XXVIII Encontro Anual da ANPOCS ST03: "Ciências sociais e biologia em cenários contemporâneos: repensando fronteiras e interfaces" Sessão 1: “Interfaces entre as ciências sociais e as ciências biológicas” Sobre a Consiliência: O debate entre o neopragmatismo de Richard Rorty e o projeto de Edward Wilson de unificação da ciência Sérgio da Costa Oliveira (PUC-RIO) 1 Sobre a Consiliência: O debate entre o neopragmatismo de Richard Rorty e o projeto de Edward Wilson de unificação da ciência Science! True daughter of Old Time thou art! Who alterest all things with thy peering eyes. Edgar Allan Poe. Sonnet – To Science RESUMO No presente artigo, procura-se mostrar como o mais novo projeto de unificação das ciências naturais e sociais, a assim chamada "consiliência", defendida por Edward Wilson, repousa em pressupostos sobre o conhecimento, a linguagem e a verdade, desafiados inúteis pelas redescrições que a perspectiva neopragmatista empreende destes vocábulos. ABSTRACT This paper aims at demonstrating how the newest project of unification between natural and social sciences, the so-called "consilience", presented by Edward Wilson, lies on premises about knowledge, language and truth, challenged by the redescriptions of that vocabulary provided by the neopragmatic approach. O texto Consiliência de Edward Wilson parece concretizar aquele tipo de narrativa dramática que anuncia uma mudança oceânica na forma com que o conhecimento é construído. Descrevendo-se a si mesmo como uma espécie de neo-iluminista, Wilson procura imaginar que tipo de metanarrativa seria capaz de nos esclarecer sobre o sucesso hoje experimentado pelas neurociências, pela psicologia evolucionista, pelos hibridismos disciplinares das ciências cognitivas, esforços intelectuais que não cessariam de fazer emergir, por força de suas alianças, resultados sobre “o próprio do homem”. O que está em jogo, segundo ele, é o efeito identificado por William Whewell, “em sua síntese de 1840”, The Philosophy of the Inductive Sciences, como consiliência, “literalmente, um ‘salto conjunto’ do conhecimento pela ligação de fatos em todas as disciplinas para criar uma base comum de explicação” (1999, p.7). 2 Seu desejo de teorizar o conhecimento a partir do progresso recentemente obtido pela “consiliência” de linhas de pesquisa nas ciências naturais segue uma tendência crescente na literatura (Giere, R.,1988; Popper, K., 2001) e traz-nos de novo o “espectro” (uso o termo propositalmente!) positivista da ciência unificada. Desafiado por toda uma geração que, influenciada pelos textos de Thomas Kuhn (1996) e Paul Feyerabend (1989, 1991), aprendeu a suspeitar de uma descrição do exercício científico que o situasse para além das práticas contextuais em que ganhavam sentido e a descrer da idéia de um método único, cuja racionalidade residiria em algum lugar externo a qualquer condicionamento sócio-histórico (1), aquele espectro volta hoje. Volta como aquilo que foi recalcado e não devidamente “terapeutizado”, para sempre usar a expressão wittgensteiniana. Sua presença entre nós, no entanto, agora, se atualiza sob outras circunstâncias (2) e parece atestada como força materialmente realizada nos escritos de biólogos como Richard Dawkins, “neurofilósofos” como os Churchland, cientistas cognitivistas como Daniel Dennett e Steven Pinker. O diagnóstico de Wilson é claro: A unidade do conhecimento é o que tornará as imagens de sujeito tradicionalmente construídas pelas ciências humanas mero folclore a ser dispensado e o fará de maneira inevitável. A unificação, tal como Wilson a propõe, se inspira no projeto de anexação de um campo do conhecimento por uma disciplina mais fundamental. Isto ocorre, por exemplo, quando os processos de aquecimento estudados pela termodinâmica são explicados em termos da mecânica estatística, com suas equações descrevendo o movimento das moléculas. Em realidade, observamos, hoje, uma batelada de exemplos bem-sucedidos, por toda parte, nas ciências naturais, de esforços “consilientes” como estes. No entanto, o 3 programa de Wilson, de uma imodéstia ímpar, pretende unificar todos os ramos do conhecimento – incluindo-se, aí, a tarefa de colmatar o que ele vê como o “fosso” entre as ciências naturais, de um lado, e as Humanidades e as artes, de outro. Seja reiterado que as pontes que forjariam a necessária união adviriam da linguagem desenvolvida pelas sempre exitosas ciências naturais: Seria esta união, então, segundo o julgamento de Wilson, que nos permitiria o afastamento das “metáforas e das elocubrações de segunda ordem” (op. cit., p.260) que impedem as Humanidades de experimentarem o sucesso ali conquistado. Não há razão óbvia por que a sociologia não deva adotar uma orientação semelhante [à da biologia, ou seja, o acompanhamento da causação através de muitos níveis de organização], guiada por uma visão que abranja da sociedade ao neurônio. (op. cit., p. 178 - 179) As ciências sociais possuem os mesmos traços gerais das ciências naturais no período inicial de história natural ou predominantemente descritivo do seu período histórico. (...) Mas ainda não forjaram uma rede de explicações causais que desça com sucesso pelos níveis de organização, da sociedade à mente e cérebro. Por não sondarem tão longe, carecem do que pode ser considerado uma verdadeira teoria científica. (op. cit., p. 180) Nenhuma razão irrefutável chegou a ser apresentada para a mesma estratégia [,explicações de causa e efeito,] não funcionar na união das ciências naturais com as ciências sociais e humanas. A diferença entre os dois domínios está na magnitude do problema, não nos princípios necessários a sua solução. (op. cit., p. 258) 4 Bem entendido, compartilhar a tese do realismo científico de Wilson é desalojar das Humanidades qualquer direito de prosseguir com sua forma de construir conhecimento desvinculado das ciências naturais. A diferença não é qualitativa, ele diz, sustentando um monismo teórico-metodológico entre as ciências naturais e sociais análogo ao de Karl Popper. A retórica das Humanidades deve ser vista, segundo o “sociobiólogo”, como tãosomente um exercício pré-teórico que necessitaria do esclarecimento advindo das disciplinas que emergem, desde o seu nascimento, vinculadas à gramática das ciências básicas. E por que não seria assim? Nada justificaria tal desvinculação, segundo seu parecer. Reiteremos: Acreditando na “compatibilidade intrínseca” das duas culturas erroneamente divorciadas, Wilson aposta no progresso do entendimento da ação humana complexa unicamente à medida que este entendimento procurar se alinhar à epistemologia das ciências naturais. Mas o inegável sucesso que a Biologia experimenta hoje, o qual nos permite ver nela ciência de êxito comparável ao da Física na primeira metade do séc. XX, não pode ser confundido com o projeto neopositivista de Wilson. Este último não decorre logicamente do êxito daquela ciência. Apesar de sua absoluta