entre a exigência democrática de formação cultural e científica e as

Propaganda
DIDÁTICA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES: ENTRE A EXIGÊNCIA DEMOCRÁTICA DE
FORMAÇÃO CULTURAL E CIENTÍFICA E AS DEMANDAS DAS PRÁTICAS
SOCIOCULTURAIS (*)
José Carlos Libâneo
Pontifícia Universidade Católica de Goiás
O texto discute a contribuição da didática para a formação de professores enquanto campo de
conhecimento preponderante na formação profissional do professor. Aborda, especialmente, o
papel da didática em face das tensões existentes entre a exigência social e democrática de
escolarização formal a todas as crianças e jovens e, ao mesmo tempo, a necessidade de as
escolas se organizarem de forma adequada para o acolhimento da diversidade social e cultural. Na
parte inicial, são indicadas as condições institucionais e pedagógicas de eficácia do ensino na
promoção da justiça social, destacando seu papel imprescindível na formação cultural e científica
dos alunos. Em seguida, discute-se a conexão entre os aspectos pedagógico-didáticos e as
práticas socioculturais e institucionais, introduzindo uma determinada compreensão do tema da
interculturalidade nas relações entre ensino e aprendizagem. No terceiro tópico, propõe-se uma
didática que dê conta de articular a formação cultural e científica e a formação das capacidades
intelectuais dos alunos com as práticas socioculturais e institucionais (diferenças,
interculturalidade, redes de conhecimento, etc.), de modo a promover interfaces pedagógicodidáticas entre o conhecimento teórico-científico e as formas de conhecimento local e cotidiano.
Palavras-chave: Didática; Escolarização; Educação e Justiça social. Didática e práticas
socioculturais; Conhecimento teórico-científico e conhecimento cotidiano.
1. Situando o problema
O campo teórico e investigativo da didática convive hoje com tensões entre a exigência
social e democrática de provimento de escolarização formal a todas as crianças e jovens e a
necessidade de as escolas e professores levarem em conta, no ensino, a diversidade social e
cultural expressa pelas diferenças individuais e sociais entre os alunos, em boa parte
decorrentes das práticas sociais e culturais em que vivem. Dado que as escolas têm a
responsabilidade social de possibilitar a todos os alunos o acesso ao conhecimento
sistematizado e ao desenvolvimento de capacidades intelectuais considerando, ao mesmo
tempo, suas necessidades individuais e sociais enquanto imersos em contextos socioculturais
e institucionais, a investigação em didática precisa assumir o encargo de discutir o papel das
práticas socioculturais e institucionais no ensino e aprendizagem. Para isso será preciso saber
como a apropriação dos conceitos teóricos da matéria pelos alunos pode tornar-se relevante
para a análise das condições de sua vida cotidiana e dos modos de atuação na vida social
mais ampla.
2. Justiça social, escola e didática
Num entendimento mais geral, justiça social significa a busca pela sociedade do bem
social comum, reservando-se um papel específico ao estado. Mais especificamente, a justiça
social supõe a igualdade de direitos em situações de desigualdade social, implicando justa
distribuição da renda e oportunidades de acesso aos bens materiais e culturais. Rouanet
(2002) cita dois princípios formulados pelo filósofo liberal John Rawls:
Primeiro, cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas
iguais (...). Segundo, as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo
que sejam, ao mesmo tempo, a) consideradas vantajosas para todos dentro dos limites do
razoável e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos.
(*) Texto publicado como capítulo II do livro: SANTOS, Akiko, SUANNO, João H. e SUANNO, Marilza V.R. (Orgs.).
Didática e formação de professores: complexidade e transdisciplinaridade. Porto Alegre: Sulina, 2013.
2
Esses princípios, embora situados na doutrina liberal, destacam duas idéias importantes
para a justiça social: a garantia das liberdades básicas e as oportunidades iguais para todos.
No entanto, falta aí o princípio da diferença. Young (McDONALD, 1990, in DINIZ-PEREIRA e
ZEICHNER, 2008, p. 111) aponta que uma teoria da justiça envolve, mas não está
exclusivamente relacionada à distribuição de bens entre os indivíduos, devendo incluir,
também, relações sociais e processos, exigindo atenção às diferenças do grupo social. Isso
significa que a distribuição equitativa de bens e recursos não é independente do contexto
institucional, das estruturas sociais e das formas de opressão. Ou seja, “os indivíduos são
membros de grupos sociais, e as diferenças entre grupos sociais estruturam as relações”.
Então, a justiça social requer reconhecer e atender às diferenças desses grupos a fim de minar
a opressão.
Sem aprofundar agora a discussão desses princípios, pode-se dizer sua conquista
dependerá de políticas públicas que contribuam efetivamente para a construção de uma
sociedade mais justa e de uma posição definida da escola e do trabalho dos professores. Não
é tarefa fácil definir essas políticas, mas alguns direitos básicos universais do ser humano
compõem a pauta da justiça social, como a educação, a saúde, a segurança. Nas condições
peculiares do nosso país, é especialmente relevante a reflexão sobre a relação entre justiça
social e educação, como expressa Waltenberg:
(...) o interesse no tema da justiça social e nos instrumentos e mecanismos para sua persecução é
enormemente amplificado por vivermos num país com distribuição de renda muito desigual, mais
pobre do que aqueles em que boa parte das teorias da justiça foram e são desenvolvidas, que
apresenta um sistema político frágil e alto grau de informalidade nas relações econômicas e, acima
de tudo, onde os meios tradicionais para se promover a justiça social são deficientes: sistemas
tributários e redistributivos (...) Trata-se de uma sociedade em formação, em alguns aspectos
muito distantes dos ideais de justiça social (WALTENBERG, 2008, p. 12).
Portanto, nada mais importante hoje, na área da educação, do que declarar que a
função das políticas de educação é tornar a sociedade mais justa. A despeito de notórios
dissensos e divergências entre investigadores e educadores brasileiros acerca das funções da
educação escolar, há um entendimento comum de que a escola constitui um meio
indispensável de promover a justiça social. As funções sociais da escola, o tipo de aluno
educado a formar, os modos de organização das atividades formativas, dependerão dos
objetivos e critérios de qualidade de ensino que forem propostos conforme teorias e princípios
inscritos nas concepções de pedagogia, educação, currículo e ensino, onde, aliás, se
encontram as fontes dos mencionados dissensos.
