JOSÉ BARATA-MOURA, Marx e a Crítica da "Escola Histórica do

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JOSÉ BARATA-MOURA, Marx e a Crítica da "Escola Histórica
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do Direi-
to", Lisboa, Editorial Caminho, Colecção Universitária, 1994, 409 pp.
"A escola histórica do direito (...) teria inventado a
história alemã, se não fosse ela própria uma invenção da história alemã."
Karl Marx
Foi Pierre Vilar, suponho, um dos que primeiro mostraram (entre Marx e a
escola dos Aúnales) que a história do direito também é via de acesso à história
total.
A leitura do livro cm apreço relembra-me esse caminho de uma "história em
construção". Mas aqui termina a evocação: ainda que o autor não corra o risco de
ver-se sumariamente julgado como historiador entre filósofos e como filósofo
entre historiadores, há precedentes inúteis, assim como há, por exemplo, pré-juízos cultivados entre especialistas.
Não obstante, é preciso dizé-lo de outro modo: a perspectiva que atravessa o
livro e a sustentação que lhe é dada parecem-me convincentes porque historicamente justas. E justas, antes de tudo, porque exemplarmente bem informadas. Por
outras palavras, e tanto quanto um discernimento crítico seguro supõe um bom
suporte documental - ou o melhor - , este multilateral confronto do Marx jovem
com a escola histórica do direito cumpre, por isso também, as exigências da
investigação e da exposição conjuntamente bem conduzidas.
Tal conjunção é o ponto de encontro do campo de problemática e do quadro
institucional onde o autor tem situado alguma parte mais recente da sua obra em
curso. Refiro-me ao seminário "Dialéctica c materialismo" do Mestrado em
Filosofia da FLUL (p. 27). Julgue-se pelos resultados essa forma de unidade
entre docência e investigação. E julgue-se, neles, a quota-parte da filosofia e da
crítica de ideias na produção de conhecimento, na reprodução de alto nível de
saberes socialmente alargados, assim como no apetrechamento para a inovação
daí proveniente.
O livro é composto de oito capítulos (subdivididos em parágrafos e precedidos de um 'índice geral', de um Agradecimento' e de um 'Preâmbulo'), complementados por um tão volumoso como indispensável aparelho de notas e referências (pp. 307-401) e por um 'índice onomástico'.
O preâmbulo dá o primeiro enquadramento metodológico e documental do
problema de fundo, isto é, a fundamentação "de um ordenamento jurídico-político" (p. 14). Estão aqui implicadas, pelo menos até meados do século XIX
alemão, linhas de continuidade e de rotura, assim como "toda uma compreensão
da historicidade" (p. 21), designadamente com o interessante testemunho contrastado de Thomas Paine e de Edmund Burke.
O cap. I ("Multiplicidade de alusões") indica-nos que "os confrontos de Marx
com a 'escola histórica' no respeitante, por exemplo, a Friedrich Carl von Savigny
(ciência e filosofia do direito) e a Wilhelm Roscher (economia política) supõem
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ou podem supor ao mesmo tempo a refutação contundente, a análise matizada, a
ironia mordaz e o reconhecimento do "mérito informativo" dos trabalhos dos
mestres da escola (pp. 34-40).
No cap. I I ("Intentos de atrelar Marx à 'Escola Histórica'"), o autor contesta,
examinando-as, diversas tentativas de estabelecer algum "parentesco de Marx
com o pensamento reaccionário" (p. 45) e "mesmo um fundo de comunidade
entre Hegel e o marxismo, de um lado, e a Lebensphiiosophie (...) do outro"
(p. 45). E o caso, entre outros, do intento de Karl Mannheim. Mas aí se assinalam
c discutem, também, "duas linhas de orientação principais" sobre tal matéria:
segundo uma, "Marx recolheria da inspiração savignyniana sobretudo um gosto
pela investigação minuciosa e pelo rigor na facticidade da documentação";
segundo outra, acabaria "por estar presente em Marx" "o carácter 'orgânico' e
'popular' de que se reveste a compreensão romântico-savignyniana da história"
(p. 49).
