Íntegra do discurso da ministra Ellen Gracie

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Solenidade de Outorga do Título de
Doutora Honoris Causa
pela Academia Brasileira de Filosofia
Discurso de Sua Excelência a Senhora
Ministra Ellen Gracie Northfleet
Presidente do Supremo Tribunal Federal
Rio de Janeiro, 29 de março de 2008.
Foi com um misto de pânico e maravilhamento que recebi a
comunicação de que me seria outorgada esta honraria que muito me
desvanece.
Ser entronizada à convivência intelectualmente estimulante
desta academia a um só tempo encanta e intimida.
Posso proclamar a esta altura que só sei que cada vez sei menos.
Não apenas por que o campo do conhecimento se alarga aceleradamente,
mas porque a inevitável degenerescência neuronal já faz com que, mesmo o
que antes era sabido, ingresse lenta, mas inevitavelmente no oblívio.
No entanto, esta constatação não reduz a alegria de estar aqui
entre vós, confiante em encontrar condescendência para minhas limitações.
Estou
consciente,
Senhores
Acadêmicos,
da
importância
simbólica do momento em que Vossas Excelências deliberaram outorgar
este título a uma mulher brasileira cuja trajetória profissional a levou a
exercer diversas funções judiciais e, a final, a Presidência da mais alta
Corte do país, o Supremo Tribunal Federal.
1
Quando assumi minha cátedra, passados hoje quase dois anos,
afirmei que ali estava em representação da metade feminina da população
brasileira que passa a ter acesso e a considerar-se intitulada ao exercício de
posições de responsabilidade na condução dos destinos nacionais.
É com a mesma humilde reverência a minhas patrícias que recebo
a distinção que a generosidade dos acadêmicos me atribuiu.
O
título
que
hoje
me
é
conferido
aumenta-me
as
responsabilidades, mas traz consigo um suave sabor de reconhecimento
pela trajetória percorrida. Também eu, Senhor Presidente, já alcancei um
estágio da vida em que “nada é mais valioso do que o apreço de meus
concidadãos” (Péricles).
A par disso, vem-me a honraria com o afago de amizade antiga
que inspirou as palavras generosas do poeta Carlos Nejar. Dele tenho
recebido ao longo dos últimos trinta anos demonstrações carinhosas de
afinidade de espírito capaz de vencer tempo e distancia e que a cada
ocasião nos faz reatar um dialogo em que se mesclam as belezas da
presciente poesia, esta “forma mais elevada da expressão humana” 1 , com
as preocupações objetivas pela realização da melhor Justiça.
Sabem os que são amigos da sabedoria o quanto é frágil nossa
capacidade de apreender a verdade.
Podem, portanto bem imaginar a
extensão do conflito interior que acompanha inexoravelmente aqueles a
quem se comete a tarefa de estabelecer certezas.
E certezas com
conseqüências, sejam conseqüências sobre questões materiais e de estado,
sejam mesmo conseqüências sobre a liberdade humana.
1
Wilson, Edward O. , “A Criação – Como salvar a vida na Terra”, São Paulo, Companhia das Letras,
2008, p. 74.
2
A angústia da falibilidade que acompanha os juristas e sobremodo
os magistrados pode ser tão dolorosa quanto à certeza da finitude e pode,
com esta, servir de estímulo à reflexão profícua e ao aperfeiçoamento.
Por todas essas razões adentro respeitosamente a esta casa de
inquietude intelectual.
É este o ambiente propício para expressar as dúvidas criativas; as
dúvidas estimulantes de novas formulações; as dúvidas que levam a revisão
de conceitos antes estabelecidos.
Parto de dois pontos que parecem dar à filosofia moderna matizes
diversos de tudo quanto já se cogitou quanto à existência do universo e do
próprio ser humano, bem como quanto a sua capacidade de se autoconhecer e de reconhecer algum sentido à realidade.
O primeiro deles diz respeito à quantidade de conhecimento hoje
acumulada pela humanidade. Nunca, em período anterior de nossa história
reunimos tal volume de informações sobre as áreas mais diversas do
conhecimento. Nunca, também, foi o conhecimento mais democratizado e
difundido. O cidadão comum tem hoje acesso a informações a que seus
avós jamais imaginaram aceder.
Tanta informação, repartida entre disciplinas estanques e,
portanto, assistemática e fragmentária, parece, todavia, pouco servir, na
medida em que não se vê a humanidade progredir no sentido da
conciliação, da concórdia, da pacificação, da elevação das condições de
vida para o maior número de pessoas.
