XXVI ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS – 2002 A IMAGEM EM CONTEXTO ISLÂMICO Grupo de Trabalho A PRODUÇÃO, A LEITURA-RECEPÇÃO E OS USOS DA IMAGEM EM CIÊNCIAS SOCIAIS Coordenadoras: Carmen Rial ( UFSC); Sylvia Caiuby Novaes (USP) Comunicação Apresentada por: Francirosy Campos Barbosa Ferreira 1 XXVI ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS – 2002 A IMAGEM EM CONTEXTO ISLÂMICO A imagem em contexto islâmico1 Resumo: Este paper tem por finalidade discutir os limites de se produzir imagens em contexto islâmico, tendo em vista as restrições estabelecidas pela religião. No Islã é proibido o culto às imagens. A partir de uma pesquisa de campo realizada entre os muçulmanos em São Paulo pretendo abordar de que maneira esses produzem suas imagens e quais os limites encontrados pelo pesquisador para produzir suas imagens em campo. O fato de ser mulher limita os espaços a serem fotografados, no entanto, entre as mulheres, outras questões permeiam esta relação, já que as mulheres não podem ser fotografas, nem filmadas sem o véu. Por outro lado, elas mesmas produzem esse registro, que para os de fora é proibido. A intenção, portanto, é abordar os diversos discursos do uso da imagem por eles, a chegar à produção de fato. Esta pesquisa foi iniciada no mestrado entre os muçulmanos que residem no bairro do Brás e no momento engloba outros núcleos de muçulmanos que residem em São Paulo: os que residem em São Bernardo do Campo e os de Santo Amaro.2 Introdução "Entre olho e memória, entre olhar e pensamento, entre visibilidade e latência, bate a foto. Com toda a força, bate as asas, vai e vem, escorrega incessantemente de um ao outro. Ainda palimpsestos" (Dubois,1990:330). Esta comunicação tem por propósito apresentar algumas reflexões sobre os usos das imagens (fotográficas) em contexto islâmico, a partir de concepções dos muçulmanos que residem no bairro do Brás em São Paulo e que foram meus interlocutores durante o mestrado em antropologia social. Para isto optei por três estatutos dessas fotografias: as produzidas ou não por muçulmanos (fotos de imprensa) e as que produzi em campo. Cabe ressaltar, que os muçulmanos não cultuam imagens, principalmente as figurativas. O espírito desta interdição islâmica em face da representação de formas é que, teoricamente, no Dia do Juízo3, as imagens deverão ser ressuscitadas por seu autor (Hanania,1999:15). Mas, e a 1 Por Francirosy Campos Barbosa Ferreira, mestre em Antropologia Social (dissertação de mestrado IMAGEM OCULTA financiada pela FAPESP) ; pesquisadora do GRAVI – Grupo de Antropologia Visual (Projeto Temático Imagem em Foco nas Ciências Sociais) e do NAPEDRA – Núcleo de Antropologia Performance e Drama; Editora da Revista Cadernos de Campo. Professora de Ensino Superior. 2 Esta comunicação é acompanhada de um vídeo de 5’ IMAGEM OCULTA, apresentando as fotos aqui comentadas. Vale lembrar, que a análise de algumas fotografias, já foram contempladas em artigo publicado IN: Travessia – revista do migrante, ver Ferreira (2002). 3 Dia em a pessoa morre e tem que prestar contas com Deus. 2 XXVI ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS – 2002 A IMAGEM EM CONTEXTO ISLÂMICO fotografia? Muito embora ela se constitua como um modelo de representação, não podemos descartá-la totalmente do contexto islâmico. No período do profeta Muhammad (Maomé), século VII, o grande perigo para os adeptos ao Islã era o culto às esculturas, estátuas de bronze. A imagem figurativa apresentava um impedimento, pois esta representava a criação divina. Não se deve copiar o que Deus criou, pois tudo o que ele fez (faz) é perfeito, na lógica islâmica. Se há restrição ao culto de imagens, o que diria sobre a fotografia? "O falecido Cheik Mohammad Bakhit, jurista egípcio, estabeleceu que uma vez que a fotografia só faz captar a imagem real do objeto através de uma câmera, não há razão para a proibição neste caso. As imagens proibidas são aquelas cujo objeto não está presente e que têm origem na imaginação do artista, cuja intenção é de imitar a criatura animal de Deus, o que não se aplica às fotografias tiradas com uma câmera” (AL-Karadhawi:181). Neste trabalho a fotografia entra como um instrumento para compreensão deste grupo tão estereotipado pelos meios de comunicação. Corroboro a idéia de que a fotografia pode ser utilizada como um instrumento de pesquisa como apontou Godolphim (1995) e John Collier Jr. (1973): quando é tomada como mais uma técnica de documentação, além do caderno de campo e do gravador. Pode também auxiliar na construção da relação com o grupo estudado expandindo as possibilidades de comunicação, pois, a partir dela podemos construir diálogos com os informantes. Além disso, a fotografia pode ser também um elemento do discurso antropológico, quando a discussão é apresentada de forma imagética. A intenção é pensar sobre as atribuições da imagem em um contexto onde há restrições a elas. A partir da discussão com os meus interlocutores