A importância da quididade segundo a teoria do conhecimento de Tomás de Aquino Richard Lazarini Mestrando em Filosofia pela USP Bolsista CAPES [email protected] Palavras-chave Abstração. Fantasmas. Intelecto agente. Quididade. Tomás de Aquino. Resumo A teoria do conhecimento de Tomás de Aquino propõe que o objeto próprio do conhecimento intelectual humano seja a natureza existente na matéria, a qual também pode ser chamada de “quididade”. Cabe ressaltar que tal natureza - singularizada enquanto existente na matéria -, ao ser recebida pelos sentidos, toma a qualificação de “espécie sensível”, e, depois, ao ser recebida pela faculdade imaginativa (phantasia), toma a qualificação de imagem, a qual, segundo o aquinatense, pode ser chamada de “fantasma” (phantasma). É apenas depois do processo intelectual abstrativo que o fantasma se torna uma “espécie inteligível”. Para isto, a quididade precisa ser abstraída de suas condições materiais. O que possibilita este tipo de abstração é o intelecto agente: este intelecto ilumina e abstrai a quididade do fantasma e a imprime no intelecto possível, o qual, após recebê-la, entra em ato, num processo que pode ser denominado de intelecção ou conhecimento. Deste modo, a quididade – na medida em que é impressa no intelecto possível – possibilita, a sua maneira, o conhecimento intelectual das coisas sensíveis. Portanto, nota-se que a quididade desempenha um papel fundamental na teoria do conhecimento de Tomás de Aquino, por isto tona-se importante, em nossa comunicação, investigarmos mais detidamente a seguinte questão: o que é a quididade? Introdução A teoria do conhecimento de Tomás de Aquino pode ser considerada um dos pilares de seu pensamento e um marco na história da filosofia medieval. Segundo Gilson1, a substituição da doutrina agostiniana por uma inovadora síntese doutrinal é o acontecimento filosófico mais importante que ocorreu no século XIII, sendo que, se fosse preciso selecionar o ponto crítico em que a antiga escolástica se dissocia da nova, “é sem dúvida a teoria do conhecimento que conviria escolher”.2 A teoria do conhecimento de Tomás propõe que o objeto próprio do conhecimento intelectual humano seja a natureza existente na coisa sensível. Esta natureza é chamada de quididade (quidditas). Por um lado, considera-se que a quididade é singularizada – é singularizada na medida em que existe junto à matéria –, conquanto , por outro, considera-se que ela é universal – é universal na medida em que existe no intelecto. Explica-se: ao ser recebida pelos sentidos, tal natureza toma a qua- 341 1 GILSON, É. Por que São Tomás criticou Santo Agostinho. Avicena e o Ponto de Partida de Duns Escoto. Tradução: Tiago José Risi Leme. São Paulo: Paulus, 2010 – (Coleção filosofia), p.5. 2 Idem, p. 5. Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 lificação de “espécie sensível”, e, depois, ao ser recebida pela faculdade imaginativa (phantasia), recebe a qualificação de imagem da coisa sensível, a qual, segundo a terminologia de Tomás, pode ser chamada de “fantasma” (phantasma).3 É apenas depois do processo intelectual abstrativo, realizado pelo intelecto agente, que a natureza do fantasma se torna uma “espécie inteligível” – a qual é caracterizada como universal. Nessa medida, nota-se a importância do intelecto agente para a filosofia de Tomás, pois é tal intelecto que possibilita o conhecimento intelectual humano das coisas sensíveis. Sua função abstrativa permite-lhe agir sobre o fantasma: o intelecto agente ilumina e abstrai a quididade do fantasma, a qual se comporta como princípio de conhecimento na medida em que é proporcionada ao intelecto. Essa quididade, depois de ser abstraída pelo intelecto agente, é transformada em espécie inteligível e impressa no intelecto possível, que, após recebê-la, entra em ato. Diante disso, cabe destacar que, segundo Nascimento4, Tomás sustenta haver diferença entre a composição e divisão do intelecto, entretanto, para Platão, por exemplo, há correspondência entre o modo de ser da coisa e o modo como é conhecida. Ele julgou que a forma do conhecido se encontra no cognoscente do mesmo modo que está no conhecido. Os pré-socráticos, por sua vez, se utilizaram do mesmo princípio. No