PROTOCOLO DE NECROPSIA PARA FATALIDADES EM MERGULHO AUTÔNOMO RECREATIVO James Caruso Examinador Médico das Forças Armadas Regionais Comando de Recrutamento da Marinha 5722 Integrity Drive Millington, TN 38054 USA Tradução: Ana Paula Morato Revisão Técnica: Dr. Cristofer Martins Dado que a maioria dos legistas e técnicos de necropsia raramente executam um exame em alguém que morreu praticando mergulho autônomo, poucos Institutos de Medicina Legal terão experiência significativa na realização de exames postmortem apropriados. A seguir, apresentamos diretrizes que podem ser seguidas com o entendimento de que alguns dos procedimentos recomendados serão impraticáveis e só poderão ser realizados em uma instalação com disponibilidade de recursos laboratoriais significativos. HISTÓRICO Essa é a parte mais importante, em absoluto, da avaliação de uma fatalidade de mergulho recreativo. Idealmente, dever-se-ia obter um histórico médico significativo com um foco especial em doença cardiovascular, distúrbio convulsivo, diabetes, asma e doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC). Medicamentos de uso regular, bem como aqueles utilizados no dia do mergulho, devem ser registrados, e informações a respeito de como o mergulhador se sentia antes do mergulho devem ser obtidas. Qualquer histórico de drogas ou álcool também deve ser anotado. O histórico de mergulho também é extremamente importante. Se possível, o perito deve descobrir a experiência do mergulhador e seu nível de certificação. A parte mais importante do histórico serão os eventos específicos relacionados ao próprio mergulho. O perfil do mergulho (profundidade, tempo de fundo) é uma informação essencial e, se o mergulhador não estava mergulhando sozinho, testemunhas oculares terão um valor inestimável. Com o uso praticamente universal dos computadores de mergulho, o computador usado pelo mergulhador falecido deve ser investigado e, se houver uma função de download, todos os mergulhos recentes devem ser analisados. Não apenas o último mergulho ou série de mergulhos serão valiosos para a investigação, mas também pode-se aprender muito sobre o mergulhador ao observar mergulhos realizados anteriormente, inclusive frequência, profundidade, hábitos de subida e, com determinados computadores, até mesmo o uso do ar. Registros de mergulho escritos também são uma fonte preciosa de informações relativas ao nível de experiência e aos hábitos de mergulho do mergulhador. As perguntas a serem feitas incluem: • Quando o mergulhador começou a ter um problema (antes do mergulho, descida, fundo, subida, depois do mergulho)? • O mergulhador subiu velozmente (um fator contribuinte para embolia gasosa ou barotrauma pulmonar)? • Houve histórico de apresamento, emaranhamento ou trauma? • Se houve uma tentativa de ressuscitação, o que foi feito e como o mergulhador respondeu? EXAME EXTERNO E EXAME INTERNO Deve-se fazer um exame externo completo, incluindo documentação de sinais de trauma, lesões causadas por animais ou envenenamento. Palpe a área entre as clavículas e os ângulos da mandíbula para verificar evidência de enfisema subcutâneo. Raios-X da cabeça, pescoço, tórax e abdome devem ser feitos, em busca de ar livre. Imagens de tomografia computadorizada (TC) postmortem podem ser obtidas como alternativa. Modifique a incisão inicial no torax para fazer uma "tenda" ou "bolso" com o tecido mole (uma incisão em "I") e preencha essa área com água. Uma agulha de largo calibre pode ser inserida no segundo espaço intercostal de cada lado; se desejar, qualquer ar que escapar pode ser capturado em um cilindro graduado invertido preenchido com água, para medição e análise. Ao remover o peitoral, observe se algum ar escapa dos vasos. Um teste alternativo para o pneumotórax consiste em mexer nos músculos intercostais com um bisturi e observar a relação entre a pleura visceral e a parietal à medida que se entra em cada cavidade pleural. Se as duas camadas pleurais ainda estiverem adjacentes até a cavidade pleural ser rompida, não há evidência de pneumotórax. Se um pneumotórax tivesse ocorrido durante o último mergulho, o pulmão já estaria pelo menos parcialmente desinflado e não levantado contra a pleura parietal. O saco pericárdico pode ser preenchido com água, e as câmaras do coração podem ser incisadas com um bisturi para procurar algum ar intracardíaco. Como era possível para as cavidades pleurais, o ar que escapa pode ser capturado e analisado, mas a maior parte dos Institutos de Medicina Legal não dispõe dos recursos necessários para tais empreitadas. Depois que o mediastino, o coração e os grandes vasos tiverem sido examinados sob água para verificar a presença de ar, a água pode ser eliminada e uma necropsia padrão pode ser realizada. Examine cuidadosamente os pulmões em busca de bolhas, bolhas enfisematosas e hemorragia. Observe qualquer defeito de septo interatrial ou interventricular. Verifique cuidadosamente