006, p.32-3) esclarece que a palavra imago, abrange muitos sentidos e nuances de significados sociais. Imagines maiorum é a técnica de retratos de cera dos ancestrais colocados no atrium. Mas o termo statuae et imagines por outro lado, refere-se a todas as representações da pessoa, e nesse contexto, imago se relaciona aos bustos e relevos como oposto da escultura. Já no texto de Plauto, segundo a autora, a palavra imago é usado para se referir a aparência física em peças que tratam de duplos e disfarces, em que dois personagens parecem idênticos, quer dizer, em Plauto117 a palavra converge para a ideia de “semelhança” ou “cópia”. Também R. Daut diz que “a palavra não é usada como termo crítico ou no contexto de discussão de arte durante a república e não é combinada com nenhum adjetivo estético” (DAUT, 1975, p.53 apud FLOWER, 2006, p.34). Ou seja, realmente o termo em si é amplo em sentidos, considerando-se que imagines possibilitavam reverenciar a importância da atuação dos seus antepassados e sua importância para a grandeza de Roma. Isto posto, acrescentamos que o uso público das imagens dos ancestrais sugere que os romanos tinham consciência da função dos retratos de seus antepassados como símbolo importante em sua cultura. Porém, a principal característica das imperfeições do indivíduo, tais como verrugas, rugas e sulcos. Esse estilo é característico dos retratos romanos (cf. Gruen, 1996, p.153). A. Stewart (2006, p.174) diz que o realismo helenístico, “iluminou o caminho para o verismo republicano romano e seus primos tardo helênicos.” 116 Atrium era a entrada principal da residência romana. Os demais cômodos da casa eram construidos em torno dele para que fornecesse a luz necessária às divisões que o circundavam. 117 Plauto, Amphitruo 458=T53. 117 máscaras dos ancestrais era sua função política e estudá-las nos ajuda a entender seu papel tendo em vista uso das imagines como símbolo de prestígio social e político. As imagines constituíam um fator vital para as famílias manterem sua proeminência e influência. Inicialmente a competição entre as importantes famílias pelas magistraturas, segundo Flower (2006, p. 89-90) ensejou a adoção de normas e regras de forma a manter uma “cordata concorrência nas frequentes eleições, sem perigo para a estabilidade do governo.” Nesse sentido, a publicização das imagens dos ancestrais pelos aristocratas se dava por meio de uma grande variedade de suportes, incluindo: estátuas, medalhões, relevos, moedas, camafeus e inscrições. De modo que as procissões fúnebres atuavam como uma propaganda, pois a aristocracia apresentava ao público as imagines dos ancestrais (FAVRO e JOHANSON, 2010, p.16). Da mesma maneira, os monumentos funerários serviam ao propósito da propaganda familiar e um exemplo interessante é a tumba dos Cipiões (fig. 15). Segundo Wallace-Hadrill (2008, p. 221-4), o túmulo recebeu uma grande reformulação em meados do século II, certamente por Cipião Emiliano Africano, que lhe deu uma fachada arquitetônica elaborada em “linguagem helenística” acrescentando uma série de retratos de seus antepassados, incluindo os do próprio Cipião Africano (fig.16) e Cipião Asiático (fig.17) além do poeta Ênio (Tito Lívio, 38-56). Dois bustos encontrados no começo do século XVII, acredita-se serem dos Cipiões, mas foram errôneamente identificados como sendo os retratos de Sila e Mário. Fig. 15: Tumba dos Cipiões restaurada por Cipião Emiliano na metade do séc. II Fonte: Coarelli, figura E, 1972, Richardson, 1992 p.360 e Wallace-Hadrill, 2008, p.221. Para Wallace-Hadrill (2008, p.223), o requinte da fachada ajudou a definir uma nova moda na prática do sepultamento e também dos monumentos “destinados a impressionar os transeuntes e não apenas a atender às necessidades internas da família”. Contudo, mais que a inovação estilística, para o autor, os Cipiões, “exemplificam não tanto o comportamento 118 padrão da nobreza, mas a capacidade romana de se adaptar e explorar com vantagem e de forma criativa as concepções tradicionais.” Para nós, essa é mais uma evidência de novos elementos formais e estilísticos contribuindo para as transformações da linguagem visual em Roma. Fig. 16: Retrato identificado como Cipião Africano chamado ‘Sila’. Mármore do final do séc. II. Adquirido em 1897 no Palazzo Barberini, em Roma. Ny Carlsberg Glyptotek Copenhagen. Fonte: Wallace-Hadrill, 2008, p.222. 118 Fig. 17: Retrato identificado como Cipião Asiático chamado ‘Mário’ Mármore do final do séc. II. Encontrado em Tusculum, Frascati, perto de Roma. Ny Glyptotek Munique Segundo J. Pollini (2012, p.48-9), esse retrato reflete a tradição barroca da arte helenística. Fonte: Wallace-Hadrill, 2008, p.222; Pollini, 2012, p.49 Considerando-se esse dado, é possível analisar o binômio tradição/transformação social em Roma a partir do uso dos discursos textuais imagéticos. No discurso de Mário em 118 Imagem: http://ancientrome.ru/art/artworken/img.htm?id=2431acesso Acesso em: fev 2014 119 107, Salústio indica que as imagines significaram o triunfo de um homo novus sobre as familias tradicionais. Isto porque ao se comparar aos nobiles, o cônsul argumenta que suas condecorações militares e cicatrizes tornaram-se suas imagines. Com esta metáfora, Mário se coloca como a expressão viva do “conceito de self-made do homem público romano” (FLOWER, 2006, p.16-21). Eu não posso, para corroborar sua certeza, apresentar as máscaras ou os triunfos e consulados de meus ancestrais. Porém, se necessário, eu posso mostrar lanças e estandartes apresentados pelo seu valor, medalhas, outras condecorações militares, além das cicatrizes sobre meu corpo. Estas são as minhas máscaras, esta minha 'nobreza', não herdada, como no seu caso, mas conquistadas através de inúmeros esforços e perigos. Salústio (Jug. 85 29-30) (grifo nosso) A passagem confirma a conexão entre ancestralidade, especialmente representados pelas imagines e a retórica política. Conforme H. Flower (2006, p.22-3), o texto de Salústio dá a impressão de que Mário evocou os ancestrais à propósito de comparação, mas também pensando em sua própria imago e futura reputação, uma vez que ele não era mais um estranho, mas sim um membro da “nobreza de ofício”. Em outras palavas, as imagines permitiram-lhe chamar a atenção do público para sua figura e ao mesmo tempo competir com seus rivais aristocratas ao comparar-se aos ancestrais deles. Podemos afirmar que o ius imagines foi associado aos demais valores que regiam o comportamento político e contribuiu para ampliar a condição, a autoridade e a popularidade dos aristocratas. Fig. 18: Sacerdote egípcio da ágora ateniense – retrato naturalista da arte helenística Museu de Agora. Fonte: J. Pollini, 2012, p.43. No que concerne ao retrato, retornamos a questão do “realismo” em Roma. E. Gruen (1992, p.159) descarta a ideia de que o realismo romano foi concebido a fim de se diferenciar 120 do estilo de retrato naturalista helenístico. Até mesmo pelo fato de o retrato grego tardio possuir características fortemente análogas e algumas vezes indistinguíveis, da produção da Roma republicana. Na Grécia, nas ilhas, na Ásia Menor e no Egito encontramos o mesmo fenômeno de retrato naturalista (fig. 18). No século I observamos que “dois processos opostos estão ocorrendo em ambos os lados do Adriático: ao mesmo tempo que o retrato romano estava sendo helenizado, o retrato grego estava sendo romanizado” (HARRISON, 1953, p.85 apud POLLINI, 2012, p.44-5). Todavia, o retrato naturalista grego continuou sendo incomum. Na discussão do naturalismo e idealização dos retratos, os casos de Pompeu e César nos revelam algumas práticas discursivas interessantes. Em relação a Pompeu, tanto a documentação textual, quanto de cultura material nos revelam que ele buscava aproximar seu retrato ao de Alexandre o Grande e são recorrentes alusões feitas à semelhança física e a juventude do macedônio. Plutarco, por exemplo, descreveu Pompeu como de uma “dignidade afável” enquanto: [...] há certa suavidade aumentada pelos seus cabelos e uma flexibilidade nos contornos de suas faces ao redor de seus olhos, produzindo uma semelhança muito comentada com a aparência das imagens do rei Alexandre. (Pom. 2.1) Por sua vez, um retrato de Pompeu (fig.19) da época do seu primeiro consulado, apresenta uma inclinação da cabeça, o topete e as linhas da testa, reproduzindo as características da imagem feita por Lisipo (fig.2 e fig.5), talvez com a esperança de que os espectadores o associassem a Alexandre (RAMAGE, 1995, p.71; POLLINI, 2012, p.50). O tipo idealizado foi repetido em um posterior busto do período do seu segundo consulado (fig.20). Esses retratos reforçam o discurso textual que aproximava Pompeu de Alexandre e corroboram essa intenção de propaganda também no complexo do teatro como vimos na seção 4.2.1. Fig. 19: Retrato de Pompeu Magno na época do seu primeiro consulado (c. 70). Composição escultórica visando semelhança à imagem de Alexandre feita por Lisipo. Museu Arqueológico de Veneza–fonte: J. Pollini, 2012, p.50. 121 Fig. 20: Retrato de Pompeu Magno na época do seu segundo consulado. Origem: Roma Cópia mármore séc. I d.E.C. de original c. 60-50. Ny Carlsberg Glyptotek. Fonte: Pollini, 2012, p.50 Em relação a César, há uma grande quantidade de descrições físicas na documentação antiga nos informando de sua aparência, inclusive de sua progressiva calvície e da conformação estranha de seu crânio, hoje chamada de clinocefalia (J. TOYNBEE, 1978; BEARD e HENDERSON, 2001; POLLINI, 2012). Suetônio (Caes. 45), por exemplo, diz que César “era de elevada estatura e pele clara, com membros bem formados, um rosto cheio e afiados olhos escuros”, tinha também “especial cuidados com sua pessoa, não só com seu corte de cabelo e rosto barbeado cuidadosamente”. Afirma, ainda que o general lamentou “amargamente a perda de sua aparência devido a calvície e muitas vezes era alvo de piadas de seus adversários. E por esta razão aquirira o hábito de pentear os poucos cabelos por cima da testa”. E ainda acrescenta, com certa ironia, que de todas as honras concedidas ao ditador pelo Senado, “nenhuma outra aceitou e aproveitou com tão boa vontade como o direito de usar sua coroa de louros em todas as ocasiões”. A partir das inscrições, somos também informados sobre as muitas estátuas e retratos em honra de César. Dion Cássio menciona de uma estátua erguida no templo de Nike na Ásia c. 74,119 e uma estátua de bronze após a vitória na África em 46, cuja inscrição o denominava de “semi-deus”.120 Cita também a existência de uma estátua de marfim exibida no Circo, outra com inscrição “o deus invencível” no templo de Quirinus, e mais uma no Capitólio votada pelo Senado em 45;121 e em todos os templos de Roma e duas na Rostra em 44.122 Plínio 119 DC, xliii, I 4, 6; DC, xliii, 45, 14,6 121 DC, xliii, 45, 2-4; cf. Cícero Ad Atticum xii, 45,3; Suetônio 76. 122 DC, xliv, 4, 4-5 120 122 menciona uma estátua de César usando uma couraça (toracata) em seu Forum 123 e Apiano ainda comenta que muitos templos foram inaugurados ao divino César, sendo que, em um deles, o ditador foi representado junto à deusa Clementia em um aperto de mãos, de modo que “enquanto o poder de César era temido, sua clemência era rogada."124 Fig. 21: Retrato de Júlio César. Mármore - Museu de Tasos. Fonte: J. M. Toynbee, 1978, p.38. Infelizmente, restaram poucas estátuas de César. Mas um busto originário das províncias gregas apresenta características que levam a afirmar ser a fisionomia do general (apesar de estar danificada), tais como: a testa franzida, olhos profundos, a projeção das maças do rosto e o pomo de Adão (fig. 21), e além disso, ela apresenta a descrição de Suetônio quanto ao cabelo e a franja arrumada sobre a testa abaixo da corona civica. J. Toynbee (1978, p.37-8) argumenta que por não apresentar a tipologia estilística das obras realizadas naquela região, o escultor da ilha grega provavelmente viu a estátua de César que ficava na Rostra em Roma e que foi elaborada antes de seu assassinato. Contudo, o retrato de Júlio César considerado o mais próximo de sua aparência antes de seu assassinato, conforme mostram as imagens das moedas e das fontes textuais, é o busto de Túsculo (fig. 22). Segundo Pollini (2012, p.51), a imagem foi baseada provavelmente em algum retrato criado entre a data em que César tornou-se ditador em 46 e dictator perpetuus em 44, quando ele estava por volta dos 54 ou 56 anos. O autor denomina esse modelo de “César ditador”. 