convicção quanto à razoabilidade de seu programa de pesquisas, há fortes argumentos contra essa sua concepção de conhecimento. Reiteramos: O lugar que ele pretende dar às ciências de forma nenhuma emerge como um resultado seja da ciência seja da argumentação lógica. E isto é o que pretendemos mostrar. O evidente antípoda desta perspectiva é, sem dúvida, o pragmatismo de Richard Rorty. Por sua vez, este autor é imaginado por Wilson como alguém cujas idéias têm somente por conseqüência “preguiçosamente, desvalorizar o intelecto” (1999, p.182). Esta 5 observação de Wilson dirige-se ao diagnóstico rortyano de que o projeto de qualquer epistemologia fundacional, como podemos entender a tarefa de Wilson, não deveria mais encontrar eco em nossa cultura. Segundo Rorty, uma teoria do conhecimento é apenas a reificação, a naturalização de procedimentos rotineiros de resolução de problemas que funcionaram por um bom tempo. Exigi-los de disciplinas em outros momentos de formação ou querer submeter outros campos ao regime de funcionamento de uma disciplina já bem codificada é simplesmente fazer fetiche de um método. Mas, retomemos: Aquele espinhoso comentário de Wilson se dirigia à chamada pragmatista por uma postura de tolerância frente aos momentos não codificados de uma disciplina e mesmo frente ao desejo de seus proponentes de não serem movidos tão fortemente pela prática de codificação formal. No entender de Wilson, assim pensando, Rorty só estimularia a preguiça e o atual estado de “fragmentação” do conhecimento. No entanto, talvez possamos ver a situação de outro modo: Nitidamente inspirado por Kuhn e Feyerabend, Rorty nos adverte de que o anseio pela apresentação de um (ou “do”) método deveria ceder à percepção de que os métodos são sempre reconstruções a posteriori de práticas que acabaram por se mostrar rotineiras com o passar do tempo. Mais especificamente, aquela ácida apreciação de Wilson se constitui em uma reação à forma peculiar com que Rorty estabelecera, no seu clássico Filosofia e o Espelho da Natureza, a diferença entre a demanda para “sermos epistemológicos” ou para “sermos hermenêuticos”. Bem entendido, uma tal diferenciação parece remover muito da força do projeto de Wilson de alinhar todas as práticas intelectuais em torno da idéia do “salto conjunto” das disciplinas. Este salto estaria garantido, atentemos, porque calcado no êxito de procedimentos codificados nas ciências naturais, a que chamamos, então, “método”. 6 Todavia Rorty quer nos lembrar que a filosofia aprendeu a abrir mão desta tarefa, que é o garante do êxito em que crê Wilson. Se não, vejamos. Rorty nunca entendeu as ciências humanas como carecendo do tipo de vitalidade metodológica a que a mentalidade positivista freqüentemente alude quando procura escarnecer do número de questões não resolvidas por aquelas. De sua parte, ele procura deixar claro que não somos “hermenêuticos” por alguma razão essencialmente diferente da razão de por que somos “epistemológicos”. Começa por advertir-nos de que “hermenêutica não é o nome de uma disciplina, nem de um método de atingir resultados que a epistemologia não conseguiu atingir, nem de um programa de pesquisa” (1988, p. 249). De seu ponto de vista, a linha entre os respectivos domínios da epistemologia e da hermenêutica não é uma questão de diferença entre as “ciências da natureza” e as “ciências do homem”, nem entre fato e valor, nem entre o teorético e o prático, nem entre o “conhecimento objetivo” e algo mais mole e mais dúbio. A diferença é puramente de familiaridade. Seremos epistemológicos onde compreendermos perfeitamente bem o que se passa mas quisermos codificá-lo para o estender, fortalecer, ensinar ou “fundamentar”. Devemos ser hermenêuticos onde não compreendermos o que se passa, mas formos suficientemente honestos para o admitir (...). Isto significa que somente podemos obter comensuração epistemológica onde já tivermos acordado práticas de inquérito (ou, de um modo mais geral, de discurso) (...) Podemos obtêla não porque tenhamos descoberto algo acerca da “natureza do conhecimento humano”, mas simplesmente porque, quando uma prática persistiu por tempo suficiente, as convenções que a tornaram possível – e que permitem um consenso sobre como a dividir em partes – são relativamente fáceis de isolar. Não há qualquer dificuldade em obter 7 comensuração na teologia, ou na moral, ou na crítica literária, quando estas áreas da cultura são “normais”. (...) Em certos períodos, foi tão fácil determinar quais os críticos que têm uma “percepção justa” do valor de um poema como é determinar quais os experimentadores que são capazes de fazer observações exatas e medições precisas. Em outros períodos, por exemplo, nas transições entre os “estratos arqueológicos” que Foucault discerne na recente história intelectual da Europa – pode ser tão difícil saber quais os cientistas que na realidade oferecem explicações razoáveis como saber quais os pintores que estão destinados à imortalidade. (1988, p. 252) Ora, podemos ver a passagem acima, não como um estímulo à “preguiça intelectual”, mas como um apelo a que não consideremos de maneira tão reverente os momentos formalizados das ciências naturais: Estes podem ser compreendidos apenas como o resultado de uma familiaridade intensa com determinados vocabulários e modos de proceder e de avaliar vigentes em um determinado período. Desta forma, as regras de um jogo intelectual, mesmo aquelas com que se procura resolver problemas nas ciências naturais, nunca mereceriam ser reificadas na forma de alguma racionalidade a-histórica. (É este todo o sentido, a propósito, da mensagem de Feyerabend e não o relativismo infeliz e auto-contraditório com que veio a ser identificado). Tampouco deveria se procurar pensar – continuemos seguindo o raciocínio rortyano – que estes mesmos modos de proceder, quando fortemente codificados, pudessem funcionar como o modelo final para impulsionar outras investigações. Simplesmente não parece haver um tal algoritmo universal. Com esta idéia, por si só, Rorty já se distancia enormemente da tese de Wilson da evolução conjunta dos saberes promovida pela unificação dos conhecimentos. Uma vez mais: A razão maior é que, através daquela distinção acima delineada, ele está procurando desmistificar os procedimentos elogiados como “racionais”, devolvendo-os à condição de algoritmos úteis 8 apenas para determinados fins específicos. Adicionalmente, está a mostrar que as ciências naturais guardam momentos igualmente não-codificados, embora freqüentemente o êxito, por vezes impressionante, constatado em alguma área, de algum procedimento (o sucesso cumulativo de certas fases “normais” da ciência, como diz Kuhn) parece-nos levar à desnecessariamente exaltada crença de que ali então se está a isolar, finalmente, o modus operandi da razão científica. Mas podemos ir bem mais longe. Embora Rorty, precisamente nessa passagem, não esteja, em