Após úteis clarificações sobre Hegel, Marx e os românticos, o cap. I l l ("Marx
e Savigny") examina, não sem humor, "a vontade genealógica de surpreender
traços de parentela", assim como o "psicografar" Marx como "discípulo ingrato
de Savigny" (p. 64). Noutra linha de análise, o capítulo transita para a filosofia de
Hegel enquanto fonte de "inspiração fundamental do jovem Marx". Aí se lê: "De
Hegel, Marx conservará sempre (...) a sensibilidade à dialéctica do real e a preocupação de demanda, comunitária e prática, de uma racionalidade concreta,
'esclarecida'" (p. 77).
O cap. I V , "(Más) companhias", começa por regressar aos textos do jovem
Marx e aos contextos que permitem "situar o seu principal escrito de polémica
tematizada com a Historische Rechtssckule" (p. 101), isto é, "O Manifesto filosófico da escola histórica do direito", publicado na Gazeta Renana em Agosto de
1842 e amputado pela censura. Entre aliados e adversários, entre excertos de
antologia também - por exemplo, o passo de Ludwig Feuerbach contra Heinrich
Leo sobre o "legado espiritual de Hegel" (p. 108) - desdobra-se o belo comentário do autor sobre a crítica marxiana dos "filósofos positivos" (pp. 106 sqq.) c
sobre "o Schelling que a 'Escola Histórica' recupera" (pp. 111 sqq.).
A caracterização da escola com o recurso aos apropriados testemunhos de
Walter Wilhelm ou de Franz Wieacker marca o cap. V ("A Historische Rechtsschule no seu contexto"). Escreve este último sobre Savigny: "O seu protesto
contra as codificações de direito natural dirigia-se contra o racionalismo esclarecido: antes de tudo, contra o Code civil, pretenso filho da odiada e temida revolução" (p. 121). Porém, de entre úteis e seguras análises contextuais, de entre
"apreciações coevas", emergem as inconfundíveis farpas de fogo de Heinrich
Heine: "Guarda-te de gendarmes e polícias, da Escola Histórica toda"! (p. 128).
O cap. V I ("Sobre Savigny"), talvez entre os mais importantes do livro pela
densidade das matérias de que trata, sobre "o pano de fundo de um ajuste de
contas com o legado próximo da Revolução francesa cm matéria de arquitectura
jurídica em solo alemão" (p. 144), procede também a um vasto levantamento de
testemunhos e contributos para interpretação (estes últimos situados no século
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XX: Karl Mannheim, Albert Soboul, Hermann Klenner ou Domênico Losurdo),
sem excluir "mal-entendidos"" (pp. 184 sqq.), "ressurreição dos mortos" (p. 187)
ou a noção do "filosófico" segundo Savigny, onde prevalece, não a racionalidade,
mas "a operosidade de um intelecto classificador de positividades herdadas" (p. 195).
No Cap. V I I ("Críticos da 'Escola Histórica'"), ao periodizar a crítica exercida
sobre a escola, de "finais do século X V I I I " a "meados da década de quarenta do
século XIX" (pp. 199 sq.), prossegue o autor: "No centro dos debates (...) está
(...) o feixe complexo de questões que, da economia à politica, da religião à
cultura, das instituições à sociedade, acompanha o processo de transformações
em curso na Alemanha (...) até à procura e configuração de novas formas de
cunho finalmente burguês dominante" (p. 199). No eixo deste processo e do lado
da filosofia alemã clássica está, se não erro, a atenção notavelmente informada do
autor aos matizes do posicionamento de Hegel perante as Luzes (pp. 200 sq.) e,
mais desabridamente, perante o adversário que é declaradamente a escola histórica do direito (pp. 226 sqq.). Ombreando com Hegel, erguem-se também as
sedutoras figuras de dois juristas adversários da velha ordem senhorial: Paul
Anselm von Feuerbach (pai do filósofo) e Eduard Gans. A ambos é prestada justa
atenção no capítulo (respectivamente pp. 213 sqq. e 241 sqq.) e, ao que sei,
inédita atenção entre nós ao pensamento e à obra do primeiro.