123 124 Plínio, NH, xxxiv, 10 (18) Apiano, BC, ii, 106. 123 Fig. 22: Retrato de Júlio César. Mármore Origem: Túsculo. Museu de Antiguidades de Turim. Imagem: Pollini, 2012, p.51 Diferente do modelo “ditador”, outro busto famoso, hoje na sala Chiaramonti do Vaticano (fig. 23), é denominado por Pollini (2012, p.52) como o modelo “Divus Iulius” devido à “classicização”, ou seja, após a reinterpretação de Augusto.125 A imagem classicizada de César pode ser originalmente atribuída a Otaviano para o culto de Divus Iulius no templo do Forum em Roma. O busto chamado Chiaramonti, segundo o autor, “reformula a imagem verística de César, conformando-a as preferências ideológicas do classicismo augustano na fundação do Principado”. Esse retrato enobrecido e rejuvenescido da face característica de César teria ajudado a Augusto a “transmitir seu novo status de divindade do Estado.” Essas questões nos auxiliam a pensar nas representações de César nas moedas romanas. Fig. 23: Retrato de Júlio César. Mármore. Cópia augustana de original de bronze. Sala dei Busti – Museu do Vaticano. fonte: Pollini, 2012, p.51 125 Concorda com essa avaliação J. Toynbee, 1978, p.34. 124 Ainda sobre a questão do naturalismo e da idealização, para Gruen (1992, p.170), o objetivo do retrato verista não foi a reprodução fiel, mas a transmissão de uma imagem estilizada. O artista deveria incorporar os traços pessoais do indivíduo, assim como na arte helenística, no entanto, “o contexto romano requeriu mais ênfase” devido ao aumento no individualismo romano e a nobilitas “se esforçou ainda mais para articular os valores e princípios comuns” da sociedade. J. Pollini (2012, p.52) corrobora essa ideia ao afirmar que os retratos foram um meio de expressar materialmente os valores éticos e as virtudes romanas, tais como severitas, gravitas, constantia, e dignitas.126 Ou seja, o retrato naturalista fez parte do processo de reafirmação dos valores tradicionais, dos costumes ancestrais (mos maiorum). Em consonância à ideia acima, também K. Welch (2006a, p.9), afirma que a “peculiaridade do retrato romano de aparência realista foi uma expressão do competitivo ethos de glória militar e do duro esforço da coletividade senatorial de compartilhar o poder entre a própria elite”. Os romanos, ao adaptarem a convenção naturalista da arte tardo helenística aos seus propósitos, permitiram que o exagero realista definisse os traços da sociedade romana ao mesmo tempo que a distinguia. 4.3 Comunicação política e as moedas romanas - a arte da representação A arte de um povo permite vislumbrar um pouco da sua cultura, isto é, sua religião, política, os modos de vida, pois ela identifica os usos, projeções e disseminação do imaginário visual na comemoração honorífica de suas realizações. No caso das representações políticas no mundo antigo, a moeda proporcionou um meio de comunicação de ágil difusão, pois além de extrapolar os espaços originalmente destinados, a moeda contém uma grande quantidade de informação em um espaço reduzido, de maneira que era preciso especificar seu significado e simbolismo em uma messagem compreensível, clara, direta e concisa (ESCALONA, 2011, p.443). Nessa direção, Elena Ramírez (2011, p.423) postula que sociólogos, linguistas, historiadores e psicólogos acreditam que o fenômeno da propaganda compartilha uma série de aspectos fundamentais, implica dizer, “a propaganda consiste na utilização deliberada, planejada, racional e metódica de uma série de símbolos linguisticos ou visuais e de técnidas 126 Valores que regiam o comportamento político romano e significam: Severitas (severidade, autocontrole), gravitas (seriedade, responsabilidade e determinação), constantia (constância ou perseverança em face da adversidade), dignitas (dignidade no sentido de auto-orgulho). Cf. José Guillén (1994, p.275). 125 psicológicas com a finalidade de transmitir uma mensagem concreta que busca exaltar ou valorizar uma ideia ou pessoa” a fim de provocar a adesão. No caso de Roma, observamos que a iconografia numismática do período da República tardia se caracteriza por uma ampla gama de alegorias. Isto porque a cunhagem romana foi o mais produtivo campo de experiências iconográficas, apresentando um multifacetado e extremamente flexível repertório de imagens e símbolos, que “foram inventados, adotados e combinados uns com os outros em uma variedade quase desconcertante” (HÖLSCHER, 2006, p.44). Na República, segundo Pollini (2012, p.5ss), “a aplicação das imagens artísticas oficiais do Estado foram usadas com certa eloquência, em uma ‘retórica’ de apresentação, comunicação e comemoração dos ideais e virtudes romanas”. Essa retórica empregada na estatuária e nos relevos oficiais se assemelha ao panegírico que os romanos chamavam laudatio. Isto porque o líder romano procurava projetar sua imagem para a política, mas também para estabelecer perante homens e deuses suas virtudes e conquistas, porque elas mereciam ser lembradas de uma forma positiva, ad infinitum. Ainda segundo o autor, preservar o nome através da memória era a essência da imortalidade para os romanos. Desta forma, a distinção pública a serviço do Estado obtida pelos políticos romanos, lhes facultava integrar a memória da cidade e não somente na memória privada da família. Deste modo, a iconografia oficial não serviu apenas para glorificar o líder do Estado, mas também ajudou a promover suas ambições e objetivos políticos. Segundo Pollini (2012, p. 69-70), devido a grande “variedade de tipos, frequentes emissões, distribuição relativamente generalizada e durabilidade” a cunhagem se constituiu em um meio adequado para a propagação de mensagens políticas”, bem como para a divulgação das realizações e programas da liderança política. Temos assinalado ao longo do trabalho, a estreita relação entre a religião e a política no mundo antigo, mas ao observamos as moedas romanas, os indícios iconográficos dessa relação se confirmam na grande quantidade de símbolos e alegorias da vida religiosa romana presentes nesse suporte. Pollini (2012, p.70) recorda que os romanos acreditavam terem conseguido o maior dos impérios devido a sua pietas e P. Brunt (1978, p.162) afirma que a diferença entre a ideologia imperial de gregos e romanos é que os últimos acreditavam que seu império era “universal e querido dos deuses”. Essa assertiva se confirma ao observarmos as moedas, especialmente a partir do século I, e verificamos que a característica dominante da autopropaganda romana foi a representação da relação entre indivíduos e deuses e como reforço da posição do líder e validação dos seus 126 programas e ações. Nesse sentido, a “memorialização tomou diferentes formas, levando à consagração e deificação de grandes líderes do Estado romano, começando com Júlio César em 42” (POLLINI, 2012, p.70). Além dos símbolos rituais e dos deuses do panteão romano, encontramos algumas imagens simbólicas das moedas também no discurso imagético textual. A partir da terminologia política romana, Claude Nicolet (1991, p.31) descreve um documento da época da Guerra Social (c. 90) onde o poder romano é definido como “o império do mundo, o império para o qual todas as nações, todos os reis, todos os povos consentiram”127, isto é, o texto evoca a imagem de mundo se referindo a Roma. Esta representação tornou-se cada vez mais popular, como mostra uma inscrição feita por Pompeu onde ele gravou suas conquistas na Ásia. Na reprodução feita por Diodoro da Sicília, podemos verificar a referência a Roma relacionada aos limites do império. Pompeu o Grande, filho de Gneus, imperator, (...) estendeu as fronteiras do Império para os limites da terra, e garantiu e aumentou as receitas do povo romano – ele, pela confiscação de estátuas e imagens criadas para os deuses, bem como outros valores retirados do inimigo, dedicou à deusa Minerva 12.060 peças de ouro e 307 talentos de prata. (Diodoro, Livro 40.4) Para Nicolet (1991, p.32-3), o termo orbis terrarum é mencionado duas vezes significando as bordas do império, e sendo confundido com oikoumene. O autor enfatiza que o texto de Diodoro é semelhante à versão de Plínio ao recordar a inscrição da dedicação do butim de Pompeu ao templo da deusa Minerva, e ainda outro, apresentado no praefatio (fórmula de anúncio) de seu triunfo, ambos citados por Plínio (NH, 7.97-8). Outra referência textual que faz menção a ideia de domínio universal é um documento oficial, a lei Gabinia Calpurnia de insula Deli aprovada em 58 e preservada em inscrição biligue (CIL, 12.2500), cujo conteúdo mostra a garantia de vantagens fiscais e jurisdicionais a Delos. Porém, o que vale ressaltar é a expressão orbis terrarum significando “todo o mundo” foi usada duas vezes texto da lei, e de acordo com Nicolet (1991, p.34), a expressão é uma “forma simbólica da representação” do Estado romano. Nas moedas republicanas a simbologia do orbis terrarum pode ser interpretada no sentido de “dominação universal” e consiste no globo associado com outros temas. Contudo, no desenvolvimento dessa simbologia, o globo aparece associado a outros símbolos de dominação, servindo como suporte para outras figuras que reforçam a ideia de posse. O 127 Ver C. Nicolet (1991, nota nº 18, p.50). 127 exemplo mais antigo é um denário (moeda 7) onde o globo aparece entre um cetro com a grinalda a esquerda e um leme de um navio à direita; no reverso aparece a cabeça do Gênio (genius) do povo romano. O cetro e o leme/timão claramente ilustram a fórmula terra marique,128 de origem helenística encontrada em referências a Alexandre e dos monarcas que reivindicavam serem seus sucessores (NICOLET, 1991, p.35-6). Moeda 7: Denário de prata de Cn. Lentulus. Rev. Cabeça com diadema do Genius Romano. Anv. Globo entre cetro com grinalda e leme de navio. Cunhagem militar Espanha c. 75-75.129 Interessante observar que a primeira referência literária para império ou vitória sobre a “terra e mar” consta do texto De Imperio Pompeio onde Cícero diz: “Uma lei (...) suficiente para fazer-nos, finalmente parece, ser o verdadeiro mestre de todos os povos e todas as nações da terra e do mar” (Imp. Pom, 56). Outro símbolo de dominação apropriado pelos romanos, e que se tornou constante na iconografia numismática, foi o troféu. Na Grécia arcaica, após a batalha, um símbolo deveria ser erigido para demonstrar o domínio do vencedor: o troféu (tropaion), armadura do inimigo ligada a um tronco de árvore formando uma espécie de “manequim monumental”. Com o passar do tempo, quando Atenas desenvolveu uma política de Estado e passou a simbolizar suas vitórias com monumentos, o troféu desligou-se da batalha e tornou-se um símbolo de comemoração. No período helenístico, as campanhas e as estratégias militares se ampliaram no tempo e espaço tornando a conquista do poder político mais difícil e o tropaion mudou novamente de significado. Hölscher (2006, p.29-34) lembra que Alexandre, quando estava na Índia, prestes a retornar à Babilônia (p.76), não só erigiu um tropaion como também construiu um altar para sacrifício, de forma que este gesto garantiu um “caráter sagrado e assegurou sua permanência excedendo em muito a sacralidade normal do tropaia”. Desta forma, o 128 Terra marique – expressão latina que significa “valoroso em terra e no mar.” Ver A. Momigliano, Journal of Roman Studies, Vol. 32, 1942, p.53-64. 