entanto, Platão e os pré-socráticos tomaram posições opostas: aquele atribuindo às coisas propriedades destas enquanto presentes no intelecto, isto é, a universalidade, a imaterialidade e a necessidade; estes sustentando que uma vez que as coisas conhecidas são corpóreas e materiais, é preciso que elas, enquanto conhecidas, estejam materialmente no cognoscente (NASCIMENTO, C.A.R. O caminho intermediário: alguns limites do conhecimento intelectual humano, segundo Tomás de Aquino, 1996, p. 207). Segundo Tomás, o conhecimento não procede desse modo, pois a forma do sensível se encontra na coisa, que é exterior à alma, de modo diverso como está no sentido; sentido este que recebe as formas sensíveis a seu modo, isto é, com características materiais, mas o intelecto, por outro lado, as recebe a seu modo – que é diverso do modo dos sentidos –, isto é, imaterialmente, “pois o recebido está no recipiente ao modo do recipiente”.5 O aquinatense, para salvaguardar o princípio de semelhança entre o conhecimento intelectual e a coisa a ser conhecida – sem que, por um lado, tivesse que sustentar a materialidade do conhecimento intelectivo, e sem que, por outro, tivesse que substituir o objeto do conhecimento por substâncias imateriais e separadas –, recorreu ao princípio de recepção, o qual é formulado da seguinte maneira: “o recebido 342 3 Em sua tradução da Suma de Teologia, Nascimento traduz o termo phantasma por “fantasia”. Optamos, porém, por “fantasma”. Consideramos problemática a tradução de phantasma por “fantasia” na medida em que phantasia, segundo a filosofia tomasiana, é a capacidade imaginativa - também chamada de sentido comum -, enquanto o phantasma nada mais é que um produto da phantasia. 4 NASCIMENTO, C.A.R. O caminho intermediário: alguns limites do conhecimento intelectual humano, segundo Tomás de Aquino. 1996, p. 206. 5 TOMÁS. Suma de Teologia, 1ª, q. 84, a.1, resp. Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 343 está no recipiente ao modo do recipiente”.6 Entre os pré-socráticos e Platão “há uma correspondência estrita entre o modo de ser da coisa e o modo como é conhecida”,7 mas para Tomás, como visto, não há correspondência. Ao assumir essa formulação8, Tomás, à sua maneira, baseia-se na teoria do conhecimento de Aristóteles. Segundo o estagirita, o conhecimento humano não lida unicamente com aquilo que é meramente material – tal como alguns pré-socráticos sustentaram – nem com aquilo que é unicamente imaterial – como defendido por Platão –, mas ocorre devido uma relação do material com o imaterial. Essa relação se dá na medida em que o intelecto – que é imaterial – possui a capacidade de abstrair e conhecer aquilo que há de inteligível e imaterial na coisa.9 Quer dizer, a forma da coisa sensível passa por um processo complexo – realizado pela parte sensitiva da alma – e desemboca na produção, feita pela imaginação, do fantasma; o intelecto agente10 possui a capacidade de abstrair a quididade do fantasma – o qual ainda preserva algumas características materiais da coisa – e, consecutivamente, este mesmo intelecto produz a espécie inteligível, que, em seguida, é impressa no intelecto possível, o qual é como “uma tabuinha rasa na qual nada está escrito”. Ou seja, o intelecto possível, inicialmente, é puramente potencial, porém, após receber aquilo que lhe é próprio, ele passa, consequentemente, da potência ao ato, num processo que pode ser chamado de intelecção. Já que é a inteligência agente que permite o intelecto possível receber, a seu modo, a espécie inteligível das coisas, cabe ressaltar, a título de esclarecimento, que, tal inteligência, é inerente à alma humana – a inteligência agente não é separada e nem possui, em si, todas as formas inteligíveis, como dizia Avicena, mas possui a função de tornar os fantasmas em inteligíveis em ato. É essa capacidade de acessar aquilo que há de inteligível nos fantasmas que permite o intelecto possível conhecer, a seu modo, as coisas sensíveis. Segundo Tomás, a quididade caracteriza-se como objeto próprio do intelecto humano: é ela que, à sua maneira, ‘confere’ elementos para o conhecimento intelectual das coisas sensíveis. Visto a importância que a quididade possui para a teoria do conhecimento intelectual humano de Tomás, tornou-se fundamental, para nossa comunicação, investigarmos a seguinte questão: o que é a quididade? Conquanto, antes de responder tal questão, fez-se importante descrever, de maneira mais detida, o processo pelo qual ocorre o conhecimento humano. Assim, iniciamos nossa investigação 6 Idem. 7 NASCIMENTO, C.A.R. O caminho intermediário: alguns limites do conhecimento intelectual humano, segundo Tomás de Aquino. 