absoluto, defendendo uma qualquer diferença fundamental entre as ciências humanas e naturais, julgamos, a propósito deste ponto preciso e fundamentados nas próprias idéias deste autor, que se deva lembrar que há fortes e peculiares razões pelas quais deveríamos resistir a que as Humanidades se tornem rigidamente codificadas, isto é, que se tornem o objeto de uma “teoria”, nos moldes das ciências físicas, como quer Wilson. Voltaremos a este ponto, de capital importância, mais tarde. No momento, assinalaremos, especificamente a respeito disso, que os objetos das ciências naturais não apresentam a instabilidade particular do objeto das Humanidades. Ora, se atentarmos que este último diz respeito não mais a simples comportamentos, a meras reações, mas ao sentido da ação e que, como tal, se encontra regulado, constituído mesmo, no interior de jogos de linguagem circunstanciais que sustentam formas de vida para sempre locais, parecer-nos-á, por isso mesmo, difícil imaginar sua eventual formalização. Afinal de contas, se esses jogos de linguagem que nos pomos a jogar são contingentes e se eles estão sempre a se reproduzir diferencialmente, como pensar a partir desta situação, “uma descrição universal da subjetividade humana”? 9 (3) Antiga questão filosófica, a propósito: Como formalizar um corpo de conhecimento cujo objeto é tão dependente do circunstancial, do contingente? Ora, esta dificuldade particular para o entendimento “legaliforme” da ação humana complexa parece se seguir da tese da contingência da linguagem e da subordinação do self a tal condição circunstancial dos vocabulários. Rorty, portanto, para ser ainda mais fiel às conseqüências de seu pensamento, deveria se mostrar ainda mais crítico diante da idéia de conceber a ação humana como objeto de uma ciência natural. Tanto quanto podemos notar, esta é uma posição um tanto obscura e ainda vacilante em seus textos. Mas voltemos ao projeto de Wilson. Evidentemente, sua idéia básica não encontra qualquer eco na versão pragmatista do conhecimento. Do ponto de vista de Rorty, não há qualquer razão especial para se esperar encontrar um compromisso entre “as duas culturas” que as tornem capazes de desenvolver a empreitada de uma explicação unificada da realidade humana. Rorty é um descendente direto do segundo Wittgenstein (como os já mencionados Kuhn e Feyerabend) e, é claro, também como aquele, não compartilhando do “retrato agostiniano da linguagem”, não subscreve o entendimento de Wilson de que o conhecimento, seja do homem seja do mundo, deva ser imaginado como a obtenção da imagem fidedigna de “uma realidade já pronta” (ready-made world). Estas palavras, não sendo as utilizadas pelo próprio Wilson, podem, no entanto, ser úteis para entender as pretensões de seu projeto. Se não, vejamos. Ele nos diz, por exemplo, em uma passagem particularmente relevante de seu texto: Dado que a ação humana compreende eventos de causação física, por que as ciências sociais e as Humanidades devem ser refratárias à consiliência com as ciências naturais? E como 10 podem deixar de se beneficiar dessa aliança? Não basta dizer que a ação humana é histórica, e que a história é um desenrolar de eventos únicos. Nada de fundamental separa o curso da história humana do curso da história física, seja nos astros ou na diversidade orgânica. Astronomia, geologia e biologia evolucionária são exemplos de disciplinas basicamente históricas ligadas por consiliência ao resto das ciências naturais. A história é hoje um ramo fundamental do saber por legítimo direito, até o mínimo detalhe. Mas se dez mil histórias de humanóides pudessem ser rastreadas em dez mil planetas semelhantes à Terra, e de um estudo comparativo dessas histórias se desenvolvessem testes empíricos e princípios, a historiografia – a explicação de tendências históricas – já seria uma ciência natural. (op.cit., p.10) Esta passagem exemplifica, da maneira mais radical e mais voraz que poderíamos supor (4), a retomada contemporânea do projeto da “unidade do conhecimento” de que este “biólogo neo-iluminista” se ergue como o maior porta-voz. A idéia segue sendo a tendência em ver nos (mais) diversos empreendimentos intelectuais partes de um todo que precisam ser unidas. O objetivo, sem dúvida, é fazer surgir, em algum futuro, uma imagem coerente (leia-se: a única!) da realidade. Uma outra maneira de caracterizar esta proposta é dizer que ela reinveste na metáfora do conhecimento como um espelho (metáfora já criticada no célebre livro, já citado, de Richard Rorty), imaginando que o conhecimento confiável é aquele que, à medida que progredir, nos garantirá um reflexo cada vez mais nítido da realidade. Mas por mais persuasiva que tenha se mostrado em nossa cultura essa forma de falar, não deveríamos, por outro lado, esquecer os motivos pelos quais passamos a julgar ser mais útil imaginar o conhecimento como uma caixa de ferramentas. Segundo a 11 perspectiva do realista científico Edward Wilson, a mecânica quântica, a bioquímica, a psicometria ou qualquer outra disciplina funcionam como peças de um imenso “quebracabeça”, que, um dia, devidamente encaixadas, nos deixarão ver “a imagem do quadro”, “o desenho da tapeçaria”, que sempre esteve ali à nossa espera. É claro que, de um ponto de vista pragmatista, esta crença é apenas uma outra forma idiossincrática de falar, muito embora a excessiva familiaridade com tal jogo de linguagem faz com que vejamos nesta idéia algo de intuitivo, de evidente. Para um pragmatista, sejamos mais específicos, esta é, ainda, uma forma meramente vestigial de falar que funcionou na vigência de um tempo em que julgávamos estar decifrando um mundo através de representações que refletiam “os caracteres com que Deus o escreveu”. Rorty (1992, p.25-26) põe nos seguintes termos esta forma de pensar que é a base mesmo do realismo científico de Wilson: A idéia de que a verdade, tal como o mundo, está diante de nós é uma herança de uma época em que o mundo era visto como criação de um ser que tinha a sua própria linguagem. Se deixarmos de tentar dar sentido à idéia de tal linguagem não-humana, não seremos tentados a confundir o truísmo de que o mundo pode fazer com que tenhamos justificação para acreditar na verdade de uma frase com a tese de que o próprio mundo se divide, por sua própria iniciativa, em fragmentos em forma de frase chamados “factos”. Se, no entanto, passarmos à noção de factos auto-subsistentes, é fácil começar a escrever com maiúscula a palavra “verdade” e tratá-la como sendo algo de idêntico ou a Deus ou ao mundo enquanto projecto de Deus. Dir-se-á, então, que a verdade é boa e vencerá. 