sobre suas fotografias, comecei a perceber que algo os incomodavam constantemente, quando falávamos das fotos produzidas pela imprensa. Para eles tratam-se de imagens estereotipadas e descontextualizadas com a realidade e com os preceitos da religião. Por esta razão, selecionei algumas fotos recorrentes na imprensa para análise conjuntamente com algumas fotos que fiz em campo e que hora e outra era objeto de discussão entre eles. Vale ressaltar, que as imagens que produzi se dinamizaram, porque ao ver as imagens produzidas dos e pelos muçulmanos percebi que as imagens processadas por mim carregavam potencialidades diferentes das demais. Estabelecendo, assim, uma memória do evento vivido e ampliando ainda mais a relação com os pesquisados. Conforme destaca Caldarola (1988): “Nós etnógrafos, construímos fotografias para fazê-las refletir e coincidir com representações etnográficas de eventos sociais, por mais parciais e incompletas que sejam (...) escolhemos e definimos o tema; decidimos sobre momentos e locais particulares, selecionamos a perspectiva, o enquadramento”. 3 XXVI ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS – 2002 A IMAGEM EM CONTEXTO ISLÂMICO Em um grupo muçulmano, o momento e os locais particulares a serem fotografados nem sempre são escolhidos pelo etnográfo, posto que há uma série de restrições na hora de produzir uma imagem. Uma das restrições é não fotografar uma mulher sem véu. Como resolver tal dilema em uma festa de mulheres? Quando as mulheres estão reunidas retiram o hijab (véu, lenço), passando a ter uma imagem que não pode ser reproduzida pela pesquisadora.4 Faz-se importante pontuar que os muçulmanos apresentam condutas diferentes no modo de se relacionarem uns com os outros, principalmente em relação aos homens e as mulheres, em geral os espaços reservados a um e a outro são separados, isto foi incorporado pelos muçulmanos5 que residem e trabalham no bairro do Brás, não necessariamente acontece do mesmo modo em outras comunidades aqui no Brasil. Sendo assim, as festas são separadas e é neste lugar onde muitas vezes produzi minhas fotografias Do olhar (da observação) ao fazer (captar) imagens abrem-se vários canais de comunicação. A comunicação que se estabelece a partir de imagens fotográficas, sejam elas minhas ou deles, produzem uma interação que possibilita encontrar novos significados no método utilizado na pesquisa com fotografias: um primeiro estágio foi fazer as imagens "falarem" a partir das memórias apresentadas pelos próprios muçulmanos, construindo assim uma relação com o grupo pesquisado. Nessas conversas, ouvi deles o fato de as fotografias de imprensa terem o objetivo de chocar, na medida em que só apresentam imagens de mulheres totalmente cobertas6, homens em guerra. Imagens que para eles são preconceituosas e estereotipadas. As fotografias que produzi foram fundamentais para compreensão desta comunidade e das restrições a certos tipos de imagens. Sem saber realmente aonde me levaria as imagens produzidas em campo, acabei constatando que foi produtivo e esclarecedor utilizá-la como processo de apreensão da realidade estudada. Como diz Caiuby Novaes (1993), "Certos fenômenos, embora implícitos na lógica da cultura, só podem explicitar no plano das formas sensíveis o seu significado mais profundo". 4 Por ser mulher, quase sempre estive presente em reuniões de mulheres, é sem dúvida um acesso privilegiado para pesquisadoras, pois em uma reunião de mulheres (chá, festas) só as mulheres podem participar. 5 Esses muçulmanos do Brás são libaneses ou descendentes de libaneses em sua maioria. E durante muitos anos não praticavam a religião, apenas diziam-se muçulmanos. Há 10, 11 anos atrás eles começaram a ter contato maior com a religião e foram assim reaprendendo os valores religiosos e passaram a vivencia-los no seu cotidiano. Podemos verificar ainda hoje um grande crescimento de meninas que passaram a usar o véu. 6 Como as mulheres do Afeganistão que usam burqa. (Ver capítulo sobre o véu em minha dissertação de mestrado). 4 XXVI ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS – 2002 A IMAGEM EM CONTEXTO ISLÂMICO O olhar da imprensa As fotografias da imprensa são as mais conhecidas pelo público em geral. Estão presentes em jornais, revistas e televisão. O assunto mais corrente sobre os árabes-muçulmanos é sem dúvida a guerra entre muçulmanos e judeus na Palestina. Desta guerra, o que nos chega são fotos das tragédias: mães que perdem seus filhos, maridos que perdem suas famílias..., tanto de um lado quanto do outro. É neste registro, que as fotos sobre os muçulmanos povoam o imaginário e enchem as redações. Edward Said (1990) afirma que “a imagem que se tem do árabe7 é sempre mostrado de forma negativa, aparecendo como perturbador da vida de Israel e, do Ocidente, principalmente após a guerra civil de 73, quando o árabe apareceu por toda parte como alguém ameaçador. Caricaturas apresentando um xeque árabe em pé atrás de uma bomba