as bases sócio-histórica da ontologia do ser social - cress-mg

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AS BASES SÓCIO-HISTÓRICAS DA ONTOLOGIA DO SER SOCIAL: O TRABALHO1
Nayara Carvalhaes Braghini2
Tânia Cristina de Oliveira Donizeti3
Renato Tadeu Veroneze4
RESUMO
Na sociedade do capital, o trabalho passa a ter um valor unicamente mercadológico e de
produção da riqueza social, eliminando sua autonomia e sua possibilidade de autoconstrução e auto-criação. Partindo desse pressuposto, buscaremos analisar nesse artigo o
trabalho enquanto categoria fundante do ser social.
Palavras-chaves: trabalho, ser social, ontologia.
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Este artigo foi produzido como pré-requisito avaliativo da disciplina ética profissional II.
Aluna do 5º Período do curso de Serviço Social do Centro Universitário da Fundação Educacional GuaxupéUnifeg/MG.
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Aluna do 5º Período do curso de Serviço Social do Centro Universitário da Fundação Educacional GuaxupéUnifeg/MG.
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Assistente Social, Docente do Curso de Serviço Social do Centro Universitário da Fundação Educacional
Guaxupé – UNIFEG, Especialista em Educação, Didática e Metodologia no Ensino Superior - UNIFEG,
Especialista em Desafios da Filosofia Contemporânea – PUC/MINAS, e mestrando em Serviço Social pela
PUC/SP.
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INTRODUÇÃO
Estudar a ontologia do ser social na perspectiva marxiana e marxista é identificar o
homem e a mulher, enquanto um ser real, material, dinâmico e social, ou seja, que se insere
ou é inserido em determinados contextos social e historicamente constituídos pelos seres de
igual natureza.
O sentido da palavra ontologia, empregada nesse artigo diz respeito à ciência ou
tratado que estuda o ser humano (do grego = ón, óntos = ser; mais lógos = tratado; estudo).
Historicamente, a filosofia tratou o humano e o estudou tendo como parâmetro a metafísica.
Marx, por sua vez, contribuiu para dar outro significado ao ser que vive em sociedade, homens
e mulheres que, nas mais diversas expressões, apresentam determinadas características que
os distingue dos outros seres da natureza.
O ser social é entendido, como um ser real, concreto, histórico e dialeticamente
constituído na vida, em contraposição a proposta idealista. Este, por sua vez, vive e se
objetiva na vida cotidiana e, na atualidade, numa sociedade dividida pela relação de classe,
pelas relações sociais capitalistas e pela exploração “do homem pelo próprio homem”,
estando diretamente, intrínseco e extrinsecamente, vinculado a dicotomia capital versus
trabalho.
O ser social se diferencia dos animais pela sua capacidade de transformar a própria
natureza, de tal modo que ao transforma-la, transforma a si mesmo. O primeiro ato humano
e social, segundo os apontamentos marxistas, é a criação das condições materiais para a sua
sobrevivência. Deste modo, para que possa fazer sua própria história, deve, primeiramente,
estar em condições para isso (MARX, ENGELS, 2007).
Portanto, apresentaremos nesse artigo alguns apontamentos sobre esta relação do
ser social e da categoria trabalho enquanto protoforma do processo de socialização e
hominização do ser social.
O processo de auto construção do ser social
Segundo Barroco (2008), em seu processo de autoconstrução, o ser social transforma
a natureza e, ao mesmo tempo, transforma a si mesmo, através de mediações duradoras,
projeta finalidades à sua(s) ação(ões) e as objetiva na vida social.
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A categoria fundante desse processo de transformação é o trabalho, definido por
Lukács como “[...] o ponto de partida da humanização do homem, do refinamento de suas
faculdades, processo do qual não se deve esquecer o domínio sobre si mesmo” (LUKÁCS
apud BARROCO, 2008, p.21).
