ARTIGO DE REVISÃO Tendências atuais no diagnóstico e terapêutica da hidrocefalia de pressão normal Tobias Alécio Mattei* Paulo Henrique Aguiar* Josias Alécio Mattei** Ricardo Ramina** Sinopse A hidrocefalia de pressão normal, também chamada de síndrome ííndrome de Adams e Hakim, é uma patologia relativamente infreqüente, mas que adquire relevância nos dias atuais, uma vez que consiste em importante causa reversível íível de demência. A tríade ííade clíínica nica cl clááássica ssica inclui distúrbios da marcha, demência e incontinência urinária. A cirurgia de derivação ventricular ainda é o procedimento de escolha na maioria dos casos, apesar de não estar isenta de complicações, as quais levam à necessidade de revisão do sistema em até 20% dos casos. Apesar do conhecimento que emergiu nos últimos 40 anos, os resultados pós-cirúrgicos de implantação de shunts em pacientes diagnosticados com hidrocefalia de pressão normal, não melhoraram significativamente na última ltima ddécada. Por essa razão, fatores preditivos de bom prognóstico com o tratamento de derivação, como ausência de atrofia cerebral e sintomatologia recente (menor que um ano) devem ser identificados no pré-operatório, para que ocorra a seleção criteriosa dos pacientes que serão submetidos à cirurgia. Ao contrário da cirurgia de derivação ventricular, o uso da ventriculostomia endoscópica óópica ainda é controverso. Procura-se indicá-la para pacientes nos quais haja suspeita de estenose interventricular funcional e naqueles em que o teste de infusão ventricular demonstre aumento da resistência ao fluxo liquórico. Palavras-chave Hidrocefalia de pressão normal, demência, ventriculostomia endoscópica, ó ópica, shunt ventrículo-peritoneal. í Abstract Current trends in diagnosis and therapeutics of normal pressure hydrocephalus Normal Pressure Hydrocephalus (NPH), also called Hakim and Adams syndrome, is a relatively unfrequent pathology. Nevertheless it acquires relevance nowadays, once it constitutes an important cause of reversible dementia The classic symptomatological triad includes gait disturbances, dementia and urinary incontinence. Although complications may lead to revision of the system in up to 20% of cases, ventricular shunt surgery is still the therapeutical choice for the majority of patients. Despite of knowledge emerged in the last 40 years, post-surgical results of shunt implantation for patients with diagnosis of NPH has not been improved. Therefore, predictive factors of good prognosis like absence of cortical atrophy and recent symptomatology (less than 1 year) must be identified in pre-operatorive evaluation in order to assure rational choice of patients candidates to surgery. In opposition to ventricular shunting, endoscopic ventriculostomy is still a controversial therapeutical option. This technique is indicated for patients with functional interventricular obstruction in which the ventricular infusion test shows increase of flow resistance. Key-words Recebido: 10/11/2005; Aprovado 20/12/2005 * ** Clínica de Neurologia e Neurocirurgia Pinheiros Instituto de Neurologia de Curitiba Normal pressure hydrocephalus, dementia, endoscopic ventriculostomy, ventricular shunt MATTEI TA, AGUIAR PH, MATTEI JA, RAMINA R – Tendências atuais no diagnóstico e terapêutica da hidrocefalia de pressão normal J Bras Neurocirurg 16(1), 20-24, 2005 21 Introdução A hidrocefalia de pressão normal (HPN), é uma síndrome com várias manifestações clínicas, fisiológicas e neurológicas. A tríade clínica clássica inclui marcha anormal (atáxica ou apráxica), demência (em geral leve a moderada) e incontinência urinária26. Um estudo definiu que de 1% a 2% de amplo grupo de pacientes dementes apresentavam HPN20,25. Alguns autores propõem a mudança da nomenclatura de hidrocefalia de pressão normal do adulto, cunhada por Adams e Hakim, em 1965, pois muitas vezes a medida da pressão liquórica encontra-se levemente alterada, o que é confirmado pelo teste de infusão contínua. Além disso, muitos autores criticam a utilização do termo “demência curável” ou “demência reversível”, uma vez que, apesar da grande melhora na função cognitiva alcançada com o tratamento dessa síndrome, quase sempre restam déficits cognitivos mínimos, alguns somente detectáveis por meio de testes neuropsicológicos mais detalhados. Esses autores propõem a mudança na