Neste texto não se furta a uma tomada de posição pela importância crucial da escola na
busca da justiça social, já que a baixa qualidade de ensino acentua desigualdades sociais,
perpetuando a injustiça social principalmente com os mais pobres. Em estudo sobre a justiça
social na escola brasileira, França e Gonçalves afirmam:
A política de universalização resultou na incorporação de um grande contingente de crianças que
estavam fora da escola. De acordo com Berhman e Birdsall (1983), a consequência do aumento do
número de matriculados é a redução da qualidade escolar. Os resultados do SAEB e PISA, que
visam medir qualidade educacional, captam o movimento de queda na qualidade devido ao
aumento da população de alunos. Todavia, os resultados vão mais além, pois mostram que os
estudantes de ensino fundamental e médio no Brasil têm uma formação deficiente (vis-à-vis a
outros países) e desigual (dentro do mesmo país). (...) Além do mais, a grande maioria das
crianças e jovens de famílias pobres encontram-se matriculadas no ensino público; a diferença de
desempenho entre o sistema privado e público é um indicador de que o sistema educacional
brasileiro traz características de reprodução das disparidades de recursos já existentes. Mesmo
dentro das escolas públicas e privadas, o nível sócio-econômico da família é refletido no
desempenho dos estudantes, sendo menor à medida que a escola tem uma melhor qualidade
(FRANÇA E GONÇALVES, 2008, p.112).
A refuncionalização ou resignificação das funções da escola desde os anos 1980 em
âmbito nacional e internacional, surgiu de diferentes intencionalidades ideológicas, políticas e
pedagógicas. Desde esse período, tanto entre intelectuais do campo da educação e dirigentes
públicos como em documentos de organismos financeiros internacionais, vem se difundindo a
idéia de que o insucesso da escola pública se deve ao fato de ser “tradicional”, de estar
3
baseada no conteúdo, na exclusão dos menos favorecidos, na reprovação, no autoritarismo,
práticas essas que levariam muitos alunos ao fracasso escolar ou ao abandono da escola.
Contra essa escola, tanto setores conservadores quanto progressistas advogam novos
modelos, novas teorias, novos objetivos, novos formatos de funcionamento escolar. Com o
apoio em premissas pedagógicas humanistas, concebeu-se, assim, uma escola assentada,
antes de tudo, no respeito às diferenças sociais e culturais, aos diferentes ritmos de
aprendizagem, na flexibilização das práticas de avaliação escolar, tudo em nome da intitulada
“educação inclusiva” 1. Em texto de 2005, Miranda assinala a principal mudança na educação
de massas em decorrência das reformas educativas neoliberais iniciadas por volta de 1980.
Segundo ela:
(...) a escola constituída sob o princípio do conhecimento estaria dando lugar a uma escola
orientada pelo princípio da sociabilidade. O termo “sociabilidade” está sendo adotado aqui para
ressaltar que a escola organizada em ciclos se situa como um tempo/espaço destinado à
convivência dos alunos, à experiência da sociabilidade, distinguindo-se dos conceitos de
socialização e de desenvolvimento da sociabilidade tratados pela sociologia e psicologia (2005).
Assim, não se trata mais de uma escola baseada no conhecimento, isto é, no domínio
dos conteúdos e na formação das capacidades cognitivas, mas de uma escola que valoriza
formas de organização das relações humanas, nas quais prevalecem práticas de valores
sociais tais como a convivência entre diferentes, o compartilhamento de culturas, o encontro e
a solidariedade entre as pessoas. Nesse tipo de escola, o aluno não estaria usufruindo do
conhecimento e das condições que poderiam promover o seu desenvolvimento mental, mas
sim do espaço “social” que a escola lhe oferece. Desse modo, escreve aquela autora, quanto
mais a escola desvincular-se de sua dependência com a aquisição de conhecimentos, mais
tempo terá para propiciar aos alunos o clima de convivência e compartilhamento. Antonio
Nóvoa pontua com clareza os dois tipos de escola:
Um dos grandes perigos dos tempos atuais é uma escola a “duas velocidades”: por um lado, uma
escola concebida essencialmente como um centro de acolhimento social, para os pobres, com
uma forte retórica da cidadania e da participação. Por outro lado, uma escola claramente centrada
na aprendizagem e nas tecnologias, destinada a formar os filhos dos ricos (NÓVOA, 2009).
Em relação ao mesmo tema, em entrevista publicada em 2004, Libâneo afirmava:
Se alguém acredita que a escola deva ser principalmente um espaço de socialização dos alunos,
que seja um lugar de encontro e compartilhamento entre as pessoas, que seja um lugar para que
sejam acolhidos seus ritmos, suas diferenças, suas inclinações pessoais, então, nesse caso, o
sistema de ciclos é ótimo, a flexibilização da avaliação é coerente. É claro que essas coisas são
importantes, mas penso que escola para a democracia e para a emancipação humana é aquela
que, antes de tudo, através dos conhecimentos teóricos e práticos, propicia as condições do
desenvolvimento cognitivo, afetivo e moral dos alunos. E que faça isso para todos os que
disponham das competências físicas e intelectuais requeridas para fazer o percurso escolar.
Aprender, então, consiste no desenvolvimento de capacidades e habilidades de pensamento
necessárias para assimilar e utilizar com êxito os conhecimentos. (...) Sendo assim, a tarefa das
escolas fica muita clara, que é assegurar as condições para que a aprendizagem escolar se torne
mais eficaz, mais sólida, mais consolidada, enquanto ferramenta para as pessoas lidarem com a
vida (LIBÂNEO, 2004).
A concepção de escola assentada no acolhimento e na integração social está explícita
em documentos orientadores das políticas educacionais para os países pobres monitoradas
pelo Banco Mundial. A tônica desses documentos, sob o véu de uma visão humanista de
redução da pobreza, é a lógica economicista: preparar trabalhadores empregáveis, flexíveis,
adaptáveis, competitivos. No Brasil, essa concepção foi claramente explicitada no Plano
1
Há no Brasil pesquisas mostrando que a utilização do sistema de ciclos como formas de correção do fluxo escolar,
ou seja, mantendo uma progressão continuada entre as séries escolares, evita a repetência e isso produz economia
ao sistema educacional. Não é de todo improvável que os sistemas oficiais de ensino de vários países latinoamericanos, incluindo o Brasil, defendam para a opinião pública a adoção de critérios pedagógicos humanistas para
organização das escolas, quando de fato, o que se pretende é reduzir as despesas com a educação pública,
conforme recomendações do Banco Mundial. Na verdade, as agências financeiras internacionais entenderam que
seria oneroso continuar mantendo padrões da pedagogia tradicional, que buscariam padrões de exigência difíceis de
serem sustentados financeiramente pelo setor público.
