DISCURSO E ÉTICA SOCIAL DO CORPO Marizabel Kowalski* Maria Beatriz Rocha Ferreira*1 Resumo: Este ensaio intitulado “Discurso e Ética Social do Corpo” revela um tema atual. Consta dos referenciais das conversas cotidianas femininas e, também, masculinas: o culto à beleza, boa forma, corpo magro e alto, malhado, sem gordura e fibro edema gelóide (celulite), ou seja, no julgamento entre o bom, o mau e o feio – a estética e a cultura corporal - estão em alta na sociedade. O discurso estende-se desde as pequenas cidades as metrópolis – ser “Top”, estar “Top”. Mas como chegar até aí? Este trabalho bibliográfico nos conduz a algumas relevâncias como, por exemplo: o que é ser gordo ou ser magro no imaginário social!. Ser esteticamente perfeito parece impossível – a mulher e o homem são extremamente insaciáveis - a forma física é uma falsa medida de saúde? Busca um corpo socialmente aceito e, classes de profissionais entram na batalha da compensação estética através de um setor poderosíssimo – a indústria da beleza. Na fabricação de corpos, velhas e novas receitas são trocadas. Academias de ginásticas, atualmente são utilizadas como auxiliares nos tratamentos e clínicas modernas de modelagem corporal e rejuvenescimento, tecnologicamente melhores equipadas e com resultados eficientes. Os profissionais da estética são cada vez mais solicitados e valorizados. Suas responsabilidades crescem e o comprometimento de transformar bruxas em fadas transforma-se em realidade. Será? Talvez não possam responder as questões principais tomadas como guias referenciais, entretanto, não custa afirmar que continuam os discursos sobre “estética corporal”, enfim, como não podemos negar que os profissionais encontram-se entre as fantasias e os fantasmas do cotidiano de uma sociedade que busca uma perfeita feição ou, como queiram, a “perfeição”. Palavras Chaves – estética, corpo e cultura. Abstract This essay “ Discourse and Social Ethical of the Body” revels an actual theme. Approach of the referential of converses quotidian of the women and, also, men. The culture at beauty, good form, body lean, stronger, without fatness and cellulite, or by, in the judgment enter the good, the bad and the ugly – the esthetic and the corporal culture – are in highs in the society. The discourses extend since as little cities as metropolis – to be “Top”, to stay “Top”. But how to arrive likewise here This research is bibliographic works, that us conduct to some relevancies as, by example: what is “ to be fat” in the social imaginary To have the esthetic perfect, appear impossible – the woman and the man are extremes insatiable – the physical form is a false measure of the health Search a body social and, class of professionals enter in the battle of the compensation esthetic by of the a sector powerless – the beauty industries. In the fabrication of the bodies, olds and news income (budget) are changes. Gymnastic Academies, actual are utilized as well as auxiliaries in the treatment and modern clinics of the modulation corporal and rejuvenate, best equipment technologic and with results effectives. The esthetics professional are those once more solicited and valorized. Them responsibilities crescents and the compromises of the transformer Witches in Fades, today is reality. To will be Perhaps, not can answers the principal questions take witch referential guide, however, not costs affirm that continuum the discourses about “corporal esthetics”, in fine, how not can to gainsay that the professionals encounter inter fantasies and the ghosts of the quotidian at society that search a perfect face or, how wanted, the “ perfection”. Key Words – esthetic, body and culture. 1 *Pesquisadora colaboradora do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação Física da Unicamp. 2 Discurso Estético do Corpo 1.1. Introdução: apontamentos metodológicos Este ensaio construído a partir da pré-pesquisa elaborado para projeto de pós-graduação “Discurso Estético do Corpo”2. Para esta primeira parte optamos metodologicamente pelo levantamento e análise literal de Lovisolo, e abrange assuntos de interesse subjetivo da autora, de maneira que possamos revelar parte dos discursos sobre o corpo, entretanto não chegando a um fechamento ainda convincente, mas abrimos discussão sobre o enfoque. Observamos que o contexto em que se desenvolve o discurso é aonde a “estética” é utilizada como estratégica no julgamento entre o bom, o mau e o feio, temos o discurso da magreza, ou seja, “a favor dos magros e contra os gordos. Tratamos da discussão no cotidiano popular: Se és gordo... és culpado! Qual a sentença na troca simbólica e afetação social que pode causar um gordo? A busca pela beleza e satisfação pessoal e a “forma física como a falsa medida da saúde”, os movimentos pela saúde em conformidade ou não com o desenvolvimento e o culto da atividade física regular e permanente. Destacamos a “indústria da beleza”, seus preceitos, preconceitos, recomendações e receitas. O profissional da estética, seu comprometimento com os clientes, uma profissão técnica, prazerosa e extremamente comprometedora na busca dos objetivos mais “caros” ao ser humano: “a beleza”. O que se oferece para o cliente, sua satisfação e os meios que as Clínicas possuem hoje em forma de tecnologias e recursos estéticos. O que e quanto custa ser “Bela”? Estética é uma fantasia ou fantasma? Na análise dos dados, temos como objetivo perceber as transfigurações em alguns domínios do corpo: político, empresarial, no cotidiano, consumo, turismo e serviços. Não há nenhum aspecto da vida que não esteja dominado pela imagem corporificada do corpo e, portanto não instaure ou não restaure a globalidade de que está inserido aqui: um padrão a ser seguido. Seria o espírito da casa ou a cultura da empresa, poderia ser busca do qualitativo na vida corrente, ou ainda, a preocupação com o próximo, pelo político, sem evidentemente falar da publicidade, no que concerne ao consumo. Em cada um desses casos, ultrapassando a materialidade bruta que o constitui, o corpo sofre uma importante modificação, da qual alguns; penso em particular no político; corre o risco de não refazer a unidade do corpo (corpo stricto sensu, produto industrializado, produto comercializado, comunidade local) e do espírito (qualitativo, sentido da beleza, desinteresse caritativo, prazer pelo sensível, acentuação do próximo e da vizinhança). A imagem realiza o jogo da tradição figurativa, que é enfatizar a dimensão hedonista, irônica e estética da existência. Parece-me que inclusive na cultura empresarial, está em voga a busca de um “qualitativo presentista”. Portanto, compreende-se melhor que o político, que repousa sobre a postergação do gozo, que está voltado essencialmente para o futuro não consiga integrar a perspectiva “imaginal”, ou antes, se o vírus da imagem corporal pode ser integrada (publicidade, cultura de empresa, design) na produção ou no consumo, pelo contrário corre o risco de destruir em sua totalidade, o corpo político pela divisão, pela indiferença ou pela ironia distanciadora, o que parece ser o caso nos dias de hoje. Para esta temática; tomamos de Lovisolo o seu discurso “Da ciência da gastronomia à estética”3, não no sentido de virar o feitiço contra o feiticeiro, mas de contribuir na construção de observações que possam esquentar a discussão de que nem sempre a obesidade é patologia 2 Projeto Final de Pesquisa Pós Doutorado no Departamento de Atividade Física Adaptada da Unicamp, sob a Tutoria da Prof. Dra. Maria Beatriz Rocha Ferreira, 2005. 3 Lovisolo, H. Estética, Esporte e Educação Física. Rio de Janeiro: Sprint, 1997. 3 e a magreza é sinônimo de saúde. As ciências biomédicas em defesa da “saúde” ocuparam o lugar deixado vazio pelos discursos religiosos, filosóficos e morais do mundo contemporâneo. Orientadora de uma variadíssima indústria do corpo, ainda em expansão no Brasil, cujos imperativos em nome da vida, da felicidade e da saúde conquistam o mercado atual. O cuidado de si volta-se para a produção da aparência, segundo a crença já muito difundida de que a qualidade do invólucro muscular, a textura da pele e a cor dos cabelos revelam o grau de sucesso de seus “proprietários”. Stéphane Malysse escreve em seu estudo sobre uma praia carioca que as pessoas parecem “cobertas por um sobre-corpo, como uma vestimenta muscular usada sob a pele fina e esticada...”. São corpos em permanente produtividade, que trabalham a forma física ao mesmo tempo em que exibem o resultado entre os passantes. São corposmensagem, que falam pelos sujeitos. O rapaz “sarado”, a loira “siliconada”, a “perua musculosa” ostentam seus corpos como se fossem aqueles cartazes que os “homenssanduíche” carregam nas ruas do centro da cidade: “Compra-se Ouro”. “Vendem-se Cartões Telefônicos”. “Belo espécime humanos em exposição” (Goldemberg, 2002.P.11-12)4 Para Lovisolo os desvios corporais de peso, em relação aos padrões considerados normais, e em especial a obesidade ou gordura, tornaram-se um inimigo combatido por uma forte aliança de interesses, abrangendo desde o Estado, as companhias seguradoras, a indústria, os profissionais da área da saúde e, de modo geral, as diversas organizações e profissionais participantes do que poderíamos denominar movimento pela saúde.(..). O valor da saúde, eixo central do movimento (entendido como elevação da esperança de vida ou longevidade, manter a forma, fitness e o aumento da qualidade de vida), expande-se pelo mundo, associado numa esportivização da cultura, particularmente, através dos estilos de vida apresentados como novos e mediados por novos hábitos, formas de pensar e sentir as relações com o corpo. (Lovisolo, 1997. p. 11). O fato é que a sociedade burguesa, desde o século XIX, considera o corpo como propriedade privada e responsabilidade de cada um. O corpo vestido e domado pela compostura daquela época, embalado pelo código das roupas foi o primeiro signo que o “selfmade man” em ascensão, sem antecedentes nobres, emitia a respeito de quem ele “era”. A aparência substitui com vantagens democráticas o “sangue”. O corpo bem-comportado de até poucas décadas atrás dizia: sou uma pessoa decente, confiável, honrada e meus negócios vão bem. O corpo malhado; sarado e siliconado do novo milênio diz: sou um corpo malhado, sarado, siliconado. O circuito se fecha sobre si mesmo. Parece a ética dos “cuidados de si” pesquisada por Michel Foucault, mas não é. O sentido da prática dos cuidados de si a que se dedicavam alguns cidadãos romanos na Antigüidade estava diretamente articulado ao papel desses homens na vida pública. Ser capaz de cuidar bem do corpo e da mente era condição primordial para cuidar bem dos assuntos da “polis”. No Brasil de hoje, em que o espaço público foi a um só tempo desmantelado e ocupado pela televisão, a produção dos corpos é a produção da visibilidade vazia, da imagem que tenta apagar a um só tempo o sujeito do desejo e o sujeito da ação política. A cultura do corpo não é a cultura da saúde nem mesmo cultura corporal, como quer parecer. É a produção de um sistema fechado, tóxico, claustrofóbico. Nesse caldo de cultura insalubre, desenvolvem-se os sintomas sociais da drogadição, incluindo o abuso de hormônios e anabolizantes, da violência e da depressão. Sinais claros de que a vida, fechada diante do espelho, está perigosamente oca. Lovisolo cita que; 4 Goldenberg, M.