A necessidade de socialização permite com que os seres sociais estabeleçam relações
entre si, de forma a sanar suas necessidades mais primárias. Partindo das necessidades mais
prementes, os seres sociais se agrupam e constroem complexos sociais e novas necessidades
sociais.
A reprodução social reproduz materialmente complexos sociais que alteraram as
condições de sociabilidade e o modo de produção constitutivo para a vida social. Constroem,
assim, formas diferentes e mais complexas para atender as necessidades individuais e
grupais.
O trabalho se concretiza através da objetivação das projeções teleológicas, ou seja,
para que possa realizar suas ações, o ser social estabelece finalidades que se propõe a
realizar e para concretiza-la escolhe ou cria
possibilidades de materialização dessas
projeções.
O processo de transformação através do trabalho gera, cada vez mais, novas
necessidades e possibilidades. É deste modo que se estabelece o princípio da liberdade que
não consiste apenas na tomada de decisões, mas sim, em estabelecer alternativas possíveis
dentro das possibilidades concretas.
As alternativas possíveis estabelecidas passam a receber valoração de acordo com
sua capacidade de efetivação.
[...] Apenas a objetivação real do ser para nós faz com que possam realmente
nascer valores. E o fato de que os valores, nos níveis mais altos da sociedade,
assumam formas mais espirituais, esse fato não elimina o significado básico dessa
gênese ontológica (LUKÁCS apud BARROCO, 2008, p. 27).
O trabalho, na concepção marxista, é tido como o processo de participação e
objetivação do ser social na e para a vida social. A vida se manifesta como expressão da
atividade social e da produção material das condições para a sobrevivência.
O trabalho, em seu caráter universal e sócio-histórico é a cooperação existente entre
os seres sociais e que produz formas de interação humana como os símbolos, a linguagem,
as representações, os costumes, dentre outros componentes denominados por cultura. Em
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outras palavras, é o conjunto das relações humanas que elabora e produz, simbólica e
materialmente, as condições, modos e formas da vida em sociedade (BARROCO, 2005, p. 2627).
Nesse sentido, o trabalho permanece como pressuposto da existência humana. É
condição necessária e natural do intercâmbio material entre o ser social, a natureza e a
sociedade. Porém, na sociedade capitalista, esta premissa ontológica é reduzida à
(re)produção de riquezas, bens de consumo e de mercadorias.
Ao inserir-se num sistema estabelecido pela divisão social do trabalho, o ser social é
desapropriado de sua condição ontológica para ser explorado enquanto produtor de valorde-uso e valor-de-troca, alienando e estranhando-se de sua própria condição humanogenérica. O trabalho, nesse sentido, revela-se enquanto processo de coisificação da
potencialidade humana, estabelecendo, desse modo, a alienação.
O modo de produção capitalista gerou um avanço e um grande desenvolvimento
das forças produtivas criando a possibilidade do ser social se reconhecer enquanto sujeito
histórico, possibilidade esta, que é negada pelo processo de coisificação das relações sociais.
Segundo Marx (2006), o capitalismo gera a alienação do trabalho e,
consequentemente, a alienação da vida social. O trabalhador não se integra na totalidade,
não vê o objeto produzido como parte integrante de seu trabalho. O produto do seu
trabalho transforma-se em mercadoria, assim como o próprio trabalhador que se vê refém
do processo de exploração. Ao ingressar no mercado de trabalho, a força de trabalho passa a
valer enquanto valor-de-troca e as relações de trabalho passam a ser consideradas enquanto
mercadoria. Quanto mais riqueza produz ao capitalista, maior é o nível de exploração.
Em qualquer ação humana, independente de ser individual ou coletiva, o trabalho
humaniza o ser social, porém, no processo alienado e alienante, homens e mulheres não se
reconhecem enquanto humano-genéricos, num processo cada vez maior de desumanidade e
empobrecimento dos sentidos.