4
Decenal de Educação para Todos (1993-2003) com base na Declaração Mundial sobre
Educação para Todos (Tailândia, 1990), e em ações presentes em sucessivas políticas
educacionais desde os anos 1990, passando pelos Governos FHC e Lula, tais como: correção
do fluxo escolar, organização em ciclos, flexibilização da avaliação, integração da escola de
alunos com deficiências, sistema de avaliação estandardizado. É este o sistema de ensino que
vigora há 20 anos, marcando toda uma geração de alunos e cujos resultados aparecem nos
próprios índices de desempenho do sistema escolar divulgados pelos órgãos oficiais.
A visão de escola voltada para a o desenvolvimento da “sociabilidade”, ou seja, uma
escola em que seu funcionamento se caracteriza por relações sociais assentadas em formas
de integração social, convivência e compartilhamento de práticas solidárias e não pela ênfase
na formação cultural e científica, tem sido compartilhada, também, por uma parte de
intelectuais de orientação sociocrítica em educação. Eis que se fundem projetos liberais à
direita e experiências educacionais sociabilizantes à esquerda, levando ao empobrecimento
cultural e científico da escola. Enquanto isso, Miranda (2005) aponta um incrível paradoxo: o
mesmo sistema educacional que refuncionaliza a organização escolar para o acolhimento e a
integração social, colocando em segundo plano o conhecimento e a aprendizagem na sala de
aula, introduz as avaliações estandardizadas como o SAEB, a provinha Brasil, o ENEM. Eis
que tais instrumentos não visam avaliar níveis de progresso dos alunos na convivência, na
auto-estima, na vivência de práticas sócio-culturais, mas nos conhecimentos escolares. O
sistema produz, assim, formas sub-reptícias de exclusão social e escolar, pois são os pobres
que estarão despreparados para sair-se bem nessas provas e, desse modo, para disputar
vagas no ensino médio, na universidade e no mercado de trabalho.
Do ponto de vista da concepção histórico-social, defendida aqui, as conseqüências da
adoção dessa concepção de escola baseada meramente no acolhimento e na integração
social, são propiciadoras de exclusão social pela própria escola. Tal como mostra Charlot
(2005), em primeiro lugar, com a desvalorização da formação cultural e científica e do papel da
escola na formação das capacidades cognitivas, há um ocultamento da dimensão cultural e
humana da educação. Em segundo lugar, dissolve-se a relação entre universalismo e diferença
cultural, quer dizer, do direito de ser ao mesmo tempo diferente culturalmente e semelhante
(igual) em termos de dignidade e reconhecimento humano. Em terceiro lugar, o desprezo ao
papel da escola em relação ao conhecimento faz aumentar as desigualdades sociais do acesso
ao saber, ocultando o efeito nocivo de fatores intra-escolares nas aprendizagens. Eis que,
desse modo, são fabricadas as vítimas preferidas da globalização: os pobres, as minorias
étnicas, as famílias socialmente marginalizadas.
Em relação às políticas educacionais orientadas pelo liberalismo econômico, os
prejuízos ao processo de escolarização são reforçados pela redução das responsabilidades do
Estado em relação à educação (como, também, à saúde e à assistência social), diminuindo os
investimentos públicos e afetando, entre outras coisas, os salários e a formação profissional
dos professores.
Para não ser um dos canais de perpetuação da injustiça social, a escola com qualidade
educativa deve ser aquela que assegura as condições para que todos os alunos se apropriem
dos saberes produzidos historicamente e, através deles, possam desenvolver-se
cognitivamente, afetivamente, moralmente. Desse modo, a escola promove a justiça social
cumprindo sua tarefa básica de planejar e orientar a atividade de aprendizagem dos alunos,
tornando-se, com isso, uma das mais importantes instâncias de democratização social e de
promoção da inclusão social.
A atividade de aprendizagem pressupõe um conjunto de saberes produzidos na
experiência sócio-histórica da humanidade, denominado pelo pedagogo russo V. Davídov, de
conhecimento teórico-científico2, articulado às disposições individuais e socioculturais dos
No quadro conceitual de Davídov, este conjunto é chamado de “conhecimento teórico” ou “conhecimento teóricocientífico”. Para mais além do sentido comum de “teórico” como o saber especulativo, esse autor considera
conhecimento teórico, ao mesmo tempo, como produto do desenvolvimento histórico e processo mental.
2
5
alunos (as quais vão constituindo formas de mediação cognitiva). A viabilização dessa relação
se dá por procedimentos pedagógico-didáticos (mediação didática) que viabilizam o encontro
do aluno com os objetos de conhecimento. Há que considerar, entanto, que as disposições
individuais e socioculturais dos alunos referem-se à sua subjetividade, sendo esta composta de
uma cultura subjetiva e uma cultura objetiva, já que a mente humana se constitui socialmente.
Eis que nos encontramos frente a um aluno com características individuais singulares que são,
ao mesmo tempo, sócio-culturais. Charlot ajuda a compreender três sentidos da educação que
não podem ser dissociados:
É o processo por meio do qual um membro da espécie humana, inacabado, desprovido dos
instintos e capacidades que lhe permitiriam sobreviver rapidamente sozinho, se apropria, graças à
mediação dos adultos, de um patrimônio humano de saberes, práticas, formas subjetivas, obras.
Essa apropriação lhe permite se tornar, ao mesmo tempo e no mesmo movimento, um ser
humano, membro de uma sociedade e de uma comunidade, e um indivíduo singular,
absolutamente original. A educação é, assim, um triplo processo de humanização, de socialização
e de singularização. Esse triplo processo é possível apenas mediante a apropriação de um
patrimônio humano. Isso quer dizer que educação é cultura, em três sentidos que não podem ser
dissociados (2000).
O cumprimento da justiça social por meio da atividade de aprendizagem e do ensino conforme a idéia vygotskiana de que a função primordial do ensino é promover e ampliar o
desenvolvimento da capacidade intelectuais, - implica uma relação pessoal entre o professor e
o aluno visando o aprimoramento da mediação cognitiva deste último. Ao mesmo tempo, como
a escola ensina a sujeitos concretos, é preciso que a aprendizagem de conteúdos e de
procedimentos mentais esteja ligada à experiência sociocultural. O lema que resume este
pensamento é a expressão de Gimeno Sacristán: uma escolarização igual, para sujeitos
diferentes, por meio de um currículo comum (2000, p. 68).
Desse modo, por um lado, acredita-se na universalidade da cultura escolar de modo
que à escola cabe transmitir, a todos, os saberes públicos que apresentam um valor,
independentemente de circunstâncias e interesses particulares, em função da formação geral.