(org). Nu & Vestido. Rio de Janeiro: Record, 2002. 4 De praxe, a emergência de novos hábitos alimentares e de atividade corporal, que acompanham as argumentações desenvolvidas no movimento pela saúde, possuem fundamentos de tipo técnico englobados por valores estéticos e morais5. Os objetivos da longevidade ou de fitness, por exemplo, apenas fazem sentido em relação a valores, embora possam ser apresentados como naturais, os objetivos em pauta ancoram seus significados em valores e movimentos da cultura. No plano dos valores morais, além do imperativo de manter a saúde, conservar e prolongar a vida, os esforços de construção e de manutenção de novos hábitos pareceriam vincular-se ao autocontrole, quer dizer, ao valor da “mente” ou “consciência” ou “superego” em controlar os impulsos (pelos alimentos, estimulantes e inatividade) dos “corpos”6. Por conseguinte, o movimento pela saúde surge como moralizador das relações que os indivíduos mantêm com seus corpos. Uma certa falha moral tenderia a ser associada aos indivíduos que não cuidam de seus corpos, que perdem o controle de demandas fisiológicas ou psicológicas. Dizer autocontrole significa dizer autonomia em relação a demandas socialmente caracterizadas como vícios. A gordura, por exemplo, poderia estar associada à falta de temperança. Valor significativo que embora em termos de autocontrole e equilíbrio e autonomia do indivíduo, descrevem melhor os objetivos em ação no presente. Traduzida para a nossa linguagem, a gordura parece associar-se à falta de domínio sobre si mesmo, de autocontrole e de equilíbrio entre as entradas e saídas, consumo e gasto. Em outros termos, possuir hábitos considerados agressivos e violentos para si, no caso de reconhecer serem gerados pela inércia do corpo em interação com o social, figura como sendo uma conduta moralmente questionável Podemos pensar a cultura do corpo como uma cultura do narcisismo? Este conceito cabe muito bem nos segmentos das camadas médias obcecados por ilusões da perfeição física esmagados pela proliferação de imagens, por ideologias terapêuticas e pelo consumismo. Nesse segmento social, o corpo e a moda são elementos fundamentais no estilo de vida, onde a preocupação com a aparência é carregada de investimento pessoal. Mulheres e homens midiáticos anunciam na grande imprensa e nos programas de televisão as transformações que seus corpos sofreram nas mãos de cirurgiões plásticos, dermatologistas, personal trainers, nutricionistas e outros profissionais do rejuvenescimento e do embelezamento. Com os cosméticos, os exercícios de manutenção, os artifícios da elegância, não há mais desculpa para estar “fora de forma”, qualquer mulher e homem também, pode oferecer de si mesmo uma imagem atraente. Cada indivíduo é considerado responsável e culpado por sua juventude, beleza e saúde: só é feio quem quer e só envelhece quem não se cuida. Cada um precisa buscar em si as imperfeições e exigir que sejam corrigidas. O corpo torna-se, também, capital cercado de enormes investimentos de tempo e dinheiro. O corpo “em forma” se apresenta como um sucesso pessoal, ao qual mulheres e homens podem aspirar se realmente dedicarem a isso. 5 O argumento técnico especifica os meios racionais para atingirmos objetivos. Os argumentos técnicos podem ter uma base empírica ou científica. A correlação positiva, de um lado, gordura, fumo e inatividade corporal, com doenças cardiovasculares, do outro, possui uma base empírica. Não está provado que a presença de um dos dois elementos mencionados estejam associados significativamente com as doenças cardiovasculares. O argumento teria uma base científica se os mecanismos que subjazem à correlação estivessem claramente explicados. Os objetivos são, de praxe, traduções de valores morais ou estéticos. Há escolha valorativa entre desenvolver hábitos alimentares e de atividades corporais, vivenciadas como custosas, ou entregar-se aos prazeres da mês e da inatividade. A escolha apenas pode ancorar-se valorativamente (valor da saúde, do auto-controle, das formas corporais entre outros). De fato, quando realizamos uma escolha, habitualmente em contexto de incerteza, tendemos a aceitar e formular argumentos que a reforcem. (Lovisolo,1995) . 6 O termo “corpos” está aqui sendo usado de modo metafórico. De fato, o problema é que os “corpos” não pareceriam contar com mecanismos de auto-regulação para a ingestão de alimentos, o consumo de estimulantes e a entrega à inatividade. Assim, os “corpos” pareceriam poder entregar-se com facilidade a “consumos” que os destruiriam. Devemos levar em consideração que a formação de novos hábitos demanda altos custos no imediato, que apenas podem ser compensados pelas expectativas de futuros benefícios compensadores. (Lovisolo,1997). 5 “Não existem indivíduos gordos e feios, apenas indivíduos preguiçosos”, poderia ser o slogam do mercado do corpo. Há por certo, muitos críticos dos “valores” estéticos do corpo. Basicamente, acham imoral que poderosos esforços de alimentação, atividade corporal, ingestão de produtos químicos, uso de cosméticos, realização de cirurgias entre outros, sejam realizados pelos indivíduos, e especialmente pelas mulheres, para atingirem padrões corporais esteticamente valorizados. Tais esforços seriam imorais, pois os indivíduos abandonariam sua autonomia para aceitarem padrões externos, entregando-se à dominação de uma sociedade consumista e anti-ética. Entretanto não raro, esses mesmos críticos apóiam os apelos em favor da saúde, pois consideram que os esforços estetizantes, também significam uma violência, uma agressão contra a saúde do corpo dos indivíduos e seu efeito negativo extremo poderia ser o contrário uma magreza excessiva - a anorexia!!!(Lovisolo, p. 14 -15) Para este autor, no cotidiano, os argumentos morais, estéticos e técnicos aparecem entremeados de divergências e os indivíduos geram misturas, embora com ênfases circunstanciais, desses argumentos nos processos de construção de seus “eus” e de suas “imagens sociais”. Em seu ensaio, sugere as hipóteses de que: a) os argumentos técnicos não avançaram significativamente nos últimos anos; b) tampouco avançaram significativamente as recomendações básicas de controle da obesidade e c) o argumento estético, talvez, tenha preeminência história sobre o moral na estratégia de desenvolvimento do autocontrole. Em relação a este ponto Lovisolo afirma que a estética do corpo foi um poderoso ardil, particularmente sobre os jovens, sobretudo para abrir caminho dos argumentos morais do movimento pela saúde. O que se pode afirmar é que o corpo ocidental está em plena metamorfose. Não se trata mais de aceitá-lo tal como ele é, mas sim de corrigi-lo, transformá-lo e reconstruí-lo. O indivíduo busca em seu corpo uma verdade sobre si mesmo que a sociedade não consegue mais lhe proporcionar. Na falta de realizar-se em sua própria existência, este indivíduo, homem, mulher, ou quem tiver outra opção, procura realizar-se através de seu corpo. Ao mudá-lo, ele/ela buscam transformar a sua relação com o mundo, multiplicando os seus personagens sociais baseados em modelos que forjam a representação. A body art já pode ser vista nas ruas. A sociedade do espetáculo, cada vez mais poderosa, erige a aparência física em dever e responsabilidade de cada indivíduo. A profundeza do “eu” encarna-se à flor da pele, o corpo torna-se lugar da salvação, sendo uma forma de não passar despercebido, uma maneira de destacar-se na cena social. Quando o laço social se desfaz, quando o individualismo se expande, somente o olhar do outro pode nos proporcionar uma verdadeira existência social. A mise-en-scène da aparência se transforma assim num imperativo. Mas não podemos esquecer que o corpo tem alguém como recheio. Quem é você neste corpo? Que corpo você está usando ultimamente? Que corpo está representando você no mercado das trocas imaginárias? Que imagem você tem oferecido ao olhar alheio para garantir seu lugar no palco das visibilidades em que se transformou o espaço público no Brasil, na televisão, na sua cidade e na sua academia? Que recursos você utilizou e utiliza? O que as clínicas cirúrgicas e estéticas podem oferecer? O que a sociedade cobra? Qual o preço de seu corpo-imagem? “Fique atento, pois o corpo que você usa e ostenta vai dizer quem você é! Pode determinar oportunidades de trabalho. Pode significar a chance de uma rápida ascensão social”. (Anuncio Televisivo de uma Academia de Ginástica no Paraná,2004) Acima de tudo, o corpo que você veste, preparado cuidadosamente à custa de muita ginástica, aperfeiçoado por meio de modernas intervenções cirúrgicas e bioquímicas, o corpo 6 que resume praticamente tudo o que restou do seu ser é a primeira condição para que você seja feliz? Não porque ele seja, o corpo, a sede pulsante da vida biológica. Não porque possua uma vasta superfície sensível ao prazer do toque – a pele, esse invólucro tenso que protege o trabalho silencioso dos órgãos. Não pela alegria com que experimentamos os apetites, os impulsos, as excitações, a intensa e contínua troca que o corpo efetua com o mundo. O corpoimagem que você apresenta ao espelho da sociedade vai determinar sua felicidade não só por despertar o desejo ou o amor de alguém, mas por constituir o objeto privilegiado do seu amor próprio: a tão propalada auto-estima, a que se reduziram todas as questões subjetivas na cultura do narcisismo. Nesses termos, o corpo é ao mesmo tempo o principal objeto de investimento do amor narcísico e a imagem oferecida aos outros – promovida, nas últimas décadas, ao mais fiel indicador da verdade do sujeito, da qual depende a aceitação e a inclusão social. O corpo é um escravo que devemos submeter à rigorosa disciplina da indústria da forma (enganosamente chamada de indústria da saúde) e um senhor ao qual sacrificamos nosso tempo, nossos prazeres, nossos investimentos e o que sobra de nossas suadas economias. É interessante destacar o paradoxo que o culto a forma física gera na cultura do corpo. Quanto mais se impõe o ideal de autonomia individual, mais aumenta a exigência de conformidade aos modelos sociais. O corpo se emancipou de muitas de suas antigas prisões sexuais, procriadoras ou indumentárias, atualmente encontra-se submetido a coerções estéticas mais imperativas e geradoras de ansiedades do que antes. A obsessão com a magreza, a multiplicação dos regimes e das atividades de modelagem do corpo, a disseminação da lipoaspiração, dos implantes de próteses de silicone nos seios, de bootox para atenuar as marcas de expressão na face e da modelagem de nariz testemunham o poder normalizador dos modelos, um desejo maior de conformidade estética que se choca com o ideal individualista e sua exigência de singularização dos sujeitos. Desta maneira, entre o obeso e o magro coloca em cheque os meios para alcançar a forma física, ou seja, o que é saúde e o que é doença na estética corporal? 