129 Monetário: Cn. Cornelius Lentulus; Moeda: Denário; Período: 76-75 a.E.C.; Local: cunhagem militar na Espanha; Anv: cabeça com diadema do Genio do povo romano G(enius) P(opuli) R(omani) virado à direita, cetro sobre o ombro; Insc.: G•P•R; Rev.: Cetro com a grinalda, globo, e leme; Insc: EX-SC / C N.LEN Q (Cn. Cornelius Lentulus); Ind.: RRC 393/1a; Imagem: Bruce Antonelli http://www.coinproject.com/coin_detail.php?coin=5530 128 monumento de Alexandre “definiu o domínio de todos os deuses gregos a quem ele atribuiu sua superioridade sobre seus inimigos.” Roma adotou o tropaeum, como um símbolo de vitória militar, no período de expansão territorial do século II, sendo que o primeiro monumento com troféus de guerra foi erigido por C. Domício Enobarbo e Q. Fabio Maximoem 121.130 Significativamente esses monumentos foram combinados com dois templos dedicados a Marte e Hércules, deuses da guerra e das expedições. Além disso, essas construções foram colocadas em campos de batalha em momentos decisivos, de forma que passaram a significar muito mais que o tradicional tropaion grego, muito além de um simples símbolo de comemoração. Quer dizer, ao combinar o troféu a um templo, os romanos fizeram com que esses monumentos passassem a ter um caráter territorial, pois objetivavam imprimir o significado de domínio do espaço por Roma a todos os que o confrontavam. Difícil apreendermos o significado do tropaeum em sua totalidade, principalmente nos campos de batalhas e nas províncias. Todavia, Hölscher (2006, p.34-5) propõe que em um segundo nível de significado, os monumentos territoriais remetiam à ideia de dimensão territorial do orbis romanum. Os marcos de vitória e os lugares de culto passaram a representar uma complexa ideologia ligada ao domínio do estado romano. Nesse sentido, os troféus não foram somente monumentos (ou imagens) “pós-simbólica de vitórias reais conquistadas pela força militar: eles também significaram a subjugação concreta” Contudo, diferente da iconografia das moedas gregas e helenísticas, um aspecto relevante da numismática romana é a referência aos ancestrais. Esse topos da cultura, iniciada no final do século II, tomou uma dimensão cada vez maior no cotidiano visual romano. Como vimos na primeira parte deste capítulo, as imagines possibilitam não só preservar memória, mas também criá-la. E a moeda permitiu tornar a herança da glória familiar em objeto concreto, de modo que as imagines foram conectadas ao dinheiro e às aspirações políticas da aristocracia romana (FLOWER, 2006, p.23). Originariamente, nos denários da república, predominavam as imagens ligadas ao Estado. As moedas, que ficavam a cargo dos triúnviros monetários (triumviri monetales), normalmente jovens no início do cursus honorum, começaram, desde o final do século II, a utilizar a iconografia das moedas como veículo de comunicação para publicizar a honra das 130 Gnaeus Domitius Aenobarbus (?-88 a.E.C.) e Quintus Fabius Maximus Allobrogicus - Os dois generais partiram em 121 a.E.C. para a Gália, onde os Arvernos e os Alobrogi se opunham à conquista romana da Ligúria. Depois de derrotar os dois povos, Q. Fabius recebeu os cognome de Allobrogicus e comemorou seu triunfo exibindo Bituitus, o rei dos Arvernos. 129 famílias, através da representação da imagem dos antepassados (CRAWFORD, 1983, p.728, CLARK, 2007, p.137; ZANKER, 2008, p.31).131 Com a prerrogativa da cunhagem, as famílias da oligarquia senatorial exploraram em proveito próprio a referência aos ancestrais que passou a caracterizar a cunhagem romana. Tais imagens foram de vital interesse na educação dos grupos que apoiavam o governo aristocrático. “A grande variedade de tipos e inscrições foi, certamente, também um resultado da intensa competição política e social em Roma durante a República tardia” (FLOWER, 2006, p.79-81). Algumas emissões visavam o exército e comumente eram usadas para pagar os soldados, entretanto essas moedas circulavam e as mensagens eram vistas pela comunidade em geral, alvo frequente da propaganda política. Podemos nos perguntar se a complexa iconografia era entendida pelas pessoas comuns do império? Segundo H. Flower (2006, p.82-3), é preciso considerar o papel das imagens na vida cotidiana. Mais especificamente, é preciso notar que as imagines dos antepassados eram exibidas constantemente nas construções, em estátuas e pinturas. Além disso, a autora argumenta que o cidadão comum tinha acesso aos temas políticos e mitológicos, nos jogos ou no teatro, de forma que a comunidade estava habituada a fazer observações sobre os assuntos contemporâneos. A familiaridade com as imagens permitiu que a iconografia numismática fosse concebida com “diferentes significados para espectadores de sofisticação diferenciada”, o que explicaria a complexidade do repertório pictórico ao misturar representações dos deuses (facilmente entendidas) e mensagens políticas (pouco mais complexas). A partir dessas considerações, concordamos com Flower (2006, p. 65 e 83) ao dizer que é temerário afirmar que o cidadão comum não tenha sido capaz de interpretar as imagens que se tornaram obscuras para nós. O aumento da sofisticação iconográfica mostra como os antepassados e suas conquistas foram poderosa e flexível ferramenta na política das famílias romanas. Contudo, importa ressaltar que o “vocabulário de símbolos dirigia-se a audiência que já tinha conhecimento sobre retratos dos ancestrais obtido de muitas fontes e vários meios artísticos”. Um exemplo do conhecimento das imagines pela comunidade, e também de inovação, é um denário do ano de 54. Tradicionalmente, vemos que a imagem do ancestral ocupava o 131 Em relação à cunhagem romana, Luiz A. Corrêa do Lago (2004, p.14) resume o sistema monetário romano: “A república romana desenvolveu, no final do séc. III a.C., um novo sistema monetário baseado no denário de prata (equivalente a 10 asses de bronze), possivelmente introduzido em 212-211 a.C., e que permaneceria a base do sistema monetário romano por mais de 400 anos. De fato, Augusto, o primeiro imperador romano (27a.C a 14 d.C) manteve o denário e introduziu a cunhagem regular do aureus, (equivalente a 25 denários de prata) antes cunhado apenas ocasionalmente. O sistema fixou por dois séculos e meio as moedas de bronze, de latão e de cobre, com a emissão do sestércio equivalente a ¼ de denário, e suas sub-divisões.” 130 reverso das moedas, enquanto que o anverso era reservado às imagens dos deuses. Porém, a iconografia numismática romana que cada vez mais seguia o caminho do individualismo e esse padrão foi quebrado por M. Bruto (futuro assassino de César) em 54 ao estampar os retratos dos seus famosos antepassados L. Brutus e C. Ahala (moeda 8) para celebrar a imagem dos supostos tiranicidas. A nosso ver, a iconografia dessa moeda se configura como uma dentre as variadas técnicas de persuasão visual. Moeda 8: Denário de M. Brutus. Roma (54) Anv. Retrato de L. Junius Brutus virada à direita. 132 Rev. Retrato de C. Servilius Ahala virada à direita Em relação ao binômio tradição/ transformação representado pelo uso do retrato nos denários republicanos, no entender de Wallace-Hadrill (2008, p.224-5), significava a intenção de persuadir e a moeda de M. Bruto seria “um gesto projetado para proclamar os valores republicanos tradicionais”, contudo a moeda expressa também uma inovação da forma, “em uma linguagem helenística que aponta o caminho para a monarquia”. Para o autor, esse é um exemplo da capacidade romana de se adaptar e explorar, com vantagens, “a reformulação criativa das concepções tradicionais”. Diferente de Wallace-Hadrill, não acreditamos que a linguagem helenística per se apontava o regime autocrático. No entanto, a necessidade dos romanos de comunicação política, no contexto das mudanças culturais, fez com que Roma encontrasse na adoção do estilo, nos temas e ideologias das sociedades helenísticas, a forma e a linguagem que atendia aos seus projetos ideológicos (THOMPSON, 2002, p.78). Como foi discutido no capítulo primeiro, entendemos a alteração do regime político no império como processos de continuidades e transformações (FLOWER, 2010, prefácio, x), daí inferirmos que a iconografia das moedas revela a capacidade da elite romana em utilizar a linguagem visual nos processos de mudança cultural e política. A partir das imagens, observamos a construção de um discurso de poder pessoal, visto que 132 a cunhagem romana permitia que os agentes utilizassem este suporte para enviar Exemplo de referência iconográfica a um ancestral conhecido pela comunidade, ao mesmo tempo exemplo de inovação. Denário de M. Junius Brutus; Anv. Insc.: BRVTVS; Rev. Insc.: AHALA; Ind.: RRC 433/2. Imagem: Classical Numismatic Group http://www.cngcoins.com/Coin.aspx?CoinID=42562 131 mensagem e discursos políticos, dentre as muitas possibilidades discursivas. Todavia, não constitui objetivo desse trabalho uma investigação numismática do corpus documental, mas sim uma análise iconográfica buscando identificar os significados da autorrepresentação no discurso visual dos imperatores romanos. Desta forma, analisaremos na seção a seguir, moedas relacionadas aos generais Sila, Pompeu e César. 4.3.1 Sila no Oriente - uma nova forma de comunicação? Em relação a Sila, além de sua ação efetivamente política e da demonstração de poder através do novo exército, interessa ao nosso trabalho a atuação do ditador e sua proposta política no âmbito ideológico a partir da análise de seus discursos imagéticos. Segundo Santangelo (2007, p.13-4), há muito que se reconhece a importância dos motivos religiosos na propaganda política e ideológica de Sila, mas a primazia da religião na sua estratégia imperial não foi avaliada adequadamente. Para o autor, o uso que Sila fez do “parentesco entre Vênus e Roma, em suas relações com o Oriente grego é extremamente importante, e deve ser estudado como um aspecto crucial na consolidação do império”. Isto porque Sila conseguiu explorar o tema, que já circulava no Oriente há várias gerações, para o bem de sua própria agenda política, e transformá-lo em uma "teologia política da vitória”. Em decorrência do saque dos santuários e templos, no início da campanha do Oriente, o general foi abertamente hostilizado no mundo grego, o que seria um problema para sua política local. Tentando reverter a situação, Sila erigiu troféus em Queroneia e dedicou dois tropaea aos deuses Nike/Vitória, Ares/Marte e Afrodite/Vênus. Mas para Tonio Hölscher (2006, 32-3) esse ato foi uma demonstração local de sucesso militar, visto que com os troféus, Sila objetivou não só demonstrar que venceu um inimigo, Mitridates VI, mas também incluir o Oriente grego no domínio romano. Entretanto, podemos ver os contornos do projeto político ao verificarmos que o ditador escolheu estampar os tropaea em suas moedas não só em Atenas (moeda 9), mas também em Roma (moeda 10). De forma que a mensagem de Sila alcançou tanto o mundo grego, assim como a capital do império. Todavia, devemos ressaltar que a iconografia do reverso confere destaque aos símbolos da religião romana que estão no centro da moeda (o urceus e o lituus)133, principalmente o lituus que aparece maior que o próprio troféu (símbolo 133 Os signa da religio romana nos possibilitam identificar a relação com os colégios sacerdotais romanos. Entre os objetos ligados a religio e aos rituais encontrados na iconografia augustana e em moedas republicanas temos: 132 de vitória) e nos possibilita sugerir que Sila evidenciou seu imperium ao destacar o símbolo do colégio dos áugures. Moeda 9: Tetradracma de Sila c. de 82-1. Segundo J. Camp (1992) este modelo se refere ao chamado “New Style” de tetradracma ateniense. O par de troféus talvez se refira aos troféus erigidos por ele em Queroneia.134 Moeda 10: Áureo e Denário cunhado por Sila. Anv. Vênus com Diadema, Cupido de pé segurando um ramo de Palma. Rev. Urceus (jarro) e lituus entre dois troféus.135 Há muito que a habilidade e estratégia militar de Sila mostrou ser crucial para as vitórias de Roma, como por exemplo, o caso da guerra africana conforme já mencionamos. Vale lembrar que após aquela ocasião, Boco generosamente financiou jogos e a construção no Capitólio de uma estátua equestre em homenagem a Sila quando este foi pretor em 97. Um relevo encontrado perto da igreja de Sant'Omobono (fig. 24a-b) pode ter feito parte da base do monumento de Boco, tão bem conhecido a partir de descrições literárias (Plut. Marius 32, Sul. o lituus - cajado com ponta em espiral - representava o colégio dos áugures; o apex - chapéu com a ponta de algodão - representava o colégio dos flamines dialis; a caixa de incenso, acerra, o jarro de libações, assim como os ramos de louro, representavam os quindecimuiri sacris faciundis; o simpuvium, a concha - representava o colégio dos pontifices; a patera - os pratos de oferenda - representava o colégio dos septemuiri epulonum (ZANKER, 2008, p. 151-7). 