de gasolina surgiram repetidamente, assim como os narizes nitidamente aduncos e o malvado olhar de soslaio. A imagem construída de antisemita e de fornecedor de petróleo desonesto”. Said ainda aponta que na televisão e em filmes o árabe é associado à libidinagem ou à desonestidade sedenta de sangue (ib: id. pp291). Para ele, o que está por trás de todas essas imagens, é a ameaça da jihad, a guerra santa e isto leva ao temor de que os muçulmanos (ou árabes) tomem conta do mundo. Será que com a mesma intensidade negativa apontada por Said? Talvez se pensarmos do ponto de vista dos muçulmanos, mas há de se alertar que a imprensa "quase" sempre tem a intenção de informar os seus leitores e, ou telespectadores. São raros os programas ou textos jornalísticos preocupados em dar uma formação. Sendo o papel assumido da imprensa como o de dar informações, não se espera que tenham um outro tipo de postura, quando o tema é Islã. Podemos verificar que nos últimos meses, os muçulmanos estão mais na mídia, aqui no Brasil, por dois eventos: em primeiro lugar o evento do dia 11 de setembro, onde toda uma tragédia, fez com que a comunidade tivesse voz e fosse pauta para muitos programas jornalísticos8, e segundo, o Islã foi um dos temas abordados na novela das 20h na rede Globo, O Clone9. Esses dois eventos, com certeza, “aproximaram” esta lógica islâmica aos nossos dias. 7 É importante frisar que dos muçulmanos apenas 20% são árabes. O fato de estarem mais na mídia não significa que eles sejam respeitados como gostariam, aliás muitos dos meus informantes foram desrespeitados nas ruas, como se eles tivessem alguma relação com o ocorrido. 9 A novela conseguiu reforçar um outro estereotipo sobre os muçulmanos: o de repressão e submissão da mulher, apesar de ter dois Sheiks como consultores da trama novelística. 8 5 XXVI ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS – 2002 A IMAGEM EM CONTEXTO ISLÂMICO Qual é a imagem em profusão que vemos nas revistas e jornais10 ? A primeira foto, mostra uma mulher toda coberta frente a um microscópio, em destaque, no suplemento do Times (1995). A fotografia de l' Express (Foto 2) traz a imagem de uma muçulmana toda coberta, escrevendo. Não é possível nem visualizar os seus olhos. A foto da revista Veja (Foto 3) apresenta uma mulher iraniana toda vestida de preto, roupa comum no Irã, sociedade que adotou o xiismo 11 sendo a cor preta escolhida para a vestimenta desses muçulmanos12. A última foto selecionada, talvez, a mais forte entre elas, traz um mulher muçulmana no seu momento de dor, com uma expressão de sofrimento, de tristeza. Poderia aqui ter escolhido outras tantas fotos, mas essas como apontei anteriormente são bem conhecidas, por isto resolvi selecionar um número menor, pois elas condensam de certa forma o que vemos na imprensa. O que essas imagens podem suscitar? O que as diferenciam das outras? São todas imagens de mulheres. Na imprensa as imagens em profusão são de mulheres de véu geralmente com rostos assustados, além de fotografias de homens, quase sempre relacionados às reportagens sobre o conflito da Palestina. Aí cabem imagens de violência: como homens com metralhadoras, mortos, ou seja imagens que remetem a guerra. Reportagem? Fato real? Essas são as imagens que povoam o imaginário dos ocidentais. Dentro desse contexto fica fácil construir uma imagem de terrorista para os árabes muçulmanos (Said, 1990) e para as mulheres obrigadas a usar o hijab e a obedecer ao pai, ao marido e aos filhos. Ficamos só nessas imagens? Tomo aqui, as fotografias de mulheres, porque são elas os maiores alvo da imprensa. Caiuby Novaes (1993:28) afirma que o conceito de auto-imagem implica um confronto entre os sistemas de valores conflitantes, aos quais se apela para a representação de si, e certamente, tanto para uma atuação frente ao outro, como para a avaliação desta atuação. (Grifos meus). A matéria que acompanha a foto 1, não faz nenhuma alusão à imagem, mas estampa a manchete "Despair among the dervishes", o texto vai tratar do fundamentalismo. Os fundamentalistas são alvos da imprensa constantemente, mesmo fazendo parte de 3% do total de muçulmanos no mundo. Este é um dos temas mais recorrentes, juntamente com a guerra da 10 O meu recorte é sobre as fotografias, mas não posso deixar de apontar a repercussão causada pelos filmes iranianos, este sem dúvida tem sido um grande espaço para cultura oriental e para o Islamismo no mundo. Em entrevista a FOLHA DE S.PAULO, o cineasta Jafar Panahi fala de seu filme "O Círculo. " novembro, 2000. Folha - Seu filme começa e termina com imagens semelhantes: a janelinha da porta do hospital e a janelinha da porta da prisão. Essas imagens significam, em seu delimitado campo de visão, a condição da mulher na cultura iraniana? Panahi - Esses limites não existem apenas no Irã. Esse tipo de círculo existe no mundo inteiro. Todas as pessoas do mundo moram em círculos. Em alguns países, eles são maiores e, em outros, menores. É possível que esse círculo seja um pouco menor em meu país. Mas, com certeza, as pessoas que moram em meu país não são diferentes das pessoas que moram em outros. De alguma forma, elas vivem nesse círculo e estão lutando para sair dele. 11 A religião Islâmica está dividida entre sunitas (aqueles que seguem a Sunna – ditos, condutas e falas do profeta Muhammad) e xiitas (estes não seguem a Sunna), são descendentes de Ali, primo e genro do profeta, acreditam quem depois da morte do profeta, quem deveria ocupar o seu lugar seria alguém de sua família consangüínea, e não um líder políco, como era Abu Bakr, sucessor do profeta depois de sua morte. 