Legenda: Com sua performance, os Doutores da Alegria contribuem para a humanização de ambientes hospitalares Humanização melhora ambiente e ajuda terapia Política do governo estimula iniciativas em estados e municípios para tornar unidades de saúde do SUS mais receptivas Hospital das Clínicas, São Paulo, quarta-feira, 10 horas da manhã. No rosto de cada criança internada, um misto de angústia e tristeza, agravado por um processo de recuperação que pode durar meses. Médicos e enfermeiros prescrevem remédios e avaliam o quadro clínico dos pacientes. Rotina normal de qualquer grande hospital, até que o silêncio dos longos corredores do centro é cortado por risos e uma viola de cocho. Os responsáveis são dois palhaços-atores, vestidos com jalecos coloridos, flores de plástico, rostos pintados e nariz vermelho. Começou o plantão dos "Doutores da Alegria". A trupe, formada por 35 pessoas, atua diariamente em dez hospitais do Rio de Janeiro, Recife e capital paulista. Há alguns anos, atitudes assim eram impensáveis dentro de um centro médico. Hoje, fazem parte da rotina de muitas unidades de saúde e contribuem para a melhora do humor e até do estado de saúde de pacientes. Além da inserção de arte, cultura e lazer nos hospitais, várias outras iniciativas ajudam a humanizar um ambiente. A Política Nacional de Humanização do Sistema Único de Saúde (HumanizaSUS), desenvolvida pelo Ministério da Saúde, pretende estimular a sociedade e os gestores a buscar alternativas que amenizem a passagem do paciente por um hospital. O escritor americano Mark Twain, em meados do século XIX, já havia teorizado sobre o bom humor na cura de doenças. O autor de livros como As Aventuras de Tom Sawyer e Huckleberry Finn imortalizou a frase: “O ser humano tem somente uma arma realmente eficaz contra a doença, e esta é sem dúvida o bom humor”. Para a coordenadora da Política Nacional de Humanização, Ângela Pistelli, o bem-estar passa pelo ambiente. Segundo ela, a compra de cadeiras confortáveis para acompanhantes e bancos para pacientes que aguardam atendimento são prioridade e exemplos de operacionalização da política criada para humanizar o SUS. Na opinião de Ângela Pistelli, para que os benefícios da humanização cheguem ao paciente, torna-se necessária uma ativa participação das pessoas que atuam no SUS. “Queremos um trabalho multiprofissional, que perpasse todos os níveis de complexidade da atenção à saúde e envolva todos os profissionais do serviço, desde o ascensorista até o diretor”, afirma. Conduta médica – A relevância do tema humanização levou o Ministério da Saúde a instituir o Prêmio David Capistrano, para incentivar políticas de qualificação e humanização. O prêmio surgiu em 2004, para mapear experiências positivas na saúde pública e divulgar o projeto de humanização no SUS. O governo entregou R$ 50 mil a projetos de 16 instituições, como reconhecimento do mérito do trabalho desenvolvido. O ministério também promove seminários pelo país para qualificação de profissionais do SUS. “Sem qualificação, não é possível humanizar”, afirma Angela Pistelli. Na opinião da pediatra Sandra Grise, professora titular do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), a humanização representa uma ferramenta vital para a recuperação do paciente. “A humanização é importante até para a conduta que o médico deve tomar quando decide propor um tratamento terapêutico. A companhia de familiares, por exemplo, diminui a ansiedade e a tristeza causada por uma internação”, constata. Sandra Grise ressalta o valor da humanização na recuperação do paciente, pelo papel vital que o estado psicológico exerce. “Qualquer tratamento só é completamente eficaz se os lados biológico e emocional se equilibrarem”, diz a médica. Para embasar sua afirmação, Sandra Grise cita experiências com estudos no campo da neurociência. “Essas pesquisas demonstraram que o emocional facilita o processo de recuperação. Foi provado que pessoas positivas e que mantinham esperança no tratamento, eram as que conseguiam reagir melhor à doença”, diz. De acordo com a psicóloga e coordenadora do Centro de Estudos dos Doutores da Alegria, Morgana Masetti, o profissional de saúde não pode ser alguém que apenas receite medicamentos ou diminua desconfortos físicos do paciente. Pela visão de Morgana, autora de dois livros sobre transformações na realidade hospitalar, não se deve encarar o tratamento e a recuperação de um paciente apenas pelo ponto de vista técnico. Para ela, é preciso enxergar