134 O reverso mostra uma coruja sobre jarro entre um par de troféus, além de borda decorada. Indicação: British Museum. Fonte: CAMP, John et al, 1992, p.449. 135 Aureo e Denário de Sila; Período: 83-84 a.E.C.; Local: cunhagem militar; Anv. Vênus com Diadema, Cupido de pé segurando um ramo de Palma. Insc.: L·SVLLA; Rev. Jarro (urceus) e lituus entre dois troféus. Insc.: IMPER(ator), ITERVM – Imperator mais uma vez; Ind.: RRC 359/1 e 359/2; Diferente de M. Crawford (RRC - 1983) que data esta moeda em 84-83 a.E.C., para J. Camp (1992, p.449) Sila cunhou em Roma esse aureo e o denário provavelmente em 82-81, pois se referem à vitória em Queronéia. Imagem: http://davy.potdevin.free.fr/Site/crawford4-2.html. 133 6). É possível que a escultura tenha sido construída em 91, como base para a estátua representando a captura de Jugurta por Sila, que foi demolida por Mário em 87. Para Santangelo (2007, p.206), depois que Sila voltou do Oriente, provavelmente reconstruiu o monumento, porém fazendo algumas mudanças iconográficas com a intenção de dar novos significados aos símbolos ligando-o ainda mais ao seu governo. Fig. 24a: “Monumento de Sila” – Porta Triumphalis (S. Omobono). Século I. Escudo com cabeça elmada entre dois troréus - Musei Capitolini Centrale Montemartini-Inventario: MC2749136 Fig. 24b: “Monumento de Sila” – Porta Triumphalis (S. Omobono). Século I. Escudo com cupidos segurando coroa, águia, sustentado pela Vitória - Musei Capitolini Centrale Montemartini - Inventario: MC2750.137 Santangelo vê uma analogia entre as duas coroas de flores penduradas para fora do ramo de palmeira e os dois troféus, pois ao apresentar as quatro coroas penduradas no ramo de palmeira, “presumivelmente simbolizavam as muitas vitórias” do ditador, sendo que nesse monumento, deveria “ecoar a estratégia iconográfica” de Sila em Roma (fig. 24c). Crawford também faz analogia entre coroas de flores e vitórias militares ao constatar a relação entre coroas e vitórias em guerra como demonstra um denário posterior de L. Vinicius que apresenta a mesma representação iconográfica (moeda 11). 136 137 Imagem: http://en.centralemontemartini.org/content/search. Acesso em: out 2012 Imagem: http://en.centralemontemartini.org/content/search. Acesso em: out 2012 134 Fig. 24c: “Monumento de Sila” (detalhe) Coroas de flores, próxima ao ramo de palmeira Símbolos das vitórias de Sila Moeda 11: Denário L. Vinicius. Roma (52). Rev: Vitória andando para a direita, carregando palmas decoradas com quatro coroas de flores - Ind. RRC 436/1 Analisando as moedas emitidas por Sila, podemos identificar a representação de imagens que podem ser associadas ao seu programa político. Ao observarmos novamente o áureo e o denário (vide moeda 10), além da referência à vitória no Oriente expressa pela simbologia do troféu, encontramos também a imagem de Vênus próxima ao nome do ditador. Na opinião de Santangelo (2007, p.207) essa alusão é significativa, mas não foi adequadamente analisada, pois os estudiosos interpretam a iconografia como uma característica da propaganda pessoal de Sila ligada ao cenário político romano. O autor defende o contrário ao sugerir que a imagem de Vênus desempenha um papel muito importante nas relações de Sila com o mundo grego, enquanto ainda não estava investindo na Itália como demonstra um bronze de 82 (moeda 12) cuja iconografia não tem referencias ao oriente. Moeda 12: Bronze de Sila de 82. Anv: cabeça laureada de Janus. Rev: proa à direita. Ind. RRC 368/1138 138 Monetário: L. Cornelius Sulla; Moeda/tipo: bronze (As); . Insc: L•SVL•IMP – L(ucius) SVL(la) IMPE(rator); Ind.: RRC 368/1; Imagem: Classical Numismatic Group - http://www.cngcoins.com/Coin.aspx?CoinID=24371 De volta à Itália, Sula não precisava explorar o mito do parentesco com Vênus tão intensamente como fez no Oriente. Na verdade, apenas a colônia de Pompéia é conhecido com segurança de ter recebido o nome Veneria, o que pode indicar a presença de cultos itálico. Significativamente, o motivo Vênus desapareceu da iconografia de moedas que ele emitiu na Itália durante o Civil Guerra, provavelmente em 82 a.E.C (RRC 367 e 368), sendo substituída pela cabeça de Roma com capacete e pela cabeça laureado de Janus. Contudo, “o eco” do parentesco entre Roma e Vênus chegaram Itália, graças à circulação do aureo e denário (RRC 359) e contribuiu para esse aspecto da auto-representação de Sila (SANTANGELO, 2007, p.219). 135 As referências à Vênus provêm de eventos ocorridos quando Sila estava no Oriente. Primeiro ele teria tido um sonho com Afrodite, durante o qual seu exército era conduzido pela deusa portando os sinais de Marte. Mas após profanar o templo da divindade, o general foi acusado de ímpio e teria sido repreendido pelo sacerdote da deusa. Contudo, reconhecendo-o como romano e, por conseguinte, um descendente e protegido de Afrodite, o oráculo “ordenou-lhe enviar presentes para Delfos em honra ao santuário da deusa.”139 Tendo em vista as implicações de poder que este ato poderia lhe garantir, Sila cumpriu a ordem e enviou um machado e uma coroa de ouro do santuário. A partir desse evento, Santangelo sugere que o reconhecimento da ascendência mítica de Sila, representante e comandante militar do povo romano, pelo oráculo deveu-se ao mítico parentesco com os troianos, pois no final do século II os romanos já eram conhecidos como “os descendentes de Enéias”. Pronto para explorar esse significado político, o general adotou o epíteto de Epaphroditos (fascinante, charmoso) ligando-se ainda mais a deusa do amor. Nessa direção, é significativo que o nome adotado por Sila na Itália não foi Epaphroditos, mas sim Felix (SANTANGELO, 2007, p.209). A mencionada passagem de Apiano sobre o sonho com Afrodite nos ajuda a compreender sua estratégia iconográfica. Percebemos que após a Guerra Mitridática e do contato com o mundo grego, Sila encontrou o caminho para desenvolver esta ligação mitológica e explorá-la no projeto de domínio imperial romano. A temática da ascendência e do parentesco com os deuses foi aproveitada no Oriente para justificar o domínio romano. Ao mesmo tempo, Sila usou as referências para seus interesses individuais em Roma, como mostra a correspondência oficial entre o nome Epaphroditos e Felix, confirmada por um senatus consultum do ano de 82, sendo adicionado ao seu tria nomina (SANTANGELO, 2007, p.210). A temática do relacionamento especial de Sila com os deuses em Roma, a nosso ver, tinha como objetivo se retratar como o legítimo representante do império, além de se colocar como único e verdadeiro defensor da res publica. Podemos identificar essa ideia ao analisar uma moeda que o general cunhou no ano de 82 e cuja estampa do reverso traz a imagem de um triumphator dirigindo a quadriga, em uma clara referência a sua pessoa pois não há atributos de divindade, segurando as rédeas e caduceu enquanto é coroado pela deusa Vitória, acompanhada da legenda ligada ao seu imperium (moeda 13). 139 Apiano, Guerras Civis (Bellum Civili, 1. 97). Cf. Santangelo (2007, p.207-8) e a discussão sobre o sonho de Sila com Afrodite e as recomendações do oráculo. 136 Moeda 13: Áureo de Sila e Lúcio Manlio Torquato (82 a.E.C) - Anv. Cabeça de Roma com elmo. Rev. Triumphator dirigindo quadriga segurando as rédeas e caduceu e coroado pela deusa Vitória voando pela esquerda. Ind. RRC 367/2140 O tema do triunfo era antigo em Roma, variando sempre entre a figura de Júpiter, Vitória, Juno e Apolo representando o triumphator 141 em moedas emitidas até aquele momento. O diferencial da iconografia de Sila está na imagem que representa a celebração específica da sua vitória no Oriente, sugerindo que o triumphator seja ele próprio, um humano dirigindo a quadriga, e não uma divindade. Além disso, para Santangelo (2007, p.220), a cena é uma “antecipação da iminente celebração, ambas em nome de Roma, pois ao final da Guerra Civil, a causa da República estava na vanguarda e Sila interessado em representar a si mesmo como o restaurador vitorioso do regime”. As imagens das moedas 10 e 13 nos ajudam a compreender aspectos importantes da autorrepresentação de Sila. Para Santangelo (2007, p.213), o líder marcou época na história romana ao ampliar a comunicação com o mundo grego de forma pessoal e inovadora. No caso do cognomem, lembramos que Cipião e Metelo tinham se tornado Africano e Numídico devido aos seus feitos militares nessas regiões. Outra inovação de Sila foi se denominar Epaphroditos (na Grécia) e Felix (em Roma) explorando a dimensão religiosa da cultura grega e romana. Através da relação com Vênus, ele tentou convencer os gregos de que, em certa medida, compartilhavam o mesmo legado dos romanos ao reforçar, primeiro: que os romanos eram descendentes de uma filha de Zeus, Afrodite (deusa do amor e da convivência social). Em seguida sugeria que os romanos, mesmo tendo lutado contra os gregos, eram descendentes dos troianos e por isso permanecia o parentesco e o legado cultural entre os dois povos. Para 140 Monetário: L. Cornelius Sulla com L. Manlius Torquatus; tipo: Aureo; Local: cunhagem militar; Anv. Insc.: L•MANLI - T – PRO Q – L(ucius) Manli(us) T(orquatus) PRO Q(uestor); Rev. Insc.: L•SVLLA•IMP – L(ucius) SVLLA IMP(erator); Indicação: RRC 367/2; Imagem: Numismatica Ars Classica - http://arsclassicacoins.com. Acesso em: out 2013. Foi emitido também denário com a mesma iconografia: Ind. RRC 367/3. 