1996, p. 207. 8 “O recebido está no recipiente ao modo do recipiente”. 9 Da coisa tal como apreendida pelo sentido. 10 “[...] porque Aristóteles não admitia que as formas das coisas naturais pudessem subsistir sem matéria porque as formas existentes na matéria não são inteligíveis em ato, resultava que a natureza ou as formas das coisas sensíveis, que conhecemos, não eram inteligíveis em ato. Ora, nada passa da potência ao ato senão por meio de um ente em ato; por exemplo, o sentido torna-se em ato pelo sensível em ato. Era preciso, portanto, afirmar, da parte do intelecto uma potência que fizesse inteligíveis em ato, abstraindo as espécies das condições da matéria. Donde a necessidade de se afirmar um intelecto agente (TOMÁS, Suma Teológica, 1ª, q. 79, a. 3 resp.). Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 tratando do conhecimento sensível (do modo como os sentidos apreendem a forma sensível das coisas e como essa forma é transformada, pela capacidade imaginativa, no fantasma, isto é, na imagem da coisa sensível) e, após isso, tratamos do modo pelo qual a quididade é abstraída do fantasma e transformada, pelo intelecto agente, em espécie inteligível, a qual, em seguida, é impressa no intelecto possível, permitindo-o produzir conceitos. Depois de ser descrito o processo pelo qual ocorre o conhecimento intelectual humano das coisas sensíveis – processo que permite compreender o modo pelo qual a quididade, a seu modo, cai sob os sentidos e a imaginação – encontramos subsídios para tratar não só da função que a quididade exerce no processo intelectivo, mas também do que, de fato, ela é. 1. A Produção dos Fantasmas De acordo com Tomás de Aquino, o homem, no estado de vida presente, utiliza-se primariamente dos sentidos11 para poder realizar seu conhecimento intelectual das coisas sensíveis.12 Isso quer dizer que a apreensão dos sensíveis, realizada pela capacidade sensitiva da alma, constitui-se como o ponto de partida de um processo que se completa na atividade intelectual humana. Nessa atividade, o intelecto realiza uma gênese com as percepções obtidas dos corpos sensíveis. Essas percepções se dão na medida em que a capacidade sensitiva apreende a forma sensível da coisa que lhe é externa, ou seja, é no contato com a realidade externa que a alma humana apreende o objeto sensível em sua estrutura formal.13 Não obstante, cabe ressaltar que o sentido seja ontologicamente distinto do intelecto: o sentido refere-se mais à matéria do que à forma, ao passo que o intelecto refere-se mais à forma do que à matéria. Isso mostra que o sentido, por um lado, está mais ligado as operações do corpo, ao passo que intelecto, por outro, opera de modo imaterial na medida em que as espécies inteligíveis, advindas de um processo abstrativo, lhe são acrescidas e proporcionadas. Entrementes, Spruit14 destaca que, consoante Tomás, a capacidade sensitiva possui duas partes, a saber: a interna e a externa. Sua estrutura interna, de certo modo, está em ato, ao passo que a externa15 está em potência para o mundo sensível. O sentido, conectado e organizado dentro de uma estrutura interna, é considerado “em si” como in primo actu e assim não é puramente passivo em sua relação com as coisas sensíveis. Desse modo, a percepção sensitiva assume um papel importante na relação que ocorre entre a alma e as coisas sensíveis: a percepção depende da espécie sensível na medida em que a coisa afeta o órgão sensorial que lhe corresponde.16 Isso 344 11 No contexto de nossa discussão usaremos os termos “sentido” e “sensível” na medida em que eles remetem à capacidade da alma humana por meio da qual se conhece aquilo que é material, isto é, o “sensível”. 12 TOMÁS. Suma de Teologia, 1ª, q. 84, a. 6, sed contra. 