O cap. V I I I , por último ("O Manifesto de Marx"), retoma o já referido texto
da Gazeta Renana, mas, claro está, estando supostas todas as clarificações
operadas ao longo do livro no mundo histórico onde se enquadra a actividade
juvenil de Marx. É ainda no terreno da política e do debate jurídico-institucional
que se examinam aqui as "duas linhas principais" da reflexão de Marx neste
período. Uma, é a do "enfrentamento com as correntes dominantes que se aprestavam a reformular a legislação prussiana segundo as orientações prevalecentes
da Historische Rechtsschule"; a outra, é a do "reequacionamento e revisitação
críticos do legado hegeliano, designadamente em matéria de ontologia e de filosofia do direito" (p. 272). No âmbito do que "documentadamente sabemos" dos
interesses, leituras e anotações de Marx no começo dos anos quarenta, surge aqui
uma interessante hipótese (surgimento característico, de resto, da frequentação
assídua das fontes), assente em excertos de Marx de escritos do liberal Benjamin
Constant. Diz Barata-Moura a propósito: "Sugiro que, pelo menos no plano
terminológico, talvez seja de surpreender na expressão marxista "poder material"
(materielle Gewalt) - requerido para o derrube de outros poderes igualmente
materiais (...) - um eco, uma ressonância de uma caracterização dos homens
como "o poder, a força material" (le pouvoir, la force materielle) que encontramos também no texto de Constant." (p. 275).
A leitura do capítulo e, mais geralmente, a da obra, indiciam outras, não
menores, recompensas heurísticas. É que "o programa marxiano de intervenção
publicística" (p. 304), e não somente no período considerado, nunca deixou de
ser terreno fértil para a pesquisa, a dilucidação c o debate informado. Ainda que
fértil também para outros usos. Mas: abusus non tollit usum, no dizer do adágio
antigo.
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Tendo de renunciar (com pena!) à expressão de outros ajuizamentos suscitados pelo presente livro, não deixo todavia de perguntar (sem espírito de entre-mangerie professomle - p. 231): que pensam, sabem ou investigam sobre a
escola histórica do direito a nossa ciência jurídica, a nossa filosofia do direito
para juristas?
Eduardo Chitas
ANTÓNIO MANUEL MARTINS, Lógica e Ontologia em Pedro da Fonseca, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian - Junta Nacional de Investigação Científica, 1994.
1. No conjunto da filosofia portuguesa, Pedro da Fonseca ocupa uma posição
singular. A par de Pedro Hispano, três séculos mais cedo, e do seu contemporâneo Francisco Sanches, Fonseca configura, com efeito, um dos raros momentos
cm que o pensamento português se encontra em real sintonia com o ambiente
cultural europeu e não só ombreia em importância com a filosofia aí produzida,
como chega mesmo a influenciá-la, alcançando em todo o caso uma divulgação e
uma relevância no quadro europeu que só com a daqueles pode ser comparada.
Como quer, na verdade, que se avalie o papel do aristotelismo e da revivescência da Escolástica nos séculos X V I e X V I I , nomeadamente no seu carácter
culturalmente "reaccionário" ou "avançado", o que é facto é que o pensamento e
a obra de Pedro da Fonseca reflectem, no seu tempo, uma conjunção de factores
que mais tarde raramente se repetirá entre nós: um real conhecimento e uma
efectiva assimilação e reflexão da tradição filosófica e da especulação coeva;
uma profunda convergência com a sua época, ainda que em óbvio registo contra¬
-reformista; uma efectiva influência nos círculos europeus, de que é testemunho a
reedição, em Colónia, dos Comentários à Metafísica de Aristóteles, três anos
apenas após a publicação, em Lião, do seu último volume, e, principalmente, as
mais de cinquenta edições da Isagoge Filosófica em toda a Europa; e também,
embora mais discutivelmeníe, a antecipação de algumas tendências de modernidade c/ou a subterrânea influência sobre os primeiros modernos, de que poderá
ser exemplo o próprio Descartes, mercê da sua educação num colégio pertencente à mesma Ordem em que Pedro da Fonseca filosoficamente pontificou.
Mais importante todavia, na mencionada perspectiva de uma singularização
do lugar ocupado por este filósofo, é o facto de, ao contrário do que acontece
com Pedro Hispano ou também com Francisco Sanches, bem como, em geral, do
que parece ser um destino histórico da filosofia cm Portugal, Pedro da Fonseca
não sc limitar a ser um autor cuja-reflexão individual se projecta isoladamente
sobre o pensamento europeu, senão que, por uma vez, essa reflexão emerge articuladamente (o que não significa decerto sem contradição nem ruptura) num
contexto determinado para a investigação e a especulação, a saber, a
Universidade.
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