Hematologia Manifestações Bucais em Pacientes Pediátricos Onco-Hematológicos A terapêutica para a maioria das doenças onco-hematológicas, como mieloma múltiplo, neuroblastomas, leucemias, linfomas, anemia aplástica e síndromes mielodisplásicas é o transplante de células-tronco hematopoiéticas (TCTH). Os pacientes a serem submetidos ao TCTH passam por quatro períodos de imunossupressão: durante o tratamento da doença de base na fase de pré-transplante; na fase de condicionamento para o transplante, quando recebem a infusão da medula; na fase pós-transplante como profilaxia da rejeição do enxerto e na fase de reconstituição imunológica.(1,2) Estas etapas de imunossupressão podem desencadear alterações bucais decorrentes da quimioterapia e/ou radioterapia, pelo uso dos imunossupressores e por fatores locais. (2,3,4) Quanto mais jovem o paciente, maior o risco de complicações imediatas, devido ao índice mitótico elevado das células da mucosa bucal. Já as complicações tardias alteram o período de odontogênese e o desenvolvimento craniofacial.(5) As complicações orais podem se dividir em alterações de estomatotoxicidade direta, com ação direta do tratamento sobre os tecidos orais; e estomatotoxicidade indireta, que são problemas causados pela modificação de outros tecidos, como o sistema imunológico e outros sistemas de proteção (quadro 1).(6,7) As complicações bucais podem interferir no sucesso do transplante, aumentando o tempo de internação hospitalar, os custos do tratamento, além de apresentar um alto risco de mortalidade. (2,8) A incidência de alterações bucais em crianças sob tratamento antineoplásico varia consideravelmente de 30% a 100% na literatura.(9-12) A idade, o tipo de doença, o grau de malignidade, o tipo, dose e duração de quimioterápico e/ ou radioterápico e a higiene oral são determinantes para a gravidade das complicações orais.(6,13,14) A seguir descreveremos as alterações clínicas destas manifestações bucais e seus respectivos tratamentos utilizados pela odontologia especializada no atendimento a pacientes oncológicos. Foto: Abrale Profa. Karin Sá Fernandes1 • Prof. Dr. Paulo Sérgio da Silva Santos2 • Prof. Luiz Alberto Valente Soares Junior3 • Dra. Rosana Cláudia Scramin Wakim4 • Profa. Letícia Mello Bezinelli5 Dr. Wolnei Santos Pereira6 • Profa. Dra. Maria Elvira Pizzigatti Correa7 Profa. Karin Sá Fernandes 1 - Doutoranda em Patologia Bucal da Faculdade de Odontologia da USP, Preceptora do Centro de Atendimento a Pacientes Especiais (CAPE-FOUSP), Professora de Patologia e Estomatologia da Universidade Ibirapuera e Membro do Comitê Científico de Odontologia da ABRALE. CROSP 94.266. 2 - Professor Doutor do Departamento de Estomatologia da Faculdade de Odontologia de Bauru, Universidade de São Paulo e Membro do Comitê Científico de Odontologia da ABRALE. CROSP 51.737. 3 - Cirurgião-Dentista do Departamento de Onco-Hematologia do Instituto da Criança FMUSP. Coordenador do Comitê Científico de Odontologia da ABRALE e Supervisor da Divisão de Odontologia – Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. CROSP 49.475. 4 - Especialista em Ortodontia e Ortopedia Facial; Membro da Equipe de Odontologia Hospitalar do Hospital Santa Isabel, Atua no Serviço de Hematologia e Hemoterapia da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Membro do Comitê Científico de Odontologia da ABRALE. CROSP 65.357. 5 - Membro do Corpo Clínico do Hospital Israelita Albert Einstein, Especialista em Odontologia para Pacientes com Necessidades Especiais - FUNDECTO-USP, Doutoranda do Departamento de Odontologia Social da FOUSP e Membro do Comitê Científico de Odontologia da ABRALE. CROSP 84.561. 6 - Cirurgião-Dentista. Diretor da Associação Mauro Pinheiro de Oliveira. CROSP 59.882. 7 - Responsável pelo Ambulatório de Odontologia do Centro de Hematologia e Hemoterapia da Universidade Estadual de Campinas e Membro do Comitê Científico de Odontologia da ABRALE. CROSP 35.606. Prática Hospitalar • Ano XIV • Nº 83 • Set-Out/2012 7 Quadro 1. Manifestações orais que podem ocorrer com o tratamento onco-hematológico Estomatotoxicidade direta Estomatotoxicidade indireta Mucosite oral Infecções bacterianas Disfunção das glândulas salivares Infecções fúngicas Disgeusia Infecções virais Hipersensibilidade dentinária Sangramento bucal Disfunção da articulação temporomandibular Alterações de desenvolvimento esquelético, dental e retardo de erupção Mucosite oral A mucosite oral (MO) é uma reação inflamatória aguda do trato gastrointestinal que pode se desenvolver durante a quimioterapia e/ou radioterapia, sendo um dos problemas mais comuns em pacientes sob terapia antineoplásica.