13 SPRUIT, L. Species Intelligibilis from Perception to knowledge. In: Brill’s Studies in Intellectual History. Leiden – New York – Koln, 1994, pp. 162 – 164. 14 Idem. 15 A estrutura externa nada mais é do que os órgãos dos sentidos. 16 Isto é, cada aspecto da coisa corresponde, respectivamente, a algum órgão sensorial. Por exemplo: a vista é afetada pelas cores que estão no corpo, ao passo que a temperatura e/ou solidez dos corpos sensíveis podem ser sentidas pelo órgão sensorial do tato. Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 345 quer dizer que a espécie sensível vem por uma ação dos corpos sensíveis sobre os sentidos. Tal espécie representa a estrutura formal do objeto sensível na medida em que este é apreendido pelo sentido. A espécie – no sentido – configura-se mais como um princípio instrumental do que como um objeto percebido nele mesmo. Recebida na alma, a espécie sensível permite a produção de uma imagem sensorial, a qual é denominada de fantasma. O fantasma é resultante de um processo complexo que envolve vários estágios intermediários. Após tratarmos sucintamente dos sentidos externos e interno17, cabe, nesse ponto, explanar, de maneira mais detida, o modo pelo qual Tomás aborda o processo que culmina na produção, realizada pela imaginação, das imagens ou fantasmas (phantasmata): como visto, o homem, no estado de vida presente, inicia seu processo de conhecimento a partir dos sentidos, ou seja, é pelos órgãos dos sentidos que as sensações das coisas sensíveis são recebidas. Enfatize-se que, de um lado, a faculdade sensitiva diz respeito às operações dos órgãos corporais, quais sejam: tato, visão, olfato, paladar e audição; sendo que, de outro lado, a faculdade sensitiva diz respeito à imaginação (ou sentido comum). A imaginação é uma capacidade que, apesar de não ser intelectual, apreende diversas sensações advenientes dos sentidos18: ao mesmo tempo em que, pelo tato, sinto que algo é quente posso também, por intermédio da visão, constatar que ele seja preto. A imaginação, primeiramente, recebe essas sensações e, após recebê-las, as relaciona e as refere a um mesmo objeto. Ao contrário dos órgãos dos sentidos – que dizem mais respeito à matéria do que à forma (alma) –, a imaginação abarca em si, tanto aspectos formais quanto materiais – na medida em que ela apreende as sensações como compostos de matéria e forma. Analisando mais de perto a capacidade sensitiva, note-se que, de certa maneira, ela é passiva em relação aos sensíveis. É por essa passividade que tal capacidade recebe as sensações das coisas; após recebê-las, a imaginação as une e as referencia a um mesmo objeto. Esse processo de união das sensações é realizado pela parte ativa da imaginação: é assim que a imaginação entra em ato e produz, como decorrência, uma imagem referente à coisa sensível. A imaginação possui tanto um caráter passivo quanto um caráter ativo. É o seu caráter ativo que produz os fantasmas. Os fantasmas estão em potência em relação ao intelecto, pois, por estarem relacionados com parte sensitiva da alma, ainda preservam as características materiais da coisa. Considera-se que os fantasmas sejam inteligíveis em potência pelo fato de conterem, em potência, a quididade das coisas. Conforme White19, o fantasma não corresponde à capacidade sensitiva do mesmo modo que a forma sensível corresponde ao corpo, pois esta última está mais próxima da matéria do que da forma, ao passo que o fantasma não parece corresponder mais à matéria do que à forma, ou seja, de certa maneira, o 17 Para uma análise mais aprofundada dos sentidos externos e internos ver: Suma Teológica, questão 78, artigos 3 e 4. 18 OLIVEIRA, C.E. Tomás de Aquino e a Filosofia: guia de estudos/Carlos Eduardo de Oliveira. – Lavras: UFLA, 2013, p. 81. 19 WHITE, A. L. The Picture Theory of the Phantasm. Tópicos 29 (2005), p. 132. Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 346 fantasma “equilibra”, em sua constituição, tanto as características materiais quanto as formais do composto: o fantasma, em última instância, possui uma natureza hilemórfica. Há um trato que a espécie sensível recebe dos sentidos internos. Esse trato possibilita a espécie sensível passar por um “processo de refinamento”, processo este que permite a produção do fantasma pela imaginação. Explique-se: a espécie sensível encontra-se em estado “bruto” em sua primeira apreensão sensitiva, conquanto ao passar por um complexo processo, essa espécie culmina na produção, realizada pela imaginação, do fantasma, que nada mais é do que uma semelhança da coisa sensível. Segundo Tomás, o intelecto humano possui a capacidade de acessar, a seu modo, os objetos sensíveis externos representados nos fantasmas.20 Isso ocorre na medida em que o intelecto abstrai aquilo que há de inteligível no fantasma. A acessibilidade do intelecto, naquilo que há de inteligível no fantasma, se dá devido a uma série de processos mediativos – ocorridos a partir da percepção sensorial – que desembocam no processo intelectual abstrativo. A quididade assume um papel de grande importância na mediação e assimilação – realizadas pela alma – dos conteúdos extra mentais, pois é ela que permite a produção da espécie inteligível: tal espécie é resultado de uma sinergia realizada entre o intelecto e a realidade sensível.21 Assim, a quididade caracteriza-se como fundamento de universalidade e objetividade do conhecimento intelectual. Ressalte-se que a espécie inteligível não se configura como “o que é inteligido”, mas “pelo que é inteligido”. Caracteriza-se assim porque, em certa medida, ela comporta-se como um tipo de intermediário entre o fantasma e o intelecto. A espécie inteligível é aquilo pelo que o intelecto, à sua maneira, conhece primeiro. O intelecto, ao tomar essa espécie como subsidiária do conhecimento, passa a conhecer, a seu modo, as características mais gerais das coisas, as quais podem ser chamadas de inteligíveis, universais etc. De acordo com o aquinatense22, não se sustenta espécies inteligíveis inatas no intelecto humano, pois para entrar em operação, o intelecto precisa que as espécies inteligíveis sejam produzidas a partir das quididades abstraídas dos fantasmas. Tais espécies não são as formas ou ideias transcendentes, porque, se fossem, seria contrário à experiência. Posto que os objetos do conhecimento advenham do âmbito sensível, instaura-se o problema: como os sensíveis podem ser conhecidos pelo intelecto que, por sua vez, é uma faculdade imaterial? Já foi dito que os objetos correspondentes à faculdade sensitiva são recebidos por intermédio dos sentidos, os quais estão em constante contato com os sensíveis. Contudo, pode parecer inaceitável à inteligência depender de algo que lhe seja inferior para inteligir. Mas, se assim for, dever-se-á sustentar que os sensíveis sejam inteligíveis apenas em potência, sendo que, para 20 Na questão 84, artigo 7, da Suma de Teologia, Tomás diz que o intelecto humano, no estado de vida presente, no qual está unido ao corpo, não intelige em ato senão voltando-se aos fantasmas, isto é, o intelecto humano precisa dos fantasmas para atingir o conhecimento referente à coisa sensível. 21 A realidade sensível está representada no fantasma. 22 TOMÁS. Suma de Teologia, 1ª, q. 84, a.4., resp. Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 se atingir algum conhecimento, tornar-se-á necessário passá-los da potência ao ato inteligível. Para possibilitar essa passagem, sustentar-se-á uma capacidade na alma humana que eleva ao âmbito intelectivo o objeto apreendido pelo sentido. O que possibilita o ato da espécie é uma capacidade intelectual ativa. Entretanto, para se entender a função dessa capacidade e o modo pelo qual ela abstrai as quididades – que, depois de abstraídas, se tornam espécies inteligíveis em ato –, faz-se importante esclarecer como a alma humana possibilita que algo passe da potência ao ato. Sendo assim, ressalte-se que, segundo o aquinatense, as coisas sensíveis estão em ato para os sentidos, por isso não se deve supor um sentido agente, o qual, se existisse, desempenharia a função de atualizar os sensíveis: um órgão sensível passivo, diante de sensíveis em ato, basta para receber as impressões dos sensíveis que lhes corresponde. Porém, frise-se que os inteligíveis abstratos não estão realizados na realidade sensível. Assim, considera-se que tais inteligíveis, para serem conhecidos, passam por um processo de abstração, ou seja, eles devem ser abstraídos