A propriedade privada e a exploração do trabalho para a acumulação da riqueza
socialmente produzida por uma minoria determinam uma sociedade alienada, onde o capital
se torna uma mediação para atender necessidades individuais e coletivas. A vida simples, o
trabalho de subsistência, enfim, os valores essencialmente humanos perdem a sua
característica ontológica para a valoração exacerbada do capital e das relações
mercantilizantes.
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Na sociedade capitalista, a mercadoria se apresenta cmo uma coisa apta a satisfazer
as necessidade humanas imediata dos indivíduos, seja em que posição ocupe a estratificação
social, tanto as necessidade fisicas e suas fantasias (ou desejos). Portanto, a satisfação das
necessidade constitui a condição sine qua non da mercadoria.
Barroco, baseada em Marx, cita que a alienação surge a partir do “[...] nascimento
da propriedade privada e da divisão social do trabalho , quando o trabalho se converte em
meio de exploração e o seu produto em objeto alheio” (BARROCO, 2008, p.38).
No capitalismo, o trabalho assalariado gera mercadorias que a princípio tem um
valor-de-uso devido à sua capacidade de atender necessidades materiais e espirituais do
indivíduo. Com o atendimento das necessidades as mercadorias adquirem um valor-de-troca
que é determinado, em maior ou menor grau, de acordo com as necessidades e interesses
sociais.
O valor-de-uso passa a ser desconsiderado na troca na qual deve-se considerar o
tempo médio socialmente gasto em sua produção. No capitalismo, a produção de
mercadorias visa sempre a obtenção de dinheiro. Barroco (2008, p. 42) aponta que “[...] o
trabalho humano tem o poder de acrescentar valor as mercadorias produzidas: um valor a
mais ou um valor excedente, incoroporado à mercadoria e não pago ao trabalhador”.
A produção de mais-valia se dá através do trabalho, mas se efetiva apenas com a
troca das mercadorias para o capitalista: “[...] trabalhador e capitalista existem pela
afirmação e negação mutua. [...] Capital e trabalho são, assim, pólos de uma relação social
antagônica” (BARROCO, 2008, p.43).
A alienação no capitalismo é decorrente da fetichização da mercadoria que passa
assumir um valor e caráter dominador e reificado, em outras palavras, tudo, inclusive as
relação sociais, se coisificam e é transformado em coisa ou objeto, até mesmo a vida
humana.
O trabalho: mediação entre ser social e natureza
Tudo parte do princípio da natureza, que se configura em seres orgânicos (animais e
vegetais) e inorgânicos (minerais). Os seres orgânicos constituem o ciclo da vida, onde o
humano se destaca pela sua capacidade de transformação pelo trabalho e de sua capacidade
de projetar finalidade para suas ações (teleologia).
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O desenvolvimento histórico da Humanidade é a substância da sociedade e, esta,
por sua vez, não dispõe de nenhuma substância além dos homens e das mulheres, cabendolhe exclusivamente a construção e transmissão de cada estrutura social. Porém, humanos e
sociedade se desenvolvem e se complexificam no decurso do processo histórico:
[...] a história é, entre outras coisas, história da explicitação da essência humana,
mas sem identificar-se com esse processo. A substância não contém apenas o
essencial, mas também a continuidade de toda a heterogênea estrutura social, a
continuidade dos valores. Por conseguinte, a substância da sociedade só pode ser a
própria história. (HELLER, 2004, p. 02).
Com o desenvolvimento da sociedade capitalista se consolida a exploração do
homem pelo homem. O trabalho passa a ser privado, a estratificação social passa a ser
constituída por duas classes sociais antagônicas – burguesia e proletariado -, configurando a
situação dos explorados e dos exploradores, estes últimos, são os que detêm os meios de
produção e o capital.
Com este novo sistema surge à necessidade as esferas heterogêneas: produção,
relações de propriedade, estrutura política, vida cotidiana, moral, ciência, arte, o aparelho
burocrático, enfim, a estrutura social que estipula e cria as normas para a vida em sociedade
(HELLER, 2004).