(15,16) Em pacientes mais jovens há uma maior incidência na ocorrência destas lesões,(2,17) devido ao maior índice de crescimento mitótico das células epiteliais e à presença de maior número de receptores de fator de crescimento epidémico.(16) A etiologia da MO é multifatorial e pode ser causada diretamente pelo efeito citotóxico dos agentes quimioterápicos ou indiretamente pela neutropenia. (17) Os sinais e sintomas mais comuns da MO são edema e eritema, sensação de queimação, desconforto ao falar, comer e engolir, e xerostomia. Nos casos mais graves notam-se placas brancas seguidas de úlceras dolorosas que se tornam porta de entrada microbiana, e podem evoluir para infecções secundárias, além de impedir a ingestão de líquidos e alimentos.(7,13,16,18) Condições estas que comprometem diretamente a qualidade de vida dos pacientes. O período de ocorrência da MO em pacientes submetidos à radioterapia varia de 12 a 15 dias após o início do tratamento, e na quimioterapia inicia-se geralmente 4 a 7 dias após o início do tratamento. A completa resolução da MO ocorre 7 a 14 dias após o término da terapia.(16) As terapias de suporte para a MO baseiam-se na orientação ao paciente em relação à nutrição para evitar alimentos que “Outra complicação do tratamento antineoplásico é a alteração no fluxo e composição salivar, que causa grande impacto na qualidade de vida do paciente” agridam a mucosa, na rigorosa higiene oral, ingestão de líquidos, uso de soluções isotônicas, antimicrobianos tópicos, anti-inflamatórios, analgésicos, anestésicos tópicos, critoterapia, laserterapia e fator de crescimento de queratinócitos.(2,8,19) A prevenção de infecções orais em pacientes que serão submetidos ao TCTH, através de rigoroso acompanhamento odontológico, tem demonstrado redução significativa na gravidade da MO em diversos trabalhos na literatura.(13,20-22) Disfunção das glândulas salivares Outra complicação do tratamento antineoplásico é a alteração no fluxo e composição salivar, que causa grande impacto na qualidade de vida do paciente. Os principais sintomas são o intenso desconforto, dificuldade de nutrição e fonação. Além disso, a diminuição do fluxo salivar aumenta o risco de infecções orais, tais como candidíase e cárie.(18) A xerostomia é menos frequente em pacientes pediátri- 8 Prática Hospitalar • Ano XIV • Nº 83 • Set-Out/2012 cos, pois as glândulas salivares são mais radiorresistentes.(7) A xerostomia em pacientes submetidos à quimioterapia é transitória no funcionamento das glândulas salivares; já na radioterapia, ocorre um comprometimento cumulativo no parênquima glandular.(23,24) Os sintomas iniciais da alteração salivar podem ocorrer em até 14 horas após o início do tratamento, e se prolongarem até dois anos após a radioterapia, ou até mesmo ser permanentes. Nos pacientes submetidos somente à quimioterapia, o fluxo salivar retorna ao normal geralmente em dois meses.(7) O uso de saliva artificial, sialagogos como a pilocarpina e betanecol, estímulos com goma de mascar sem açúcar e alimentos azedos são formas de proporcionar conforto ao paciente.(8,25) A orientação de higiene oral associada ao uso de flúor de alta concentração, agentes antimicrobianos tópicos e acompanhamento constante do cirurgião-dentista são importantes para reduzir o risco de cárie e outras infecções orais. Disgeusia As alterações do paladar ocorrem logo no início do tratamento, como resultado direto da radiação dos corpúsculos gustativos da língua, e estão diretamente relacionadas à xerostomia, o que dificulta a mastigação e deglutição.(7,24) Os pacientes normalmente retornam ao senso gustativo normal de 1 a 3 meses após o transplante, informação esta que é fundamental para o conhecimento dos profissionais da equipe multidisciplinar oncológica e para os pacientes e cuidadores.