12 Boa parte da cruzada que vem ganhando espaço crescente nos media contra os assim chamados “relativistas” (e, seja dito, embora Rorty seja um nome aí freqüentemente citado, evidentemente que o pragmatista não guarda qualquer compromisso com o relativismo epistemológico!) alimenta-se da tendência dos sujeitos de nossa cultura se verem ainda guiados por essas metáforas que nos obrigam a pensar a atividade de conhecimento como desvelamento da “realidade já pronta”. Do ponto de vista do realismo científico de Wilson, as únicas metáforas que merecem ser literalizadas entre nós são aquelas que estiverem a “revelar a natureza intrínseca do mundo e de nós mesmos”. E, como ele suspeita que seja somente assim que deva ser descrita a atividade dos que se dedicam a construir o conhecimento confiável, ou seja, como a descoberta (e não a invenção!) de uma descrição, imaginada como mais fundamental, isto implica tomar a sério unicamente as metáforas que estejam a ser produzidas pelas ciências. E, é claro, como um subproduto dessa atitude, passar a duvidar do malin génie das Humanidades ou da psicologia folclórica (folk psychology), sempre a nos iludir com metáforas desviantes da “narrativa verdadeira”. Já Rorty, por seu turno, muito a contrapelo desta tendência, procura nos ensinar que a diferença entre “descrição literal” e “descrição metafórica” é apenas a diferença entre uma linguagem antiga que assumiu a condição de catacrese e uma linguagem relativamente nova que ainda se vê flagrada como linguagem. Com fazer isto, Rorty está a reeditar a idéia de Nietzsche da “verdade como um exército móvel de metáforas” e a rejeitar por completo a idéia de que o conhecimento esteja, de alguma forma, a “representar” a realidade. 13 Com relação a Wilson, não podendo este contar com um bon Dieu, é agora o projeto de uma metanarrativa fundacional que irá ocupar este lugar. Como se vê, é antigo o impulso que alimenta este espectro de uma epistemologia fundacional, de encontrar a garantia de um ponto transumano (“trasmundano” é o termo empregado por Nietzsche) para o conhecimento. Trata-se da previsão de Nietzsche de que a ciência acabaria por ocupar o lugar vago de Deus. Wilson, é por excelência, um daqueles personagens a quem o filósofo do martelo chama, pejorativamente, por “homem superior”. Para nossos objetivos, o que é importante notar é que, situada neste lugar, doravante, a ordem científica terá os poderes de ou, por um lado, anexar conhecimentos que se adquiram pelos seus procedimentos reificados ou, por outro, eliminá-los. As “meras metáforas” desenvolvidas nas Humanidades, sempre descritas como um pântano, nessa perspectiva, deverão ter o destino do “flogístico”, do “calórico”, do “élan vital”, do “protoplasma” e outros. Assim, é de se esperar que autores como Rorty que questionam esta tarefa higienizadora do “verdadeiro conhecimento”, esta verdadeira “ortopedia das narrativas”, com base na idéia de que não precisamos mais partilhar da esperança de encontrar um tal tipo de descrição fundamental, essencial (afinal de contas, não é o mundo que está a nos obrigar a adotar um determinado vocabulário em detrimento de outro!) sejam concebidos como não partilhando da “honestidade intelectual dos que procuram a verdade” e relegados à pseudocategoria de relativistas. 14 No entanto, em recente artigo, The Decline of Redemptive Truth and the Rise of a Literary Culture, Rorty tenta desfazer esta falsa identidade entre “não ser essencialista” e “ser relativista”: Todos sabem que a diferença entre crenças falsas e verdadeiras é tão importante quanto a que há entre alimentos comestíveis e venenosos. Além do mais, uma das principais conquistas da filosofia analítica atual consiste em ter mostrado que a habilidade para manusear o conceito de crença verdadeira é uma condição necessária para ser um usuário da linguagem e, portanto, para ser um agente racional. Mas, prossegue o raciocínio pragmatista na tentativa de desfazer a falsa identificação, disso não se segue em absoluto que deveríamos hipostasiar a verdade e colocá-la lá no mundo. Afinal, o mundo não fala, somos nós que estamos o tempo todo a falar por ele. E, sendo assim, o mundo não pode ser verdadeiro ou falso; somente nossas sentenças o podem. E é claro que, para sabermos se elas são verdadeiras ou falsas, só poderemos recorrer, uma vez mais, ao conjunto de nossas crenças sobre que dados seriam relevantes, como analisá-los, com que objetivos criamos tais descrições etc. Ora, isto não é abdicar dos critérios de racionalidade, mas apenas situá-los para sempre em suas condições de possibilidade histórico-culturais. Isto é, por fim, tão-somente apresentar o conhecimento como uma prática contextualmente condicionada e não como exercício que permite o acesso a alguma realidade não humana. Seja observado que um tal instrumentalismo nada tem de relativista! No entanto, é claro que se a pergunta sobre o tópico da verdade for dirigida ao pragmatismo nos seguintes termos: “Você acredita que há, em princípio, um momento final quando os relógios da 15 investigação hão de necessariamente parar porque descobriu-se, enfim, a forma com que tudo realmente é e que um tal entendimento nos dirá efetivamente o que somos e o que devemos, então, fazer conosco?”, a resposta do pragmatista será um sonoro “não”, pois seu surgimento no cenário filosófico se deve precisamente à rejeição dessa tese. Esperamos ter conseguido mostrar que, no entanto, estes são precisamente os termos e os pressupostos com os quais o realista científico acredita estar construindo o único tipo de conhecimento que julga confiável. Outro ponto de relevo aí é que as conseqüências de se crer, por um lado, em um tal “ideal de objetividade” ou, por outro, de se imaginar o conhecimento em bases pragmatistas se desdobram de maneiras totalmente diversas. Como se expressa Rorty a respeito, os pragmatistas criam a figura de um intelectual bastante diferente da imagem tradicional. Sendo assim, os intelectuais em que os pragmatistas procuram se tornar, (...) não consideram que o propósito do pensamento discursivo seja o de conhecer, em qualquer sentido que possa ser explicado por noções tais como “realidade”, “essência real”, “ponto de vista objetivo” e “correspondência da linguagem com a realidade”. Não pensam que o seu propósito seja o de encontrar um vocabulário que represente algo de forma correta, um meio transparente, já que (...) [,agora,] “vocabulário final” não significa “o único que resolve todas as dúvidas” ou o “o único que satisfaz os nossos critérios de caráter definitivo, adequação ou excelência”. Não pensam que a reflexão seja governada por critérios. Os critérios, na sua perspectiva, nunca são mais do que os truísmos que contextualmente definem os termos de um vocabulário final correntemente em uso. (...) Concordam com Davidson quanto à nossa incapacidade para fugir da nossa linguagem a fim 16 de a comparar com outra coisa, e com Heidegger quanto à contingência e a historicidade dessa linguagem. (Rorty, R., 1992, p. 106) Retomaremos esta questão da figura do intelectual que emerge do “ideal de objetividade” nutrido pelo realista científico e do “ideal de solidariedade” nutrido pelo pragmatismo. Antes, porém, procuremos