Desses complexos sociais, surge o Estado, a política, o Direito, conjunto de relações
sociais que se distinguem das outras relações pela função social que exercem no processo
reprodutivo. Esses complexos fazem com que a exploração do trabalho fira o seu princípio
fundamental e ontológico do trabalho que é a transformação da realidade.
Com o surgimento da sociedade capitalista, o trabalho passa a ser visto como
reprodução social, ou seja,
[...] todo ato de trabalho resulta em consequência que não se limitam à sua
finalidade imediata. Ele possibilita o desenvolvimento das capacidades humanas,
das forças produtivas, das relações sociais, de modo que a sociedade se torne cada
vez mais desenvolvida e complexa (LESSA, 1999, p. 25-26).
O trabalho que se constituía de forma direta e universalista, se vê como indireto e
particularizado pela classe trabalhadora, subsequente à divisão das classes sociais. O
trabalho passa a ser uma forma de poder sobre os homens e as mulheres, de dominação do
homem pelo homem.
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[...] É este rico, contraditório e complexo processo que, fundado pelo trabalho,
termina dando origem a relações entre homens que não mais se limitam ao
trabalho enquanto tal, que é denominado de reprodução social (LESSA, 1999, p.
26).
Todas as relações sociais partem do trabalho, que é apontado por Heller (2004)
como a objetivação mais premente que cria possibilidades para atender novas necessidades
postas pela sociedade, num ciclo de transformação e desenvolvimento da essência humana.
Portanto, é a tomada de consciência do ser social desse movimento que cria e recria a
realidade social e a própria realidade do sujeito social que se constitui como motor da
história.
A história do ser social é caracterizada pela concepção de novos complexos de
organização social. É pelo trabalho que os homens e as mulheres não apenas produzem os
bens necessários para a vida social, mas também se constitui a mediação entre a capacidade
teleológica e a objetivação das habilidades, potencialidades, necessidades, criatividade,
enfim, da capacidade de viver em uma sociedade cada vez mais complexa e articulada.
Tudo parte do trabalho e tudo remete a ele. A totalidade social, nada mais é do que
o conjunto das relações e dos complexos sociais existentes na sociedade, um exemplo
desses complexos é a luta de classes, que possui influências ideológicas, culturais, políticas,
sociais e econômicas, mas que de algum modo, em um dado momento histórico, são
reduzidas ao trabalho assalariado, donde a classe trabalhadora se vê explorada e submetida
aos interesses da classe dominante.
Esse ciclo nada mais é do que a realidade social na qual estamos inseridos em que o
proletariado é utilizado como um instrumento necessário para a produção e acumulação da
riqueza socialmente produzida para os capitalistas.
Portanto, a lógica capitalista tem levado os sujeitos sociais a estarem cada vez mais
alienados e alienantes, em outras palavras, cada vez mais tem-se transformado em coisa
(reificado), passando, constantemente e cada vez mais, a reproduzir relações sociais de
exploração. Por sua vez, a vida social é baseada na violência que possibilita que uma classe
viva do trabalho da outra. A alienação nada mais é do que a (des)humanização social
produzida e reproduzida pelo próprio ser social. (LESSA, 1999, p. 28).
O trabalho, para Marx, é tido como processo de participação/objetivação do ser social
com a natureza. Processo em que se encontra implícita a sua própria ação, a sua práxis. Ao se
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relacionar com a natureza, exterioriza-se através de seus membros e de sua força motriz,
através do trabalho, com o intuito de apropriar-se dos recursos que a natureza lhe oferece.
Marx analisa o ser social e o mundo a partir do ponto em que esse se reconhece no
mundo. É a partir do momento em que o homem e a mulher transformam a natureza é que
estes passam a terem significados: “o concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas
determinações” (MARX, 2011, p.54).
O concreto, ou o mundo real, só passa a existir no momento em que o ser social se
reconhece no mundo. Por essa razão, o “concreto” – o real -, aparece no pensamento do ser
social como fruto daquilo que ele/ela experimentam no mundo e, ao retirar da natureza
elementos para suas abstrações, não apenas aparece como ponto de partida, mas também
como ponto de chegada. Este processo só é possível através do trabalho. Talvez um exemplo
melhore a compreensão:
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
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no meio do caminho tinha uma pedra.