(8) Os pacientes pediátricos apresentam acentuada alteração de paladar, sendo muito difíceis a alimentação e o apetite, condição que leva à perda de peso e pode comprometer a recuperação da terapia antineoplásica. A dieta torna-se pastosa e rica em sacarose, o que proporciona um aumento na incidência de lesões de cárie. (2) O uso de suplementos de zinco Hematologia proporciona melhora na sensibilidade gustativa do paciente.(26) Hipersensibilidade dentinária A hipersensibilidade dentinária é definida como uma sensibilidade exagerada da dentina vital exposta a estímulos térmicos, químicos e táteis. A exposição dos túbulos dentinários é responsável por uma redução do limiar de dor do paciente, motivo suficiente para que ele procure auxílio profissional.(27) Em pacientes oncológicos se considera uma alteração decorrente da ação dos quimioterápicos, e quando os pacientes são acometidos limitam a ingesta de alimentos quentes ou frios e alimentos ácidos, podendo comprometer o aporte calórico necessário para este período do tratamento antineoplásico. O tratamento paliativo proposto é o uso de bochechos fluoretados e a aplicação de vernizes fluoretados, laserterapia e dessensibilizantes aplicados por um profissional da Odontologia.(7) Disfunção da articulação temporomandibular É uma disfunção caracterizada por dores miofaciais, envolvendo musculatura mastigatória, região craniocervical e região da articulação temporomandibular (ATM). Pode estar relacionada a desarranjos internos da ATM, limitações na mordida, estalos articulares(28) e doenças degenerativas, nas quais podemos ter a presença de todos ou parte destes fatores.(29) A articulação temporomandibular, junto com os ossos mandibulares e maxilares, dentes, músculos, nervos, vasos e periodonto faz parte de um complexo sistema, denominado sistema estomatognático, que atua em funções vitais do organismo, tais como respiração, deglutição, fonação e mastigação.(30) O trismo muscular é a abertura limitada da boca que ocorre neste grupo de pacientes como resultado do edema, destruição celular e fibrose do tecido “Em crianças na fase de desenvolvimento dentário, o condicionamento quimioterápico e radioterápico tem ação supressora nos fatores sinalizadores envolvidos na odontogênese” terações dentárias dependem do tipo de radioterapia, dose e área irradiada, tipo de agente quimioterápico utilizado e estágio da histogênese dental e as idades-chave do desenvolvimento dentário de acordo com a idade do paciente no momento do diagnóstico da doença neoplásica.(36) É importante o acompanhamento odontológico em todas as fases de crescimento e desenvolvimento de crianças submetidas ao TCTH devido às possíveis alterações estruturais e esqueléticas orofaciais que possam ocorrer, sendo o dentista de fundamental importância no manejo de tais anormalidades. muscular, induzida pela radiação. O grau do trismo depende da dose e distribuição de radiação e localização do tumor, o que dificulta a higiene bucal.(24,31) O tratamento instituído é através do uso de anti-inflamatórios, relaxantes musculares, aplicação de calor úmido na região da articulação temporomandibular e exercícios de abertura e fechamento bucal realizados e acompanhados por profissionais da Odontologia e Fisioterapia.(32) Infecções bacterianas, fúngicas e virais Devido à intensa imunossupressão e comprometimento das barreiras mucosas, o paciente apresenta alto risco de desenvolver infecções orais bacterianas, fúngicas e virais. As infecções bacterianas mais frequentes são a cárie e a doença periodontal (gengivite e periodontite). A cárie é bastante frequente no paciente pediátrico, devido à diminuição da saliva e perda de paladar que induz ao paciente ingerir uma dieta rica em sacarose, além da redução da capacidade-tampão e ação antibacteriana, o que torna a flora oral propicia para o desenvolvimento de lesões de cárie.(7,37) A gengivite é uma alteração bastante comum em pacientes onco-hematológicos pediátricos. A orientação de higiene bucal, visitas regulares ao dentista, restrições de dieta, uso de bochechos fluoretados e aplicação tópica de flúor são maneiras de prevenir a cárie dentária e a doença periodontal. Dentre as infecções bucais fúngicas, a mais frequente é a candidíase, muito comum em crianças devido à neutropenia, má nutrição, uso de antibióticos de amplo espectro, higiene bucal inadequada e condição física debilitada.