12 Ver capítulo sobre o véu IN: dissertação de mestrado (Ferreira,2001). 6 XXVI ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS – 2002 A IMAGEM EM CONTEXTO ISLÂMICO Palestina e a intervenção cirúrgica de eliminação do clitóris de moças de algumas tribos africanas. A imagem que é feita do muçulmano (e neste ponto concordo com Said), é sempre negativa e oculta, já que sabemos muito pouco sobre esse grupo. A nossa sociedade define que os muçulmanos são o Taleban, são os agressores das mulheres etc. As fotos que aparecem na imprensa têm por objetivo apenas ilustrar o texto. Em geral, as matérias reproduzem de forma equivocada o Islã e os muçulmanos. O véu para a imprensa é sinal de atraso e de repressão, desta forma, as mulheres só aparecem para configurar a sua subjugação em relação aos homens. A manchete da revista L' Express chama atenção para o desprezo que Deus tem para com as mulheres muçulmanas, judias e católicas. "Christianisme, islam, judaisme Dieu est-il contre les femmes?" Compara o papel das mulheres nessas religiões. O artigo da Veja cuja manchete: "Islã, a derrota do fanatismo. Afirma que mundo respira aliviado com sinais de enfraquecimento na linha desses muçulmanos". Tenta dessa forma, encontrar consistência nos 14 anos de atraso nas imagens que traz na matéria. A matéria associa o Islã aos fundamentalistas, como se todos os muçulmanos adotassem tal prática. Os problemas apresentados com recorrência pela imprensa dizem respeito ao uso do véu. O atraso para eles está sempre vinculado à vestimenta usada pelas mulheres. Cabe refletir sobre essa imagem expressa pelas fotografias da imprensa. Muitas vezes, a sensação que tenho, é que esses fotógrafos transformam tais fotografias em imagens bizarras, descontextualizadas, pela simples satisfação de apresentar o que é exótico. Afirmando: "aqueles são eles, o outro, bem diferente de nós". Percebo que a imagem produzida pela imprensa colabora muito para constituição da auto-imagem dos muçulmanos o que podemos verificar nas fotografias que produzem de si. Nos dias de hoje, pós os eventos apontados, temos uma pouco mais de esclarecimentos por parte de pessoas, mas isto não significa um conhecimento maior da religião e do modo de vida desse grupo. Fotos da Mesquita Brasil Passo agora as fotos produzidas por muçulmanos. Essas fizeram parte da exposição fotográfica em comemoração aos 70 anos de Sociedade Beneficente Muçulmana (SBM), realizada na Mesquita Brasil, localizada na avenida do Estado, Cambuci, em São Paulo, que foi a primeira mesquita construída no Brasil. Essa exposição fotográfica também fez parte de um outro evento realizado na Câmara Municipal de São Paulo, contando com a presença de políticos de descendência árabe e de outros políticos convidados, assim como, autoridades religiosas. 7 XXVI ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS – 2002 A IMAGEM EM CONTEXTO ISLÂMICO Neste evento foi possível perceber as diferenças culturais entre os muçulmanos. Havia algumas mulheres de descendência africana, com suas roupas estampadas e coloridas. Havia também uma menina de nove anos usando véu e, pelo que consegui constatar, foi por sua decisão o uso do véu. Ela estuda na escola islâmica e, lá, as meninas não são obrigadas a usar o véu, exceto para rezar na mesquita da escola. Em entrevista com um dos coordenadores dessa exposição fotográfica, - Walid Sukair -, jornalista e fotógrafo, pedi que ele comentasse as fotos da exposição: “Nessa exposição o que mais me chama a atenção são dois aspectos. O primeiro deles são essas fotos antigas em relação às fotos atuais, por exemplo aqui, e aqui.13. O que não se via nas fotos de antigamente que é curioso, por exemplo, a presença de mulheres vestindo o véu. Que pelo contrário na época, anteriormente as mulheres deviam estar vestindo o véu e atualmente não, se for seguir a lógica da concepção ocidental, que é o avanço da modernidade tal e, muito pelo contrário, antigamente as mulheres muçulmanas não vestiam o véu, não freqüentavam a Mesquita e hoje é o contrário, as mulheres muçulmanas vestem o véu e vêm às Mesquitas. Esse tipo, essa analogia me deixou muito curioso, esse fato. Outra coisa que chama muito a atenção também é o fato do crescimento do islamismo, do crescimento e da organização do islamismo. Hoje o islamismo conta com escola, com