Estes versos de Carlos Drummond de Andrade, analisados na perspectiva marxiana,
apontam a capacidade do ser social de criar algo novo a cada momento em que se depara
com os fatos reais da vida cotidiana e as necessidades heterogêneas dos indivíduos sociais.
Lessa (1999), cita como exemplo, a necessidade de se quebrar um coco.
Ao se deparar-se com este fruto, o indivíduo, em seu estado primitivo, trás para sua
consciência a necessidade apresentada a sua frente – quebrar um coco e se alimentar -,
deste modo, ao tecer mediações para este fim, tem a capacidade de enumerar e objetivar
em sua consciência os meios pelo qual poderá realizar tal tarefa. Esse processo se resulta na
capacidade de objetivar sua ação através do trabalho, que se manifesta sempre como a
transformação da realidade.
Como coloca Marx, o ser social parte-se do real, transporta para a mente e volta ao
real na forma de concreto pensado, ou seja, é necessário conhecer as determinações e
5
ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma Poesia.
http://www.algumapoesia.com.br/drummond/drummond04.htm.
Ed.
Pindorama,
1930,
disponível
em:
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possibilidades, tecer determinada finalidade e validar a ação objetiva daquilo que foi
pensado.
O indivíduo, ao caminhar, encontra no meio do caminho uma pedra e, a pedra estava
no meio do caminho. Ele pega a pedra, olha-a, traz para a sua mente, busca elementos do
próprio mundo para a sua identificação.
Para Marx, o significado se dá, porque este objeto começa a existir na cabeça do
indivíduo. Este objeto assume características materiais, concretas e reais. A partir desse
processo, o indivíduo projeta na sua mente, finalidades e dentre elas, escolhe uma para sua
utilização, como por exemplo, a construção de um instrumento de trabalho (uma
machadinha) e utiliza-a para criar outros instrumentos ou objetos, como por exemplo, uma
canoa.
O animal apenas vê a pedra e não reconhece finalidades para ela. Ao transportar para
o cérebro e criar possibilidades e necessidades através de mediações, o ser social pode
realizar, através do trabalho, uma ou várias ações transformadoras: cria, (re)cria, constrói,
destrói e (re)constrói. Ao objetivar no mundo sua ação, no exemplo, a construção de uma
canoa, e estabelecer relações com os outros seres viventes. Dá-se assim o processo de
socialização e hominização. Por isso o poeta irá dizer:
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra.
O indivíduo que encontrou no meio do caminho uma pedra, agora a transforma, e
dessa transformação, cria necessidades e possibilidades para o seu viver, transformando a
todo o momento o mundo que o rodeia e, ao mesmo tempo, a si mesmo.
Na ontologia do ser social encontramos o trabalho como
[...] um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser
humano com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio
material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe
em movimento as forças naturais de seu corpo - braços e pernas, cabeça e mãos -, a
fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida
humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo
modifica sua própria natureza. Desenvolve as potencialidades nela adormecidas e
submete ao seu domínio o jogo das forças naturais. Não se trata aqui das formas
instintivas, animais, de trabalho. [...] Uma aranha executa operações semelhantes às
do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colmeia. Mas o
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que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua
construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo do trabalho
aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador.
(MARX, 2006, p. 2011).
Esta relação humano/natureza proporciona-lhe o desenvolvimento de suas
potencialidades e, ao mesmo tempo, submete a natureza ao seu domínio. A diferenciação
entre o humano e os outros seres viventes, está relacionada intrinsecamente na forma de
como este realiza este o seu trabalho, ou seja, não se relaciona de forma instintiva com a
natureza, conforme o exemplo de Marx do trabalho da aranha e da abelha que realizam o
mesmo trabalho sem modificar a natureza e a sua própria natureza (MARX, 2006, p. 211), mas
sim, transformando-a ao mesmo tempo.