1. 2 – Obesidade e Magreza: Savarin e Lovisolo Lovisolo, em sua leitura crítica do curso de gastronomia elaborado por Brillard Savarin 7, ressalta que o autor pode deixar o leitor com dois tipos básicos de resistência, sobretudo se é um profissional formado em algum curso que objetiva a intervenção e percebe a existência de proximidades sociológicas entre sua formação mosaica e sua função social e as propostas da ciência da gastronomia8. A primeira resistência pode se manifestar de forma violenta, taxando a obra de Savarin de delírio, de construção imaginária que nada tem haver com o modo de construção de sua própria profissão. A segunda, mais civilizada, é deliciar-se com Savarin, porém qualificando sua proposta como um delírio. É difícil dialogar com a primeira 7 Jean Anthelme Brillat-Savarin (1755 – 1826) publicou a primeira edição de seu livro no ano anterior ao de sua morte. Encontramos nesta edição ementas como: o apetite, os alimentos, as especialidades, a teoria da fritura, a sede, as bebidas, a gourmandise, os gourmands, os testes gastronômicos, o prazer da mesa, os repousos da caça, a digestão, o descanso, o sono, os sonhos, a dieta e o repouso, a obesidade e seus tratamentos preservativos os curativos, a magreza, o jejum, o esgotamento, a morte, a história filosófica da cozinha, os donos dos restaurantes, a gourmandise clássica posta em ação e a mitologia gastronômica, receitas e reflexões espirituosas e acompanha por fim, um glossário gastronômico como fechamento. Uma análise mais detalhada sobre este tema foi realizada por Lovisolo op.cit. 8 Sobre a formação mosaico dos cursos universitários profissionalizantes e especialmente os cursos de Educação Física, Fisioterapia, Nutrição, Engenharia de Alimentos, Estética, Cosmetologia, etc, conferir Lovisolo (1995). 7 resistência, pois ela não quer enxergar, cheirar, ouvir nem possui uma fisiologia do gosto desenvolvida9. Savarin inicia falando da obesidade realista e humoristicamente. Afirma que se tivesse sido médico teria feito uma monografia sobre a obesidade e a partir dela teria construído seu império nesse canto da ciência, desfrutando dupla vantagem de ter como pacientes as pessoas que estão nas melhores condições de ser perseguido, diariamente, pela metade mais bonita do gênero humano, pois ser gorda, na justa medida, sem barriga nem mais nem menos, é para as mulheres o estudo de toda a vida. Temos de chofre a importância concedida à obesidade, no reverso, à estética feminina. As mulheres são o alvo privilegiado do discurso contra a obesidade. Savarin, em poucas linhas, estabelece o padrão estético para as mulheres de sua época e privilegia o gênero feminino na intervenção sobre a obesidade. Também antecipa uma área de negócios médicos (dietas, acompanhamento, cirurgias, produtos químicos, cosméticos, etc...) e paramédicos (academias e clínicas de emagrecimento, produtos industrializados e naturais, publicações e programas televisivos entre outros) em pleno desenvolvimento no nosso presente. Se Savarin delira, o faz com alta capacidade preditiva, pois ainda a mulher continua sendo privilegiada nos discursos sobre a obesidade e os negócios que dela se ocupam andam muito bem graças à estética e ao desejo de vida. O que podemos dizer é que tanto Savarin e Lovisolo estabelecem que - o corpo é a moda – mas colaboro com isto e afirmo – o que um dia foi o auge da inveja; Leonardo Da Vinci expressou em arte, hoje é doença da atualidade! As mudanças artificiais na forma, no tamanho e na superfície do corpo praticadas em todo mundo possuem função sócio-cultural. Isso se aplica igualmente às formas extremas de mutilação corporal cujas práticas apresentam noções culturalmente definidas como “beleza”, “religião” e “status”. Em resumo, os humanos, através dos tempos, sempre almejaram tamanhos e formas “ótimos” para o corpo. Diversas formas de automutilação ou alteração são utilizadas para enquadrarem-se em padrões culturalmente definidos. Entre estas formas, pode-se apontar o uso disseminado da ortodontia, cirurgia plástica, lipoaspiração, implantes (mamários, lipídeos, capilares e implante ósseo tibial na China), perfurações nas orelhas e outras regiões, dietas e regimes de musculação, uso de dentes, unhas e cílios postiços, tratamentos de pele - facial e corporal auxiliados por saunas, vaporizações, limpezas eletrolíticas, hidratação, bronzeamento, clareamento, tinturas, cortes e alongamentos de cabelos, fórmulas químicas mirabolantes em creme, gel, comprimidos, líquidos, pastas e lamas, etc. e etc... . Temos também, como exemplo, a difundida ideologia do body building – própria da chamada “cultura da malhação” – que se fundamenta na concepção de beleza da forma física como produto de um trabalho do indivíduo sobre seu corpo, assim como outros movimentos importados dos EUA, que vêm ganhando cada vez mais adeptos em alguns segmentos da sociedade, parecem se basear nesse tipo de apropriação – a body art e a body modification, que utilizam técnicas que vão da tatuagem, passando pelos piercing e podendo chegar a outras mais extremas como marcas a ferro quente (brandings), talhos com navalha e gravações com bisturi incandescente. (Helmann. P.25, 2003)10. Seus praticantes “trabalham” o corpo como suporte para a arte e transformação, muitos deles com um projeto bem definido pretendendo demonstrar o quanto podem ser humanos, enfrentando a sociedade atual, mais que um ato de loucura ou masoquismo, mais que demasiadamente exóticas, que para Bernuzzi Sant‟Anna o corpo é: 9 Ver também a Onfray, Michel. A Razão Gulosa. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. Helmann. Cultura, Saúde & Doença. Porto Alegre.RS. Atmed, 2003. 10 8 Território tanto forças que não desassossego e subjetividade e 1995)11. biológico quanto simbólico, processador de vitalidades infindáveis, campo de cessa de inquietar e confrontar, o corpo talvez seja o mais belo traço de de prazeres, o corpo de um indivíduo pode revelar diversos traços de sua de sua fisiologia, ao mesmo tempo escondê-los. (Bernuzzi Sant´Anna, P.03, O corpo como revelador de sentidos, emoção, paixão, raiva, dor, ódio, prazer – de segredos, traços de loucura, violência – é finito transtornado pelas transformações. Reveladores são os gestos e sua voz encerra-se em três dimensões trágicas: o medo da doença, o medo das degenerações e por fim, o medo da desumanização das aparências. No primeiro plano citamos o medo da doença e o cuidado com o corpo exalta a saúde como fim e, o meio era a medicina. Relativa hipótese que temos é a curativa com tendências científicas, naturalistas, de cunho religioso (moralista) e por fim as cosmológicas que englobam regiões, climas e estações do ano. Entretanto, as fronteiras da imagem corporal de um indivíduo não são estáticas – elas podem ser alteradas pelo estado emocional, pela doença ou a incapacidade, a cirurgia (amputações, mastectomias, plásticas para tirar, reduzir e/ou salientar regiões corpóreas e transplantes, etc) e os tratamentos terapêuticos de prevenção e de cura (radioterapias, fertilizações in vitro) e em estados fisiológicos como gravidez, obesidade e perda de peso. Secundariamente as degenerações podem ser pela idade, desequilíbrios psíquicos, emocionais e sexuais, econômicos, sociais e condições de trabalho versus qualidade de vida, conseqüências diretas para o prolongamento da vida. As fronteiras também variam com a idade onde a consciência crescente sobre o corpo está ligada a necessidade de o indivíduo desenvolver uma série de peles/ corpos simbólicos característicos de passagens culturais ou grupos sociais e suas configurações. No terceiro plano as transformações corporais no segmento social, suas diferenças, cores, formas e a desumanização das aparências justamente por sua capacidade de alterar as relações das diferenças estéticas na imagem, com objetivo de fazer convergir à reprodução em massa e a reprodução das massas em um único padrão de corpos. Como citado por Fernandez Vaz “(...) a estetização política do corpo”. (2001) 12. Nas sociedades tradicionais, o status do indivíduo está fisicamente inscrito sobre a superfície de seu corpo: tatuagens, escarificações, circuncisão, adornos como piercing de orelhas, lábios e outras partes do corpo são formas permanentes e visíveis da pele cultural. Devido a mais nova moral, a da “boa forma”, a exposição do corpo em nossos dias, não exige dos indivíduos apenas o controle de suas pulsões, mas também o autocontrole de sua aparência física. Não há como escapar da teoria Elisiana13 - o decoro, que antes parecia se limitar à não exposição do corpo nu, se concentra agora na observância das regras de sua exposição. Pode-se dizer que as regras subjacentes à atual exposição dos corpos são de ordem fundamentalmente estética. Para atingir a forma ideal e expor o corpo sem constrangimentos, é necessário investir na força de vontade e na autodisciplina, alertam as revistas femininas e masculinas14, além de todas aquelas dedicadas à boa forma existentes no mercado. O autocontrole da aparência física é cada vez mais estimulado. Promete-se, entre outras benesses, um abdômen cheio de gomos salientes ou nádegas duras e livres de celulites caso o indivíduo se dedique a tal propósito e receba todas as informações fornecidas como um conjunto de obrigações – “disciplina no comer e no dormir, o que ajuda a constituir boas 11 Sant´Anna, D.B. Políticas do Corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 1995. Fernandez Vaz, A. Memória e Progresso. In: Corpo e História. Campinas, SP: Autores Associados, 2001. 13 Norbert Elias é eixo articulador e pano de fundo central para as reflexões de Lovisolo e da autora neste ensaio. 14 Playboy (2001)/ Jornal o Globo – Toda Nudez será Complicada (02/07/2000)/ Cláudia – Ficar sem roupa que delícia (Maio de 2001)? 