designação dessa síndrome para hidrocefalia crônica, retirando também a referência à idade do paciente, uma vez que essa síndrome também pode ser encontrada, se bem que raramente, em crianças com mal-funcionamento de derivações previamente implantadas2. Sintomatologia Dificuldade de deambular progressiva, geralmente, é o sintoma inicial mais proeminente da HPN. O distúrbio da marcha na HPN tem poucas características específicas. Certamente não se pode classificá-la como uma marcha atáxica ou espástica ou ainda apráxica. Porém, a marcha tem semelhança superficial à marcha da doença de Parkinson – diminuição do balanço, bases alargadas e passos curtos (marcha de “arrastar os chinelos”). Pacientes com distúrbios da marcha na HPN, geralmente, queixam-se de desequilíbrio e tontura18. O tônus muscular das pernas de pacientes com HPN está aumentado e há tendência à contração dos grupos musculares flexores e extensores. A deambulação é, perceptivelmente, mais lenta do que a deambulação normal, o corpo gira-se em bloco, movimentos dos braços são diminuídos e há tendência do paciente cair para trás6. Além dos achados clássicos, a sintomatologia clínica também pode vir acompanhada de sinais de síndrome frontal: lentidão psicomotora, indiferença afetiva, desinteresse, perturbações amnésicas ou mesmo desinibição comportamental, sob a forma de desinibição urinária. Etiologia Acredita-se que a HPN seja conseqüência de distúrbio da dinâmica liquorica. O líquido céfalo-raquidiando (LCR), normalmente secretado, escoa pelos orifícios de Magendie e Luschka, porém, um obstáculo, situado nos espaços meníngeos da base, impede-o de alcançar os locais de reabsorção transependimária do LCR, que se estende sobre a substância branca periventricular. A natureza indolente do processo gera aumento dos ventrículos laterais, com incrementos relativamente pequenos na pressão liquórica. Uma causa é achada na metade dos casos: hemorragia meníngea, meningite ou intervenção cirúrgica que comprometeu a permeabilidade meníngea. Na outra metade dos casos, a natureza do processo responsável permanece indeterminada4. Presume-se que ocorra estiramento e distorção dos tratos de substância branca da coroa radiada, mas a causa fisiológica exata da síndrome ainda não foi esclarecida. Estudos laboratoriais demonstram que o líquor de pacientes com HPN possui aumento nos níveis de TNF-alfa, uma citocina pró-inflamatória que indica dano à bainha de mielina dos neurônios cerebrais. Dessa maneira, suspeita-se que o dano causado à substância branca na HPN esteja ligado, ao menos em parte, ao desencadeamento de processo de inflamatório, que culmina na desmielinização das bainhas neuronais27. Estudos experimentais com PET-Scan (Tomografia com emissão de pósitrons) demonstraram atividade cerebral regional significativamente diminuída em cérebro e cerebelo de pacientes com HPN. A análise funcional demonstrou que a atividade cerebral regional encontrava-se reduzida, especificamente, em gânglios da base e tálamo, mas não em regiões de substância branca. O mesmo exame realizado em pacientes com HPN, que apresentaram melhora do quadro clínico após derivação ventricular, revelava melhora na perfusão cerebral dessas áreas8. Há também relato de melhora da perfusão cerebral medida por PET-scan nas áreas frontais e parietais, após cirurgia de derivação22. Diagnóstico O interesse sobre o diagnóstico de uma HPN é que o estabelecimento de derivação ventrículo-peritoneal é capaz de ocasionar regressão acentuada das perturbações neurológicas da deterioração da demência “curável”. Esta evolução é comum nos casos que apresentam uma causa precisa. Nos outros casos, as indicações cirúrgicas devem ser colocadas em discussão. Há controvérsias a respeito do melhor critério diagnóstico para selecionar pacientes com HPN. Há grande variedade de testes diagnósticos. EXAMES DE IMAGEM Os estudos de neuroimagem revelam ventrículos laterais aumentados (hidrocefalia) com pouca ou nenhuma atrofia cortical, ao contrário da doença de Alzheimer onde a atrofia e o hipometabolismo cortical medido por PET-Scan é evidente (Figura 1)9. Verifica-se a presença de uma hidrocefalia comunicante, com o aqueduto de Sylvius pérvio. A reabsorção transependimária manifesta-se sob a forma de zonas hipodensas em torno dos cornos frontais na ressonância magnética (Figura 2). Um estudo crítico