O ser social
[...] não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o
projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante de
seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação
não é um ato fortuito. Além do esforço dos órgãos que trabalham, é mister a vontade
adequada que se manifesta através da atenção durante todo o curso do trabalho
(MARX, 2006, p. 212).
Portanto, o trabalho, tido em Marx, é o principal ponto mediador entre o ser social e a
natureza e o ser social e a própria sociedade (PONTES, 2002) e as relações sociais são
estabelecidas através dessa relação e inter-relação. Deste modo, esta mediação é uma
atividade transformadora da realidade social.
Ao projetar finalidades na mente para determinada ação, os indivíduos utilizam da
categoria mediação6 para objetivar no mundo real suas ações e, ainda, escolhe dentre elas a
melhor que expresse a satisfação de suas necessidades, como por exemplo, um indivíduo ao
encontrar um toco de madeira, pode projetar na sua mente várias utilidades para este mesmo
toco (construir um banco, uma canoa, um utensílio, uma ferramenta etc.). Ao escolher e
projetar a construção de uma canoa, por exemplo, e em conformidade a sua utilidade
(atravessar um rio), determina uma finalidade prévia. Tendo em mente esta finalidade, ele
realiza (objetiva), através do trabalho, a sua ação: a construção da canoa.
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Sobre esta categoria, ver a obra de PONTES, Reinaldo Nobre. Mediação e Serviço Social. São Paulo: Cortez,
2002. Nessa obra, Reinaldo Nobre Pontes esclarece teórica e didaticamente a categoria de mediação,
fundamentado nas idéias filosóficas de Hegel, Marx e Lukács.
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Marx (2006) chamou a atenção para as características teleológicas do trabalho que
podem ser entendidas como um processo da atividade humana operada para uma
determinada transformação, subordinada a um determinado fim e atua por meio do
instrumental de trabalho: “[...] o processo extingue-se ao concluir-se o produto” (MARX,
2006, p. 214).
Conforme o exemplo apresentado por Marx (2006, p. 211), a aranha constrói a sua teia
desde a Antiguidade da mesma forma. O joão-de-barro constrói a sua casa do mesmo jeito
desde sua origem, mas o ser humano cria, destrói e recria formas diferenciadas de objetos e,
pó sua vez, cria também novas necessidades.
Assim,
[...] o homem afirma-se como ser criador: não só como indivíduo pensante, mas
como indivíduo que age consciente e racionalmente, visto que o trabalho é atividade
prático-concreta e não só espiritual. [...] Ao transformar a realidade, o homem
transforma a si próprio: o processo de criação, do ponto de vista do sujeito, é
processo de autocriação humana (IAMAMOTO, 2006, p. 41).
O trabalho é a categoria fundante do ser social, permanece como pressuposto da
existência humana. É condição necessária e natural do intercâmbio material entre os
indivíduos e a natureza e daqueles que vivem em sociedade.
Considerações Finais
Ao pensarmos o ser social na atualidade, inserido num mundo de relações e interrelações sociais cada vez mais alienadas e alienantes e, dadas as circunstâncias em que se
coloca na e para a vida cotidiana, num universo de relações, em grande medida,
mercantilizadas e mercantilizadoras, estabelece o processo de alienação que propicia a
subsunção das características ontológicas, passando a ser tratado como mera coisa ou objeto.
Podemos dizer que as condições e contradições que lhes são impostas pela sociedade
do capital e do consumo desenfreado, impedem ao indivíduo sair do estado de alienação e
estranhamento em que, muitas vezes se encontra, ou mesmo de enxergar outras
possibilidades de liberdade.
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É pela atividade do trabalho que ocorre o despertar das forças da natureza humana.
Na medida em que o ser social se apropria dessas forças e através do trabalho, criam e
satisfaz suas próprias necessidades sociais.