12 9 relações emocionais e físicas, só assim você poderá fazer seus contatos imediatos com o mundo em grande forma”. (2003)15 Significativas são as causas que Savarin estabelece para a obesidade. Quase todos os homens nascem com certas predisposições, cujas características são refletidas pela fisionomia. Assim, Savarin pode antecipar que a jovem charmosa e cheinha deverá no futuro lutar contra a gordura. É verdade, então, diz o autor, que há pessoas de certa forma predestinadas à obesidade e nas quais o resto sendo igual; as potências digestivas elaboram uma quantidade maior de gordura. Antes do desenvolvimento da genética, e em função apenas da observação, Savarin estabelece um axioma, hoje, bastante aceito: a predisposição genética à obesidade mediada por uma fisiologia de grande capacidade de acumulação. Nos indivíduos que têm o estômago ativo, o excesso de nutrição, Savarin parece ter observado que pessoas que comem o mesmo podem ter respostas diferentes, sendo um obeso e outro não. Comer e beber demais é a última causa que enuncia. Tudo é digerido, afirma, e o desnecessário à recuperação do corpo se fixa e se torna gordura. Ou seja, a teoria da obesidade como produto da superioridade da ingestão sobre o gasto, também já estava em Savarin. Num mundo civilizado, com grande afluência de bens, o que poderia ser uma vantagem adaptativa para um contexto de escassez, a capacidade de assimilação, torna-se um castigo, uma tortura, um mal, uma doença que legiões de médicos e não médicos prontificam-se a tratar. Em segundo lugar, Savarin, aponta substâncias específicas como causa da obesidade. As farinhas e féculas, que o homem fez base de sua alimentação, constituem a principal causa alimentar da obesidade. Um terceiro fator de obesidade reside no excesso de sono e na falta de exercício. Durante o sono se perdem poucas calorias, diríamos hoje, e o mesmo efeito provoca a falta de exercício. Em quarto lugar, Savarin aponta o comer e beber demais como causa da obesidade. Considera um privilégio da espécie humana o poder comer sem ter fome e beber sem ter sede, fruto da reflexão sobre o prazer da mesa e desejo de prolongá-lo. Os humanos, em todas as partes, quando a ocasião permite, comem e bebem demais e isto iguala selvagens e civilizados. Os últimos multiplicaram a afluência de bens possibilitando que o ocasional se tornasse constante. Assim, a obesidade é também um mal da civilização, pois jamais ocorre trabalhar para comer e que comem para viver. Tudo indica o observador profundo, o sistematizador conseqüente das experiências. Sem possuir uma explicação científica sobre os mecanismos, a partir somente da observação, estabelecem-se, portanto, princípios básicos, ainda hoje vigentes, no diagnóstico e no campo das dietas de emagrecimento. Savarin observa que a intemperança atraiu olhares dos observadores. Apesar de que os filósofos elogiaram a temperança, os príncipes fizeram leis suntuárias, a religião pregou a moral aos gourmands, nem um bocado foi comido a menos e a arte de comer em excesso floresce cada dia mais. Se a obesidade é um mal, como combatê-lo, como estabelecer a temperança? Savarin estabeleceu lineamentos de uma estratégia que chega a nossos dias: a estética. Em “A Estética como Estratégia” pergunta a Lovisolo e Savarin - a obesidade é um inconveniente físico O cuidado de si mesmo será, quiçá, mais influente que a moral, mais persuasiva que os sermões, mais possantes que as leis, e acreditamos que as mulheres estão dispostas a qualquer coisa Lovisolo entende por obesidade “um estado de congestão gordurosa no qual, mesmo que o indivíduo não esteja doente, os membros aumentam pouco a pouco de volume e perdem sua forma e sua harmonia natural. Há obesidades e obesidades, daquela que se limita à barriga nos homens, mas nas mulheres, como elas geralmente têm a fibra mais mole, quando a obesidade as ataca, não perdoa nada”. Este autor ainda cita que, 15 “Boa Forma” Janeiro de 2003. 10 Savarin, confessa que durante trinta anos lutou contra esse tipo de obesidade e que a luta é longa e demanda muita coragem. Não considera a obesidade inconveniente, na qual nos colocamos quase sempre por descuido nosso. Observemos que, apesar de detectar causas orgânicas, Savarin atribui ao indivíduo o controle da gordura (Lovisolo, 28)16 Acreditamos que há uma relação de duas vias entre o imaginário físico e social, um influenciando o outro. A sociedade não apenas molda e controla os corpos no seu âmbito, mas também o corpo fornece uma coleção de símbolos que utilizamos para entender a sua organização em si. Ressaltamos que essa relação estreita entre o imaginário corporal e social significa tipos variáveis de valores os quais produzem imagens diferentes de corpos. Na prática, a imagem corporal derivada da sociedade não é externa ao corpo individual ou separada dele, nem de sua realidade física do corpo e da cultura. Em grande parte das pesquisas dos autores consultados, os indivíduos incorporam a cultura em que vivem: as sensações, percepções, paixões, sentimentos e outras experiências corporais são culturalmente padronizadas. Da mesma forma, são padronizadas as consciências de outros corpos dentro desta sociedade e os modos como essa consciência relaciona-se com eles. Assim, os modos culturalmente elaborados de dar atenção ao próprio corpo e de lidar com ele em ambientes que incluem a presença corporal de outros, de modo geral, o corpo é visto como cultura – uma expressão de seus temas básicos – ou melhor – uma compreensão de qualquer corpo humano nos dá uma compreensão da cultura nele materializada. Citamos como exemplo, Levi-Strauss “o objetivo das tatuagens nas sociedades tradicionais não são apenas imprimir um desenho sobre a carne, mas estampar na mente todas as tradições e a filosofia do grupo” (2001, p. 29)17. O que observamos é que na sociedade ocidental, em contraste, as tatuagens são voluntárias e, em anos recentes, têm-se tornado cada vez mais comuns, expressando o desejo de uma identidade fixa em meio a uma era imprevisível de constantes fluxos, não se esquecendo dos conceitos estéticos. Neste contexto, pergunta-se – a estética por que seria importante? E a beleza na verdade é ilusão? Seria ela refúgio ou fuga para o homem racionalizado e maquínico atual? Portanto, a redescoberta da estética pode ser motivada pela perda do humano no homem, ou seja, nesta demolição, o homem perdeu a razão e tornou-se conceito abstrato universal da imagem “corpo”: fantasia ou fantasma? O indivíduo, afirma Savarin, não pode descuidar-se e deve cotidianamente lutar contra os fatores que pode controlar: a alimentação, a atividade corporal e o sono ou tempo de descanso. Assim, é da responsabilidade do indivíduo a luta diária contra a obesidade. Em outras palavras, o obeso é o principal culpado de sua obesidade, pois come muito mal em relação a sua fisiologia e realiza pouca atividade corporal em relação à que deveria cumprir para não ser obeso. Devemos reconhecer que a estratégia de combate à obesidade pouco alterou, apenas modificaram-se as substâncias, os alimentos, os pratos que devem ou não ser comidos e o tipo de atividade corporal. Embora, hoje, nenhum médico recomende praticar equitação, a maioria, como Savarin, continua indicando o caminhar como atividade corporal central no controle da obesidade. A obesidade foi e ainda é percebida como resultado da falta de autocontrole18. Mesmo considerando que a obesidade predispõe a algumas doenças, por exemplo, apoplexia, hidropisia, úlceras das pernas, etc., e torna outras mais difíceis de sarar, Savarin não argumenta contra a obesidade a partir delas. O principal inconveniente, nos diz, é o de 16 Lovisolo, H. Op.cit. In: Soares, Op.Cit. 18 A conceituação do controle e do autocontrole constitui um dos eixos articuladores da elaboração de Norbert Elias sobre o processo civilizador. Sua obra é um pano de fundo central para nossas reflexões. 17 11 prejudicar a força e a beleza. Prejudica a força porque aumenta o peso da massa que deve ser movida sem aumentar a potência motriz, além de dificultar a respiração. Prejudica a beleza porque destrói a harmonia das proporções estabelecidas inicialmente, pois cada parte engorda de forma diferente. A obesidade acarreta o desgosto pelas atividades como a dança, o passeio, a equitação, enfim, pelas ocupações e divertimentos que exigem um pouco mais de agilidade ou de habilidade. (Lovisolo, 1997). A relação entre obesidade e saúde não ocupa um lugar privilegiado em Savarin. De fato, trata de convencer a partir do efeito negativo sobre a força e, portanto, sobre as atividades que demandam agilidade ou habilidade. As atividades que enumera (dança, passeio e equitação) são sociais e estéticas e formam parte, na sua época, tanto da sociabilidade quanto do espetáculo culto baseado em atividades corporais. Na dança e na equitação torna-se fácil entender ser beleza e força quase indistinguíveis. O efeito estético resulta de sua combinação. Para Lovisolo, o diagnóstico da obesidade não se alterou significativamente desde os tempos de Savarin, tampouco modificou significativamente o conjunto de recomendações centrais para combatê-la. Ainda hoje, considera-se ser a obesidade, sobretudo, responsabilidade moral do obeso e exige uma luta diária para seu controle, baseada numa tremenda capacidade de autocontrole dos hábitos alimentares e da atividade corporal. A estratégia, elaborada por Savarin, para nos convencer dos efeitos negativos da obesidade, é basicamente estética e vincula-se também ao prazer dos sentidos nos jogos de beleza e força. Talvez seja, sobretudo entre os mais jovens, a estratégia estética o vetor principal dos esforços no controle da obesidade, da flacidez, enfim, de corpos que perdem as formas e as forças, a agilidade e as habilidades que demandam o manter a forma e, aqui, também entram os mais velhos. Por outro lado, a estratégia continua tendo como alvo central as mulheres. A perda da beleza de suas formas parece continuar sendo mais significativa que a perda correlata nas formas dos homens. Duas questões se abrem para este autor - a primeira interrogaria sobre os fundamentos sócio-culturais que, em relação ao campo dos desejos, das mentalidades, dos imaginários, permitiram que uma estratégia, formulada com tão poucos elementos, conservese viva, até hoje, quase construindo a tradição do combate à obesidade. A Segunda deveria interrogar-se a respeito da durabilidade da obesidade como problema social, apesar de seu combate. Ambas questões, por certo, estão estreitamente relacionadas. 