141 Alguns exemplos dessa iconografia estão em RRC 271/1 de 125 a.E.C.; RRC 350/1e de 86 a.E.C. e RRC 364/1d de 83-82 a.E.C. 137 Santangelo (2007, p.241), o potencial de uma identidade tão ambígua era óbvio: “Roma era de alguma forma parte do mundo grego, e ainda irremediavelmente diferente dele. Ela (Roma) tinha o direito de interferir nos assuntos gregos, e ao mesmo tempo poderia apresentar-se como um poder independente e uma força externa.” Os temas da ascendência foram constantes no discurso romano, mas foi com Sila que eles foram utilizados pela primeira vez em um propósito político explícito, no cenário mais amplo do império. Nessa questão, concordamos com as conclusões de Santangelo (2007, p.222-3) ao dizer que a religião contribuiu na estratégia de comunicação política quando Roma se voltou às origens. No Oriente, a primeira estratégia no confronto com a cultura grega foi o culto a Afrodite. Ao mesmo tempo em que na urbs, o tema foi explorado na medida em que envolveu a questão da fundação de Roma e de Vênus, na qualidade de filha de Júpiter, ligada ao povo de Roma. Para o autor, a experiência de Sila mostrou que as “semelhanças entre estes dois mundos poderia ser tão surpreendente como as diferenças”. No contexto das reformas do exército, das mudanças do local da autoridade do Estado para o comando individual, os líderes militares aproveitaram as possibilidades que a propaganda ideológica nas cunhagens permitia, e nesse sentido, a ligação com o divino foi fundamental para a comunicação política como mostrou a iconografia inovadora da moeda do triunfo de Sila (POLLINI, 2012, p.73). Isto porque, além da apropriação do símbolo (troféu) e dos temas (ascendência e proteção divina), na construção de uma “teologia política”, a estratégia ideológica de Sila foi ressaltar a ligação ancestral entre os dois povos. Entendemos que Sila deu o “ponta pé inicial” rumo a uma nova orientação iconográfica das moedas romanas do século I e sua estratégia imagética foi primordial para entendermos a comunicação política de Roma com a parte oriental do império. Ademais, ao se retratar na quadriga triunfal (quadrigae triumphator) diretamente ligado a deusa Vitória, o ditador abriu um precedente, a princípio tímido, de representação de um romano, um chefe militar vivo em uma moeda.142 4.3.2 Pompeu – exaltação ao poder pessoal Já evidenciamos as aproximações de Pompeu à imagem de Alexandre o Grande encontradas nos textos antigos, e também nas contundentes representações escultóricas.143 142 Nossas conclusões acerca dessa iconografia tiveram a contribuição dos pesquisadores do grupo de pesquisa, particularmente do pesquisador Diego Santos Ferreira Machado. 143 Através da arquitetura, no triunfo e nos retratos. 138 Todavia, na linguagem das moedas percebemos que a opção iconográfica do general não seguiu a aludida semelhança fisionômica com o macedônio. Diferente do herói grego, identificamos alguns símbolos e temas já utilizados nas moedas de Sila, contudo, observamos que a tópica das mensagens de Pompeu se relaciona às vitórias militares e estreitamente ligada à ideia de favorecimento divino. Exemplos dessa representação são os denários emitidos pelo genro de Pompeu, Fausto Sila (filho do ditador) em 56, e cuja iconografia recorda os triunfos militares do general utilizando diferentes referências visuais. Essa série de moedas se divide em dois tipos principais (moedas 14 e 15). A primeira moeda mostra a cabeça de Vênus ricamente adornada e no reverso três troféus além dos símbolos do sacerdócio de Pompeu (lituus e jarro). O outro tipo exibe a cabeça de Hércules vestindo a pele de leão (mais uma referência a Alexandre?), apresentando no reverso um globo encimado por uma corona civica, 144 e cercado por três pequenas grinaldas. Abaixo uma espiga de trigo e um mastro de navio aparecem contornando a grinalda menor. Moeda 14: Denário de Fausto Cornélio Sila. Roma (56 a.E.C.) Anv. Vênus laureada com diadema, atrás, cetro. Rev. Três troféus entre jarro e lituus. Ind. RRC 426/3 Moeda 15: Denário de Fausto Cornélio Sila. Roma (56 a.E.C.) Anv. Cabeça de Hércules vestindo pele de leão. Rev. Globo cercado por três pequenas coroas de flores e acima uma grande coroa, abaixo aplustre e espiga de trigo. Ind. RRC 426/4 144 Corona civica ou corona quercea – era uma grande honra militar, atrás somente do triunfo, era um símoblo de distinção pessoal. Era concedida ao cidadão que havia salvo a vida de um cidadão em batalha. Feita na forma de uma coroa de carvalho, azinheira ou castanheira. 139 Os elementos iconográficos das moedas de Pompeu foram mencionados por Dion Cassio (42,18,3) em duas ocasiões: ao descrever seu sinete, onde estavam representados três troféus e um globo; e ao relatar a procissão triunfal em 61 quando o general representou "enormes e dispendiosamente decorados (...) troféus do mundo todo" evocando suas conquistas (NICOLET, 1991, p.37). A partir dessas descrições, podemos deduzir que as coroas de louros obviamente simbolizavam o contexto triunfal de Pompeu, mas M. Beard (2007, p.21) acrescenta que poderiam ser também uma referência à vitória contra os piratas e o aumento do abastecimento de grãos para Roma em 57, haja vista a representação da espiga na moeda. Porém, mais importante para nossa pesquisa é um aureus emitido por Pompeu (moeda 16). Segundo M. Beard (2007, p.19-20) essa moeda reproduziria em miniatura o “grande dia de Pompeu”, isto é, o dia da procissão triunfal e pode ter sido cunhada com a finalidade de distribuí-los “para os que não podiam testemunhar a cerimônia”. A imagem parece referir-se ao seu pró-consulado na África, por isso a representação de Dea Africa e a borda em forma de coroa de louros (insígnia do general, também usada pelos soldados na procissão). Outra ligação da moeda com Pompeu aparece na inscrição MAGNVS e também pelo jarro e o lituus que eram os símbolos do seu sacerdócio. No reverso, aparece um cavaleiro numa cena de triunfo, justificada pela presença da Vitória. O triumphator segura a palma, ratificando a cena triunfal, pois o ramo é um dos símbolos da deusa. A inscrição PRO·COS (pro consul) refere-se à prorrogação do imperium (supremo poder militar). Moeda 16: Áureo Pompeu Magnus - triumphator. Anv. Cabeça da África vestindo a pele de elefante, jarro e lituus, símbolos do sacerdócio. Rev. Pompeu dirigindo quadriga triunfal, com palma na mão direita. Acima, deusa Vitória com grinalda. Ind. RRC 402/1b145 145 Áureo de Cn. Pompeu: Localização: Roma; Anv.: Cabeça da África vestindo a pele de elefante, jarro e lituus, símbolos do sacerdócio. Borda em forma de uma coroa de louros; Insc.: MAGNVS; Rev.: Pompeu dirigindo quadriga triunfal, com palma na mão direita. Acima, deusa Vitória com grinalda. Insc.: PRO•COS (pro consule) Ind.: RRC 402/1b; Imagem: British Museum. - http://davy.potdevin.free.fr/Site/crawford5.html. Acesso em: out 2012. 140 Não sabemos exatamente a qual dos três triunfos o aureus de Pompeu está ligado, ou se a imagem serviu como uma sinopse de sua carreira.146 Nesse sentido, M. Beard (2007, p.20) nos esclarece que aliada à finalidade econômica, este tipo de moeda serviria como um lembrete para “reimaginar o espetáculo, talvez anos depois, ou a milhas de distância”, quer dizer, a imagem serviria como uma lembrança da performance original do triunfo. Entretanto, além de criar e manter viva a memória de sua glória militar, essa imagem apresenta um “passo a mais” rumo à individualização na iconografia de poder pessoal. Assim como Sila, Pompeu também se retratou na quadriga triunfal conectando seu pró-consulado a proteção da deusa Vitória, reforçando assim a mensagem de favorecimento divino, em conjunto com as insígnias ligadas ao augurato. Porém, diferente de Sila, ele não exibiu a representação de Roma e sim de África junto ao seu cognomem Magnus, pois esta região estava relacionada aos seus objetivos políticos e militares, conforme vimos anteriormente. Entendemos que a moeda reforça sua condição de imperator, servindo como um poderoso discurso de exaltação ao poder e à sua glória pessoal, lembrando que as vitórias militares eram intrinsecamente ligada à ideia de favorecimento dos deuses. Eram, portanto, um dos atributos de heroicização e divinização do imperator. 4.3.3 Júlio César – tradição e inovação Se compararmos as cunhagens de Sila e Pompeu às cunhagens de César, estas constituem um conjunto bem maior de imagens, as quais veicularam variada gama de informações. No entanto, a fim de alcançar os objetivos da pesquisa, analisamos somente as moedas cesarianas cujo o tema e símbolos remetem à nossa problemática. Nesse sentido, escolhemos as moedas relacionadas aos vetores de legitimação de poder, buscando interpretar como os discursos imagético textual e visual contribuíram na construção do poder político de César. Em relação à iconografia do cavaleiro, encontramos semelhanças entre a moeda de Pompeu com uma moeda em ouro de Felipe II onde o cavaleiro dirigindo a biga é a deusa Nike. A representação da biga e dos cavalos é bem próxima da representação do aureo de Pompeu. Ind.: Sylloge Nummorum Graecorum (SNG) ANS 258 Disponível em: http://www.coinproject.com/coin_detail.php?coin=236799. Acesso em: out 2012. 146 Para M. Beard (2007, p.19-20), esse aureus foi cunhado para celebrar um dos triunfos de Pompeu, c. 80, 71, ou 61 a.E.C. A pessoa mais próxima do cavalo é, presumivelmente, seu filho, pois filhos de generais em triunfo parecem ter partilhado regularmente o carro. 141 Ao longo do trabalho, temos mostrado a arte como um elemento do discurso político, que através de muitos suportes, foram utilizados para o envio de mensagens. No caso do topos heroico de César, vale lembrar que teria sido no templo de Hércules, em frente a uma estátua de Alexandre que o jovem César expressou seu veemente desejo pelas vitórias e glórias militares iguais àquelas do general Macedônio (Plut. Caes. 11,5-6; Suet. Caes. 7,1). Como uma performance teatral, também vimos que o triunfo e a arquitetura ajudaram a materializar e publicizar o aspecto alexandrino de heroicidade, ligado à ideologia da glória militar. No entanto, antes das performances triunfais em Roma, há uma cunhagem militar do ano de 48 na qual encontramos indícios da mensagem de glória de César como comandante militar. A moeda apresenta uma cabeça feminina com diadema, talvez a representação da Clementia. No reverso, um troféu entre símbolos referentes à vitória sobre a Gália: o escudo, o capacete gaulês e o carnix147 encimado por cabeça de lobo (moeda 17). 148 Moeda 17: Denário de Júlio César – troféu gaulês - cunhagem militar (48-47). Anv. Cabeça feminina com diadema e coroa de folhas de carvalho (talvez Clementia) Rev. Troféu de armas gaulesas, machado encimado pela cabeça de lobo. Ind. RRC 452/2 Outro topos da apropriação da imagem de Alexandre o Grande presente na documentação textual e imagética de César são as referências à sua ascendência divina. Esse tema aparece nos textos posteriores que relataram a genealogia divina da família, bem como o favorecimento dos deuses (Plut. Alex. 2,1; 4) os quais estão em perfeita conexão com o discurso visual das moedas. Entretanto, as referências à ancestralidade divina não constitui uma novidade, pois os romanos já utilizavam essa ideia em sua propaganda muito tempo antes do século I (Smith, 2006, p.32-50).149 Percebemos, então, que a originalidade de César foi a intensidade e a escala de veinculação dessas imagens em variados discursos. Por exemplo, sabemos por Suetônio (Caes. 6-8) que no funeral de sua tia Júlia, César não somente 147 Carnyx - utilizado pelos povos celtas desde a Idade do Ferro, este instrumento de sopro, como um tipo de trompete de bronze com uma forma alongada e decoração encimando. 148 Também a iconografia da moeda RRC 468/2 apresenta a mesma ideia de vitória militar sobre os gauleses. 149 Christopher Smith (2006, p.32-44) discute a questão das genealogias lendárias e históricas das origens familiares como um processo de autoinvenção, e um elemento estrutural e constante no discurso político romano. 