de suas condições materiais para tornarem-se, consecutivamente, conhecidos. É nesse ponto que o intelecto agente desempenha sua função, qual seja: abstrair a quididade dos fantasmas. O intelecto agente, por sua função abstrativa, torna atualmente inteligível aquilo que era apenas potencialmente inteligível na realidade sensível. Logo, observa-se que, de acordo com Tomás, não há necessidade de se explicar uma capacidade intermediária em ato entre o sentido e os sensíveis, pois a apreensão do sensível explica-se sem se sustentar uma capacidade agente – como, por exemplo, um sentido agente –, pois os sentidos são passivos em relação aos sensíveis, ao passo que, por outro lado, não é possível explicar o conhecimento intelectual das coisas sensíveis sem se sustentar uma capacidade intermediária e intelectual em ato, a qual é denominada “intelecto agente”. Segundo Gardeil23, a potência não pode por si própria elevar-se ao ato, portanto, torna-se necessário intervir uma capacidade intelectual em ato – a qual possibilitará essa passagem. 2. A quididade como objeto do conhecimento intelectual humano O intelecto agente tem a função de abstrair a quididade dos fantasmas, despojando-a de suas condições materiais singularizantes. É tal quididade que possibilita a produção, realizada pelo intelecto agente, da espécie inteligível em ato. Após esse processo, o intelecto agente imprime a espécie inteligível no intelecto possível. O intelecto possível é uma capacidade que inicialmente é passiva e, como tal, está apta a receber aquilo que lhe é próprio, ou seja, a espécie inteligível produzida a partir da quididade abstraída dos fantasmas. Após recebê-la, ele a intelige, passando, consequentemente, da potência ao ato, realizando, desse modo, o conhecimento. Caso contrário, ou seja, se o objeto intelectivo já estivesse em ato24 (sem necessidade de abstração), e só houvesse o intelecto possível na alma intelectiva humana, não haveria necessidade de supor um in- 347 23 GARDEIL. H. D. Iniciação a Filosofia de São Tomás de Aquino, Tomo IV METAFÍSICA. Tradução: Paulo Eduardo Arantes. Duas Cidades, 1967, p. 113. 24 Sem a necessidade de sustentar-se a abstração intelectual. Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 telecto agente. Ou seja, se não houvesse o intelecto agente na alma humana, o intelecto humano seria uma faculdade completamente passiva: teria a função de apenas receber seus respectivos objetos. Desse modo, a faculdade intelectiva, teria o mesmo modo de ser de seus objetos, os quais – sem a necessidade de serem abstraídos de suas condições materiais para serem conhecidos – seriam imateriais e subsistentes por si mesmos.25 Quer dizer, a faculdade intelectiva, assim como seus respectivos objetos, seria imaterial. Conquanto, nesse caso, apesar de imaterial, tal faculdade caracterizar-se-ia como puramente passiva, ao passo que seus objetos estariam sempre em ato para ela; com isso, o intelecto receberia de modo imaterial e direto26 seus objetos, uma vez que estes seriam, unicamente, as formas imateriais e subsistentes por si próprias. O intelecto agente27 é capaz de tornar imaterial e atualmente inteligível seu respectivo objeto, que, a princípio, é apenas potencialmente inteligível; seu objeto é a quididade embutida nos fantasmas. A função desse intelecto consiste em abstrair e atualizar a quididade. Contudo, cabe esclarecer que, algumas vezes, considera-se o fantasma como objeto de cognição e, noutras vezes, considera-se que o objeto cognitivo seja a quididade, pois, de um modo, o intelecto agente ilumina o fantasma, enquanto que, de outro modo, essa iluminação acarreta na abstração da quididade do fantasma. É pela iluminação sofrida que, de certa maneira, o fantasma torna-se objeto do intelecto agente. O que é conhecido através desse ato intelectivo, realizado sobre o fantasma, é o objeto próprio do intelecto humano, isto é, a quididade da coisa existente na matéria corporal. Sobre isso, Tomás diz: [...] o objeto próprio do intelecto humano, que é unido ao corpo, é a quididade ou natureza existente na matéria corporal; e pelas naturezas deste tipo das coisas visíveis, também ascende a algum conhecimento das coisas invisíveis. Faz parte, porém da