hospitais, com centro de informações, fotos como essa também me despertam bastante a atenção". Ao comentar as fotos, Walid aponta a mudança de comportamento das mulheres no Brasil. O que está por trás dessa mudança de comportamento, mesmo com o avanço da "modernidade"? (como na fala de Walid). Em outro momento, coloca que a imprensa acaba fazendo o papel inverso do que pretendia, pois fala tão mal, isto é, cria uma imagem estereotipada do Islamismo que desperta interesse nas pessoas, as quais acabam conhecendo o verdadeiro Islã e passam a fazer parte dele. Pude verificar que mesmo contrariados com o papel da imprensa em relação à imagem dos muçulmanos, muito deles apontam o efeito contrário que a imprensa provoca.14 Percebi desde cedo o cuidado que eles tomam quando têm que falar à imprensa, pois, segundo eles, muitas vezes tiveram suas palavras distorcidas em matéria publicadas em revistas e pelo próprio canal de televisão. No início da pesquisa e em determinados lugares sempre me perguntavam se era jornalista, para que jornal trabalhava. O fato de não pertencer a nenhum jornal com certeza ajudou e muito a conversa, a desconfiança foi menor. Continuando a entrevista com Walid perguntei a ele o que despertou essa mudança. " O crescimento, nós tivemos uma fase aqui do islamismo muito voltada à face árabe da coisa, aonde o islamismo ficou muito arabista. O islamismo no Brasil há 30 anos atrás eles ficavam voltados mais na questão do arabismo, da questão da liberdade da Palestina, da guerra do Egito, do Nasser tal, então isso era uma causa árabe e não propriamente islâmica no caso, então eles se voltavam muito aquela questão do arabismo e criavam algumas limitações islâmicas. Hoje em dia não, hoje em dia a vista, o 13 Referindo-se as fotos aqui apresentadas. 14 Em pesquisa recente, apresentada pela rádio CBN, aponta que o órgão de maior credibilidade para o população brasileira é a igreja católica (30%), seguido pela imprensa com 20%. 8 XXVI ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS – 2002 A IMAGEM EM CONTEXTO ISLÂMICO ponto de vista islâmico mais do que do ponto de vista árabe, então hoje você tem a participação de todos..." Hoje é possível verificar um grande número de muçulmanos convertidos que freqüentam a mesquita Brasil. Segundo Marques (2001, 67-68) "o convertido por sua vez "sempre será um convertido" e "será sempre um não-árabe". Ela aponta, em seu trabalho, a dificuldade encontrada pelos convertidos brasileiros sem ascendência árabe para tentar um relacionamento mais integrado dentro da comunidade islâmica. Mas a dificuldade não é só dos convertidos. Podemos constatar as diferenças entre sírios, libaneses e palestinos, como observei anteriormente. Quando um árabe pergunta quem você é, ele está perguntando de onde você é, a que região pertence e isto implica em apontar as semelhanças e as diferenças deste ser árabe. Neste contexto, as mulheres têm um papel efetivo na mesquita, trabalham para ajudar a comunidade, promovendo encontros sociais e religiosos, com a finalidade de unir o grupo e de passar os ensinamentos do Islã. Em uma das fotos podemos ver uma muçulmana mais velha ao centro, vestida de preto. Sugere, no contexto da exposição, que desde a fundação da mesquita, as mulheres sempre estiveram presentes. Aqui a fotografia expressa o momento vivido; através dela é possível ter acesso ao passado, como as mulheres se vestiam, o que era ressaltado nas imagens, qual era o comportamento expresso. Walid aponta que há anos a maioria das mulheres não fazia uso do hijab e que esta prática tem sido retomada por muitas mulheres que hoje estudam o Islã15. Um dado importante para esta transformação, é que o Islã, não obriga a mulher a freqüentar a mesquita às sextas-feiras, no entanto, muitas delas quando podem se abster dos serviços domésticos ou profissionais, comparecem na hora da oração. O crescimento dos centros islâmicos também possibilitou não só uma maior participação feminina, mas também de todos os muçulmanos nos eventos sociais e religiosos. As fotos expressam, segundo Walid, o crescimento do número de muçulmanos. Hoje para participarem do dia do sacrifício eles têm que rezar do lado de fora, o que não ocorria há 9, 10 anos atrás. No dia do sacrifício16, colocam-se tapetes17 do lado de fora para que se possa rezar. Um hábito dos muçulmanos é sempre deixar um tapete reservado para oração próximo aos eventos que estão sendo realizados. Na câmara municipal, era possível ver vários tapetes, geralmente, usados pelos homens para fazerem suas orações. 15 Procurar o conhecimento da religião para os muçulmanos é fundamental. Tanto é que ouvi de alguns muçulmanos que o fato de eu estar aprendendo sobre a religião era muito positivo e que ao final era certo que eu me converteria. Para eles quem conhece a fundo a religião acaba por aderi-la. 16 Vou falar adiante. 