entender um outro momento da retórica de Rorty em demonstrar por que não deveríamos nos sentir premidos por envidarmos um “esforço consiliente entre as ciências naturais e humanas”. Se bem entendemos a última passagem aqui citada do texto de Wilson, ele parece afirmar que do enunciado de que a ação dos seres humanos envolve acontecimentos de ordem abolutamente física (tese inocente e com a qual qualquer um concordaria), deveria seguir-se, ato contínuo, que somente explicações do tipo que se desenvolveram nas ciências físicas são legítimas e merecedoras de crédito. Ora, mas esta conclusão está longe de ser forçosa. Reiteramos este ponto por conta da freqüência com que este falso argumento é apresentado para sustentar posturas reducionistas ou eliminativistas: Parece-nos consistir numa confusão óbvia fazer seguir da idéia trivial de que de toda a ação humana, por mais complexa que seja, se dá em um mundo material, a outra idéia dela totalmente desvinculada, a saber, a de que ele só possa ser descrito no vocabulário das leis causais que regem esse mesmo mundo. A primeira tese é trivial, mas a segunda nunca foi uma conseqüência lógica daquela! Se não, vejamos: Ora, por mais genial que seja Picasso, seus quadros não deixam de ser regidos por leis de composição cromática. No entanto, se quisermos saber algo sobre o impacto de 17 Guernica e sobre a possibilidade desta obra nos ajudar a redescrever a experiência da guerra, bem pouco nos importará saber a constituição química das tintas com que ele obteve os tons de cinza ali presentes. O vocabulário e o nível de descrição aos quais se devem recorrer são inteiramente outros. Já um copista com a intenção clara de reproduzir com grande exatidão a tela se interessará muito por aquele tipo de descrição. Dizer, então, que, por conta de Guernica estar submetida às leis usuais do cromatismo, que o historiador de arte deva se confinar ao vocabulário da química dos pigmentos ou buscar aí seus insights mais valiosos é de um absurdo risível. No entanto, é exatamente isto que Wilson está a dizer! Dos exemplos dados parece se seguir, agora, de forma persuasiva, que toda descrição vem, enfim, a ser desenvolvida relativamente a algum interesse, conforme nos lembra Hilary Putnam (1978). A melhor descrição nunca o é em termos absolutos. É bastante útil, então, imaginarmos que toda descrição funciona como uma ferramenta para uma determinada tarefa (como nos sugere Rorty), mas Wilson, negligenciando toda esta conversação, ora nos parece alguém que acredita que a caixa de ferramentas do conhecimento atual merece ser esvaziada de muito de seu material ora pretende unir seu conteúdo, no afã de obter um instrumento mais poderoso. Logo, tendo ouvido as admoestações de Putnam e Rorty a esse respeito, nossa perplexidade pode ser enunciada assim: Se ninguém pensaria em unir um martelo a um serrote e, muito menos pensaria estar obtendo um instrumental “mais preciso” com essa excêntrica operação, por que razão a idéia de promover uma consiliência entre as ciências humanas e naturais soa tão persuasiva a nós? Não obstante o registro de nossa perplexidade, as razões (ao que parece, equivocadas) que levam à proposta de tal junção não conseguem se ver “terapeutizadas” e 18 vêm se mostrando tão imperativas que, como dissemos, seguindo o padrão do “retorno do recalcado”, o espectro da “ciência unificada” volta, mais uma vez, a assombrar-nos! Richard Rorty, em um artigo, Against Unity, que comenta a obra “Consiliência”, de Wilson, faz uma observação precisa sobre este ponto. Insiste ele, por este novo detour, contra a premência da “unificação”, que nossos vocabulários explicativos e descritivos, com suas lentas histórias evolutivas, são como os dentes e a cauda lentamente desenvolvidos de um castor: Eles são dispositivos admiráveis de aperfeiçoamento da posição de nossa espécie. (...) Os vocabulários da física e da política [, por exemplo,] não precisam ser integrados um ao outro mais do que a cauda de um castor precisa ser integrada aos seus dentes. Para os filósofos que adotam esse modo pragmático, biologista, de pensar sobre a relação entre a linguagem e a realidade, não há um problema da unidade do conhecimento assim com não há um problema da unidade do ser humano. Se observarmos atentamente o que Rorty está a dizer nesta esclarecedora passagem, a qual nos permite ver o pragmatismo como a aplicação das metáforas darwinistas ao conhecimento, não ficaremos mais preocupados com a presença de um “fosso” entre as ciências naturais e as Humanidades – o tal “fosso” detectado por Wilson. Não há nenhum “elo perdido” que unirá o que foi desenvolvido, em um primeiro momento, por caminhos diferentes. Teremos superado esta preocupação justamente por termos redescrito a forma como desejamos entender a linguagem e o conhecimento. Teremos sido, insistimos no termo, “terapeutizados” deste falso problema, como dizia Wittgenstein ser (também insistimos!) a tarefa da filosofia. Para Rorty, que diz não conseguir entender por que 19 Wilson é tão premido pela questão da consiliência, as coisas são mais simples se entendidas sob seu prisma pragmatista: Eu tenho dificuldades em ver por que Wilson crê que esta questão seja tão urgente. (...) As ciências naturais dizem-nos como as coisas e as pessoas funcionam, e, portanto, capacitamnos a adaptar coisas e pessoas para as nossa necessidades. As Humanidades não nos dizem como qualquer coisa funciona, mas dão-nos sugestões sobre o que fazer com as coisas e pessoas (...) e que novos tipos de coisas e pessoas nós deveríamos tentar inventar. (...) Quando nós sabemos o que nós queremos, mas não sabemos como obtê-lo, nós recorremos à ajuda das ciências naturais. Nós recorremos às Humanidades e às artes, quando nós não estamos certos daquilo que deveríamos querer. Esta divisão tradicional do trabalho tem funcionado muito bem. Portanto, não parece claro por que razão nós necessitamos de uma consiliência adicional, a qual é o objetivo de Wilson. Rorty não nos cansa de lembrar que, conforme nossos objetivos, há inúmeras formas de se descrever coisas e pessoas, e que esta pluralidade não nos deveria aparecer como um problema. Parece ser, na verdade, o desejo um tanto teimoso, e algo desarrazoado, de totalidade, nutrido por parte de Wilson, que faz com que ele veja, em vocabulários que não precisam ser conciliados, uma incompletude desconcertante. Uma vez mais, lembremos que este sentimento não é compartilhado por qualquer pessoa que tenha uma visão instrumental da “linguagem”, do “conhecimento” e da “verdade”. O que me parece como uma divisão do trabalho cultural razoável e necessária, se apresenta a Wilson como uma fragmentação. 