das imagens de TC e do trânsito isotópico permite diferenciar a HPN das hidrocefalias sintomáticas, ocasionadas por exemplo por estenose do aqueduto ou por pro- MATTEI TA, AGUIAR PH, MATTEI JA, RAMINA R – Tendências atuais no diagnóstico e terapêutica da hidrocefalia de pressão normal J Bras Neurocirurg 16(1), 20-24, 2005 22 cesso expansivo (tumor de ângulo pontocerebelar). A dilatação ventricular que provêm de uma atrofia cerebral acompanham-se de sinais de atrofia cortical e não ocasionam uma reabsorção trans-ependimária. É relatada a presença de dificuldade na interpretação da síndrome clínica e de imagens nos pacientes atingidos por hipertensão arterial grave. PUNÇÃO LOMBAR O diagnóstico também pode ser auxiliado pela realização de punção lombar, mas a quantidade de LCR retirada é variada entre os demais serviços. A pressão de abertura na punção lombar situa-se na faixa superior da normalidade e as concentrações de proteína e glicose e a citometria liquórica são normais5. Às vezes há uma melhora transitória da marcha ou da cognição após a punção lombar (ou punções seqüenciais) com retirada de 30 a 50 ml de LCR, mas este achado não se mostrou sistematicamente preditivo de melhora após a derivação7. Várias tentativas de estabelecimento de critérios diagnósticos baseados em medidas da dinâmica do fluxo liquórico têm sido realizadas, dentre elas o teste de infusão com pressão constante. 28 Os estudos têm demonstrado que pacientes com HPN possuem aumento sistemático da resistência ao fluxo cerebral durante o Teste de Infusão contínua. Esse teste consiste na infusão de soro fisiológico no espaço subaracnóideo lombar a uma velocidade de aproximadamente 0,76 ml/minuto por 30 a 60 minutos. Em pacientes com HPN isso acarreta um aumento da pressão (300 para 600 mmH20) que não é observado em indivíduos normais8. Em tese, esse exame serve para quantificar a capacidade de absorção do LCR, permitindo, diagnosticar a presença de HPN14. CISTERNOGRAFIA COM RADIONUCLEOTÍDEOS A cisternografia com radionucleotídeo é utilizada rotineiramente apenas nos maiores centros3. Em pacientes com HPN ela revela um retardo na absorção liquórica sobre a convexidade11. O isótopo, em vez de passar à convexidade do cérebro, penetra de modo maciço e prolongado no sistema ventricular23. Tratamento DERIVAÇÃO VENTRICULAR Procedimentos de derivação (cirurgias eletivas) são realizadas em mais da metade dos pacientes diagnosticados com HPN e cerca de 30% a 50% dos pacientes mostram melhora com este procedimento31. A derivação normalmente é acoplada a uma válvula unidirecional regulada para a pressão desejada, permitindo que o LCR passe diretamente para a corrente sangüínea ou cavidade peritoneal sempre que determinado nível pressórico for ultrapassado21. A alta prevalência da doença de Alzheimer em pacientes diagnosticados com HPN pode, talvez, explicar as baixas taxas de sucesso, no que diz respeito à melhora dos sintomas dos pacientes submetidos à derivação ventricular. Alguns autores indicam até mesmo a biópsia cerebral para descartar a presença de Alzheimer e diminuir a realização de cirurgias desnecessárias1. Pacientes com variações na tríade clássica da síndrome, por exemplo, demência sem distúrbio da marcha ou presença de apraxias, afasias e outros sinais focais devem alertar o médico FIGURA 1. Superior: Imagens de Pet-Scan de paciente com hidrocefalia de pressão normal: pode-se perceber diminuição difusa do metabolismo nos córtices de associação (especialmente na região parieto-temporal). Inferior: Imagens de controle após 1 ano de procedimento de derivação ventricular: percebe-se melhora significativa da captação em região dos gânglios da base, córtices frontais e tálamos, bilateralmente. MATTEI TA, AGUIAR PH, MATTEI JA, RAMINA R – Tendências atuais no diagnóstico e terapêutica da hidrocefalia de pressão normal FIGURA 2. Imagens axiais de ressonância magnética de um paciente com hidrocefalia de pressão normal. Note o aumento do diâmetro ventricular e o arrendondamento do corno frontal acompanhado do halo periventricular de hiposinal em T2 devido à reabsorção transependimária. J Bras Neurocirurg 16(1), 20-24, 2005 23 para outros diagnósticos que não HPN, tais como demência senil ou lesões vasculares16. VENTRICULOSTOMIA ENDOSCÓPICA Apesar de alguns estudos na literatura demonstrarem que, em longo prazo (após um