Mas, por outro lado, como a escola lida com sujeitos diferentes, cabe considerar no ensino a
diversidade cultural, a coexistência das diferenças, a interação entre indivíduos de identidades
culturais distintas. Eis, portanto, quatro ingredientes absolutamente imprescindíveis para que o
ensino esteja à altura dessa missão da escola: a) os conteúdos; b) o desenvolvimento das
capacidades intelectuais; c) as características individuais e sociais do aluno; d) os fatores
socioculturais e institucionais da aprendizagem.
3. A introdução da problemática da cultura no campo do ensino. O multiculturalismo e a
interculturalidade
Após a crítica à idéia de escola incorporada pelo sistema de ensino brasileiro e por
segmentos de educadores, os leitores poderão perguntar: trata-se, então, de voltar à escola
tradicional, à escola dos conteúdos? Trata-se de defender a reprovação, as provas de
avaliação, ao invés da promoção automática? E onde fica a subjetividade dos alunos, as
necessidades e ritmos psicológicos individuais? Onde fica o respeito às diferenças sociais e
culturais, a consideração da experiência social dos alunos, a rede de saberes em que os
alunos estão inseridos em sua vida cotidiana?
A posição a ser defendida aqui é de que não deve haver incompatibilidade entre a
formação cultural e científica que visa o desenvolvimento das capacidades intelectuais e a
consideração do conhecimento cotidiano dos alunos e dos fatores socioculturais na
aprendizagem.
Desde o início dos anos 1990, no Brasil e na América Latina, cresceu a importância dos
componentes culturais no mundo contemporâneo. A cultura passou a ser considerada não
apenas como formas de expressão da vida em sociedade e um subproduto da estrutura social,
Conhecimento teórico refere-se, então, a categorias mentais que tornam possível lidar com os objetos de
conhecimento da realidade, ou seja, um procedimento lógico da mente, conceitos gerais possíveis de serem
aplicados a situações particulares.
6
mas como um campo de atuação humana, um espaço que constitui realidades, um espaço de
lutas. Com isto, a problemática cultural e seus elementos como as diferenças de classe social,
étnicas, de linguagem, políticas, físicas, sexuais, as relações desiguais de poder, o
conhecimento cotidiano dos alunos, as redes de saberes, as diversas práticas institucionais em
que os alunos crescem e se desenvolvem, passaram a ser integrados nos modos de
compreender a dinâmica da escola. É precisamente isso que tem sido chamado de
multiculturalismo – ou seja, a expressão dessas realidades culturais – e interculturalidade, que
é a análise dessa problemática na educação e a busca de formas de intervenção propositiva na
realidade multicultural (CANDAU, 2005).
Mas, uma vez reconhecida a relevância da problemática multicultural na escola, foram
surgindo entre intelectuais, dirigentes de órgãos públicos, políticos, educadores, proposições
muito diferentes para os objetivos e as formas de funcionamento da escola. Para ficarmos
apenas no campo das perspectivas sóciocríticas, pode-se delimitar duas delas. A primeira
atribui prevalência à formação cultural e científica, em que se valoriza o domínio pelos alunos
dos saberes sistematizados como base para o desenvolvimento das capacidades cognitivas e
a formação da personalidade, por meio da atividade de aprendizagem socialmente mediada.
Essa proposta, por outro lado, entende que se ensina a alunos concretos, então, é necessário
vincular os conteúdos e os processos de formação da personalidade às experiências
socioculturais dos alunos3. A segunda valoriza a formação por meio de experiências
socioculturais vividas em situações educativas (cultivo da diversidade, práticas de
compartilhamento de diferentes valores e de solidariedade, atividades sobre problemas da vida
cotidiana, etc.). No limite, o centro do currículo são os conhecimentos locais, a vida cotidiana
dos alunos, os saberes e experiências da comunidade, etc..4 Vê-se que o foco dessa proposta
está mais na prática social que acontece em contextos mais imediatos, ou seja, em
características culturais mais localizadas, e menos na cultura acumulada, nos saberes
sistematizados ou na prática propriamente pedagógica, que identifica a primeira posição.
As duas posições representam uma evidente polarização entre o universalismo e o
relativismo, o primeiro referindo-se à existência de uma cultura universal e de valores
universais, o segundo ao pluralismo das culturas e às diferenças entre as pessoas. No entanto,
muitos educadores se perguntam sobre a possibilidade de uma solução pedagógica que viesse
reunir essas duas posições. Em outras palavras, defender a imprescindibilidade dos conteúdos
como referência para o desenvolvimento das capacidades intelectuais dos alunos leva a rejeitar
o papel das culturas particulares, das diferenças socioculturais? Será possível conciliar a
posição relativista, em que os valores e práticas são produtos socioculturais, portanto,
resultantes do modo de pensar e agir de grupos sociais particulares, com a exigência "social"
de prover a formação geral, acessível a todos, independentemente de contextos particulares?
Seria pedagogicamente viável prover os alunos dos conteúdos científicos sem deslegitimar os
discursos dos alunos a partir de seus contextos de vida?
Minha posição em relação a essas perguntas situa-se para além da polarização,
visando superá-la, com base na proposição de Gimeno Sacristán: uma escolarização igual,
para sujeitos diferentes, por meio de um currículo comum. Por um lado, trata-se de assegurar o
3
As posições de Vigotsky e seguidores atribuem peso considerável aos conteúdos no processo de escolarização.
Mas aqui, a valorização dos conteúdos (que também é uma característica forte da pedagogia tradicional) não leva a
um currículo monocultural. Na teoria histórico-cultural há, de fato, a ideia de que os seres humanos se tornam
humanos pela interiorização da cultura social, enquanto expressão da atividade humana. Mas Vygotsky põe em
evidência o papel do aluno nessa interiorização e, além disso, na aprendizagem compartilhada, na interlocução com
parceiros - o outro como parceiro imprescindível para a aprendizagem, razão pela qual é ressaltado o papel das
práticas socioculturais na aprendizagem.
4
Este posicionamento sobre funções da escola é bastante próximo às concepções de John Dewey para quem a
escola é um prolongamento simplificado e organizado das atividades cotidianas, sociais. Também é certo que Paulo
Freire deu uma expressiva contribuição a esta posição. Hoje, temos várias formulações originadas no pensamento
pós-moderno como os estudos culturais de inspiração pós-estruturalista, a teoria curricular crítica, a concepção do
conhecimento em rede, entre outras.
7
direito à semelhança, vale dizer, à igualdade, pelo provimento da formação cultural e científica,
isto é, o domínio do saber sistematizado como suporte para o desenvolvimento das
capacidades intelectuais. Por outro, trata-se de considerar a diferença, pois a formação cultural
e científica se destina a sujeitos diferentes. A diferença aqui é encarada não como uma
excepcionalidade, mas como condição concreta do ser humano e das situações educativas,
ponto de partida para uma aprendizagem com sentido para o sujeito que aprende.