3
O excesso de informação e sua veiculação direcionada têm, por
vezes, o efeito perverso de substituir antigas superstições por novas
crenças, não menos falsas. Ademais, a excessiva oferta de informação
permite a omissão impercebida de tantos outros fatos e dados que deveriam
ser igualmente sopesados para a formulação de uma análise isenta.
Por fim, a pletora exorbitante de dados novos já não permite a um
ser humano metabolizar, reter e operar senão fragmentariamente o
conhecimento. Daí a necessidade das especializações cujo campo a cada
vez mais se estreita, para permitir o aprofundamento da pesquisa.
Desenvolvendo-se isoladamente, os ramos de conhecimento
ignoram-se reciprocamente quando, na verdade, todos eles revelam tão
somente métodos diversificados para alcançar maior profundidade do
conhecimento, na sua configuração humanista.
Incapaz de reter e operar a massa de conhecimento acumulada em
apenas um dos sub-ramos de indagação o ser humano depende
crescentemente de cruzamentos analíticos realizados por computador.
Amplia-se assim a capacidade humana de memória e de inter-relação. A
inteligência artificial é campo em rápida evolução e repleto de incógnitas
éticas.
No entanto, como refere Edward O. Wilson “a crescente
fragmentação do conhecimento e o resultante caos filosófico não refletem
o mundo real. São antes, artefatos pedagógicos.” 2 Por isso, propõe este
autor um retorno ao chamado Encantamento Jônico, expressão cunhada por
James Holton, pela qual se registra “uma crença na unidade das ciências –
2
Wilson, Edward O. , “Consilience – The Unity of Knowledge”, New York , Random House, Inc., 1999,
p. 8.
4
uma convicção de que o mundo seja ordenado e possa ser explicado por
um pequeno numero de leis naturais.” 3
Pois, somente a Filosofia fornece os recursos adequados para a
síntese intelectual que se faz necessária. Foi a Filosofia que retransmitiu,
de geração a geração, a força e a continuidade do pensamento.
Esta a significância da tarefa filosófica atual: agregar num todo
harmonioso e complementar o conhecimento parcelado e expandido que a
humanidade acumulou para alcançarmos uma nova “era de síntese” que
direcione esse progresso ao serviço da humanidade.
O segundo dos dados fáticos que, a meu sentir, colorem de um
novo matiz toda a especulação filosófica tem data certa e conhecida de
ocorrência. A partir de 6 de agosto de 1945 sabe a humanidade que sua
própria existência como espécie encontra-se ameaçada. Já não representam
as guerras apenas o risco de que pereça a flor da juventude de cada
sociedade, mas podem elas vir a significar a própria extinção da vida sobre
a Terra. Uma tal perspectiva devolve a sua insignificância todas as demais
preocupações.
Se o ser humano, desde os primórdios, compensou
psicologicamente a inevitabilidade da morte com a confiança na
sobrevivência de sua descendência, após Hiroshima, como agudamente
reflete Arthur Koestler, deve tratar de conviver com “a perspectiva de sua
extinção como espécie”. 4
3
4
Idem, ibidem, p. 4-5.
Koestler, Arthur, “Jano”, São Paulo, Melhoramentos, p. 15.
5
Este dado não estava disponível ao tempo da formulação de todas
as doutrinas filosóficas em que costumamos nos louvar. “É preciso rever
nossos axiomas.” 5
Há toda uma nova filosofia a ser desenvolvida. É necessário que
nosso inegável enriquecimento cultural, científico e tecnológico sirva a um
aperfeiçoamento civilizacional, a ser informado pelos valores da tolerância
religiosa, do respeito entre os povos, do reconhecimento dos valores da
diversidade cultural e da superior dignidade do ser humano.
Acrescentar esta profunda inspiração ética e teleológica ao
progresso científico corresponde à mais urgente das tarefas que a
humanidade tem diante de si. Nunca foi mais importante que nos nossos
dias a função dos filósofos. Agregar e direcionar o conhecimento humano
não é apenas útil e necessário. É indispensável e premente.
Por isso, quando os Senhores Acadêmicos abrem-me as portas
desta Casa, é com comovido respeito que deposito junto aos umbrais da
Academia essas dúvidas e angústias existenciais de um novo tempo. ■■■
5
Idem, ibidem.
6
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