1.3. Questão de Peso: o discurso social da magreza Em seu livro sobre o martírio de um obeso, o escritor Henri Béraud apresenta os dilemas de um homem “vasto” e apaixonado, porém desconfiado de que o suspiro amoroso estava “proibido ao hipotálamo”19. Numa sociedade que, desde pelo menos a década de 1920, começou a nutrir uma franca aversão pelos gordos, a paixão tende a se transformar num bem exclusivo daqueles considerados esbeltos. Apaixonado e gordo, o personagem criado por Béraud é abundante em suas lembranças de tempos menos duros para com os corpos pesados. Durante o Reinado de Luís XIV, a palavra esbelto nem existia. Mesmo em tempos mais recentes, como em 1900, os corpos redondos ainda exibiam o charme de seu peso com orgulho: “O apetitoso Eduardo VII dava o tom”. Gordura era formosura. Ainda não havia se tornado sinônimo de doença ou patologia e nem ofuscava o charme de milhares de homens e mulheres dotados de ventres proeminentes, testemunhos de um certo prestígio social. Perspectiva que, sem negligenciar os condicionamentos sociais, ajuda a refletir sobre o atual culto ao corpo na cultura brasileira, uma vez que os significados atribuídos pelos 19 Henry Béraud. Le martyre de lóbése. Imprimerie Nationale de Monaco. Paris: Albin Michel, 1922. 12 indivíduos à aparência e à forma física, no processo de revelação de suas identidades parecem inflacionados, especialmente entre as camadas mais sofisticadas dos grandes centros urbanos, tomam contam numa máxima contundente. No início do século XXI, Del Priori seguramente dita a ordem “somos todas obrigadas a nos colocar a serviço de nossos próprios corpos. Isto é, sem dúvida, uma outra forma de subordinação. Subordinação, diga-se, pior do que a que sofria antes, pois diferentemente do passado, quando quem mandava era o marido, hoje o algoz não tem rosto. É a mídia. O bombardeio de imagens na televisão”. (2000. P. 15). O que queremos dizer é que em um contexto sociológico e histórico particularmente instáveis, nos quais os meios tradicionais de produção de identidade – a família, a religião, a política, o trabalho, entre outros – se encontram enfraquecidos, é possível imaginar que muitos indivíduos ou grupos estejam se apropriando do corpo como um meio de expressão ou representação subjetiva – do eu! Norbert Elias fornece uma pista para pensar a paradoxal instauração da “moral estética” num momento em que tudo leva a crer que a liberdade corporal conquistada, especialmente, pelas mulheres não tem precedente. Para defender a tese de que, no curso do processo de civilização dos costumes, os momentos de aparente relaxamento moral ocorrem dentro de contextos em que um alto grau de controle é esperado, dentro de um padrão „civilizado” particular de comportamento – Elias utiliza como exemplo o uso dos trajes de banho. De acordo com este autor, os corpos mais expostos exigiram por parte de homens e mulheres um maior autocontrole, no que diz respeito às pulsões, do que quando o decoro os mantinha escondidos (1990 Ver p.). Esta linha de reflexão, enfocado na aparente liberação dos corpos, sugerida por sua atual onipresença na publicidade, na mídia e nas interações cotidianas, tem por trás um “processo civilizador” que se empreende e se legitima por meio da estetização dos corpos. Foram inúmeras as sociedades que acolheram com alegria a presença dos gordos e desconfiaram da magreza como se esta expressasse um déficit intolerável para com o mundo. Magreza lembrava doença e o peso do corpo não aprecia um pesar. Entretanto, no decorrer deste século, os gordos precisaram fazer um esforço para emagrecer que lhes pareceu bem mais pesado do que seu próprio peso. Ou então foram chamados a dotar sua gordura de alguma utilidade pública, transformando-a, por exemplo, em capacidade para o trabalho duro, ou em travesseiro acolhedor das lágrimas alheias (encontramos no livro de Béraud a imagem dos “bons gordos”, que servem de conselheiros, confidentes, cupidos ou como grandes humoristas). Como se os gordos precisassem compensar o peso do próprio corpo, sendo fiéis produtores de alegria e de consolo. Outros, ainda, foram encarregados de aquecer com ironia a memória hoje esquecida das virtudes que muitos corpos pesados possuem. O personagem do livro mencionado não deixa de ser irônico ao indagar: “Você já ouviu falar que a prudência é a virtude cardinal do elefante?” Mas, em sociedades que trocaram o valor da prudência por aquele do risco, os elefantes parecem figuras de outro tempo. Aliás, entende-se por elefante branco uma obra destoante, não apenas porque o branco não é a cor do animal pesado e grande. Em sociedades que valorizam o risco e a leveza, desprestigiando a prudência e o peso, a presença de elefantes de qualquer tonalidade (assim como os pesados e abundantes seres de qualquer raça) não é prevista nem desejada. Muitas vezes, os espaços citadinos e seus equipamentos são os primeiros a excluir a presença dos seres pesados e grandes: em escolas, cinemas, teatros, aviões e roletas de transportes coletivos as cadeiras e poltronas costumam ser mais confortáveis aos magros e pequenos. Há maçanetas que não acolhem mãos cheias, assim como há portas que muito gordos não conseguem ultrapassar. Quando além de gordo se é pobre, a 13 dificuldade ganha peso. Uma empregada doméstica gorda precisa de muita inventividade e, sobretudo, paciência, para utilizar os minúsculos compartimentos destinados aos serviçais naqueles “puxados”, habitualmente chamados de área de serviço, dentro dos modernos apartamentos brasileiros. Além do elemento humano, a aversão ao pesado se transforma facilmente em intolerância a vários seres, inclusive às árvores frondosas, por vezes consideradas obstáculos às ruas tomadas por carros lépidos e cada vez mais aerodinâmicos. Em sociedades nas quais o espaço ainda não foi totalmente transformado em mercadoria, ocupá-lo com um pouco mais de corpo não é interpretado como uma invasão. Além disso, em sociedades para quem o tempo não é somente dinheiro, o gordo não representa perda de velocidade e, portanto, de riqueza e poder. E, ainda, em sociedades que desconhecem a paixão pela democracia, o gordo não é visto como um indivíduo que coma da parte dos alimentos que lhe é de direito. Por vezes, a intolerância aos gordos é permeada pela desconfiança de que eles são proprietários exclusivos de majestosas digestões, como se estas fossem um luxo perverso, sintoma de uma desigualdade social por eles planejada. Ou ainda: os gordos evocam uma imobilidade angustiante para os herdeiros da raça homo lipidicus, homo proteicus ou homo americanus, intolerantes em relação aos vínculos estáveis. Vivemos em uma cultura do corpo. As academias de musculação; as clínicas estéticas, o culto à praia, as cirurgias plásticas e enxertos de silicone, o tira e põe de lipoaspirações, o consumo de hormônios e anabolizantes, o cultivo ao bronzeado, a própria moda é o corpo. O conjunto nos parece monstruoso. Para milhares indivíduos incentivados pela publicidade e pela indústria cultural, o sentido da vida reduziu-se à produção de um corpo. A possibilidade de “inventar” um corpo ideal, com a ajuda de técnicos e químicos do ramo, confunde-se com a construção de um destino, de um nome, de uma obra. “hoje eu sei que posso traçar meu próprio destino”, declara um jovem freqüentador de academias de musculação, associando o aumento de seu volume muscular à conquista de respeito por si mesmo. Mas não sejamos tão generosos com aqueles considerados magros! Suas agruras também causam indignação. Gordos e magros não são vistos de maneira unívoca. Antigas aversões à magreza convivem sem transtorno com a intolerância à gordura. Especialmente quando o magro é interpretado como um “saco sem fundo”, que come de tudo vorazmente. Como se o magro fosse mesquinho porque não mostra em seu corpo os resultados de seu grande apetite. come e não engorda: o cúmulo da avidez. Onde vai parar tudo o que ingere? Eis a indagação que lhe é feita com freqüência, não sem ponta de inveja, outra de admiração e outra de desconfiança, afinal, visto desse modo, o magro também contraria o gosto da repartição democrática dos alimentos. De onde emergem as associações entre magreza e avareza, magreza e maldade. E há quem diga: um colo magro não é um colo, o abraço de um magro não aquece nem conforta. Compensar a magreza, tal como no caso da gordura, exige trabalho. Este trabalho pode ser braçal ou intelectual, mas evocará sempre um certo transtorno emocional, um excesso de combate. O jovem Philippe Soupault, magro e pálido, seco como um prego, não queria aparecer de corpo e alma. Coincidentemente, os fantasmas apareceriam em seus poemas e romances. Fantasmas não têm peso. Apesar das agruras dos magros, ele não contradiz o fascínio atual pela velocidade e pela transparência. Em algumas culturas pouco dadas à apreciação da gordura, a magreza torna-se solidária ao antigo imaginário da limpeza, constituído pelo fascínio diante da transparência e o repúdio diante da acumulação. Nelas, o corpo magro evoca uma economia de tempo para quem o aprecia: olha-se mais rápido um magro do que um gordo, diria um desses padres ou cientistas fascinados por higiene. E, continuariam a dizer, contemplar um gordo exige tempo maior de quem contempla, sem contar o risco de se perder na gordura, de patinar entre uma 14 curva e outra. Para eles, a gordura liga-se ao turvo, ao esforço em percorrer grandes distâncias e, ainda, a um constrangedor silêncio. Os corpos grandes lhes sugerem o abafamento de sons, a paralisia do olhar, o estancamento da agitação infantil. A ausência da gordura, ao contrário, lhes é eloqüente e promete movimento. Mesmo quietos, os corpos magros lembram o estalar de membros pontudos. Como se fossem ásperos, sugerindo gritos mais do que lamentos, agitação de nervos no lugar de sua descrição. Como se a magreza fosse solidária aos extremos do gelo e do fogo. Certas partes dos corpos magros lembram quinas de móveis, bicos de aves, galhos de plantas. Diferentemente dos gordos, os magros parecem talhados com grande rigor, sem hesitação, destituindo qualquer possibilidade de ser indeciso e opaco. Para aqueles que assim pensam, a única maneira de despertar um verdadeiro interesse pelos gordos é lhes repetir aquilo que o personagem gordo de Béraud ironicamente disse: “Os obesos escapam dos mistérios da morte, eles são como os edredons dos navios que, depois dos naufrágios, não são atingidos pela ação das ondas e se salvam, pois flutuam sobre o mar”. Nossa época olha atravessado para o gordo. E, no entanto, certos gordos continuam a passar por “bons gordos”. Como funciona o imaginário social da gordura e da obesidade? Jacques Chirac declarou um dia que, dentro de sua carreira política, seu físico “seco” havia sido uma desvantagem. Os eleitores, segundo ele, preferem políticos “mais cheios de corpo”. Essa afirmação é em parte corroborada pelos dados de várias pesquisas, em vários países elaboradas por Claude Fischler20, que indicam que as pessoas, com o físico um pouco mais arredondado, são percebidas como de convivência mais amável e mais abertas à comunicação e à empatia do que as magras. E ela parece também confirmada pela popularidade de um certo papa gordo, bem superior