Boaventura Santos escreve que a desigualdade material está profundamente
entrelaçada com a desigualdade não material, ou seja, as desigualdades sociais e diferenças
possuem íntima relação com o acesso ou não ao conhecimento. São desigualdades de
natureza educativa, de capacidade representacional, de capacidade de comunicar-se e
expressar-se, desigualdade de oportunidades, de capacidade para organização, participação
social e tomada de decisões (SANTOS, 1997). Para ser mais justa e democrática, a sociedade
contemporânea clama, entre outras causas, por processos de ensino que ajudem os alunos no
seu desenvolvimento, cultural, científico, ético e afetivo. A aprendizagem escolar deve ser um
fator de ampliação das capacidades dos alunos de promover mudanças, em si e nas condições
objetivas em que vivem, fundamentando-se na ética da justiça social. Para isso, trata-se de
articular a formação cultural e científica com as práticas socioculturais (diferenças, valores,
redes de conhecimento, etc.) de modo a promover interfaces pedagógico-didáticas entre o
conhecimento teórico-científico e as formas de conhecimento local e cotidiano. O modo de se
trabalhar com esta idéia na sala de aula será apresentado a seguir.
4. Os elementos constitutivos do trabalho didático na investigação recente da didática
Na tradição da investigação pedagógica, a didática tem sido vista como um
conhecimento relacionado com os processos de ensino e aprendizagem que ocorrem em
ambientes organizados de relação e comunicação intencional, visando a formação dos alunos.
Segundo Karl Stocker, pedagogo alemão (1964), “o processo didático (...) tem seu centro no
encontro formativo do aluno com a matéria de ensino”. Desse modo, o entendimento atual em
boa parte das teorias do campo científico da didática é ver o ensino como atividade de
mediação para promover o encontro formativo, educativo, entre o aluno e a matéria de ensino,
para cuja compreensão se juntam as teorias do ensino, as teorias do conhecimento, as
ciências auxiliares da educação, como a sociologia e a psicologia, e a epistemologia das
disciplinas ensinadas.
Com que categorias lida a didática? Quais são os elementos constitutivos do ato
didático? A análise do ato didático destaca uma relação dinâmica entre três elementos professor, aluno, matéria - a partir dos quais são feitas as clássicas perguntas: O que ensinar?
Para que ensinar? Quem ensina? Para quem se ensina? Como se ensina? Sob que condições
se ensina? (LIBÂNEO, 1994).
Estas perguntas definem as categorias ou os elementos constitutivos da didática que,
por sua vez, formam a base do seu conteúdo. Obviamente, o significado de cada um desses
elementos e as relações que existem entre eles decorrem de concepções filosóficas,
epistemológicas e pedagógicas.
“O que ensinar” remete à seleção e organização dos conteúdos, decorrentes de
exigências sociais, culturais, políticas, éticas, ação essa intimamente ligada aos objetivos,
gerais ou específicos, que expressam a dimensão de intencionalidade da ação docente, ou
seja, as intenções sociais e políticas do ensino. A seleção dos conteúdos implica, ao menos, os
conceitos básicos das matérias e respectivos métodos de investigação, a adequação às idades
e ao nível de desenvolvimento mental dos alunos, aos processos internos de assimilação, aos
processos comunicativos na sala de aula, aos significados sociais dos conhecimentos.
O professor põe-se como mediador entre o aluno e os objetos de estudo, enquanto os
alunos estabelecem com o conhecimento uma relação de estudo. A par disso, professores e
alunos estão implicados numa relação social que se materializa na sala de aula mas, também,
na dinâmica das relações internas que ocorre na escola em suas práticas organizativas.
8
O “como ensinar” e as “condições de ensino e aprendizagem” correspondem aos
métodos e formas de organização do ensino, em estreita relação com objetivos e conteúdos,
estando presentes, também, no processo de constituição dos objetos de conhecimentos. As
condições das ações didáticas dizem respeito, no geral, às condições concretas de ensino e de
aprendizagem que incidem no processo de ensino-aprendizagem. Mais especificamente,
referem-se às políticas educacionais e diretrizes normativas para o ensino; às práticas
socioculturais, familiares, locais; ao funcionamento da escola como as práticas de organização
e gestão, o espaço físico, o clima organizacional, os meios e recursos didáticos, o currículo, os
tempos e espaços; às condições pessoais e profissionais dos professores; às características
individuais e socioculturais dos alunos, às disposições internas para estudo e
acompanhamento das atividades didáticas, necessidades sociais e aprendizagem; ao
relacionamento entre professor e alunos, alunos e colegas.
Verifica-se que, a partir dos elementos constitutivos do ato didático, há uma intensa
articulação com outros campos científicos tais como a teoria do conhecimento, a psicologia da
aprendizagem e do desenvolvimento, a sociologia, a pesquisa cultural, etc., visando à
compreensão do fenômeno ensino. Desse modo, a didática se assume como disciplina de
integração, articulando numa teoria geral de ensino as várias ciências da educação e
compondo-se com as metodologias específicas das disciplinas curriculares. Ou seja, combinase o que é geral, elementar, básico, para o ensino de todas as matérias com o que é específico
das distintas metodologias, em estreito vínculo com a teoria do conhecimento, a psicologia
aplicada ao ensino e a sociologia das situações escolares e dos contextos socioculturais.
Para que um professor transforme as bases da ciência em que é especialista, em
matéria de ensino, e com isso oriente o ensino dessa matéria para a formação da
personalidade do aluno, é preciso que ele tenha, pelo menos: a) formação na matéria que
leciona; b) formação pedagógico-didática na qual se ligam os princípios gerais que regem as
relações entre o ensino e a aprendizagem com problemas específicos do ensino de
determinada matéria, aspecto também denominado “conhecimento pedagógico do conteúdo”;
c) o conhecimento das características individuais e sociais dos alunos; d) o conhecimento das
práticas socioculturais e institucionais e suas formas de atuação na aprendizagem.
Como ato de mediação, o ensino visa assegurar os meios e as condições para que
ocorra o encontro formativo - afetivo, cognitivo, ético, estético - entre o aluno e o objeto de
conhecimento, ou seja, a confrontação ativa, cognitiva e afetiva, do aluno com a matéria. O
trabalho do professor consiste em fazer a mediação entre os aspectos externos e os aspectos
internos da educação e do ensino. Para Danílov:
(No ensino), “a experiência social em toda sua multilateralidade e complexidade se transforma em
conhecimentos, habilidades e hábitos do educando, em idéias e qualidades do homem em
formação, em seu desenvolvimento intelectual, ideológico e cultura geral” (DANÍLOV, 1984, p.26).