142 associou sua familia aos antigos reis como também à deusa Vênus, ancestral mítica dos romanos. Nesse sentido, Flower (2006, p.83) lembra que os Iulii já haviam utilizado a representação de Vênus em emissões desde o século anterior.150 No caso de César, a ideologia aparece claramente em uma moeda cunhada na África, talvez com a intenção de ser conduzido como ditador pela segunda vez.151 Na imagem, o general anuncia sua ascendência ao explicitar a ligação e o favorecimento divino, colocando Vênus coroada de um lado e Enéas e Anquises no anverso (moeda 18). Moeda 18: Denário de César. Anv. Vênus Genetrix com diadema. Rev. Enéias carregando Anquises e segurando o Palladium. Ind. RRC 458/1152 Moeda 19: Denário de César. Anv. Retrato de César. Rev. Vênus segurando Vitória com a mão direita estendida e descansando cetro sobre estrela Ind. RRC 480/5a153 150 O denário de Lucius Julius L.F. Caesar, de 103 a.E.C. mostra a cabeça de Marte com elmo e Vênus Genetrix no carro para a esquerda, puxada por dois cupidos (RRC 320/1). 151 César foi ditador pela primeira vez em 49 (discussão sobre primeira ditadura cf. Canfora, 2002, p.325ss), ditador pela segunda vez em 47 a.E.C., ditador pela terceira vez em 45 a.E.C., ditador pela quarta vez em 44 a.E.C., ditador perpétuo em 44 a.E.C. Ver apêndice, quadro da titulatura de Cesar nas cunhagem. 152 Monetário: Júlio César; Local: norte da África. Período: 47-46 a.E.C. Rev. Insc: CAESAR; Ind.: RRC 458/1; Imagem: Numismatica Genevensis S.A http://davy.potdevin.free.fr/Site/crawford5-2.html. Acesso em: nov 2013. Esta moeda é uma clara referência à origem mítica da gens Julia, descendentes de Iulius, filho do herói troiano Enéias e neto de Vênus. A iconografia se refere ao momento em que o herói salva seu pai. Quando Júlio César atravessou o rio Rubicão em 49 a.E.C., ele também começou a bater sua própria cunhagem em quantidades enormes, em oposição às moedas do Estado. Era um anúncio de que César apresentou-se como uma autoridade independente e paralela ao Estado, e também começou a usar seus monetários, criando uma estrutura fiscal paralelo ao do Estado no início dos anos 40 (THOMPSON, N. 2007, p.89). 143 Outra referência à origem gentílica encontra-se numa cunhagem (moeda 19) que além de aludir às vitórias na Espanha e na Gália, traz uma inovação na tipologia monetária ao substituir a tradicional imagem de um deus ou herói cultuado pelos romanos, pela sua efígie e a representação Vênus Victrix, a deusa protetora da gens (FLORENZANO, 1989, p.33), reforçando assim, a preocupação gentílica e o caráter divino do passado mítico de sua família. Entretanto, a aproximação de César com Alexandre não seu deu apenas pela ideia de heroicidade e ascendência divina. César também aliou ao seu discurso a ideia de clementia, de forma que encontramos essa mensagem nas imagens que os textos antigos relatam com veemência, assim como pela auto propaganda no Bellum Civili, no qual César dá mostras de sua clemência para com os inimigos, até mais do que o próprio Alexandre o Grande, teria feito. Porém, não podemos perder de vista que o general objetivava construir um discurso carregado de valores e ideias que cooptasse para si não só os soldados, mas também as famílias aliadas de Pompeu após o conflito. Como vimos anteriormente, uma das virtutes principis que se relaciona a kalokagathia dos reis helenísticos era a clemência e esta foi uma prática utilizada por César durante e depois da Guerra civil, tanto que a Clementia Caesaris chegou a ser venerada como deusa e segundo Plutarco (Caes. 57,4) o Senado decidiu em 45 construir um templo (moeda 20). Moeda 20: Denário de Júlio César e P. Sepullius Macer. Anv. Templo tetraestilo com globo no frotão e ao redor a inscrição CLEM–ENTIAE–CAESARIS 154 Além de célebre por sua brilhante carreira militar, como político, César conseguiu se consolidar como paradigma de bom estadista e hábil diplomata ao aplicar a clemência aos 153 Monetário: Júlio César e P. Sepullius Macer; Período: 44 a.E.C.; Localização: Roma; Anv: retrato de César laureado com estrela; Insc: CAESAR. IM P(etaror)M; Rev: Vênus segurando Vitória com a mão direita estendida e descansando cetro sobre estrela. Insc: P • SEPULLIVS – MACER; Ind: RRC 480/5a. Imagem: Classical Numismatic Group - http://www.cngcoins.com/Coin.aspx?CoinID=115031 154 Denário de C. Julius Caesar e P. Sepullius Macer; Local: Roma Período: 44 a.E.C. Anv.: Templo tetrástilo (4 colunas na fachada) com globo em frontão; ao redor, inscrição. Borda pontilhada; Insc. CLEM–ENTIAE– CAESARIS; Rev.: Desultor segurando as rédeas na mão esquerda e chicote na mão direita; atrás ramo de palma e grinalda, borda pontilhada; Rev. Insc.: P·SEPVLLIVS – MACER; Ind.: RRC 480/21; Imagem: British Museum / http://davy.potdevin.free.fr/Site/crawford5-2.html 144 rivais. Segundo López (2011, p.91ss), os motivos da clemência cesariana causaram controvérsias desde a antiguidade, assim como na historiografia contemporânea que discute se a aplicação desta teria sido com o objetivo de suscitar uma nova política (e o desejo de se diferenciar de Sila), ou se “era resultado de suas próprias convicções”. O fato é que a proverbial clementia de César foi colocada em prática na sua carreira militar e política, e aparece repetidadas vezes nos livros da Guerra Civil. O texto mostra que ao longo, e após o conflito, César não aplicava duras represálias aos adversários garantindo um “mecanismo de dominação política e coesão social”. Além disso, o militar garantiu vínculos de amicitia com as grandes comunidades.155 Outro importante topos alexandrino foi o retrato, visto que esse foi um elemento que se mostrou fundamental para seu discurso visual de poder político ao publicizar os atributos divinos do general macedônio, e também dos seus sucessores no contexto helenístico. Nessa questão, nossas análises nos levam a afirmar que César também se apropriou dessa estratégia iconográfica. A nosso ver, o aparecimento do retrato de César nas moedas confirma visualmente seu poder político, além de representar um “divisor de águas” ao se retratar em vida, como Alexandre, em moedas de Roma (moeda 19, 21, 22).156 Em 44, César recebeu o título de Pai da Pátria, possivelmente acompanhado do direito de estampar seu retrato. Essa hipótese se baseia em duas moedas (RRC 480/19 e 480/20) que exibiam a imagem de César com a legenda Parens patriae (moeda 21). Porém, segundo J. Toynbee (1978, p.30), a relação entre a titulação de Parens Patriae e o retrato, não se sustenta ao verificarmos que a cunhagem com essa titulatura só foi emitida depois de sua morte. Moeda 21: Denário de Júlio César com cabeça velada e laureada, littus à frente e Apex atrás. Inscrição: CAESAR–PARENS·PATRIAE (Pai da Pátria). Ind. RRC 480/19 157 155 César, Guerras Civis, Livro I 13,5; 22; 23, 1-2 (clementia). Livro I 60 (amicitia) com os habitantes de Osca, os Calagurri, e também o povo de Tarraco, de a Lacetani, de Ausetani e os lurgavonenses. 156 As moedas com retrato de Júlio César foram agrupadas por M. Crawford na série RRC 480/2 a 480/20. 157 Denário de Júlio César e C. Cossutius Maridianus; Período: 44 a.E.C. Local: Roma Anv. cabeça velada e laureada de César, littus à frente e Apex atrás; Insc.: CAESAR–PARENS·PATRIAE (Pai da Pátria) Rev. Insc.: COSSVTIVS /MARIDIANVS/A/A/A/FF (formando uma cruz); Ind.: RRC 480/19; Imagem: Numismatica Ars 145 Essa questão suscita algumas dúvidas. M. Bieber (1974), por exemplo, afirma que o Senado autorizou o retrato de César nas moedas antes de sua morte. Por outro lado, Sydenham aceita que a autorização senatorial tenha sido dada antes, mas acredita que as moedas foram emitidas somente após sua morte no mês de março do ano de 44.158 Já Carson (1957, p.52) argumenta que o retrato de César foi uma progressão natural e refletiu sua eminente posição em Roma, e não necessariamente uma reivindicação à monarquia. O fato é que ainda não sabemos com certeza se o Senado votou a permissão do retrato de César acompanhando o título nas moedas emitidas na Itália, mas certamente incomodou os conservadores. Moeda 22: Denário de César em 44. Anv: Cabeça de César laureada e lituus. Insc. CAESAR DICT•QUART. Rev. Juno Sospita159 conduzindo biga para a direita brandindo lança e escudo. Ref. RRC 480/2a160 Já mencionamos nesse capítulo que a cunhagem republicana começou a diversificar sua iconografia a partir dos últimos anos do século II, quando os tres uiru monetales começaram a estampar as efígies de seus ancestrais. No entanto, até então, nunca alguém em vida teve seu retrato em moedas. Entretanto, vimos que as moedas de triunfo de Sila e Pompeu insinuavam a representação de um cidadão vivo. Classica http://arsclassicacoins.com Acesso em: set 2012. Essa iconografia representa César como pontifex maximus, mas por essa ocasião ele também era águre. Segundo Beltrão (2013, p.236) os pontífices e áugures dividiam competências relativas aos dois principais campos da religião romana, repectivamente: os auspicia - relacionados aos sinais enviados por Júpiter e os sacra relacionados com os sinais enviados pelos seres humanos às divindades. 158 M. Bieber, The Development of Portraiture on Roman Republican Coins em RNRW e Sydenham, I, p.xxxiii apud M. Florenzano (1988, p.33). 159 O culto de Juno Sospita advinha do Lanuvium no Lácio. T.P. Wiseman (1971, p.241), no entanto, observou que os Mettii são encontrados em Ligúria e no Vale do Pó, etnicamente celtico e daí especulou-se que Mettius tenha "adotado um tipo de moeda do Lanuvium para desviar a atenção de sua origem". 160 Denário de C. Julius Caesar e M. Mettius; Período: 44 a.E.C. Local: Roma Anv.: efígie de César laureado e lituus à esquerda; Insc.: CAESAR DICT[ator]•QUART[us] (ditador pela quarta vez); Rev.: Juno Sospita conduzindo biga para a direita brandindo lança e escudo; Insc.: M METTIVS; Ind.: RRC 480/2a; Imagem: Classical Numismatic Group http://www.cngcoins.com/Coin.aspx?CoinID=85107. Acesso em: set 2013. As moedas que representavam seus cargos políticos ajudam a esclarecer a cronologia da questão do retrato. Sabemos que César manteve até 26 de janeiro de 44 a.E.C a quarta ditadura. Podendo ter ocupado o cargo até até o dia 15 de Fevereiro, quando Cícero (Phil 2,87) refere-se a César na Lupercalia como Dictator Perpetuus (Mcquarie University) disponível em: http://www.humanities.mq.edu.au/acans/caesar/Portraits_Provinces.htm Acesso jan 2014. 