ou dois anos), a ventriculostomia apresente melhores resultados que a cirurgia de derivação, os grandes ensaios mostram-se inconclusivos17. O pneumo-encéfalo é a principal complicação da cirurgia de ventriculostomia. Drenagem insuficiente também é observada em maior freqüência (cerca de 10%) nos pacientes submetidos à ventriculostomia, quando comparados àqueles submetidos à derivação ventricular clássica (sub-drenagem em menos de 5% dos pacientes)24. Prognóstico O tratamento cirúrgico com shunts de derivação ventricular traz grandes melhoras na função neurofisiológica do paciente, assim como atenção, concentração, memória verbal e não-verbal, linguagem e características da comunicação. A marcha pode demorar mais para evoluir favoravelmente do que a cognição. Melhora transitória e de curta duração é comum24. Também se constata, na maioria dos casos, melhora da função vesical. A melhora é devida, principalmente, ao tratamento da dilatação dos cornos temporais dos ventrículos laterais, os quais diminuem significativamente de tamanho três a quatro dias após a derivação, mesmo nos casos em que a hidrocefalia esteve presente por um ano ou mais15. Pacientes em estágio precoce de HPN (sem atrofia cerebral) e com curta duração da doença (menor que um ano), feita a exclusão de demência, normalmente, apresentam melhor evolução após o procedimento de derivação29. Melhora consistente ocorre naqueles pacientes com HPN nos quais se consegue estabelecer a causa (hemorragia subaracnóidea, meningite crônica ou um tumor do terceiro ventrículo). A presença de numerosas ondas beta, durante a monitorização da pressão intracraniana de pacientes com diagnóstico de HPN é considerada fator preditivo de sucesso terapêutico da cirurgia de derivação13. Complicações A cirurgia de derivação, apesar de ser um procedimento relativamente simples, não está isenta de complicações, tais como hematoma subdural ou higroma (quando a pressão ventricular é reduzida abruptamente, ocorre estiramento e ruptura das veias em ponte) e infecções. As complicações, em longo prazo, da derivação ventricular levam à necessidade de revisão do sistema em cerca de 20% dos casos. Dentre as mais comuns pode-se citar: infecções (8%), oclusão da ponta do cateter no ventrículo (5%), drenagem insuficiente (3%), drenagem excessiva (3%) e deslocamento do catéter (2%)19. A incidência de complicações pode ser, consid- eravelmente, reduzida instalando-se o cateter no corno anterior do ventrículo direito, onde não há plexo coróide e usando-se o tipo mais recente de válvula de Hakim, que permite o controle eletrônico extracraniano da pressão na válvula. Novos tipos de válvulas, assim como as válvulas gravitacionais tornam-se cada vez mais populares25. Conclusões Apesar do conhecimento que emergiu nos últimos 40 anos, os resultados pós-cirúrgicos de implantação de shunts em pacientes diagnosticados com HPN, não melhoraram significativamente na última década. Por esta razão, fatores preditivos de bom prognóstico com o tratamento de derivação, como ausência de atrofia cerebral e sintomatologia recente (menor que um ano) devem ser identificados no pré-operatório, para que ocorra a seleção criteriosa dos pacientes que serão submetidos à cirurgia. Ao contrário da cirurgia de derivação ventricular, o uso da ventriculostomia endoscópica ainda é controverso. Procura-se indicá-la para pacientes nos quais haja suspeita de estenose interventricular funcional e naqueles em que o teste de infusão ventricular demonstre aumento da resistência ao fluxo liquórico. Referencias bibliográficas 1. BAKKER SL, BOON AJ, WIJNHOUD AD, DIPPEL DW, DELWEL EJ, KOUDSTAAL PJ: Cerebral hemodynamics before and after shunting in normal pressure hydrocephalus. Neurol Scand 106: 123-7, 2002. 2. BRET P, GUYOTAT J, CHAZAL J: Is normal pressure hydrocephalus a valid concept in 2002? A reappraisal in five questions and proposal for a new designation of the syndrome as “chronic hydrocephalus”. J Neurol Neurosurg Psychiatry 73: 9-12, 2002. 3. CHMIELOWSKI K, PODGORSKI JK, TWARKOWSKI P, PIETRZYKOWSKI J, SZALUS N: Radionuclide cisternography in the diagnosis of normal pressure hydrocephalus: Pol Merkuriusz Lek 16: 576-80, 2004. 4. CZOSNYKA M, RICHARDS HK, CZOSNYKA Z, PICKARD JD: Normal-pressure hydrocephalus. J Neurosurg 101: 1083-4, 2004. 5. 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