noção desta natureza que exista em algum indivíduo, o que não se dá sem a matéria corporal; assim como faz parte da noção da natureza da pedra que esteja nesta pedra e da noção da natureza do cavalo que esteja neste cavalo, e assim para os demais. Donde, a natureza da pedra ou de qualquer coisa material não poder ser conhecida completa e verdadeiramente, senão na medida em que é conhecida como existente no particular. Ora, apreendemos o particular pelo sentido e pela imaginação. Por isso, é necessário, para que o intelecto intelija em ato seu objeto próprio, que se volte para as fantasias, para que se observe a natureza universal existente no particular. Se, porém, o objeto próprio de nosso intelecto fosse a forma separada, ou se as naturezas das coisas sensíveis subsistissem, não nos particulares de acordo com os platônicos, não seria preciso que nosso intelecto sempre, ao inteligir, se voltasse para as fantasias (TOMÁS. Suma de Teologia, 1ª, q. 84., a. 6., resp.). Note-se a importância da quididade para o processo intelectivo na medida em que ela é objeto próprio do intelecto humano. É após o intelecto agente abstrair seu objeto próprio e imprimi-lo, como es- 348 25 Isso se daria na medida em que se assume que o modo de ser do agente deve ser o mesmo do paciente. 26 Isto é, sem intermediário como um intelecto agente. 27 GARDEIL. H. D. Iniciação a Filosofia de São Tomás de Aquino, Tomo III – Psicologia. Tradução: Pe. Augusto J. Chiavegato. Duas Cidades, 1967, pp. 105 – 110. Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 pécie inteligível, no intelecto possível, que este passa, consecutivamente, a produzir conceitos, os quais exprimem de modo universal a quididade extraída do fantasma. O conceito é a expressão mental – verbo mental segundo a terminologia escolástica – da essência abstrata ou determinação inteligível da coisa. Tanto a apreensão da quididade quanto a produção do conceito constituem-se como a primeira operação do intelecto. No texto O ente e a essência, Tomás afirma que a essência é denominada, pelos filósofos latinos, de quididade. Nesse sentido, quididade seria o mesmo que definição, dada a identificação proposta por Tomás entre essência e definição. Citemos Tomás: E, visto que aquilo pelo que a coisa é estabelecida no próprio gênero ou espécie é isto que é significado pela definição indicando o que a coisa é, daí vem que o nome de essência é transformado pelos filósofos no nome de quididade (TOMÁS.O Ente e a Essência. Trad. Carlos Arthur do Nascimento. Edição Bilíngue. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995). Etimologicamente a palavra quidditas designa a concepção que se forma para responder a questão quid: “o que é?”; é tal coisa: quidditas. A quididade, desse modo, designa a natureza profunda de uma coisa, ou seja, ela designa a essência da coisa – aquilo que faz dela tal ser.28 Destaque-se que os sentidos, por um lado, captam apenas os acidentes exteriores, enquanto que o intelecto, por outro, vai até ao ser da coisa. Os modos, as propriedades e os diversos acidentes de um ser podem ser concebidos pela inteligência como essência ou como quididade. Porquanto, por si mesma, a inteligência tem a função de entender, primariamente, a quididade das coisas. Assim, a quididade, na medida em que está no intelecto, designa a natureza abstrata da coisa, ou seja, a natureza considerada independente de tudo aquilo que a individua. Isso quer dizer que a inteligência humana possui a função de conhecer a quididade existente na matéria corporal, mas não enquanto ela está individuada na matéria. Esse tipo de conhecimento se dá por abstração da quididade da coisa sensível representada nos fantasmas.29 Separada daquilo que a individua, a quididade deve, por seu turno, ser considerada como universal. Ao contrário dos sentidos que só atingem as realidades singulares, o intelecto, por ser uma faculdade universalizadora, universaliza a quididade que estava individuada pela matéria. Essa universalização inicia-se pelo intelecto agente que abstrai a quididade de suas condições materiais singularizantes e a qualifica como espécie inteligível. Diante disso, vemos a fundamental importância da quididade para a teoria do conhecimento de Tomás de Aquino. Pois é por conta dela que o homem atinge o conhecimento intelectual das coisas sensíveis. A quididade é a natureza ou essência das coisas: conhecer a quididade é conhecer a natureza ou essência das coisas. Assim, o conhecimento intelectual humano das coisas sensíveis só é possível 349 28 GARDEIL, H.D. Iniciação à Filosofia de São Tomás de Aquino: Psicologia, Metafísica. Tradução: Cristiane N. A. Ayoub, Carlos E. de Oliveira, José Carlos Estevão, Moacyr Novaes. Paulus, 2013, pp. 100 – 101. 