17 Por que tapetes? Os muçulmanos não fazem suas orações em lugares onde há imagens e onde esteja sujo - impuro-, portanto usam tapetes para não terem contato com o chão, assim como, também fazem abluções, lavando braços, pés e nuca. 9 XXVI ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS – 2002 A IMAGEM EM CONTEXTO ISLÂMICO Festa do Sacrifício Outro registro feito pelos muçulmanos foi na festa do Sacrifício, dia em que se comemora o sacrifício solicitado a Abraão por Deus, para que sacrificasse o seu filho único “Ismael” 18 em sinal de seu amor. No momento do sacrifício, Deus retira o seu pedido, e fala a Abraão que sacrifique um carneiro no lugar de seu filho. É costume comemorar esse dia assando um carneiro, convidando os amigos e parentes para participar da festa que se inicia pela manhã, quando os muçulmanos vão à mesquita para rezar. Eles têm o hábito de se encontrar para a primeira oração do dia. Nesse dia as mesquitas ficam lotadas e é possível ver homens, mulheres e crianças reunidas para a oração. A seguir, se confraternizam com um almoço entre familiares e amigos. A festa dura 3 dias, o suficiente para que todos os muçulmanos se visitem. Afaf19 conta que no dia do sacrifício ela compra roupas novas e presentes para os netos, dá cem reais a cada um, e sempre deixa algum dinheiro próximo à porta, caso apareça alguém, como um porteiro, um empregado. É comum os muçulmanos pagarem almoços às pessoas necessitadas. Esta é uma festa que promove a solidariedade e a caridade. Na Liga da Juventude por ter um espaço menor que a mesquita Brasil, as mulheres rezam atrás dos homens. As meninas ficam próximas à mãe e os meninos próximos ao pai no momento da oração. Depois desta, as mulheres e as crianças se reúnem em um salão separado dos homens para confraternização e distribuição de presentes. Na mesquita Brasil, onde participei quatro anos seguidos, a confraternização é feita em dois salões grandes. Não há separação de homens e mulheres. Há três anos atrás os muçulmanos do Brás ainda procuravam a mesquita para fazerem suas orações e comemorarem este dia. Neste último Eid, a presença à festa na Liga da Juventude foi muito maior. Há cada vez mais uma aproximação dos muçulmanos que moram nesta região com o seu próprio Centro Islâmico. Neste dia especial uma das minhas informantes fez uma foto que, segundo ela, eu gostaria muito. A mãe com suas filhas está associada a imagem que, de certa forma, é passada por mim, mãe de três meninos. Isto elas sempre elogiam, pois a maioria tem, ou pretende ter, mais que três filhos. Quais os sinais dessa foto? O vermelho da roupa das meninas destaca-se na foto cinza, dá um colorido à imagem. A mãe alimenta suas filhas, que estão ao seu lado. Esta é uma imagem que chama a atenção de Magda, e que, em sua opinião, também seria apreciada por mim. Se observássemos nossos álbuns de fotografias veríamos fotos parecidas, afinal retratar o cotidiano não têm nada de diferente, a não ser as pessoas que fazem parte desta ou daquela foto. É possível concluir que essas fotos tiradas por 18 Para Judeus e Cristãos, o filho de Abraão chama-se Isaac. 19 Afaf faleceu em fevereiro 2001, foi uma grande colaboradora deste trabalho, assim como, Magda e Malac. 10 XXVI ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS – 2002 A IMAGEM EM CONTEXTO ISLÂMICO eles, são fotos habituais que expressam um cotidiano, um modo de vida que poderia ser o de qualquer um, ao contrário de fotos da imprensa que têm a intenção de chocar, às vezes até transformam a própria foto em um evento; a foto de família sai do evento em si, faz a ligação do passado com o presente, e quase sempre são comuns a todos. É comum que uma mãe tire muitas fotos do seu primeiro filho, álbuns e mais álbuns do bebê chorando, sorrindo, comendo, de bruços, enfim reproduzem o cotidiano desse primeiro ano de vida, depois a pré-escola. A memória das famílias é guardada nessas fotografias que lotam nossos álbuns, nossas caixas e armários, nossas vidas, mas que quase sempre só a nós dizem respeito, só a nós podem emocionar, reviver, recordar. As fotos limitam-se a apresentar a festa, a confraternização das amigas, das crianças, e da família. Aqui revela-se a festa, a confraternização, o momento de oração. Nesta seleção de imagens os homens estão ocultos, não apareceram em nenhuma foto, não porque não estivessem presentes, mas porque não ocupavam o mesmo espaço das mulheres e das crianças como apontei anteriormente: homens estão separados das mulheres. Retomo o percurso até aqui realizado, primeiro temos as fotografias da imprensa que retratam, na maioria das vezes, imagens estereotipadas e não "um cotidiano"; segundo as fotos produzidas por muçulmanos e que são apontadas por eles mesmos como imagens comuns como as produzidas pelas sociedade envolvente. Por fim, temos as imagens fotográficas que produzi e que diferenciam-se dos outros pelo ato de fazer, já que tenho que obedecer determinadas restrições. Os limites são sempre claros e, que, de certa forma, potencializaram e muito a minha percepção do grupo. Meu olhar fotográfico sobre