a terapia dentro da complexidade da vida. Essa visão inclui a importância de um ambiente humanizado e com soluções alternativas. “Quando o profissional de saúde executa seu trabalho centrado na técnica como único alicerce da prática do seu dia-a-dia, o hospital vira doença e a identidade do médico fica restrita a prescrever remédios, minimizar a dor ou outros desconfortos físicos. Entretanto, se ele tem a coragem de se entregar à constatação de que a vida é maior do que quaisquer explicações plausíveis, que a saúde vai além da remissão de um sintoma, que, dentro do hospital, ele é mais que sua identidade profissional, então há espaço para o encontro, e a técnica pode ser um elemento dentro da complexidade da vida", escreve a autora Morgana Massetti no livro Boas Misturas (Editora Palas Athena – São Paulo). Mãe Canguru e PSF Rural O movimento da humanização nos hospitais brasileiros surgiu na década de 70. Nessa época, os berçários começaram a ceder lugar a leitos conjuntos, onde as mães e filhos convivem desde o nascimento. Essa iniciativa atendeu à luta da Sociedade Brasileira de Pediatria. A Universidade Federal do Maranhão (UFMA), ao incorporar o método Mãe Canguru ao seu cotidiano, teve essa experiência de humanização reconhecida, no ano passado, pelo Prêmio David Capistrano. O método permite, entre outras coisas, que as mães permaneçam nas Unidades de Terapia Intensiva Neonatais e que possam acompanhar a recuperação dos seus bebês prematuros. Nesse momento, as mães também têm acesso a noções sobre cuidados básicos com os recém-nascidos. Na cidade mineira de Sacramento, a Secretaria Municipal de Saúde levou o Programa Saúde da Família (PSF) à casa da população rural, sem condições de se locomover para a área urbana do município. Mais do que tratar uma doença, os profissionais do PSF se integram à comunidade e escutam seus anseios, problemas, angústias e alegrias, em longos dedos de prosa, com direito a cafezinho e pão de queijo. O PSF Rural de Sacramento foi mais uma ação reconhecida pelo David Capistrano. Outra boa iniciativa de humanização de ambientes de saúde são os projetos de leitura dentro das unidades hospitalares, o conhecido Biblioteca Viva. Enfermeiros, auxiliares e técnicos incorporaram a leitura como instrumento de tratamento para crianças internadas. O imaginário sai das páginas ilustradas de livros infantis e começa a ser utilizado como terapia. O projeto tem como meta transformar a internação hospitalar em algo menos inóspito e contribuir para recuperação da criança. O Instituto da Criança, do Hospital das Clínicas (SP), é uma das unidades de saúde que mantêm o programa. As sessões servem para aliviar efeitos “opressores” da internação. Palhaços-atores – E quando o assunto é humanizar com direito a jogo de cena, entram em ação os Doutores da Alegria. “Cantamos enquanto o médico busca a veia da criança para tirar sangue. É a música, a mágica, o malabarismo, a favor do tratamento”, assinala Wellington Nogueira, citando um dos arsenais de humanização utilizados com mais de 350 mil crianças e adolescentes visitados pelos Doutores da Alegria, nos 13 anos de existência da organização. Em outros países, esse tipo de atividade se repete. Na Alemanha existe o Die Klown Doktoren; na França, o Le Rire Medecin e, no Brasil, os Doutores da Alegria. A experiência brasileira integra uma brigada de ação na luta contra a frieza dos ambientes hospitalares. Os Doutores fazem do hospital um lugar mais aconchegante e, como gostam de dizer, “levam alegria e tranqüilidade para familiares e pacientes hospitalizados, durante as sessões de "besteirologia". O ator Wellington Nogueira assina a criação do grupo, formado no início dos anos 90. Segundo o palhaço que se veste de Dr. Zinho para diminuir a angústia de crianças hospitalizadas, a organização não-governamental encarrega-se de tratar da "veia cômica" dos pacientes, com “transplantes de narizes vermelhos e exames com estetoscópios que fazem bolhas de sabão”. Para o ator, que integrou a trupe americana do Clown Care Unit, precursora no treinamento de palhaços que visitam crianças internadas em hospitais, o Brasil vive em uma época marcada por alterações na dinâmica hospitalar. Ela é deslocada das questões do atendimento da doença para o atendimento de cidadãos, do foco tecnológico para o das relações humanas. “É uma questão de evolução. Hoje o que fazemos nos hospitais nada mais é do que buscar o equilíbrio entre o desenvolvimento tecnológico e o humano”, afirma.