àquela do papa magro que o precedera. Os gordos parecem, pois gozar de um preconceito favorável junto a uma significativa parcela da população. Entretanto, geralmente se está de acordo quando se diz que uma das características de nossa época é sua lipofobia, sua obsessão pela magreza, sua rejeição quase maníaca à obesidade: “a sociedade, dizia o nutricionista Jean Trèmoliéres, cria os obesos e não os tolera”. Nos Estados Unidos, um grupo de defesa dos gordos constitui-se há alguns anos. Sua presidente declarou à imprensa que, em seu país: “é mais duro ser gordo do que negro”. As discriminações são reais, segundo todas as aparências, e não somente nos Estados Unidos: em 1984, um eletricista de Rennes, na França, foi despedido porque seu peso (123 Kg) tornava-o, de acordo com o seu empregador, “inapto para o trabalho”. O caso, ao que parece, não é excepcional21. Como explicar tal contradição entre a simpatia aparentemente evocada pelos mais cheios de corpo e a recusa quase fóbica que parece se manifestar, hoje particularmente, contra a gordura? O que é verdadeiro? Amamos os gordos, os odiamos ou suportamo-los? Somos lipófilos ou lipófobos? ... Nem um nem outro e os três ao mesmo tempo: de fato nós 20 Sant´Anna, Denise B. de. Políticas do Corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 1995. Muitas pesquisas americanas, realizadas desde os anos 60, trataram da maneira como as crianças obesas eram espontaneamente percebidas por seus pares ou pelos adultos. Numa delas, por exemplo, mostrou-se a meninos de seis a dez anos silhuetas de crianças magras ou obesas. As silhuetas obesas atraíram uniformemente apreciações pejorativas (“trapaceiro”, “preguiçoso”, “sujo”, “mau”, “feio”, “besta” , etc). Já as silhuetas esguias eram uniformemente julgadas de forma positiva Le Monde. 04 de Outubro de 1984. Na maior parte dos países desenvolvidos, uma grande proporção da população sonha em ser magra, mas vive gorda e aparentemente sofre essa contradição. Na França, em 1979, uma pesquisa indicava que 24% dos homens e 40% das mulheres consideravam-se muito gordos. De acordo com diversas enquetes, realizadas a todo momento, entre um quarto e um quinto da população está em regime. Na Itália, em 1986, 33% dos homens queriam emagrecer, contra 47% das mulheres; hoje eles são respectivamente 42% e 47%. BERNARD BRUSSET. L‟Assiette et miroir. Toulouse, Privat, 1997. 21 15 suspeitamos deles. A fonte principal do paradoxo é que a imagem do gordo é profundamente ambivalente. Os homens gordos não são percebidos de maneira unívoca. O propósito aqui é mostrar que essa ambivalência é provavelmente um fato de todos os tempos, talvez universal, e isso por pelo menos uma razão fundamental: através do corpo, em especial da corpulência, passam significados sociais muito profundos. Um dos mais importantes é o seguinte: a corpulência traduz aos olhos de todos, parte da comida que o gordo se atribuí, isto é, simbolicamente, a parte que toma para ele, legitima ou não, na distribuição da riqueza social. O corpo é um signo imediatamente interpretável por todos de nossa adesão ao vínculo social, da lealdade às regras da distribuição e da reciprocidade. Uma suspeita pesa, portanto, sobre os gordos. Mas se não podem emagrecer, eles têm uma possibilidade de se redimir dessa suspeita: precisam proceder a uma espécie de restituição simbólica, aceitando desempenhar papéis sociais que esperam deles. A grande questão que é discutida sem cessar em todos os debates sobre obesidade, científicos ou não, resume-se, no fim das contas, a uma interrogação: os gordos são culpados ou vítimas? São vítimas de suas “glândulas”, de sua hereditariedade, ou culpados de glutoneria? A enquête mostra que, na maioria dos casos, eles são percebidos como os únicos responsáveis por sua condição. Em outros termos, eles são gordos, pensa-se porque comem muito e são incapazes de se controlar. De maneira implícita, é, portanto, um julgamento moral que freqüentemente se carrega contra eles. Como o psiquiatra-psicanalista Bernard Brusset justamente notou22, os gordos são considerados trangressores, eles parecem violar constantemente as regras que governam o comer, o prazer, o trabalho e o esforço, à vontade e o controle de si. Dito de outro modo, o obeso (seu corpo trai) passa por alguém que come mais do que os outros, mais do que o normal, numa palavra: mais do que a sua parte. Assim, a obesidade remete a glutoneria e esta é percebida, muito profundamente, como uma violação às regras da divisão dos alimentos. Ora, a divisão da comida, na maior parte da sociedade, simboliza a essência mesma do vínculo social. De sorte que o glutão (o obeso, em conseqüência) está implicitamente sob a acusação de ameaçar os próprios fundamentos da organização social, o que o remete à animalidade. Nada espantoso, pois, em se esperar dele uma contrapartida disto que nele vemos em excesso. A chave está numa forma de reciprocidade: é preciso jogar o jogo do potlatch23 social: é preciso restituir à coletividade, sob uma forma qualquer, compensar a ausência de participação. É em função dessa troca simbólica que o obeso será classificado como benigno, maligno ou ambíguo. Quais podem ser os termos da troca? O que o obeso pode restituir à coletividade? Primeiro, como tínhamos visto, a força. O trabalhador que usa a força, mesmo com um peso considerável, não é obeso ou não é considerado como tal. Que ele carregue pesadas cargas, que desloque móveis, pianos ou containers, assim o gordo vê sua gordura se metamorfosear mitologicamente em músculo, sua voracidade transformar em bom apetite e seu apetite se justificar pela necessidade de reproduzir a força de trabalho. Existem sociedades em que certos indivíduos são de alguma forma institucionalmente engordados para preencher uma função altamente valorizada. Não penso aqui na engorda quase experimental de mulheres em certos grupos tradicionais, como os Tuaregues (trata-se aqui somente da gordura masculina), mas nos lutadores japoneses de sumô, cuja formidável 22 Bernard Brusset. L‟Assiette et miroir. Toulouse, Privat, 1997. Potlach é um ritual de troca dos índios Kwakiult da costa Noroeste da América do Norte no qual o presente cria uma obrigação recíproca para aquele que o recebe. O ritual comporta uma certa dose de agressividade, na medida que cada um pode se esforçar para exagerar na “generosidade”, aumentando sim a obrigação do parceiroadversário. 23 16 corpulência resulta de uma engorda metódica e iniciática no seio de uma comunidade onde reina uma regra de vida quase ascética. Existem algumas versões ocidentais secularizadas com os esportistas “pesados”(levantadores de peso, arremessadores, lutadores de catch, boxeadores peso pesado, etc, perdoados por algum acumulo a mais de camada adiposa). Eles também, por força de sua função mediática (e, parece, com a ajuda de esteróides anabolizantes), escapam ao estatus de obesos para aceder ao de “gigantes profissionais”. Na falta de força, o gordo pode restituir seu débito à sociedade sob a forma de espetáculo e de zombaria (exercida, na maior parte das vezes, em seu próprio detrimento). Os lutadores teatrais do catch francês ou do wrestling americano ocupam um status intermediário entre os “gigantes profissionais” e a comicidade dos histrões. Porque a segunda solução que se abre para o obeso é a de apresentar sua corpulência no registro cômico e/ou espetacular. Um grande número de atores cômicos capitalizam sua corpulência para construir um personagem invariável e quase mítico (para citar apenas americanos, imaginaremos W.C. Fields, Oliver Hardy, Zero Mostel, Red Skelton, etc.). outros utilizaram sua obesidade em papéis compostos, fazendo-se oscilar entre os dois polos, maligno e benigno, ao sabor das criações: Walace Beery, Orson Wells, Raimu, Marlon Bradon do período recente, etc. Observemos que mesmo os cômicos puros permanecem ambivalentes: eles apóiam-se frequentemente sobre uma suspeita de sadismo, como o gordo Hardy que tiraniza o pequeno Laurel e o irascível W.C. Fields. Mas a parte maligna neles é anulada pelas desventuras que ela lhes atrai: Hardy é sempre punido. É ele quem recebe os baldes de água ou os tijolos na cabeça, as tortas de creme no rosto e os pontapés no traseiro. Na vida cotidiana, o gordo deve transigir com o grupo no qual se insere, sob a pena de ser rejeitado. O sociólogo americano Erving Goffmann ilustrou esse aspecto com uma acuidade notável, descrevendo o “gordo bom” sob traços do in-group deviant (aproximadamente, o “desviante integrado”): É muito freqüente que um grupo ou uma comunidade estreitamente unida ofereça o exemplo de um de seus membros que desvia, seja por seus atos, seja por seus atributos, ou pelos dois ao mesmo tempo. Por conseguinte, esse exemplo passa a desempenhar um papel particular, ao mesmo tempo símbolo do grupo e representando certas funções bufas, enquanto que lhe é negado o respeito devido aos membros de pleno direito. De modo característico, um tal indivíduo cessa de jogar o jogo das distâncias sociais: ele invade e se deixa invadir à vontade. Ele representa freqüentemente um foco de atenção que liga os outros num círculo de participantes, do qual ele é o centro, mas do qual ele não partilha todo o estatuto. (GOFFMANN, 1998. P.134)24. Do mesmo modo que o engraçadinho do batalhão, o idiota da pequena cidade, ou o bêbado do “pedaço”, o pequeno gordo do pensionato (fat fraternity boy), ele está no centro do grupo, simultaneamente como bufão, mascote, confidente e saco de pancadas, mas não poderá jamais tornar-se verdadeiramente um membro como os outros. É o preço que deve pagar para não ser totalmente rejeitado. Entre o bom e o mau, o bonito e o feio, o rico e o pobre temos os insaciáveis que nem sempre são os gordos ou obesos. De Durkheim sabemos que “nos indivíduos, como na sociedade, um desenvolvimento descomedido das faculdades estéticas é um grave sintoma do ponto de vista da moralidade”(Divisão do Trabalho Social p.14). Trata-se de uma nota típica da sensibilidade teórica, procedendo a partir de uma lógica do “dever-ser”. Parece-me que a noção de narcisismo coletivo pode nos dizer que se reconhecermos que, embora centrado nos mais próximos, isto é, o corpo, o movimento tribal oriental, não deixa de centrar uma ética, talvez inquietante para nós aqui e agora, mas igualmente sólida. Em todo caso, esse reconhecimento, 24 Goffmann, E. Stigma: notes on the management of spoiled identity, Harmondsworth, Peguin Books, 1998. 