Tudo o que se espera, com base nos elementos constitutivos mencionados, é a
consecução da aprendizagem dos alunos. Autores pertencentes à tradição da teoria históricocultural mostram a mediação didática como sendo a forma de ativação do processo de
aprendizagem. Klingberg, por exemplo, escreveu que o caráter científico do ensino é dado pela
condução do processo de ensino com base no conhecimento das leis que governam o
processo de conhecimento. Segundo ele:
O processo docente do conhecimento - embora somente em alguns casos se descubra o novo de
forma objetiva – é um insubstituível campo de exercício para o desenvolvimento das forças
cognoscitivas dos alunos, para sua curiosidade, sua alegria pela investigação e as descobertas,
sua capacidade de poder perguntar, de ver problemas e chegar metodicamente à sua solução
(1972, p. 47).
Na mesma direção segue o didata alemão Lompscher (1999), para quem a organização
didática visa a promover a atividade de aprendizagem dos alunos: “A organização didática dos
processos de aprendizagem (...) deve ser orientada em direção à atividade dos alunos”. Desse
modo, a efetividade do ensino, portanto, se revela ao assegurar as condições e os modos de
viabilizar o processo de conhecimento pelo aluno, ou seja, a aprendizagem.
9
Yves Lenoir reconhece, na relação educativa escolar, a existência de dois processos de
mediação: “aquele que liga o sujeito aprendiz ao objeto de conhecimento (relação S – O),
chamado de mediação cognitiva, e aquele que liga o formador professor a esta relação S – O,
chamado de mediação didática” (cf. Lenoir, 1999, p.29). Sobre isso, escreve D´Ávila:
A relação com o saber é, portanto, duplamente mediatizada: uma mediação de ordem cognitiva
(onde o desejo desejado é reconhecido pelo outro) e outra de natureza didática que torna o saber
desejável ao sujeito. É aqui que as condições pedagógicas e didáticas ganham contornos, no
sentido de garantir as possibilidades de acesso ao saber por parte do aprendiz educando (2008, p.
31).
Esse entendimento da relação entre a mediação didática e a mediação cognitiva
parece-nos compatível com a posição de Vygotsky dentro da teoria histórico-cultural. A
aprendizagem humana se caracteriza como mudanças qualitativas na relação entre a pessoa e
o mundo, pela mediação de instrumentos ou ferramentas culturais envolvendo a interação entre
pessoas. Dito de outra maneira, o desenvolvimento das funções mentais superiores supõe a
internalização de ferramentas culturais/formas culturais de comportamento, já desenvolvidas na
sociedade, por meio da linguagem. Para Vygotsky, “todas as funções mentais superiores são
relações sociais internalizadas” (1983, p. 151), tal como esclarece Smolka:
Vygotsky aponta a possibilidade de se considerar o desenvolvimento mental como um processo de
apropriação e elaboração da cultura, no sentido de que as funções psicológicas superiores são
transformações internalizadas de modos sociais de interação, incluindo artefatos culturais
(instrumentos técnicos) e formas de ação e signos (instrumentos psicológicos) (SMOLKA, 2001, p.
54).
O processo de ensino e aprendizagem assegura esse processo em que o ensino
medeia as condições de internalização de ferramentas culturais existentes na cultura e nas
práticas sociais (interação social no cotidiano, nas comunidades, nas práticas institucionais).
Pela aprendizagem, práticas sociais se convertem em funções mentais no indivíduo,
produzindo mudanças qualitativas no seu modo de ser e de agir, ou seja, atuando no
desenvolvimento humano. Assim, aprendizagem, na teoria histórico-cultural, pode ser definida
como processos de mudanças qualitativas mais ou menos estáveis na personalidade,
efetivados pela internalização de significados sociais, especialmente saberes científicos,
procedimentais e valorativos, por mediações culturais e interações sociais entre o aprendiz e
outros parceiros, que promovem o desenvolvimento cognitivo, afetivo e moral dos indivíduos.
O papel do ensino é, precisamente, promover o desenvolvimento mental por meio da
aprendizagem, convertendo a aprendizagem em desenvolvimento. Tem-se, assim, a
subordinação da mediação didática à mediação cognitiva – a serviço da qual está o processo
de aprendizagem e ensino - um processo de objetivação do real que se dá na relação entre
sujeito(s) e objeto(s), num contexto espaço-temporal determinado. A mediação didática
consiste, assim, em estabelecer as condições ideais à ativação do processo de aprendizagem,
ou seja, assegurar as melhores condições possíveis de transformação das relações que o
aprendiz mantém com o saber. Em síntese, a didática é a sistematização de conhecimentos e
práticas referentes aos fundamentos, condições e modos de realização do ensino e da
aprendizagem dos conteúdos, habilidades, valores, visando o desenvolvimento das
capacidades mentais e a formação da personalidade dos alunos. Nessa definição, a didática é
inseparável das metodologias específicas de ensino das matérias.
A didática e as didáticas específicas formam uma unidade, uma vez que o objeto de
estudo de ambas é a mediação das aprendizagens ou as relações entre a aprendizagem e o
ensino. Ressalte-se, além disso, que a didática e as didáticas especificas estão,
necessariamente, vinculadas aos conteúdos específicos das disciplinas ensinadas, razão pela
qual devem ser considerados como a referência para a organização dos conhecimentos e
práticas dessas disciplinas. Nesse sentido, ganha realce o entendimento de alguns didatas
franceses para quem a didática é o estudo dos processos de ensino e aprendizagem em sua
relação imediata com os conteúdos dos saberes a ensinar, a organização das situações
didáticas e a escolha e os meios de ensino (LIBÂNEO, 2010). Assim entendidas, a didática e
10
as didáticas específicas tornam-se os saberes mais relevantes da formação profissional de
professores.
O conceito de mediação, tal como entendido aqui, possibilita a articulação entre os
elementos constitutivos do ensino. Se o aspecto definidor da didática é a mediação da
mediação cognitiva, ou seja, mediação das relações do aluno com os objetos de conhecimento,
então, o conceito de referência da didática é a mediação das relações entre ensino e
aprendizagem voltadas para o desenvolvimento humano. O trabalho dos professores é o
ensino visando a aprendizagem, ou seja, promover mudanças qualitativas no desenvolvimento
mental do aluno. O professor realiza plenamente seu trabalho quando ajuda o aluno a adquirir
capacidades para novas operações mentais e a operar mudanças qualitativas em sua
personalidade.