29 Idem. Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 na medida em que se conhece a quididade da coisa material – a qual, inicialmente, ainda individuada pelas características materiais, “cai” sobre o sentido e a imaginação. Com isso, constata-se que o objeto do próprio do intelecto humano é a quididade (ou natureza existente na coisa corporal), a qual não é uma substância separada e subsistente por si mesma – como defendiam os platônicos. Conclusão Diante do que foi abordado, conclui-se que, segundo Tomás, o conhecimento humano parte dos sentidos – os quais estão em constante contato com os sensíveis. Após ser apreendida pelo sentido (o qual é uma capacidade da alma humana), a forma sensível – adveniente dos sensíveis – passa por um trato, recebido pela capacidade imaginativa, no qual são produzidos os fantasmas, que se caracterizam como semelhanças ou representações dos sensíveis: os fantasmas abarcam, em sua constituição, as quididades daquilo que foi apreendido pelo sentido. O fantasma é um ente que está apto a ser inteligido, conquanto, enfatize-se que ele só pode ser inteligido na medida em que houver uma capacidade intelectual em ato que possibilite essa intelecção. Tal capacidade chama-se intelecto agente: este intelecto possui a função de iluminar e abstrair as quididades dos fantasmas e, consecutivamente, produzir espécies inteligíveis que, por sua vez, são impressas no intelecto possível, o qual é uma capacidade intelectual que se encontra, primariamente, em potência em relação a seu objeto, mas que após recebê-lo passa da potência ao ato. No ato intelectivo, realizado pelo intelecto possível, tem-se a produção dos conceitos. Estes, por sua vez, são universais. Os conceitos, a seu modo, exprimem universalmente a quididade das coisas. Destaque-se que os conceitos universais, de algum modo, referem-se aos particulares: por isso pode-se dizer que “Sócrates (indivíduo) é homem (espécie que abarca todos os indivíduos homens)”. Assim também conclui-se que, no processo intelectivo humano, a quididade é abstraída, pelo intelecto agente, do fantasma e, desse modo, transformada em espécie inteligível, a qual identifica-se tanto com o intelecto agente quanto com o intelecto possível. Identifica-se com o primeiro na medida em que, enquanto abstraída, proporciona-se a natureza do intelecto agente, assim, neste proporcionamento, há sinergia entre a espécie inteligível e o intelecto agente, o qual confere mais atualidade a ela. Após receber atualidade, a espécie é impressa no intelecto possível. Neste intelecto ela comporta-se como princípio ativo. Como princípio ativo, a espécie inteligível possibilita esse intelecto entrar em operação. Isto significa que a espécie inteligível identifica-se com o intelecto possível na medida em que, assim como este, ela é imaterial, pois o recebido deve estar no recipiente ao modo do recipiente. Não obstante, a espécie inteligível é imaterial em ato, ao passo em que o intelecto é imaterial em potência. Todavia, esta relação – entre um ente em ato e uma capacidade em potência – não acarreta nenhum prejuízo ao receptor, pois este recebe seu objeto na medida em que tal objeto lhe permite atingir a perfeição de sua respectiva operação. Deste modo, considera-se que o intelecto só completa-se na medida em 350 Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 351 que recebe seu objeto próprio, qual seja: a quididade abstraída do fantasma e, consecutivamente, transformada, pelo intelecto agente, em espécie inteligível, que, após essa transformação, é impressa no intelecto possível, o qual – após recebê-la – entra em ato e produz os conceitos quididativos. 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