a festa dos Dentinhos Outro ensaio fotográfico é da festa do nascimento dos primeiros dentinhos da filha de 20 Khadija , mas a comemoração implícita da festa é o aniversário da criança. Jamel, uma das muçulmanas presentes, destaca que alguns muçulmanos não têm o hábito de fazer festa de aniversário e talvez por isso dêem outros motivos para comemorar o aniversário dos seus filhos pequenos. Minha interpretação é que não se comemora aniversários para não dar o sentido de que as pessoas são mais valorizadas que Deus. Esta seria uma forma de cultuar uma pessoa em detrimento dele, que deve estar acima de tudo. Não significa que todos os muçulmanos não realizem 20 Esta festa de comemoração dos dentinhos é feita por árabes, isto independe se são ou não muçulmanos, faz parte da cultura árabe. 11 XXVI ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS – 2002 A IMAGEM EM CONTEXTO ISLÂMICO aniversários, mas em três festas das quais participei, o aniversário não era o motivo principal, embora estivesse presente. A comida oferecida nesta festa era trigo cozido em uma calda doce, que é acompanhado com outros alimentos doces, como coco ralado, confete de chocolate, uvas passas, amendoim, nozes, castanhas. Tais comidas têm como intuito mostrar simbolicamente quais são os alimentos que a criança pode comer a partir do nascimento dos seus dentes. Não basta fazer os alimentos com capricho, é preciso decorar os pratos e a mesa. Esta é decorada de maneira a tornar tentador provar os alimentos. Oferecer doces em ocasiões felizes, para eles, representa o desejo de que a vida seja doce (Husain:1999). Na verdade trata-se de um costume árabe adotado por muçulmanos com esta descendência. Mas não foi apenas a decoração da mesa que me chamou atenção, havia outro objeto no salão que também se destacou e despertou curiosidade: o espelho. Khadija, a dona da festa, trouxe um espelho para que as mulheres pudessem se pentear depois de tirarem os véus e vice-versa. As mulheres, quando saíam do salão, colocavam o véu; quando entravam, tiravam o véu e os casacos. Só assim fazia sentido um espelho, pois era preciso pentear os cabelos longos depois de soltá-los e ajustar a roupa, após tirar os casacos. A beleza não era só dos alimentos, mas também das mulheres. Fiquei boa parte do tempo olhando para mulheres que passavam à frente do espelho. Ali, tinham a impressão de estar diante do que é revelado e que, ao passar pela porta, voltava a ser oculto. O espelho ajudava na construção da imagem que se pretendia passar. Para os de dentro, cabelo soltos, roupas mais sensuais, espontaneidade, cantorias, danças. Para os de fora, a imagem reservada, coberta, comedida. Observei quando uma moça clara, alta, vestida com um casaco preto longo, de nome Gilda 21 de véu entrou no salão. Diante do espelho, começa a tirar o casaco preto e o véu de cor azul; por baixo, vestia uma mini-saia de oncinha, uma blusa colada ao corpo. Durante toda a festa dançou com suas amigas. Em um determinado horário voltou ao espelho para recolocar o véu e o casaco para poder rezar no apartamento de Khadija, já que esta havia comunicado que quem desejasse fazer a sua oração22 do meio da tarde, bastava subir ao seu apartamento. Outro fato interessante nesta festa foi a explicação dada quando indaguei que elas estavam fotografando mulheres sem o véu. A explicação dada recaiu sobre o fato de elas mandarem revelar tais fotos em uma loja onde os filmes entram como confidenciais e são processados por uma mulher da confiança delas. Estas fotos, portanto, são reveladas apenas para família: marido, pais, filhos e amigos próximos. 21 Nome fictício. 12 XXVI ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS – 2002 A IMAGEM EM CONTEXTO ISLÂMICO Uma brasileira23 não-muçulmana presente à festa disse: "As mulheres não deveriam usar o véu, pois este as deixam mais velhas". Na sua opinião, as mulheres sem o véu são mais alegres e a sua beleza deveria ser mostrada. Entender o encobrir, o ocultar é um exercício instigante para um pesquisador. Em maio de 2000, assistia a um programa na GNT onde uma mulher africana e muçulmana dizia que usava o véu, porque as mulheres são como pérolas, jóias raras que despertam a atenção e por isso, era necessário ocultar-se. Na convivência com as mulheres do Brás, aprendi que o revelar-se entre elas era fundamental, isto quer dizer que a vaidade não deixa de existir, ao contrário, é mais realçada. Por baixo de seus casacos há roupas, às vezes jóias, o que me leva pensar em uma beleza "escondida", "oculta", que fica à mostra somente diante das amigas e da família. Considerações Finais O que está por trás do fato de se Ocultar uma determinada imagem fotográfica? Por que há sempre algo que não pode ser visto? Qual seria o poder dessa fotografia? Elas são produzidas para serem vistas por um grupo restrito, misturam-se em Reveladas e Ocultas. Para entender o porquê das imagens reveladas, é preciso compreender seu inverso, as imagens ocultas. O fato