(38) O tratamento consiste no uso de antifúngicos tópicos (nistatina, miconazol) ou sistêmicos (flu- Alterações de desenvolvimento esquelético, dental e retardo de erupção Em crianças na fase de desenvolvimento dentário, o condicionamento quimioterápico e radioterápico tem ação supressora nos fatores sinalizadores envolvidos na odontogênese. Os estudos realizados até o momento indicam que a quimioterapia induz alterações qualitativas na dentina e no esmalte, enquanto a radiação causa distúrbios quantitativos e qualitativos.(5,33) As principais alterações de desenvolvimento dentário observadas são raízes dentais curtas e afiladas, fechamento apical precoce, retenção prolongada de dentes decíduos, hipoplasia de esmalte, amelogênese imperfeita, microdontia, taurodontismo, hipodontias e agenesias.(4,5,34,35) A incidência e a gravidade dessas al- Prática Hospitalar • Ano XIV • Nº 83 • Set-Out/2012 9 conazol, itraconazol, e demais azóis), além de orientação, reforço e supervisão de orientação na higiene oral. As infecções virais mais comuns bucais são as infecções de herpes simplex. O quadro clínico comum é a ocorrência de febre, mal-estar, dores articulares, linfadenopatia regional, dor ao deglutir, edema, eritema e dor que precede a formação de vesículas em gengivas, língua, palato, mucosa jugal e orofaringe. As vesículas rompem-se formando úlceras bastante dolorosas.(2,39) A terapia instituída é o uso de antivirais sistêmicos como aciclovir ou valaciclovir.(40) Outra terapia mais recentemente utilizada para reduzir sintomas e o período de manifestação clínica é a laserterapia de baixa potência, com ótimos resultados.(41) Sangramento bucal Os agentes quimioterápicos induzem a trombocitopenia, e podem levar à alteração na hemostasia e eventual sangramento espontâneo. Quando a contagem de plaquetas apresenta-se com valores inferiores a 20.000 céls./mm3, o risco de sangramento gengival espontâneo aumenta, e em crianças na fase de esfoliação dos dentes decíduos torna-se um problema extremamente sério.(2,8) Vale ressaltar que a condição de saúde gengival é fundamental para que não ocorra o sangramento gengival, visto que se não há inflamação local nos tecidos periodontais, a possibilidade de hemorragia gengival é muito pequena.(42) A manobra mais efetiva nos casos de hemorragia é a pressão direta no local afetado. O uso de agentes hemostáticos tópicos, como selantes de fibrina, ácido tranexâmico e vasoconstritores auxilia no controle da hemostasia. Em casos mais graves de sangramento é necessária administração de plaquetas e agentes antifibrinolíticos como o ácido aminocaproico.(8) Manobras simples como higiene oral adequada reduzem drasticamente a possibilidade de hemorragia gengival. “O acompanhamento odontológico adequado do paciente onco-hematológico evita complicações sistêmicas, reduz os custos e tempo de internação hospitalar, melhorando sua qualidade de vida” CONCLUSÕES • É fundamental o papel do cirurgião-dentista no manejo clínico infantil de pacientes com doenças onco-hematológicas, através do diagnóstico das alterações bucais, remoção e prevenção de focos infecciosos bucais e áreas de trauma, além do acompanhamento no desenvolvimento craniofacial. • As manifestações orais devido à terapia antineoplásica podem ser evitadas ou minimizadas na presença de um cirurgião-dentista na equipe multidisciplinar do transplante, além da ação interdisciplinar dos profissionais envolvidos no tratamento oncológico. • É possível a melhora na qualidade de vida do paciente antes, durante e após radioterapia e/ou quimioterapia através de um protocolo adequado de cuidados bucais. • O acompanhamento odontológico adequado do paciente onco-hematológico evita complicações sistêmicas, reduz os custos e tempo de internação hospitalar, melhorando sua qualidade de vida. t REFERÊNCIAS 1. 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Nesta década, com a missão de sempre garantir o melhor tratamento a todos, somamos várias conquistas em prol da qualidade de vida e melhorias nas leis que envolvem a saúde do Brasil. Mas o trabalho continua... E para esta jornada contamos com você, que é o nosso maior presente! Veja o vídeo dos artistas que parabenizaram a ABRALE. Em setembro a ABRALE completou 10 anos de apoio ao paciente com câncer do sangue! www.abrale.org.br Feliz Aniversário! Dê você também o seu parabéns através do www.facebook.com/PaginaAbrale Prática Hospitalar • Ano XIV • Nº 83 • Set-Out/2012 11