17 para aqueles que estão, antes de tudo, ligados à lucidez, pode, de um lado, conduzir a ter mais prudência nas apreciações. Por outro lado, incitar a esta audácia de pensamento que, fora das certezas tranqüilizantes, estar em condições de captar o aspecto promissor do que está nascendo ou renascendo, ou seja, depois do homo politicus e do homo economicus, nos deparamos com o homo esportivus, agora nos confrontamos com o homo estéticus ou homo protéicus, quem sabe logo o homo lipidicus ou obesus e/ ou homo fastidium serão o novo modismo ou um estilo de vida? Estes são apenas pretextos que legitimam a relação com o outrem. Isto parece ser um pouco idealista ou espiritualista, irritante também, pois estamos habituados a medir tudo pelo padrão da eficiência racionalista, mas a efervescência contemporânea, até nos seus aspectos mais chocantes é uma realidade que é inútil querer negar. Em cada um dos casos, em cada caso, e muitos outros casos, parece que está em confronto um verdadeiro impulso instintivo que incita a se reunir por tudo e por qualquer coisa, importando apenas, afinal, o ambiente afetivo, no qual cada um está imerso. E é esta ligação, mesmo que específica, a vitalidade de uma dada época, que serve de fundamento a toda forma de sociabilidade, desde as associações anônimas (AA, Vigilantes do Peso, DQC), body building, futebolistas, tribos orientais, etc... por uma curiosa defasagem é no contra – tempo que compreendemos a imagem social do corpo. 1.4. Que corpo eu tenho! Qual corpo eu quero! Os corpos “pavoneiam”. Assistimos, no Brasil, especialmente nos grandes centros urbanos, a uma crescente glorificação do corpo, com ênfase cada vez maior na exibição pública do que antes era escondido e, aparentemente, mais controlado. Há menos de um século, apesar do calor tropical, os homens vestiam fraque, colete, colarinho duro, polainas e as “santas” mulheres cobriam-se até o pescoço25. Hoje, as anatomias mostradas parecem confirmar a idéias de que vivemos um período de afrouxamento moral nunca visto antes. No entanto, um olhar mais cuidadoso sobre essa “redescoberta” do corpo permite que se enxerguem não apenas os indícios de um arrefecimento dos códigos da obscenidade e da decência, mas, antes, os signos de uma nova moralidade, que, sob a aparente física e sexual, prega a conformidade a determinado padrão estético, convencionalmente chamado de “boa forma”. Pode-se dizer que as regras subjacentes à atual exposição dos corpos são de ordem fundamentalmente estética. Para atingir a forma ideal e expor o corpo sem constrangimentos, é necessário investir na força de vontade e na autodisciplina além de todas aquelas dedicadas à boa forma existentes no mercado. Tomando como base as inúmeras matérias, revistas, jornais e clínicas especializadas, roteiros e planos de cuidados com a aparência e a forma física, veiculadas na mídia ao longo do ano, pode-se afirmar que ocorre grande variedade de sugestões no que diz respeito às atitudes quanto ao corpo. A gordura, então, aparece como inimiga número um da “boa forma”, quase uma doença, especialmente para aqueles que buscam ostentar um corpo “sarado”26, ícone da “cultura da malhação”. Nessa cultura, que classifica, hierarquiza e julga a partir da forma física, não basta não ser gordo (a) – é preciso construir um corpo firme, musculoso e tônico, livre de qualquer marca de relaxamento. A gordura; flacidez e a moleza são tomadas como símbolo tangível da indisciplina, do desleixo, da preguiça, da falta de certa virtude, isto é, da falta de investimento do indivíduo em si mesmo. A questão principal é o que a indústria 25 Ver Nelson Rodrigues “Pátria de Chuteiras”. Crítica feita as vestimentas ou indumentárias das mulheres do século XIX. 26 Sarado – registrado no dicionário “Aurélio” com o sentido de “forte, rijo, resistente”, é utilizado atualmente, para designar um corpo com musculatura definida e ausência de gordura. 18 da estética oferece para este (a) pessoa em resposta da busca da “boa forma” e estética corporal? Qual corpo eu Quero? Através desta pergunta tentamos buscar uma possível resposta do que homens e mulheres, considerados “normais”, buscam numa clínica estética. Levamos em consideração o momento atual do discurso estético, relevamos o reclame de seus defeitos em pleno aforisma da forma estética, comparamos com os tratamentos oferecidos e a satisfação pessoal da clientela. Entretanto, fica o paradoxo, será que chegamos a alguma resposta que nos possa orientar das tendências a serem seguidas e dos benefícios oferecidos pelos profissionais da medicina e técnicos da estética? Nos ativemos às respostas da inquisição de que; o que se procura; é um corpo para ser visto e apreciado pelos outros! Metodologicamente elaboramos um questionário fechado com cinco perguntas, sendo entrevistadas 50 (cinqüenta) pessoas voluntárias e freqüentadoras de uma clínica de renome na cidade de Ponta Grossa, localizada a 100 quilômetros de Curitiba (capital do Paraná), que poderiam identificar-se ou não. Destas, 07 (sete) são do sexo masculino e 43 (quarenta e três) feminino em diferentes idades e grau de instrução, onde os sete homens possuem o Terceiro Grau completo ou seja 100%, 17 mulheres com Segundo Grau (39.5%) e 25 com o Terceiro Grau Completo (58.1%), e uma delas não informou, confirmaremos outros dados como segue as tabelas ilustrativas abaixo: Tabela 01: Dados Pessoais dos Participantes FAIXA ETÁRIA HOMENS Moda Média MULHERES Moda Média 16 a 20 anos ------02 4.7% 4.0% 21 a 25 anos ------04 9.3% 8.0% 26 a 30 anos 01 14.3% 2.0% 15 34.9% 30.0% 31 a 35 anos 02 28.6% 4.0% 02 4.7% 4.0% 36 a 40 anos 02 28.6% 4.0% 09 20.9% 18.0% 41 a 45 anos 02 28.6% 4.0% 06 14.0% 12.0% 46 a 50 anos ------04 9.3% 8.0% 51 a 55 anos ------01 2.2% 2.0% TOTAL 07 100% 14% 43 100% 86.0% LEGENDA: *Faixa Etária- Os 50 clientes dividem-se dentro desta faixa de idades – 19 a 55 anos. Média – Porcentagem representativa no total de clientes entrevistados (50). TOTAL 4.0% 8.0% 32.0% 8.0% 22.0% 16.0% 8.0% 2.0% 100% A Tabela 01, demonstra que o predomínio das mulheres é muito superior com relação aos homens, mas um dado que nos chama a atenção são as idades, principalmente as que se concentram entre os 26 a 30 anos, havendo uma procura também relativamente alta entre 36 a 40 anos entre as mulheres. Impressiona pela estimativa que as mulheres entre os 31 e 35 anos é uma faixa pouco representativa, ou seja, somente 4.8% delas freqüentam esta clínica, prevalecendo as mais jovens e mais velhas, conforme Ilustração do Gráfico 01. Mas permanece uma pergunta: O que leva estas mulheres entre os 31 a 35 anos ser tão pouco representadas neste tipo de procura? Tabela 02 – Oferta da Clínica e os objetivos buscados SATISFAÇÃO SATISFEITO NÃO SATISFEITO NÃO RESPONDEU TOTAL HOMENS 05 --02 07 MODA 71.5% --28.5% 100% MÉDIA 10.0% --4.0% 14.0% MULHERES 41 --02 43 MODA 95.3% --4.6% 100% MEDIA 82.0% --4.0% 86.0% TOTAL 92% --8.0% 100% 19 O grau de satisfação é revelado nas entrevistas, a honestidade, atendimento e o profissionalismo, essencial para o funcionamento de um estabelecimento deste nível de trabalho. Também notamos a preocupação não somente de satisfazer-se, mas fazer com que o outro aprecie o bom trabalho e desempenho de esforço em conseguir os resultados. Já na Tabela 03, demonstramos a Oferta e a Procura por tratamentos especializados. A Clínica consultada oferece muitos tratamentos que são feitos paralelamente, tanto para homens como para mulheres. O que se observa é que o aproveitamento pela parte feminina é bem maior. Escolhemos os mais procurados e notamos que das ofertas (10 tratamentos relacionados) os homens utilizam-se de 04, mesmo assim, por ser a amostra pequena, estes tem uma média de 1.9 tratamentos por pessoa, contra 2.4 por mulheres, ou seja, dos 10 tratamentos ofertados aos 07 homens, eles utilizam-se os mais simples e as mulheres, as 43 consultadas abusam mais do leque de ofertas e das terapias paralelas. Enquanto os homens da amostra passaram uma média de 13 sessões semanais as 43 mulheres perfizeram um total de 102, sendo os mais procurados o bronzeamento, tratamentos faciais, ginástica escultural, hidratação corporal, bootox e depilação, como mostra a tabela abaixo: Tabela 03 – Tratamentos: Oferta e Procura TRATAMENTOS Perda de Peso (controle obesidade) Tratamento de Celulite Tratamentos Faciais Hidratação Corporal Depilação Básica ou Especial Tintura Permanente para Cílios Bootox Implantes Faciais Ginástica Escultural Outros (bronzeamento etc.) TOTAL HOMENS ---- MODA --- MEDIA --- MULHERES 05 MODA 11.6% MEDIA 4.9% TOTAL 4.3% 01 06 ------- 10.0% 60.0% ------- 7.7% 46.2% ------- 18 14 08 06 41.9% 32.6% 18.6% 14.0% 17.6% 13.7% 7.8% 5.9% 16.5% 17.4% 7.0% 5.2% ---- ---- ---- 04 9.3% 3.9% 3.5% 02 ----05 20.0% ------50.0% 15.4% ------38.5% 07 03 09 28 16.3% 7.0% 20.0% 65.1% 6.9% 2.9% 8.8% 27.5% 7.8% 2.6% 7.8% 32.3% 10 TRAT POR 4UTIL= 40.0% 13 X 7 H = 1.86 TRAT 10 TRAT. POR 43MULH 10TRAT. 43MULH 102 X 2.4 TRAT POR MULHER 100% LEGENDA EXPLICATIVA: Dos 10 tratamentos oferecidos somente 04 são os mais utilizados pelos entrevistados masculinos; tendo uma média de 1.9 tratamento por pessoa, Já as mulheres destes tratamentos todos são utilizados de maneira paralela, perfazendo uma média de 2.4 tratamento por cliente. Percebemos que a grande maioria dos entrevistados segue corretamente o tratamento para melhora de diagnóstico - 1/3 (um terço) deles chegou até a clínica pela mídia, outro terço por recomendações particulares e por último os amigos. Ao analisarmos basicamente os entrevistados, nota-se que o grau de instrução e a procura destas clínicas se dá por pessoas esclarecidas onde a informação e auto-estima fazem parte de suas vidas estão diretamente ligadas à profissional, ou ainda, têm condições financeiras para realizar tratamentos estéticos, e muitos talvez, tentam solucionar a dedicação de tempo a outras atividades e deixam por conta dos esteticistas, a solução de pequenos problemas que nunca antes tinham tomado parte de seu cotidiano. Assim mesmo, releva a preocupação com a forma física, a aparência facial e o bem estar emocional proporcionado por estes tratamentos para que todos estejam de bem com ele e que sejam vistos e apreciados pelos outros. A importância destes investimentos é 20 bem maior quando o cliente se satisfaz com o que conseguiu com seu esforço e dedicação, pois muitos deles não escapam a sacrifícios para tentar mante-los belos e formosos, seduzindo e seduzidos por uma boa aparência, no caso, os corpos individuais, que são adornados, imperiquitados, que são construídos, que são cosmetizados em excesso, a sala de musculação, o salão de cabeleireiro e as modas de vestir estão aí para prová-lo, basta ver a voga da dietética, a busca da juventude que faz furor, o desenvolvimento da meditação ou das diversas técnicas da “new age”, para se convencer disso. Expressões triviais, como “estar bem com seu corpo”, “estar bem com sua cabeça”, ou, de uma maneira um tanto vulgar, “estar na sua”, são esclarecedoras a este respeito. As visões de mundo subjetivas parecem