20 Seja observado que, agora, Rorty já anuncia explicitamente sua própria posição sobre o que julga ser o nonsense do projeto de unificação e o faz calcado no que entende ser uma “divisão de trabalho” a partir de objetivos radicalmente distintos com que se comprometem ciências naturais e humanas. Acentuamos que, neste momento, de maneira semelhante à forma com que nos posicionamos acima e, contrariamente a um primeiro momento de seu pensamento, Rorty diz efetivamente haver uma diferença entre os dois campos. Exposto isto, retomamos o ponto importante levantado acima. Ali, dizíamos, que há bastante interesse em se observar que os lugares imaginados para o “intelectual” por Wilson, o objetivista, e por Rorty, o pragmatista, são igualmente diferenciados e que estes se relacionam diretamente com a forma com que descrevem o conhecimento. Imaginar o papel do intelectual nas Humanidades à luz da prática das ciências naturais pode levar a conclusões chocantes. Assim, causa-nos espécie a comparação feita por Edward Wilson entre a imensa capacidade de intervenção sobre a natureza já alcançada pelas ciências físicas e o “fracasso” do cientista social em fazer o mesmo com a cultura. Devidamente ouvida, esta comparação nos remete para a recapitulação do cientista social como um expert ao qual caberia guiar a cultura por uma série de soluções divisadas por um tipo específico de sujeito, o sujeito competente (5) – o que coloca a ciência num patamar hierarquicamente superior dentro da sociedade e delega ao cientista social uma função de deliberação sobre os problemas da cultura, que não nos parece, em absoluto, pertencer, de maneira inequívoca, exclusivamente a ele. Estranha noção de cultura; estranho lugar para os intelectuais. Se não, vejamos: 21 A situação atual das ciências sociais pode ser posta em perspectiva, comparando-as com as ciências médicas. Ambas foram encarregadas de grandes e prementes problemas. (...) Espera-se dos cientistas sociais que indiquem como moderar o conflito étnico, converter países em desenvolvimento em democracias prósperas e otimizar o comércio mundial. (p. 173) Diz-nos Wilson tais coisas, porque ele encara o fenômeno cultural à semelhança de um fenômeno natural e acredita que os intelectuais que se debruçam sobre a cultura o fazem tão-somente movidos por ideais de objetividade. Mas uma cultura não é uma célula, e seus integrantes tampouco são organelas (possuem “vozes” – no sentido que Mikhail Bakhtin empresta ao termo – e representações distintas do lugar em que se encontram e do que querem em função desses lugares distintamente ocupados!) e as estratégias apoiadas por intelectuais muito dificilmente se assemelham a princípios universais do tipo causa-eefeito. A insistência no uso deste vocabulário cientificista nas descrições do enredo sociocultural e no papel atribuído ao cientista se deve, é claro, à divinização que Wilson faz do ofício das ciências naturais. Fetichismo da ciência. Idolatria mesmo. Esta, nos escritos de Wilson, figura como sinônimo (aparentemente perfeito) de “cultura superior” e é situada como sendo responsável pela construção da mais perfeita “forma de vida”. Confira-se a passagem: A ciência não é uma filosofia nem um sistema de crenças. É uma combinação de operações mentais que se tornou cada vez mais o hábito dos povos cultos, uma cultura de iluminações a que se chegou por um golpe afortunado da história que produziu a forma mais eficaz já concebida de aprender sobre o mundo real. (p. 43) 22 Encontra-se aí uma descrição totalmente reificada da ciência. Ela aparece como um exercício não-humano, “afortunadamente descoberto” e não inventado por uma cultura, que consiste meramente em refletir a realidade. O problema com este tipo de descrição é que, então, a ciência deixa de aparecer como se constituindo a partir de um conjunto de problemas colocados por motivações sócio-históricas. O saber científico, aí, passa a ser descrito de uma maneira que não inclui um sujeito indagador contextualmente localizado e que trabalha com determinadas preocupações e determinado vocabulário justamente em função deste local cultural. A propósito, perceba-se, nesta passagem, que a presença do exercício científico, incansavelmente elogiado por Wilson, é o que conferiria, para este autor, o status de maturidade intelectual a uma cultura. Além de ao antigo projeto de “unificação da ciência”, retorna-se aqui a uma redução do próprio conceito de razão à sua dimensão mais técnica e mais meramente operatória. Que não sejamos mal-entendidos: Quem, em sã consciência, negaria a superioridade das narrativas científicas no que diz respeito ao poder de previsão e controle dos eventos naturais? Mas, por outro lado, quem, ilustrado pela simples experiência da vida, poderia imaginar que todas as narrativas de que nos valemos no quotidiano são movidas por tais ideais de previsão e controle? E quem, também, proporia a eliminação de reflexões sobre esta mesma vida quotidiana que se fizessem sob o norte de outros ideais, como aqueles provindos da literatura? A julgar pelas passagens acima, aparentemente, Wilson o faria. Mas isto equivale ao absurdo de querermos “ilustrar” um domínio que se faz com determinados objetivos a partir de um outro que cumpre objetivos inteiramente diversos. 23 Equivale, por exemplo, ao nonsense de querermos criticar as fábulas de Esopo, e até mesmo de eliminá-las, substituí-las, com base nos resultados obtidos pelos estudos contemporâneos sobre o comportamento animal. De qualquer forma, o mais urgente mesmo, neste caso, é lembrar a alguém como Wilson que tem sido o objetivo maior das Humanidades, não produzir pessoas que dessem as respostas corretas para uma cultura seguir, como ele imagina seu ideal do intelectual, mas sim alargar o campo do diálogo, procurando inserir o maior número possível de “vozes”. Descobrir com que vocabulário final deveríamos nos pôr a falar, para finalmente podermos divisar daí alguma ética, é novamente apostar no projeto positivista que alia a tarefa civilizatória à reforma do entendimento e e a reforma deste ao assentimento da superioridade intelectual da ciência. Esta é a retórica com que Auguste Comte, por exemplo, criticava às tentativas meramente práticas de reformulação da sociedade promovidas por seu antigo mestre Saint-Simon. Ou com que, mais recentemente na história, o behaviorista B. F. Skinner procurou relegar a psicologia folclórica com que nos entendemos à dimensão das “ficções explicativas”, acusando-a de estar a impedir-nos de ter uma imagem mais consistente de nós mesmos e resolvermos nossos problemas sociais. Eram, a propósito, para Skinner, a literalização dessas “ficções explicativas”, as quais, no seu entender deveriam ser eliminadas, como foram eliminados pela Química e pela Física os já mencionados “flogístico” e “calórico” dos séculos XVIII e XIX, que nos impedia de abraçarmos Walden II, a sociedade planejada a partir da análise experimental do comportamento, telos do homem esclarecido pela ciência e onde viveria, enfim, a “boa vida”. Nos dois exemplos, assim como em Wilson, é a figura do intelectual, usuário de uma linguagem ideal (com que legitima a hierarquia que o eleva