Na concepção marxiana e marxista é esta relação que estabelece o processo de
humanização e hominização do ser social, portanto, o trabalho é condição constitutiva da
essência humana.
O trabalho, enquanto categoria ontológica fundante do ser social, é a manifestação da
liberdade, da capacidade humana de criar a sua própria existência. Não se trata, certamente,
de uma liberdade infinita porque a produção está sempre relacionada com as condições
materiais e com as necessidades a ser criadas.
É pelo trabalho que novos modos de vidas e culturas surgiram e, com eles, a
civilização. A caça e a pesca juntaram-se à agricultura e mais tarde a fiação, a tecelagem, a
manipulação dos metais, a olaria, a navegação, enfim, novas aragens foram sendo
descobertas, novas culturas, novas formas de relações sociais.
Por outro lado, o comércio e os ofícios, as artes, a filosofia e as ciências. Das tribos,
surgiram os pequenos aglomerados, as cidades, as nações e os Estados. Destes complexos
sociais, surge a necessidade de criar regras e normas para a vida em sociedade. Surge a ética,
o direito, a ideologia e a política e, com eles, a religião e o poder.
No auge do desenvolvimento das forças produtivas, constitui-se o modo de produção
capitalista e, com ele, a exploração do “homem pelo homem” e, assim, a contradição, a
exploração e alienação do próprio ser social frente aos apelos contínuos do capital.
Portanto, neste artigo, buscamos de forma sintética apresentar alguns apontamentos
sobre as bases ontológicas do ser social, observando o trabalho como condição sine qua non
do desenvolvimento social e individual do ser social.
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REFERÊNCIAS
ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma Poesia. Ed. Pindorama, 1930, disponível em:
http://www.algumapoesia.com.br/drummond/drummond04.htm.
BARROCO, Maria Lucia S. Ética e Serviço Social: fundamentos sócio-históricos. São Paulo:
Cortez, 2008.
__________. Os fundamentos sócio-históricos da ética. Brasília: CEAD, 1999, p. 120-136.
CAVALLI, Michelle. A categoria mediação e o processo de trabalho no Serviço Social: uma
relação possível. V Encontro de Iniciação Cientifica, v. 5, 2009.
HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. Trad. Carlos Nelson Coutinho e Lenadro Konder.
São Paulo: Paz e Terra, 2004.
IAMAMOTO, Marilda Villela. Trabalho e indivíduo social. 2ª edição. São Paulo: Cortez, 2006.
LESSA, Sergio. O processo de produção/reprodução social: trabalho e sociabilidade.
Brasília: CEAD, 1999, p. 20-33.
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro I, Vol. I. 24ª ed. Trad. Reginaldo
Sant’Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
__________. Para a Crítica da Economia Política. Trad. Edgard Malagodi. São Paulo: Nova
Cultural, 2005. (Coleção: Os Pensadores).
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã: crítica da novíssima filosofia alemã em
seus representantes Fererbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus
diferentes profetas. Org., trad., prefácio e notas de Marcelo Backes. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2007.
PONTES, Reinaldo Nobre. Mediação e Serviço Social: um estudo preliminar sobre a
categoria teórica e sua apropriação pelo Serviço Social. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2002.
VERONEZE, Renato Tadeu. As reflexões estéticas na perspectiva lukasciana: uma expressão
ontológica da realidade social. Pesquisa realizada pelo Programa de Iniciação Científica do
Centro Universitário da Fundação Educacional Guaxupé – UNIFEG. Guaxupé: UNIFEG, 2006.
__________. Introdução ao pensamento filosófico em Marx: a ontologia do ser social.
Monografia apresentada ao curso de pós-graduação latus sensus da Pontifícia Universidade
Católica – PUC/Minas, campus de Poços de Caldas/MG, como pré-requisito para a obtenção
do título de especialista em Desafios da Filosofia Contemporânea, sob orientação do Prof.
Dr. Gérson Pereira Filho e da Profª. Msª. Cláudia Ferreira Galvão. Poços de Caldas: PUC/MG,
2011.
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