Portanto, o problema pedagógico-didático diz respeito às formas pelas quais práticas
sociais formam o desenvolvimento cognitivo, afetivo e moral dos indivíduos sendo que os
resultados social, pedagógico, cultural, da escola, expressam-se nas aprendizagens
efetivamente consumadas. Escola e ensino existem para promover e ampliar o
desenvolvimento das capacidades cognitivas e a formação da personalidade. Formar
capacidades cognitivas é formar o pensamento teórico-científico por meio de abstrações e
generalizações, que levam às categorias e aos conceitos, que são procedimentos mentais para
nos relacionarmos com o mundo. Desse modo, a atividade pedagógica somente é pedagógica
se ela mobiliza as ações mentais dos sujeitos, visando a ampliação de suas capacidades
cognitivas e a formação de sua personalidade global. Essa formação de ações mentais ou
novos usos de uma ação mental requer, por parte dos alunos, uma atividade reflexiva e, da
parte dos professores, a mediação didática, precisamente a intervenção intencional na
formação de processos mentais do aluno.
A formação dos processos mentais pelos conteúdos e o contexto sociocultural e
institucional da aprendizagem
Mencionamos anteriormente que a aprendizagem é uma mudança nas relações entre a
pessoa e o mundo, por meio de relações intencionais entre sujeito(s) e objeto(s) de
conhecimento, num contexto espacio-temporal determinado. Vejamos, agora, a relação entre o
ensino e os contextos socioculturais e institucionais, uma vez que estes contextos, na tradição
da teoria histórico-cultural, figuram entre os princípios gerais de aprendizagem. Seguirei, neste
tópico, boa parte das idéias de Marianne Hedegaard (2004, 2005).
Para essa autora, seguindo a tradição de Vygotsky, a interação entre indivíduos em
práticas socioculturais e institucionais desempenha papel fundamental na formação de
instrumentos psicológicos, já que o ser humano interioriza formas culturalmente estabelecidas
de funcionamento psicológico. Ou seja, as práticas socioculturais e institucionais que crianças e
jovens compartilham na família, na comunidade e nas várias instâncias da vida cotidiana são,
também, determinantes na formação de competências, na apropriação do conhecimento e na
identidade pessoal, sendo que elas são caracterizadas na escola tanto como contexto da
aprendizagem quanto como conteúdo (HEDEGAARD, 2004, p.25). Isto quer dizer que o
desenvolvimento do pensamento de um aluno, que ocorre no processo de apropriação dos
conteúdos científicos, precisa estar articulado com as formas de conhecimento cotidiano das
quais ele participa na família, na escola ou na comunidade local. Escreve Hedegaard:
Ao considerar as práticas como importantes para a compreensão do uso de ferramentas, isto
implica que a aprendizagem seja conceitualizada dentro de um contexto em que as tradições e
práticas devem ser vistas como parte das condições de aprendizagem. (...) Diferenças nas práticas
em diferentes instituições dão à criança diferentes competências e a competência da criança é
avaliada de forma diferente em diferentes instituições, porque tais práticas fazem diferentes
exigências para a criança (Ib. p.26).
Há, pois, uma relação entre o desempenho escolar e as práticas das quais ela participa.
Desse modo, a aprendizagem ou problemas de aprendizagem são criados na interação entre a
criança e as tradições culturais realizadas na prática situada em uma dada instituição, com
determinadas crianças. Considerando, por exemplo, as práticas escolares, as crianças tanto se
11
apropriam de experiências socio-históricas acumuladas como contribuem para elas, tanto
emocionalmente como cognitivamente (p.29).
Há que considerar, no entanto, que atividades com artefatos e procedimentos mediados
por práticas sociais, são muito diferentes conforme se dêem na escola, em casa, na creche, no
ensino superior, na educação profissional, etc. Em razão disso, é preciso diferenciar distintas
modalidades de aprendizagem nestas diferentes instituições, pois em cada uma tem um tipo de
conhecimento e de métodos de aprendizagem. Gimeno Sacristán reforça essa idéia de
Hedegaard:
Nas sociedades complexas, as clássicas funções da escolarização encontram-se distribuídas entre
diferentes espaços vitais, a cargo de mecanismos de influência diversificados, e acontecem no
interior de várias instituições. (...) As escolas se centrarão mais em algumas responsabilidades do
que a outras, conforme circunstâncias e necessidades de cada sociedade. Esses campos de ação
mais próprios deveriam ser aqueles que menos oportunidades tenham de ser desenvolvidos por
outros agentes socializadores de forma controlada e reflexiva. O cultivo da leitura e escrita, por
exemplo, ou o proporcionar uma visão científica do mundo, é papel das escolas fazê-los sendo
pouco provável que outros agentes o façam nas condições e meios com os quais podem fazê-los
(2000, p. 100).
Ou seja, crianças e jovens estão na escola para adquirir competências para a vida
adulta, como ler e escrever, contar, etc., de modo que o papel da escola é integrar os conceitos
científicos com os conceitos cotidianos trazidos de casa e do meio social, elevando os
conceitos cotidianos a um patamar mais elevado de desenvolvimento cognitivo. Hedegaard
designa essas relações de “duplo movimento” do ensino:
Na abordagem do duplo movimento, enfatizamos as relações entre conceitos cotidianos já
adquiridos pelas crianças, conceitos da matéria e conhecimento local. O principal ponto do duplo
movimento no ensino é criar tarefas de aprendizagem que podem integrar o conhecimento local
com relações conceituais nucleares de uma matéria, de modo que o aluno possa adquirir o
conhecimento teórico a ser utilizado em suas práticas locais. (...) Na abordagem do duplo
movimento, o plano de ensino do professor deve avançar de características abstratas e leis gerais
de um conteúdo para a realidade concreta, em toda a sua complexidade. Inversamente, a
aprendizagem dos alunos deve ampliar-se de seu conhecimento pessoal cotidiano para as leis
gerais e conceitos abstratos de um conteúdo (HEDEGAARD, 2005, pp. 69-70).
A autora amplia essa idéia mostrando que o ensino, cuja referência é o conhecimento
teórico-científico (no sentido de procedimentos de pensamento), ajuda o aluno a organizar suas
experiências e conceitos em torno de um conceito nuclear e, desse modo, vão adquirindo
“ferramentas mentais” para analisar e compreender a complexidade do mundo ao seu redor,
tornando funcionais na vida cotidiana das pessoas os conceitos formais abstratos. É o
conhecimento teórico-científico e os procedimentos mentais que abrem para essa
possibilidade.