acima do “homem comum”, 24 dos “outros”, dos “prisioneiros da caverna”), que deve ditar o jogo que doravante se deve jogar. Figura platônica, este intelectual perde sentido, como dissemos, no jogo que as Humanidades querem ajudar a instituir. O projeto utópico de uma sociedade que ganha em perfectibilidade à medida em que seu idealizador é “aquele que sabe”, o rei-filósofo (ou, no caso, o rei-cientista), enfim, não encontra lugar na retórica pragmatista que estamos a defender contra o projeto da Consiliência. De nosso ponto de vista, Wilson é um descendente direto do tipo de intelectual que figura na Casa de Salomão da Nova Atlântida de Bacon. A propósito, essa genealogia não seria por ele contestada, se tivermos em conta o cap. II de sua obra programática. No entanto, do que foi exposto até agora, em nada nos parece evidente que a figura desse intelectual deva emergir como conseqüência espontânea de um pensamento que deva ser corrigido, como parece sugerir o autor aqui criticado. Tampouco nos parece evidente que o programa da consiliência possa promover o progresso que as Humanidades, com a sua retórica sempre “plena de meras metáforas”, ainda não obteve. Parece-nos, ademais, tremendamente problemáticos o emprego do vocábulo “progresso”, na acepção positivista com que Wilson o faz, e seu desejo de importá-lo para as Humanidades, depois de avaliálas pelo mesmo critério. Por fim, parece-nos risível dizer, como Wilson efetivamente o diz, ser um mero ato de aquiescência ao óbvio fazer da filosofia uma ancilla da ciência, pronta a ser dispensada quando esta última se tornar conhecedora de uma forma de lidar com aquilo que hoje é feito pela disciplina supostamente subalterna (6). Precisamos lembrar o círculo contraditório, tantas vezes lembrado aos positivistas do Círculo de Viena, com que se 25 autodestroem, essas tentativas de fazer da ciência o único tipo de discurso que faria sentido? O projeto de Wilson precisa ser escutado para que saibamos de que posição exatamente ele enuncia sua perspectiva. A nosso ver, essa posição pode ser caracterizada como exposta a seguir. Em um conto muito conhecido, Borges nos fala de um ponto de vista, que, uma vez ocupado, permite, ao agraciado com a oportunidade, conhecer tudo o que há para ser conhecido. O Aleph, como é chamado este ponto de vista que providenciaria “a concepção absoluta da realidade”, no conto do escritor argentino, vez por outra, é apresentado na filosofia como a única saída à ameaça do relativismo epistemológico. Recentemente, foi apresentado por Thomas Nagel (1986) como “the view from nowhere” ou como um telos impessoal para o qual converge o conhecimento e que funciona como um norte na resolução dos conflitos entre as diferentes narrativas, dando “a última palavra” (2001). Este telos parece resistir a ser dispensado mesmo por posturas francamente opostas ao realismo metafísico, como é o caso de da perspectiva de Hilary Putnam (1981). Todo o objetivo pragmatista reside em tornar o recurso a este telos dispensável, sem que lhe possa ser imputado o epíteto escarnecedor e filosoficamente indefensável de “relativista”. Por outro lado, sem dúvida, a inspiração de Edward Wilson é fazer da ciência um tal Aleph, imaginando para ela o lugar vago da metafísica tradicional. 26 Notas : 1. Não nos esqueçamos de que os trabalhos de Kuhn e Feyerabend ganham repercussão dentro da atmosfera da revolução dos costumes, da contestação à Guerra do Vietnã, da Primavera de Praga, dos movimentos de expressão das minorias e de segmentos oprimidos; enfim, dentro de um contexto onde a palavra de ordem era estranhar a versão oficial, a naturalidade das narrativas, a inocência dos significados. 2. É claro que as motivações e as conseqüências da defesa de certas idéias diferem com relação ao contexto em que estas se inscrevem. Por exemplo, Ronald Giere (1999. p. 14) sugere que “parte do significado da distinção [entre contexto da descoberta e contexto de justificação] se devia, em Reichenbach, a sua recusa em crer que as características de uma pessoa propondo uma hipótese científica tivesse algo a ver com a validade científica da hipótese proposta. Isto se aplica, em particular, se a pessoa no caso é um judeu. Reichenbach parece ter estabelecido, com isto, uma precondição, para qualquer epistemologia científica, que exclui a possibilidade de qualquer distinção entre, por exemplo, uma ciência judia e uma ariana.” Note-se que a defesa de uma distinção radical, aí operada pelos positivistas lógicos, entre, de um lado, o campo metodológico e, de outro, os campos sociológico e psicológico, conseguiu funcionar, neste contexto específico, como ferramenta útil e com fins libertários. É, nesse sentido, interessante observar que o próprio Reichenbach desenvolve estas idéias, entre os anos de 1933 e 1938, na Nova República de Mustapha Keman, na Universidade de Istambul, onde buscará refúgio, após ter sido demitido da Universidade de Berlim, juntamente com cinqüenta outros professores alemães, por conta das leis raciais nazistas, introduzidas em 1933 (Giere, R., op. cit., p.13). 27 3. Não conhecemos melhor maneira de apontar para o caráter contingente de nossa subjetividade que lembrar dois exemplos explorados pelo antropólogo interpretativo Clifford Geertz. O primeiro exemplo diz respeito às diferentes concepções que os povos ocidentais, os navajo e os pokot fazem daquilo que conhecemos por “hermafroditismo” ou “intersexualidade”. Na descrição que Geertz nos dá da forma com que os navajos vêem (“cultuam”, seria a palavra certa!) o hermafrodita, longe de ser uma patologia a ser corrigida ou uma fonte de ansiedades e contínuos problemas, ele seria, por conta da sua completude, o responsável pelo bom funcionamento e pela própria continuidade do grupo... De forma que leva o nosso senso comum aos limites do que julgamos ser possível, um homem (ou mulher) navajo sexualmente bemformado, como nos expressaríamos, sente-se como incompleto diante daquele ser mais pleno, intermediário entre os mundos humano e divino. O segundo é ainda mais impressionante e analisa a contingência de um conceito cujo conteúdo é tido costumeiramente por auto-evidente: trata-se do conceito de self. Desta vez, Clifford Geertz relata suas próprias pesquisas sobre as diferentes concepções de eu entre os javaneses, os balineses e os marroquinos. Sua descoberta mais impressionante, a meu ver, diz respeito à completa ausência da idéia de uma individualidade entre os balineses. Este grupo simplesmente não conseguiria entender nossa constructo “personalidade”. Encaixando-se em papéis préfixados, é sua tarefa fazer funcionar uma eterna peça, que é o que ali verdadeiramente importa. A identificação com tais dramatis personae é em tudo avessa a nossas obsessões atuais por singularidades diferenciadas. Wilson não parece ter a menor curiosidade por estes e outros exemplos daquilo que se convencionou chamar por “construcionismo