evidências de doença cardiovascular ou qualquer alteração que comprometeria a função cardíaca. Toxicologia: obtenha sangue, urina, vítreo, bile, fígado e conteúdo do estômago. Nem todas as amostras devem ser testadas, mas procure, pelo menos, traços de abuso de drogas. Se houver suspeita de uma anormalidade eletrolítica ou se o falecido for diabético, o fluido do vítreo pode ser inútil para análise. Antes de abrir o crânio, prenda todos os vasos no pescoço para evitar que ar de artefato entre nos vasos intracranianos. Prenda os vasos na base do cérebro uma vez que o crânio for aberto. Desconsidere bolhas nas veias superficiais ou seios venosos. Examine os vasos meníngeos e os vasos corticais superficiais para verificar a presença de ar. Examine cuidadosamente o Polígono de Willis e as artérias cerebrais médias em busca de bolhas. Peça ao Instituto de Criminalística para avaliar o equipamento de mergulho. Os cilindros estão vazios? Se não estiverem, a pureza do ar deve ser analisada (um pouco de monóxido de carbono tem muito efeito no fundo). Todos os equipamentos devem estar em boas condições de funcionamento, e os instrumentos devem funcionar com precisão. POSSÍVEIS CONSTATAÇÕES Embolia gasosa: bolhas intra-arteriais e intra-arteriolares no cérebro e nos vasos meníngeos, petéquias na massa cinzenta e na branca, evidência de DPOC ou barotrauma pulmonar (pneumotórax, pneumomediastino, enfisema subcutâneo), sinais de insuficiência cardíaca direita aguda, pneumopericárdio, ar nas artérias coronárias e nas retinas. Doença descompressiva: lesões na substância branca no terço mediano da medula espinhal, incluindo infarto de estase; se houver um forame oval patente (ou outro shunt da direita para a esquerda no coração), uma embolia gasosa paradoxal pode ocorrer devido às bolhas venosas significativas que entram na circulação arterial. Mordidas ou lesões venenosas: uma mordida ou lesão em qualquer parte do corpo, um edema inexplicado em qualquer parte do corpo, evidência de anafilaxia ou outra reação alérgica severa. Afogamento: embora o afogamento permaneça, essencialmente, como um diagnóstico de exclusão, há algumas constatações anatômicas que são observadas com frequência considerável. Os pulmões geralmente apresentam-se hiperinflados e podem até mesmo se encontrar na linha central quando a parede anterior do tórax é removida. Os pulmões geralmente são pesados e edematosos, e efusões pleurais podem estar presentes. Uma quantidade moderada de água e até mesmo algum material de plantas podem estar presentes, não apenas nas vias aéreas, mas também no esôfago e no estômago. Uma dilatação do ventrículo direito do coração é comumente observada, como um inchaço das grandes veias centrais. Fluido também é encontrado com frequência no seio esfenoidal. Intoxicação por monóxido de carbono: mortes devido à intoxicação por monóxido de carbono são raras no mergulho recreativo, mas acontecem. As constatações na necropsia são semelhantes às de mortes relacionadas ao monóxido de carbono em outros cenários, sendo a mais clássica uma cor vermelho-cereja nos órgãos e no sangue. Uma medição da carboxihemoglobina pode ser obtida como toxicologia de rotina em todas as mortes relacionadas com o mergulho, de modo a excluir a contribuição do ar contaminado. INTERPRETAÇÃO A presença de ar em qualquer órgão ou vaso observada durante a necropsia de alguém que respirou ar comprimido pouco antes da morte não é evidência conclusiva de doença descompressiva ou embolia gasosa. Durante um mergulho, especialmente com profundidade e tempo de fundo consideráveis, o gás inerte se dissolve nos tecidos e o gás sairá da solução quando o corpo retornar à pressão atmosférica. Isso, combinado à produção de gás postmortem, produzirá bolhas em tecidos e vasos. O fenômeno tem feito com que muitos legistas experientes concluam erroneamente que a morte tenha ocorrido devido a uma doença descompressiva ou embolia gasosa. Bolhas intravasculares presentes predominantemente em artérias e observadas durante uma necropsia feita logo após a ocorrência da morte são suspeitas de embolia gasosa. O histórico do mergulho ajudará a apoiar ou refutar essa teoria. Ar presente apenas no ventrículo esquerdo – ou se a análise demonstrar que o ar no ventrículo esquerdo tem um conteúdo de oxigênio maior do que o presente no lado direito – também suportaria a hipótese de ocorrência de uma embolia arterial. Gás intravascular de decomposição ou eliminação de gases do mergulho conteriam pouco oxigênio e podem ser compostos, em sua maior parte, de nitrogênio e dióxido de carbono. Mergulhos mais profundos e mais longos podem provocar doença descompressiva e gás intravascular significativo (venoso, na maior parte). A doença descompressiva raramente é fatal e causa, mais comumente, morbidade significativa (doenças e lesões) em casos severos. Subidas rápidas e barotrauma pulmonar são associados com a embolia gasosa.