de ser oculta deve-se a dois motivos: o primeiro deles é o fato de algumas fotos não poderem ser vistas por outras pessoas além do grupo doméstico: mulheres sem o véu, por exemplo, só podem ser vistas por pessoas da família, com quem não poderiam se casar como, pai, irmão, etc. Considero também, o fato da religião islâmica não fazer parte, ainda, dos fóruns de discussão na Antropologia no Brasil. Apesar da representatividade de 1,5 milhões de muçulmanos no Brasil, mesmo assim, ainda não chamou à atenção dos pesquisadores e temos então pouco trabalhos neste campo (Vicenzi:2001); (Marques: 2001); (Ferreira:2001), sendo o primeiro realizado no Departamento de Ciências Política, e os outros dois na Antropologia. Para ampliar tal discussão, indico alguns pontos importantes desse ocultar: o oculto faz parte do mistério, como é o Oriente para o Ocidente, com As mil e uma noites que são repletas de histórias, de lendas que povoam o imaginário das pessoas. Será que o Oriente carrega esse mistério, esse ocultamento? E o véu 24 seu ícone maior? No Ocidente, encobrir uma pessoas é o mesmo que estar reprimindo-a, desvalorizando- a. Para algumas pessoas é inconcebível considerar feliz uma mulher que faz uso do hijab. Não se vê além do véu. É por isso, também, que ele é fonte de mistério, fronteira entre o conhecido e o desconhecido, entre o oculto e o revelado. É preciso 22 Um dos cinco pilares do Islã é a salat: as cinco orações diárias. Esta é sem dúvida uma prática do cotidiano islâmico. Faz parte do seu cotidiano, parar a atividade que estiver fazendo e fazer a oração. 23 Nome fictício: Maria 13 XXVI ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS – 2002 A IMAGEM EM CONTEXTO ISLÂMICO entendê-lo como elemento diacrítico que define e qualifica o sujeito que o usa, é preciso vê-lo como fronteira entre o feminino e o masculino, o humano e o divino, o licito e o ilícito, e saber que o véu pode ser usado também politicamente. Em segundo lugar, o fato da religião islâmica estar baseada em regras fixas de conduta que devem ser seguidas: o mundo prescritivo (Sahlins:1987) dos muçulmanos, onde as regras estão estabelecidas, onde não há dúvidas, pois tudo é regrado pela religião. Por outro lado, se pensarmos no caso do Brasil, percebemos uma estrutura performativa, - como diria Sahlins -, do significado, sempre existe uma reversibilidade potencial entre tipos de ações e categorias de relações. Entender como é que se processa o seu uso no nosso país é diferente do que acontece na maioria dos países muçulmanos. Portanto, as imagens fotográficas ampliam o conhecer o “outro”. Uma imagem pode sugerir vários significados e várias interpretações, principalmente aquelas da imprensa, onde não dialogamos com o fotografo. No entanto, as imagens que os muçulmanos produzem de si, como eu já apontei, não são diferentes das que fazemos de nossas famílias e amigos, mas sobretudo, a foto de um pesquisador está inserido em lógicas diferenciadas como a construção da alteridade, e da tentativa de compreender e descrever esta outra lógica. O que fica é a foto, como um instrumento de diálogo, de mimese (cópia do real) e de representação de um universo, mas também não é só isto: “Não consigo pensar fotografia apenas como índice, metonímia, duplo do real, apesar de reconhecer nela essa qualidade, vejo-a para além do índice, como possibilidade metafórica, texto indireto e cheio de reentrâncias, onde a coisa retratada pode esconder-se, e, no mais das vezes, esconde-se, para além da imagem, no imaginário” (Pinheiro: 2000- 1). Ela gera inúmeras possibilidades de leituras, de diálogo, de troca (idem:ibidem) e talvez por isso transmita, comunica, invade o nosso olhar e a nossa percepção. O que na verdade transmite a fotografia? Depende de quem a faz, de quem é fotografado e de quem a observa. Cada vez mais, podemos ver aquilo que conhecemos. A construção da imagem, como a de um texto, depende da aproximação deste fotografo- pesquisador. Quanto mais distante do grupo fotografado, mais distante serão os textos e as imagens daí advindos. 24 Ver capítulo sobre o véu na dissertação de mestrado: Imagem Oculta. 14 XXVI ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS – 2002 A IMAGEM EM CONTEXTO ISLÂMICO BIBLIOGRAFIA AL-KARADHAWI, Yossef. O Lícito e o Ilícito no ISLAM. Editora Alvorada, São Bernardo do Campo, sem data de publicação. CAIUBY NOVAES, Sylvia. Jogo de Espelhos. EDUSP, SP, 1993. _____________________. “Um casamento no Paquistão: na captura de imagens” In: Cadernos de Antropologia e Imagem, UERJ, Nai, 1996. CALDAROLA,V.J. “O processo imagético como pesquisa etnográfica”. In: Visual Anthropology, Vol.1, pp-433-451.1988, Harwood Academic Publishers GmbH. COLLIER, John. "A fotografia como método de pesquisa". IN: Antropologia Visual, EPU Ed. Pedagógica e Universitária, SP, 1973. DUBOIS, Philippe. O Acto Fotográfico. Lisboa, Editora Veja, 1992. FERREIRA, Francirosy C. B. 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