146 Todavia, encontramos efígies de César em duas moedas datadas antes de 44 provenientes das cidades de Niceia e Corinto. Uma delas é um bronze cunhado em Niceia por volta de 48-47 (moeda 23) e traz a efígie de César com a face limpa, as “maçãs do rosto salientes, o queixo proeminente, o pescoço longo e fino com ‘pomo de Adão’”, segundo J. Toynbee (1978, p.30) em um “perfil um tanto idealizado” como o olhar ligeiramente inclinado para cima que lembra os retratos de Alexandre e dos reis helenísticos. A moeda de Corinto (moeda 24) por sua vez, “se aproxima dos denários emitidos pelos monetários oficiais de Roma e apresenta uma interpretação mais naturalista da fisionomia de César”, mas ambas estão em consonância aos cânones do retrato romano do período republicano. Moeda 23: Bronze de Júlio César e C.Vibius Pansa - Niceia (c. 48-47). Anv. Retrato de César. Rev. Nike para direita, segurando coroa de flores na mão estendida e palma sobre o ombro esquerdo; monogramas à esquerda e a direita. Ind. RPC 2026.18161 Moeda 24: Bronze de Júlio César - Corinto (c. 46-44) Anv. Retrato de César laureado. Rev. Belerofonte montando em Pegasus. Ind. RPC 1116.162 161 J. Toynbee apresenta este tipo como o primeiro a apresentar o retrato de Júlio César. C. Vibius Pansa fazia parte da facção cesariana em Roma e provavelmente devia o proconsulado ao seu patrono. O único outro retrato de César em vida da série provincial seria o RPC 1116. Ambas precedem a primeira aparição de seu retrato em Roma em janeiro de 44 a.E.C. Jocelyn Toynbee (1978, p.30 fig.24) data de 48-47 a.E.C., segundo BMCGC Pontus (Catalogue of the Greek Coins in British Museum) p.153 nº8, 9, PL. 31 nº13, enquanto que o RPC 1 data de 47-46 a.E.C. Local: Bitínia , Niceia; Anv: retrato de César; Insc: NIKAIEΩN; Rev: Nike para direita, segurando coroa de flores na mão estendida e palma sobre o ombro esquerdo; monogramas à esquerda e a direita; Insc: EΠI ΓAIOY OYIBIOY ΠAN∑A (Magistrate Gaius Vibius Pansa); Enxergo: VLS (data). Imagem: Classical Numismatic Group http://www.coinarchives.com/a/lotviewer.php?LotID=632086&AucID=1149&Lot=405&Val=9b349592fcfdb42 ddb89330e95ea7719 162 Essa moeda provincial pode ter sido cunhada durante a vida de César. J. Toynbee (1978, p.31) assume a datação 46-44 a.E.C. (assim como Vessberg 1941, pl.7, n.6; Sydenham, 1952, p.178, n.1069, pl28; Crawford, 1974, n.480, 19, pl.57). O RPC data em torno de 44-43 a.E.C. A legenda anverso ler LAVS IVLI CORINT (referindo-se à cidade de Corinto) com a cabeça laureado de César. O reverso L CERTO AEFICIO C IVLI (O) 147 Ao se retratar em vida nas moedas, César se apropriou de uma prática helenística de afirmação e legitimação de poder, antes mesmo de fazê-lo em Roma. Mas, diferente de Alexandre, sua imagem não foi totalmente idealizada, pois buscou uma semelhança ao modelo, seguindo o estilo naturalista romano, um verismo que tentava idealizar as características morais importantes da identidade romana. De modo que “os romanos adaptaram a convenção naturalista da arte tardo helenística aos seus propósitos (...) O exagero realista serviu para definir os traços da sociedade romana e mantê-la distinta” (GRUEN, 1992, p.170). Ou seja, César inovou ao ressignificar uma prática imagética da monarquia helenística conformando-a aos padrões artísticos e culturais dos romanos. No entanto, observando o repertório imagético de César, identificamos muitos símbolos da religião romana. Na cunhagem republicana, os motivos religiosos eram freqüentes assim como as imagens dos deuses do panteão e a personificação das virtudes. Não podemos esquecer que “a religião sempre foi orgânicamente conectada ao Estado romano” (MORAWIECKI, 1996, p.37) e foi esta, mais do que qualquer outra instituição romana, que garantiu autoridade política. Lembramos que os dois principais colégios sacerdotais de Roma eram o dos Pontífices e dos Áugures. O pontifex maximus, junto aos outros membros, tinha o importante papel de aconselhar o Senado sobre todos os assuntos referentes aos sacra; aconselhar o povo em temas da lei familiar (adoção, herança, etc) e manter os registros do Estado. Os Áugures tomavam os auspícios, ou seja, sabiam da determinação divina, além de supervisionar os rituais referentes aos auspícios (BELTRÃO, 2006, p.143). Juntos, os colégios “asseguravam a legitimidade das ações políticas e da segurança do Estado” (STEWART, R. 1997, p.170). Por sua vez, Júlio César assumiu muitos dos ofícios sacerdotais mais importantes e influentes em Roma, sendo eleito Flamen Dialis em 87 ou 86, pontifex em 73, pontifex maximus em 63 e augur em 47 cuja eleição para pontifex maximus foi “uma das mais bem sucedidas manobras políticas de César” (CANFORA, 2002, p.52). Outros nobiles já haviam concentrado sacerdócios em Roma, a novidade é como César vai utilizar as funções sacerdotais no discurso imagético das moedas. De acordo com Morawiecki (1996, p.47-8) não havia na cunhagem romana um símbolo que significasse o cargo de pontifex maximus, nem outro meio de representar a IIVIR (L. Certus Aeficius e C. Iulius, duoviri). Corinto foi destruída em 146 a.E.C e re-fundada em 44 a.E.C. por César como o Laus Iulia Corinthiensis, e provavelmente comemorou a refundação da cidade por César. Pegasus era uma imagem tradicional, e aparecia nas moedas mais antigas do estado grego independente de Corinto (Mcquarie University). Imagem: Classical Numismatic Group - http://www.cngcoins.com/Coin.aspx?CoinID=140316. Acesso em: set 2012. disponível em: http://www.humanities.mq.edu.au/acans/caesar/Portraits_Provinces.htm. Acesso jan 2014. 148 combinação de vários ofícios. Antes, os instrumentos rituais como o jarro e lituus, por exemplo, simbolizavam as funções dos principais colégios. César inovou ao criar uma nova tipologia ao acumular símbolos de sacerdócio em um novo projeto iconográfico construído em paralelo à formação de sua base política (moedas 25 e 26). O conjunto de vários símbolos, que individualmente referiam-se a variados sacerdócios, em conjunto vão se referir à posição de pontifex maximus (MORAWIECKI, 1996, p.47). Para o autor, os receptores dessas imagens não viam os ofícios individualmente, mas sim a soma deles constituindo a autoridade religiosa de César. Moeda 25: Denário de Júlio César. Anv. Deusa Ceres com coroa de trigo. Rev. Símbolos religiosos culullus, aspergillum, jarro e lituus. A legenda informa titulação de cônsul pela terceira vez, ditador pela segunda vez, Augure e Pontifex maximus. Ref. RRC 467163 Moeda 26: Denário de Júlio César. Anv.: simpulum, aspergillum, machado e apex são simbolos sacerdotais dos 164 rituais religiosos. Rev.: elefante esmagando dragão é um símbolo tradicional do poder. Ind.: RRC 443/1 Nesse novo repertório de imagens, César enfatizou sua autoridade religiosa, primeiro como pontifex maximus e mais tarde como um augur, um ofício tradicionalmente ligado à 163 Denário de Júlio César; Local; incerto; Periodo: 46; Anv Insc.: COS•TERT–DICT•ITER; Rev. Insc.: AVGVR/ PONT·MAX (cônsul pela terceira vez, ditador pela segunda vez, Augure e pontifex maximus); Ind.: RRC 467/1a; Imagem: Numismatica Ars Classica NAC AG - http://arsclassicacoins.com Acesso em: set 2013. 164 Denário de Júlio César; Local: em movimento; Periodo: c. 49-48; Insc: CAESAR; Imagem: Numismatica Ars Classica NAC AG - http://arsclassicacoins.com. Acesso em: set 2012. A acumulação de implementos religiosos criou uma nova concepção iconográfica pretendia significar suprema autoridade de César.As moedas que representam imagens religiosas (RRC 443 cunhadas em 49-8 aC e RRC 467 em 46 a.E.C), foram cunhadas enquanto Roma estava no período da guerra civil. 149 legitimidade política e ao direito de comando do exército (moeda 21), ou seja, exaltou o significado da sua autoridade religiosa, visto que a concentração de poder político ocorreu paralela à acumulação de sacerdócios e a consequente autoridade religiosa. Morawiecki (1996, p.55) sugere que o “poder político de César foi a soma de várias funções políticas e religiosas.” Podemos encontrar nas cunhagens, além dos símbolos de vitória militares, os símbolos religiosos bem como a acumulação dos cargos politicos e religiosos reforçando seu poder.165 Não podemos esquecer que tal cunhagem tinha como objetivo primeiro o pagamento de suas tropas. Christofer Smith (2013, p.276-7) apresenta uma hipótese que nos ajuda a pensar mais profundamente a questão da religião e da iconografia. Ao analisar a feriae Latinae o autor percebeu que a relação entre essa cerimônia e a Liga Latina166 envolvia “o ritual que cercava as primeiras atividades do exército latino”. Contudo, com a expansão e a fundação das colônias, concessões foram feitas para que se mantivesse o festival, em decorrência de sua importante posição nas ações preliminares da guerra. Segundo o autor, a feria Larinae está “claramente ligada ao conjunto cada vez mais complexo dos rituais que cercam a guerra romana no império em expansão”. Para o autor, no contexto inicial do Lácio, o mecanismo local de estabilidade foi adquirindo atributos cada vez mais simbólicos na relação de Roma com as comunidades aliadas, especialmente no contexto da preparação para a guerra. Importante lembrar a importância que o festival tinha ao garantir ao cônsul o poder de imperium, ou seja, garantia o comando do exército. Diante disso, C. Smith (2012, p.277-8) sugere que César teria interrompido a guerra em 49 e também em 44 para presidir o feriae Latinae mantendo seu poder de imperium. Isto porque este “festival foi uma oportunidade para César demonstrar concordia e harmonia entre a aristocracia, a concordia criada e promovida por ele mesmo como resultado de sua vitória" (SUMI, 2005, p.67). Se as hipóteses dos autores estiverem corretas, é mais um indício da importância, naquele momento, da religião para o comando e controle do exército. A criação da tipologia religiosa revela que a construção do poder político pessoal de César perpassava a religião para o controle da força militar (demonstrada pelo esforço em presidir o ritual), o que explica a 165 Ver quadro das titulaturas nas moedas de César apêndice. A Liga Latina (século VII - 338 a.E.C.) foi uma confederação de aproximadamente 30 aldeias e tribos latinas, próximas de Roma, e foi estruturada a fim de assegurar a defesa mútua das cidades. A expansão do poder romano gradualmente levou ao domínio sobre a liga. A renovação do tratado da Liga em 358 a.E.C. estabeleceu formalmente a liderança de Roma, mas provocou a Guerra Latina (343-338 a.E.C.). Após a vitória romana, a Liga foi dissolvida. Ver Peter N. Stearns, The Encyclopedia of World History, Houghton Mifflin, 2001, p.76-78. 166 150 utilização também dos símbolos da religião romana na construção da nova linguagem imagética de César para a comunicação política em Roma. Alexandre, ao se deparar com as dificuldades da guerra na Índia, “ergueu altares em honra do deuses olímpicos”, demonstrando a importância de signos religiosos no discurso de poder político (HÖLSCHER, 2006, p.32). Nesse sentido, Pollini (2012, p.73) sugere que no “período final da República, a associação com os deuses foi levada muito longe, com a representação do líder como divino, seguindo a tradição encomiástica (laudatória) estabelecida há muito tempo pela monarquia helenística”. Ao se retratar nas moedas romanas, como Alexandre, César se apropriou de uma pratica helenística criada pelo Macedônio como forma de publicizar sua mensagem de poder político e divino. No entanto, ao unir a tipologia do retrato aos símbolos dos ofícios religiosos romanos na mesma série de moedas,167 César ressignificou o modelo iconográfico alexandrino. Nesse sentido, cabe observar que o acúmulo de poderes ou funções expressos na titulatura de César faz lembrar as três funções dos reis helenísticos ressignificadas em Roma como: guerreiro/imperator, lider do povo/tribunicia potestas e sacerdote/pontifex maximus. Segundo David Wardle (2006, p.110), César cumpriu suas responsabilidades em relação à religião do Estado, quando foi magistrado e comandante militar. E ao explorar as possibilidades de autopromoção oferecidas pelo sistema religioso e mais tarde pela posição de poder supremo (ditadura), César estava bem próximo ao paradigma romano. De modo que as ações de César são coerentes se pensarmos nelas como inovações na prática política e não como uma ruptura da ordem. Logo, concordamos com Flower (2010, p.164-9), no sentido de que a criação de uma nova linguagem visual fez de César mais um “homem do seu tempo do que um forasteiro visionário”. Diante do exposto e a título de conclusão do capítulo, podemos dizer que Sila foi fundamental nesse processo ao criar a “teologia política da vitória” ligando Roma ao ideário mítico-religioso dos povos helênicos através do parentesco de Roma com o Oriente ao criar uma identidade ambígua em relação aos gregos: ao mesmo tempo igual e tão diferente. Além disso, Sila utilizou a mesma “teologia” no final da guerra civil, ao se colocar como o “refundador de Roma” em sua representação triunfal ligado a deusa de forma a garantir à comunicação política, a partir do vetor ideológico da proteção divina, no caso específico, a proteção da deusa Vênus. 