Considerações finais
As apostas em favor da escola para todos devem ter como referência um entendimento
muito explícito de que o trabalho pedagógico pressupõe intencionalidades políticas, éticas,
didáticas, em relação às qualidades humanas, sociais, cognitivas, a serem formadas pelos
alunos. Face aos clássicos temas da didática como a relação conteúdo e forma, a ênfase ora
nos aspectos materiais ora nos aspectos formais do ensino, entre a formação cultural e
científica e a experiência sociocultural dos alunos, cabe, mesmo em tempos de mudança, a
aposta na universalidade da cultura escolar, no sentido de que cabe à escola transmitir a todos,
saberes públicos que apresentam um valor, independentemente de circunstâncias e interesses
particulares, em função da formação geral. Mas, junto a isso, permeando os conteúdos cabe,
também, considerar a diversidade cultural, a coexistência das diferenças, a interação entre
indivíduos de identidades culturais distintas.
Trata-se, assim, de uma didática crítica atravessada pela perspectiva intercultural em
que se articulam, num mesmo processo, o universalismo e relativismo. A unidade entre a
formação cultural e científica e as práticas interculturais requer dos professores não apenas
uma atitude humanista aberta à diferença mas, principalmente, a incorporação dessa relação
12
no cerne tanto das práticas de organização e gestão da escola e da sala de aula como na
própria metodologia de ensino.
Dessa forma, a função da escola e do ensino é a de promover e ampliar o
desenvolvimento mental, de formação do pensamento e de formação moral, visando a
formação da personalidade global. Formar a personalidade significa considerar fortemente os
motivos dos alunos. Na prática significa que, ao lidar com os conteúdos, o professor também
deve remeter-se aos motivos, ou seja: a) considerar as diferenças socioculturais entre os
alunos, as identidades pessoais, o pertencimento a culturas específicas; b) preocupar-se com a
formação de motivos éticos e sociais, entre eles, por exemplo, a formação para o respeito à
diferença, para o compartilhamento, hibridismo cultural, etc.
Trata-se de estabelecer um patamar básico de formação em relação aos conhecimentos
científicos e a procedimentos de pensamento conectados a praticas socioculturais da
aprendizagem, necessário para a inclusão social e cultural, como requisito indispensável para
assegurar a democracia e a igualdade de direitos para todos os membros da sociedade. Para a
didática, a questão crucial é saber como, nas interações pedagógico-didáticas, ligar o
conhecimento teórico-científico aos contextos particulares dos alunos, ou seja: a) como
organizar o conteúdo de modo a, por meio deles, desenvolver capacidades intelectuais; b)
como usar o conhecimento teórico-científico para analisar contextos concretos; c) como
relacionar o conhecimento teórico-científico aos contextos locais em que ocorrem as interações
pedagógico-didáticas.
Por fim, continua de pé a idéia de que a escola é o melhor lugar e o melhor caminho
para a luta política pela igualdade e inclusão social. Não é possível democracia econômica,
social, política, intelectual, sem a escolarização. Praticar justiça social hoje na escola é
essencialmente assegurar a cada aluno a qualidade cognitiva e operativa dos processos de
aprendizagem. A referência principal de qualidade das escolas é o que os alunos aprendem,
como aprendem, em que grau são capazes de pensar e agir com o que aprendem.
Referências bibliográficas
CHARLOT, Bernard. Globalização e educação. Texto de Conferência. Fórum Mundial de Educação, Porto Alegre,
2000.
CHARLOT, Bernard. Relação com o saber, formação dos professores e globalização. Porto Alegre: ArtMed, 2005.
DANILOV, M. A. e SKATKIN. M.N. Didáctica de la escuela media. Havana: Editorial Pueblo y Educación, 1984.
D´ÁVILA, Cristina Teixeira. Decifra-me ou te devorarei: o que pode o professor frente ao livro didático? Salvador:
EDUNEB/EDUFBA, 2008.
DINIZ-PEREIRA, Júlio Emílio, ZEICHNER, Zenneth M. (Orgs.) Justiça Social - Desafio para a formação de
professores. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
FRANÇA, Marco T.A. e GONÇALVES, Flávio de Oliveira. Justiça social no ensino fundamental e médio brasileiro:
transmissão inter-geracional de desigualdade e qualidade educacional. Revista de Estudos Universitários, Sorocaba,
V.34, n.1, jun. 2008.
GIMENO SACRISTÁN, José. La educación obrigatoria: su sentido educativo y social. Madrid: Morata, 2000.
HEDEGAARD, Mariane e CHAIKLIN, Seth. Radical-local teaching and learning: a cultural-historical approach.
Aarhus (Dinamarca): Aarhus University Press, 2005.
HEDEGAARD, Mariane. A Cultural-historical Approach to Learning in Classrooms. In: Outlines. Critical Practice
Studies, Copenhagen, Vol. 6, No. 1. 2004.
KLINGBERG. L. Introducción a la Didáctica General. Havana: Editorial Pueblo y Educación, 1978.
LENOIR, Yves. Médiation cognitive et mediation didactique. In: RAISKY, C. e Caillot, M. Au-delà des didactiques, le
didactique. Paris, Bruxelas: De Boeck e Larcier, 1996.
LIBÂNEO, José C. O campo teórico e profissional da didática hoje: entre Ítaca e o canto das sereias. In: FRANCO,
Maria A. S. e PIMENTA, Selma G. (orgs.). Didática: embates contemporâneos. São Paulo: Loyola, 2010.
LIBÂNEO, José C. e Santos, Akiko. Educação na era do conhecimento em rede e transdisciplinaridade. Campinas
(SP): Alínea, 2005.
LIBÂNEO, José C. Entrevista com José Carlos Libâneo. Revista Plurais (Univ. Est. de Goiás), n. 1, jul.dez/2004.
13
LOMPSCHER, Joachim. Learning activity and its formation: ascending from the abstract to the concret. In:
HEDEGAARD, Mariane e LOMPSCHER, Joachim (ed.). Learning activity and development. Aarhus (Dinamarca):
Aarhus Universitiy Press, 1999.
MIRANDA, Marília G. de. Sobre tempos e espaços da escola: do princípio do conhecimento ao princípio da
socialidade. Educação e Sociedade, v. 26, n. 91, Campinas (SP), mai/ago 2005.
ROUANET, Sergio P. Uma teoria da justiça para um mundo globalizado. In: Utopia y Práxis Latino-americana, Año 7,
n. 18, Sept 2002. Acesso pela Internet.
SANTOS, Boaventura S. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 4ª ed.
1997.
SMOLKA, Ana L. B. A prática discursiva na sala de aula: uma perspectiva teórica e um esboço de análise. Cadernos
Cedes, Campinas, n. 24, 1991, pp. 51-65.
STOCKER, Karl. Princípios de didáctica moderna. Buenos Aires: Kapeslusz. 1964.
VYGOTSKI, L. S. Génesis de las funciones psíquicas superiores. IN: VYGOTSKI: Obras Escogidas III. Madrid: Visor,
2000.
Download