explicar a solidez, e , ao mesmo tempo, a desenvoltura de uma postura corporal que não pode ser separada de uma atitude intelectual, até poética. Por uma forma de transubstanciação, pode-se dizer que o mental jorra do material. É assim que, nas nossas reflexões sobre o problema do hedonismo (busca pelo prazer), parece ser o nascimento pelo qual a vasta matriz universal da fisiologia quando esta tenta parar a vida psíquica, ou seja, trata-se de uma idéia geral que se aplica bem à embriaguez erótica, mas que se pode, sem medo extrapolar para o ambiente hedonista dionisíaco, que abrange, em certas épocas, a vida de todos os dias. A nossa, certamente, é deste tipo, e é assim que essa transubstanciação se torna completamente banal. O que também torna, de muitas maneiras, porosas as barreiras e mais frágeis; as separações entre o sonho e a realidade, a natureza e a cultura, o corpo e o espírito. De fato, o próprio dessa “vida psíquica” ou desse “mental” que jorra da matéria, do corpo, e que nos modifica em uma coisa completamente diferente, é certamente o ser abrangente, restaurando, de maneira orgânica, a globalidade que o racionalismo tinha cortado em rodelas. Em suma, a imagem do imaginário popular, as imagens imateriais, passando pelos desenhos, sempre foi um lugar de refúgio, uma maneira de viver a dissidência, a expressão dessa utopia renovada, que é a busca de uma socialidade perfeita ou, pelo menos, de uma socialidade onde o peso do constrangimento e da necessidade seja menor. Donde os sonhos, os desejos e as fantasias que ela não deixou suscitar, dos quais sempre desconfiaram todos os poderes eclesiásticos, políticos e intelectuais. A mais bela escapada está inscrita no âmago da imagem que se tem do corpo. Ela sempre remete a um alhures supostamente melhor (nos momentos de revolta, de revolução ou de uma mudança importante de conceitos morais), alhures que se pode imaginar, no cinema, na mídia, na publicidade, nos quadrinhos, na poética e na erótica, despertando o sentimento de pertença a uma cultura da casa. A imagem do corpo, nesse sentido, não é de maneira alguma uma duplicação da realidade, ela tampouco é o reflexo de uma infra-estrutura a qual pertenceria toda a realidade. Considerações Finais A estética corporal é uma fantasia e um fantasma. Pouco importa, para o observador social, basta que exista alguma coisa para que essa idéia adquira legitimidade. O mito da eternidade, “forever young”, é desse tipo: ingênuo e impudente (arrogante), puro e perverso, possui todas as características da criança que, porque está próxima da natureza animal, brinca com seu corpo, pode colocá-lo em espetáculo, mas por estar inserido na civilização, vai fazer esse corpo falar, concretizando-o socialmente e, talvez com o tempo dar-lhe um espírito. A publicidade, a mídia, a moda as/os “pop stars” (nossas mitologias pós-modernas) são interessantes a esse respeito. Com freqüência são postos em cena andrógenos, etéreos e ambíguos, dotados de um corpo de juventude eterna, e por isso mesmo, servem de emblemas dos desejos mais loucos e dos sonhos que não podem dizer-se mais escondidos. Estão aí 21 desejados, tanto são anunciados no mimetismo da moda, nos tratamentos de saúde e outras manifestações de “juvenismo” socialmente aceitos. Deve-se lembrar aqui, o conselho do Envangelho: “Se vós não vos tornardes crianças, não entrareis no reino dos céus” . Entretanto, não é uma apatia, no sentido trivial do termo, mas uma paixão impassível, espécie de contemplação estética na qual se abole o princípio do individualismo. É uma atitude de monge que, em sua solidão mórbida por esta contemplação, está ligado a uma religiosidade culta do corpo. Assim a transfiguração do corpo interior em exterior, longe de significar decadência, perda de todos os valores, pode valorizar a comunhão para os que sabem, ou seja, o “corpo glorioso” dos mistérios cristãos é um corpo de conhecimento, diria, “razão sensível”. Essas pequenas ideologias, talvez se pudesse dizer esses “pequenos ídolos sociais”, “símbolos” ou “modelos corpóreos” são plurais sendo evidentes para muitos. A fim de não se tomar isso por elitismo, lembremos que são muitas as tribos que partilham de uma multiplicidade de ídolos, agregando-se ao redor deles. É bem o destino da pós-modernidade ser tribal, particular e particularizada. Coisas que são causa e efeito do erotismo, do dionisíaco de que é forjada a sociabilidade. Ora, antes de se tornar “coisa privada” o erotismo é antes de tudo “coletivo”. É o que nos lembram as várias estruturas antropológicas, como os bacanais, as dionisíacas e orgias diversas que pontuam o curso das histórias humanas como um fio condutor do corpório, um elemento estruturante e central de toda a vida em sociedade. E quando esse erotismo se torna evidente, ele se dá a ver, ele é vivido entre muitos, entre alguns, com nuanças essenciais de fantasias e fantasmas, é o que obras como as de SADE, de BATAILLE ou de KLOSOWSKI, permitem compreender. Assim segundo esse último autor, “o erotismo é pretexto para colocações em cena”, o que faz com que o “pensamento se faça corpo, o espírito se faça carne”27. Assim, é que se encontra a transfiguração já indicada: o erotismo da imagem faz comunidade, faz corpo tribal, desta feita como este último, conforta o aspecto sensível e espetacular de toda imagem gerada. Trata-se de um destino, pois nada, nem ninguém escapa a este processo. Pode-se lamentar, estigmatizar ou até, de uma maneira, às vezes, justificada, destacar que a proliferação das imagens tem algo de obsceno, mas nada é feio. Por tempo demais contido, a imagem explode, fazendo explodir tudo o que se acreditava triunfar sobre a “nudez”, pois desnuda-se, quer sejam modos de organização dos estados, das nações, das instituições centralizadas, sobretudo, perenes, quer sejam modos de pensar, para dize-lo rapidamente, das grandes narrativas de referências homogêneas, elaboradas no último século. Ao explodir, e ao fazer tudo explodir, a imagem muda completamente a paisagem intelectual à qual estávamos habituados, donde seu aspecto devastador, nuclear, virótico, sua deflagração, sua contaminação, não deixa nada indine. Ao contrário das estruturas (pensadoras e organizacionais), onde o centro e as periferias eram bem identificadas, com essa nova imagem tudo se situa alhures, ao lado, tudo é singular. A tribo do corpo adora seu ídolo e é por ele constituída, mas não seria universal. Da mesma forma, a ilustração da imagem, o desenho e o exemplo, deferentemente do conceito, são coisas eminentemente subjetivas e sempre estão ao lado de um poder central, ao lado do lugar onde é esperado. Aliás, nada existe de mais neutro do que, em grego, o termo que exprime o exemplo, “paradigma” “para deigma”, “é o que mostra ao lado” , assim como em alemão “Beispiel”, “o que representa ao lado”. Poder-seia insistir longamente sobre esse “ao lado”, mas basta que ele nos lembre da importância e da pregnância do “pequeno ídolo”, na constituição das sociedades: são as coisas irreais (as 27 Bodei, R. A Filosofia do Século XXI. São Paulo: Edusc, 2000. 22 fantasias , os fantasmas), singulares, que vão estruturar o real pensado, assim como são as tribos irreais que vão constituir o real vivenciado. É conveniente, pois pôr em ação um modo de análise que permita escapar da antinomia clássica entre o universal e o particular – entre o corpo e a mente. Ou ainda, um modo de análise que permita pensar o real a partir do irreal. O meio figurativo pode fornecer, para isso, uma ajuda fecunda. A figura permite fazer sentido, e dar sentido, não enquanto finalidade distante ou o alvo a ser atingido, mas enquanto o que eu comunico, ou o que eu partilho com os outros. A figura e o que vos olha, o que me olha. Esta fórmula de DURAND, resume bem nosso ponto de vista, a figura é particular, e ela induz, por isso mesmo, um entusiasmo específico, entusiasmo estático, ou uma profundidade na vida social. É um tal entusiasmo que foi a origem das revoluções dos tempos passados, sendo bem possível, que também, seja a origem da dolorosa gestação que vivemos, da socialidade corpórea que está por vir através da indústria da beleza. Referencial Bibliográfico Baudrilard, J. Sobre a Modernidade. São Paulo: Paz e Terra, 1997. Baudrilard, J. Da Sedução. São Paulo: Papirus, 2000. Bernard Brusset. L‟Assiette et miroir. Toulouse, Privat, 1997. BodeiI, R. Geometria de las Pasiones – Miedo, Esperanza, Felicidad: filosofía y uso político. México: Fondo de Cultura Económica, 1995. Brasil, Império do Bisturi, Veja, 10/01/2001. Braune, F. O Surrealismo e a Estética Fotográfica. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000. Burke, P. A Fabricação do Rei: A construção da imagem pública de Luís XIV. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1994. Campbell, J. & Moyers, B. O Poder do Mito. São Paulo: Associação Pallas Athenas, 1990. Comte-Sponville, A. Tratado do Desespero e da Beatitude. São Paulo: Martins Fontes, 1997. Darmon, P. Médicos e assassinos na Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. Deleuze, G. Cinéma: L‟Image-Mouvement. Paris: Les Éditions de Minuit, 1983. Dweck, Ruth. 1999. A beleza como variável econômica: reflexo nos mercados de trabalho e de bens e serviços. Entrevista de Peter Fry Rede Globo, especialmente por sua conversa sobre aparência e raça. Elias, N. & Scotson, J.L. Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2000. Elias, N. A Sociedade dos Indivíduos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1994. Freud, S. Além do Princípio do Prazer. Rio de Janeiro: Imago Editores, 1998. Freud, S. Totem e Tabu. Rio de Janeiro: Imago Editores, 1999. Gould, S.J. A Falsa Medida do Homem. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1999. Hénri Béraud. Le martyre de lóbése. Imprimerie Nationale de Monaco. Paris: Albin Michel, 1922. Holanda Ferreira, A . B. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. L’Express. 30 de junho de 1979. Le Monde. 04 de Outubro de 1984. Lovisolo, H. Atividade Física, Educação e Saúde. Rio de Janeiro: Sprint, 2000. Lovisolo, H. Estética, Esporte e Educação Física. Rio de Janeiro: Sprint, 1997. Lovisolo, H. R. Educação Física: arte da Mediação. Rio de Janeiro: Sprint Editora, 1995. Maffesoli, M. A Conquista do Presente. Rio de Janeiro: Rocco, 1984 esp. Cap. IV. Maffesoli, M. No Fundo das Aparências. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1999. Maffesoli, M. O Tempo das Tribos. Rio de Janeiro: Florense Universitária, 1998. Sant‟Anna, Denise B. de. Políticas do Corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 1995. Sonho de Modelo, Veja, 14/07/1999. Sponville, A. C. “Os Labirintos do eu: O sonho de Narciso/ Os Labirintos da arte: Um Grande Céu Imutável e Sutil”. São Paulo: Martins Fontes, 1997.