167 Ver série Crawford RRC 443 e 467 e a série 480/12-16 e 480/18 com cabeça velada. 151 Por outro lado, Pompeu reforçou a sua imagem de imperator através da exaltação das suas excepcionais vitórias e conquistas militares. Vale notar a ênfase dada ao número de triunfos, superando o próprio Rômulo. Nos triunfos e no complexo do “teatro-templo” pompeiano a encenação e a representação das conquistas sobre os quatro continentes serviram como uma constante reafirmação da ideologia de heroicização, ou seja, da ideologia da glória militar romana. No entanto, foi César quem conseguiu maior equilíbrio no binômio tradição/ transformação na construção de uma linguagem iconográfica nas moedas plenamente associada aos novos rumos do sistema de governo de Roma. Através das prerrogativas sacerdotais, da mensagem de favorecimento divino e do progressivo culto aos líderes, ele conseguiu publicizar sua ideologia de poder político, aproveitando com sucesso as possibilidades do discurso imagético. Diferente de Sila e Pompeu, César caminhou na direção da divinização pessoal como atestam as inscrições epigráficas das estátuas, que não chegaram até nós, talvez por essa razão. Por fim, diante de tais colocações e das evidências imagéticas apresentadas, confirmamos nossa última hipótese de pesquisa ao verificarmos que os discursos imagéticos publicizados pelos chefes militares se configuraram como uma performance teatral (BEACHAM, 2005) e contribuíram para a esteticização da política romana. Nesse sentido, as inovações nas representações dos imperatores se deram através de uma nova linguagem visual com a finalidade de garantir a comunicação e legitimação, dentro e fora de Roma, contribuindo assim para o estabelecimento e sustentação das relações de dominação política. Importante considerar a arte como elemento da cultura política capaz de transmitir a ideologia de vitória para grande parte da sociedade romana, formando um patrimônio simbólico cultural. Para Hölscher (2006, p.44), o “esplendor, a memória e a ideologia são formas de monumentalização conceitual, e em tais formas fixaram a glória da vitória e do poder propagados material e idealmente”. 152 Considerações Finais O desenvolvimento da pesquisa revelou em primeiro lugar que nossa visão acerca do contato entre romanos e gregos estava equivocada. Devido ao paradigma da arte e da cultura grega clássica, nossa percepção era quase a mesma de Horácio: “a Grécia conquistada, conquistou o feroz vencedor e introduziu as artes no agreste Lácio”.168 No entanto, o contato entre Roma e o mundo helenístico era antigo e verificamos que as interações entre os dois povos se deram de forma muito mais complexa, revelando um diálogo constante e renovável (WALLACE-HADRIL, 2008). Certamente, as conquistas territoriais ampliaram as interações culturais entre ambos e intensificando o diálogo e a transferência de recursos, material humano e intelectual para a Península nos últimos dois séculos a.E.C. Nesse contexto, identificamos mudanças e continuidades na sociedade romana no âmbito do direito, da religião, da economia e na política. Nesse movimento, chamou nossa atenção o elemento militar, que sofreu transformações de ordem prática, mas não só, visto que a expansão territorial acirrou as disputas e o ethos militar acentuando o traço da cultura política baseada no prestígio e na glória militar, base da formação do poder político de caráter pessoal. Nessa percepção, a análise confirmou a relevância do paradigma ideológico e carismático de Alexandre o Grande para o mundo romano devido à importância do caráter guerreiro e heroico. Entretanto, essa importância se revelou a partir da releitura das práticas discursivas de legitimação de poder autocrático, baseadas na heroicização, ascendência divina e divinização pessoal. Os imperatores se apropriaram das imagens e das práticas simbólicas alexandrinas em seus discursos políticos, de forma que Alexandre o Grande ofereceu aos generais romanos, além de um modelo ideológico, um modelo estético de poder pessoal militar. Mas não só. Para estabelecer a comunicação política tanto no Oriente, como na política interna, Roma transformou a vitória militar em memória a fim de estabelecer poder político. Sila foi fundamental nessa iniciativa ao explorar o parentesco entre Afrodite e os romanos na relação com o Oriente como forma de legitimar sua autoridade na região. Em Roma, a agenda política do ditador foi se colocar como o protegido de Vênus e refundador da República, transformando seu discurso político em uma “teologia política da vitória”. A 168 “Graecia capta ferum victorem cepit et artis / intulit agresti Latio” (Epistola, II, 1, 156) 153 adoção dos temas, símbolos, mitologia e estilo artístico garantiu uma comunicação política mais eficiente com o mundo helenístico, bem como a construção de uma nova linguagem visual, resultado de um novo sistema semântico de formas artísticas e simbólicas produtoras de comunicação política romana. Nesse sentido, as obras de arte foram um veículo eficaz na propaganda ideológica do poder pessoal. Inicialmente, nosso objetivo era identificar os signa helenísticos apropriados pelos romanos na construção do poder pessoal militar. Porém, a pesquisa revelou estarmos enganados quanto essa ideia, porque até o momento, encontramos somente dois símbolos gregos nas moedas dos imperatores: o troféu e o globo. Contudo, ao analisarmos os textos, os monumentos, as estátuas, os triunfos e os retratos, enfim as imagines, percebemos que o chefes militares se apropriaram e ressignificaram elementos ideológicos e estilísticos do mundo helenístico em seus discursos imagéticos contribuindo para a esteticização da política romana e na formação de novas formas de representação dos imperatores, evidenciando os processos de transformações culturais do império. Pompeu buscou legitimar seu poder político a partir da ideologia de poder autocrático romano pertencente à tradição republicana, expresso pelo título de princeps. No entanto, o general não deixou de usar a linguagem helenística em suas representações, seus retratos, semelhantes à imagem de Alexandre, bem como pela ideia de domínio do mundo, expressa pela monumental estátua de Pompeu cosmocrator no complexo do teatro e pelo conjunto de imagens exibidas em seus triunfos, principalmente o do ano de 61. Tanto Pompeu, como Júlio César usaram o tema e os elementos do triunfo e do augurato como símbolos de representação do poder pessoal em suas cunhagens. Entretanto, César foi o mais competente, digamos assim, na apropriação da linguagem helenística. O estilo artístico e os topoi alexandrino foram relidos com êxito pelo ditador ao aliar os símbolos de vitória militar aos signa da religião de modo a reforçar sua autoridade religiosa e política. Tanto isto é realidade que a fórmula cesariana dos signa legitimadores da autoridade sacerdotal e política, além do retrato (herança de Alexandre o Grande) foram adotadas na prática discursiva e nas representações visuais de Otavio Augusto e de sucessivos imperadores romanos. A pesquisa objetivou analisar os discursos de legitimação do poder político, pois entendemos discurso como uma prática tanto de representação quanto de significação do mundo, constituindo as identidades e as relações sociais. Mais especificamente, analisamos a arte como elemento da cultura política capaz de transmitir ideologia, pois a prática ideológica constitui, naturaliza, mantém e transforma os significados do mundo e as relações de poder 154 (FAIRCLOUGH, 1992, p.90-4). Logo, ao pensarmos ideologia como um sistema de crenças ou como formas e práticas simbólicas, examinamos o modo como essas formas se entrecruzam com as relações de poder, em suma, como o sentido serve para estabelecer e sustentar relações de dominação (THOMPSON, 2002, p.78). Nesse sentido, as narrativas, os monumentos e os triunfos foram fundamentais para a constituição da autoimagem, identidade e a formação da “memória cultural” romana, pois “a cada nova guerra, cada cidade saqueada, cada povo conquistado, cada triunfo era a expressão do poder romano, apoiado pelos deuses e, portanto, moralmente legítimo” (HÖLKESKAMP, 2006, p.487). Podemos dizer que a paisagem de Roma foi adquirindo mais e mais textura e pluralidade com o surgimento de novas mídias, ou seja, com a chegada de toda espécie de objetos trazidos pelos generais após as conquistas, bem como os seus significados, alterando a iconosfera de Roma. Esperamos ter demonstrado através da análise intertextual e da interpretação dos símbolos, que os lideres políticos souberam utilizar as formas simbólicas em seus discursos imagéticos para sua propaganda política. Todavia, eles construíram ao mesmo tempo uma nova e complexa linguagem iconográfica identificada nos textos, monumentos e moedas romanas. Nesse sentido, o viés comparativo foi importante, pois as categorias de análise da documentação textual e de cultura material, cotejadas e interpretadas, indicaram que as apropriações simbólicas constituíram os vetores ideológicos de legitimação de poder pessoal militar em Roma. Por fim, devemos ter em mente que a opinião pública é um fator de inquestionável importância no sucesso operacional de qualquer governo. Através de vários meios, os agentes oficiais promulgam imagens de si mesmos e de suas agendas políticas, através de jornais, revistas, TV e Internet “somos bombardeados com imagens dos líderes que orquestram o próprio governo”. Por sua vez, na antiguidade, a persuasão visual dos reis, imperadores, chefes políticos e religiosos, dependia da escultura, da pintura e da cunhagem como veículos visuais para sua autopromoção assim como de sua ideologia de poder (POLLINI, 2012, p.69). 155 Referências Bibliográficas Dicionários: ALMEIDA, Antônio R. Dicionário de Latim-Português. Porto: Editora Porto, 2008. AZEVEDO, Antônio C. A. Dicionário de nomes, termos e conceitos históricos. (4a edição). Rio de Janeiro: Lexicon, 2012. BERGER, Adolf. Encyclopedic Dictionary of Roman Law. New Series – Vol. 43, part 2, New York: City College, 1953. COTTERELL, Arthur, STORM, Rachel. The Ultimate Encyclopedia of Mythology Hardcover. Hermes House, 1999. Grandes Impérios e Civilizações: Grécia – Berço de Ocidente. Vol.II Ed. Madri: Ediciones del Prado, 1996. ISBN 84-7838-739-0. KOCH, Wilfried. Dicionário dos Estilos Arquitetônicos. SP: Martins Fontes, 2001. 2ª ed. LEVI, Lucio. verbete Legitimação. In: BOBBIO, Noberto. 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Inscrição – Júlio César CAESAR CAESAR DICT ITER (Ditador pela segunda vez) CAESAR IMP COS ITER (Imperator Consul pela segunda vez) CAESAR COS TER (Consul pela terceira vez) CAESAR COS TER DICT ITER AVGVR PONT MAX (Consul pela terceira vez, ditador pela segunda vez, Áugur e Pontifex Maxumus) C CAES DICT TER (Ditador pela aid a a vez) CAESAR DICT QVART (Ditador pela quarta vez) CAESAR DICT QVART COS QVINC (Ditador pela quarta vez, Consul pela quinta vez) CAESAR IMP (Imperator) CAESAR DICT PERPETVO (Ditador perpétuo) CAESAR DICT IN PERPETVO (Ditador perpétuo) CAESAR IMPER (Imperator) CAESAR PARENS PATRIAE (Pai da Pátria) CLEMENTIAE CAESARIS (Clemencia de César) 367/2 (c. 82 a.E.C.) 368/1 (c. 82 a.E.C.) Indicação RRC/ Ano 443 (49-48 a.E.C.) 452/1-5 (48-47 a.E.C.) 458 (47-46 a.E.C.) 468/1-2 (46-45 a.E.C.) 456 (47 a.E.C.) 457 (47 a.E.C.) 466 (46 a.E.C.) 467 (46 a.E.C.) 475/1-2 (45 a.E.C.) 480/2 (44 a.E.C.) 481 (44 a.E.C.) 480/3-5 (44 a.E.C.) 482 (44 a.E.C.) 480/6-14 (44 a.E.C.) 480/15-16 (44 a.E.C.) 480/17-18 (44 a.E.C.) 480/19-20 (44 a.E.C.) 480/21 (44 a.E.C.) * Indicação RRC refere-se ao catálogo Roman Republic Coinage de H. Crawford, 1983.