lingüístico”. Ao invés disso, na sua defesa de uma mente impermeável a determinações lingüísticas, ele cita os interessantes trabalhos de Brent Berlin e Paul Kay, sobre o caráter aparentemente não tão contingente das classificações de cores, e de Eleanor Rosch, que acabou por encontrar evidências empíricas contra a hipótese Whorf-Sapir, no seu estudo com os dani, da Nova Guiné (cf. Wilson, 1999, cap. VII). Sim, é bastante provável que Eleanor Rosch tenha descoberto algo de muito interessante sobre a independência do processo de reconhecimento das cores com relação à linguagem utilizada. Os dani, por exemplo, saem-se tão bem como os americanos nesta tarefa, ainda que não contem, como estes, com um vasto léxico para se referirem às cores. Em realidade, os dani só possuem 28 duas categorias para cores, a saber, mili (para matizes escuros e frios) e mola (para matizes claros e quentes). Mas será mesmo que desses resultados triviais que parecem apontar para uma preparação biológica para o reconhecimento das cores (preparação esta que parece impermeável à variabilidade lingüística que o whorfiano ou o nominalista, em um primeiro momento, poderiam estar dispostos a defender) deveria seguir-se, de fato, uma “teoria da natureza humana”? A imensa parte do nosso sistema de classificação se estende para além destes casos interessantes mas (repetimos) triviais, analisados por Wilson. A evolução, é claro, pode ter-nos aparelhado para classificar de maneiras fixas determinados domínios do real, até mesmo bem mais complexos que o domínio das cores, apontado pelo nosso naturalista. Mais conceitos como “personalidade”, “sexualidade”, “subjetividade” não parecem de grande valia para entendermos um passado distante de nós ou outras culturas. Do que sabemos da Psicologia Histórica e da Antroplogia Interpretativa, parecem antes tomar parte em descrições contingentes que inventamos para dar conta de necessidades igualmente circunstanciais. E é neste sentido que o pragmatista procura alertar para as tentativas apressadas e negligentes, que, a partir de resultados como estes, pretendem imaginar uma revolução intelectual que traria de volta o projeto de uma teoria da natureza humana. 4. Seja notado que Wilson, então, atribui a própria existência da disciplina da História a um estado que poderíamos chamar de “ignorância pré-científica”. Assim, como a história natural precedeu, com seu exercício meramente descritivo, à disciplina científica da Biologia, estamos autorizados a pensar pela passagem, que Wilson acredita que leis gerais da História vão acabar por ser descobertas à medida que se rastrearem dados de inúmeras sociedades. Só então, o estágio protocientífico e folclórico da História cederia a uma verdadeira ciência da evolução do curso humano. Estranho o exercício cientificista de Wilson culminar com os mais ousados insights idealistas de Hegel! Igualmente estranha é sua concepção bastante anacrônica de que então é possível fazer previsão em História... Popper já não nos havia esclarecido em A Miséria do Historicismo, através de um silogismo, que, sendo a transformação do conhecimento científico imprevisível e que, sendo o processo histórico claramente influenciado pelo conhecimento científico, estaria vedada a possibilidade de previsão na História. E, quanto à História, 29 existirá mesmo ainda a possibilidade, depois de Michel Foucault, de darmos sentido à idéia de “uma única narrativa histórica”? 5. De fato, esta era a função que Durkheim atribuía ao cientista social (cf. Putnam, H., 1992, p. 188 e 223). O ponto aí é que a sociedade era imaginada como um fato como qualquer outro – “o fato social”. Seguiase desta lógica positivista, então, que se imaginasse um lugar elitista para o cientista social como “aquele que sabe o que fazer” e, conseqüentemente, “aquele que está autorizado a dizer o que se deve fazer”. Ao se imaginar, contrariamente, que a sociedade é um campo de contradições que encerra em si um grande número de vozes, a idéia de uma “solução objetiva” para seus problemas torna-se inútil. Impossibilita-se, com isso, também que se localize exatamente no cientista a única personagem da cultura que poderia apresentar aquela solução. Mais democrático, acreditamos, é imaginar os intelectuais de uma comunidade como figuras que podem propor alternativas e ajudar na orquestração do diálogo. Na verdade, a posição de Wilson quanto ao ponto é antiga: Supõe que, num mundo ideal, teríamos um “rei-cientista”. Mas isto só atualiza mesmo o equívoco de se supor que uma pessoa que supostamente conheça bem os mecanismos de funcionamento da sociedade deva também dizer para onde a sociedade deva se encaminhar. Ora, trata-se de dois momentos de análise completamente distintos, embora autores como Wilson façam de tudo para que não se perceba a diferença. A distinção, no entanto, segue sendo gritante: Alguém pode conhecer muitíssimo bem o funcionamento interno de um barco a vapor, mas isso não quer dizer que caiba a ele, e não aos passageiros, decidir para onde o barco deva ir. 6. Questão inquietante: O que levaria Wilson a subescrever Alexander Rosenberg quando este nos diz que “a filosofia na verdade aborda apenas duas questões: as perguntas que as ciências – físicas, biológicas e sociais – não conseguem responder e as razões dessa incapacidade” (apud Wilson, op. cit., p.10) ? A ingenuidade (a indigência intelectual?) de Rosenberg é ainda mais patente quando ele nos diz: “É claro que pode não haver nenhuma pergunta a que as ciências não consigam responder no final, a longo prazo, quando todos os fatos forem conhecidos, mas decerto há questões às quais a ciência não consegue responder ainda”. Trata-se de um caso grave de “as novas roupas do imperador”. Afinal de contas, os valores que devemos adotar para a construção das vidas pública e privada podem ser destilados do 30 exercício científico? Evidentemente que não. Mas supor uma resposta afirmativa não seria, inclusive, já uma sintomática inobservância (um esquecimento mesmo!) do aspecto criador da vida humana? E, a propósito, todo esquecimento não é mesmo um processo ativo? Neste caso, em nome do quê, então, se esquece aqui? Referências Bibliográficas: FEYERABEND, P. Adeus à Razão. Lisboa: Edições 70, 1991. FEYERABEND, P. Contra o Método, 3a edição. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. GEERTZ, C. O Saber Local. Petrópolis: Vozes, 1998. GIERE, R.N. Explaining Science: A Cognitive Approach. Chicago: University of Chicago Press, 1988. GIERE, R.N. Science Without Laws. Chicago: University of Chicago Press, 1999. KUHN, T. S. The Structure of Scientific Revolution, 3rd edition. Chicago: University of Chicago Press, 1996. NAGEL, T. The View from Nowhere. New York: Oxford University Press, 1986. NAGEL, T. A Última Palavra. São Paulo: Unesp, 2001. POPPER, K. A Miséria do Historicismo. São Paulo: Cultrix / EDUSP, 1980. POPPER, K. 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