Neoliberalismo e crise na economia argentina: algumas constatações sobre os anos 1990 e 2000 NEOLIBERALISMO E CRISE NA ECONOMIA ARGENTINA: ALGUMAS CONSTATAÇÕES SOBRE OS ANOS 1990 E 2000 17 * Herton Castiglioni Lopes Resumo: O artigo apresenta como objetivo analisar a recuperação econômica da Argentina no período imediatamente posterior a crise dos anos 1990 e 2001. Defende a ideia de que mesmo apresentando alguns indicadores de melhor desempenho, diversos problemas estavam presentes ao longo dos anos 2000, levando a concluir que a economia do país vizinho pouco avançou em termos de desenvolvimento. Além do mais, acreditase que após um período de significativa redução no crescimento, alcançar uma melhora nos indicadores econômicos é fato esperado nas economias capitalistas. Palavras-chave: Argentina, Crise de 2001, Recuperação econômica. Abstract: This article presents analyzes the economic recovery in Argentina in the period immediately following the crisis of 1990 and 2001. Defends the idea that even with some indicators of better performance, several problems were present throughout the 2000s, leading to the conclusion that the economy of the neighboring country made little progress in terms of development. Furthermore, it is believed that after a period of significant reduction in growth, achieving an improvement in economic indicators is expected fact in capitalist economies. Keywords: Argentina, Crisis 2001, Economic recovery. Introdução No final dos anos 1990 e início dos anos 2000, após um período de acentuada liberalização econômica (receituário neoliberal), a economia argentina enfrentou uma das crises mais sérias de sua história. Contudo, depois de incontáveis problemas econômicos e sociais, observou-se que as taxas de crescimento da economia voltaram a ser mais expressivas. Essa etapa de “suposta” prosperidade econômica levou à crença de que a economia argentina inaugurara uma nova fase de desenvolvimento, o “novodesenvolvimentismo”. Esse modelo mescla aspectos do antigo desenvolvimentismo e forte participação do Estado, com políticas pró-mercado, buscando fortalecer ambas as instituições, um “Estado Forte” que garante a existência de um “Mercado Forte”. É inegável o fato de que a economia argentina apresentou melhores índices de crescimento após a crise, basta observar o desempenho do Produto Interno Bruto. No entanto, o objetivo deste trabalho é analisar o desenvolvimento econômico da Argentina no período imediatamente posterior à crise, demonstrando que a economia do país vizinho permaneceu com uma diversidade de problemas. Essa afirmação é referendada pela análise de quatro aspectos de significativa relevância: i) altos índices de crescimento do PIB são esperados após uma forte recessão econômica e não se tem garantias de que o crescimento seja sustentável, especialmente em função dos ciclos a que está sujeita a economia Argentina; ii) o drama social vivenciado manteve-se permanente (pobreza e concentração de renda estão entre os * Doutor em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, professor adjunto da Universidade Federal da Fronteira Sul, e-mail: [email protected]. R ev ist a Cad ern os de E con omia, Chap e có, v. 1 7, n. 3 3, p . 17 -34, j ul./ d ez. 201 3 Neoliberalismo e crise na economia argentina: algumas constatações sobre os anos 1990 e 2000 problemas); iii) a participação do Estado na economia é muito modesta, especialmente no que tange a promoção do bem-estar e incentivo ao desenvolvimento; iv) o crescimento econômico continuou sendo impulsionado pelo setor primário-exportador, o que deve ser considerado um problema por sua vulnerabilidade. Metodologicamente, o trabalho inicia por uma pesquisa bibliográfica que subsidia a análise dos ideais neoliberais que balizaram a política econômica do país vizinho. A pesquisa bibliográfica ainda referenda a discussão do novo-desenvolvimentismo, a partir de autores que vêm se esforçando em caracterizar esse modelo. Na sequência, realiza-se um levantamento de dados e informações que possibilitam confirmar as colocações feitas no parágrafo anterior. Foram analisadas as variações do PIB e nível de emprego na Argentina. A questão social foi tratada a partir de indicadores de pobreza, concentração de renda e indigência, entre outros. Analisou-se ainda a participação do Estado argentino na promoção do desenvolvimento e a vulnerabilidade econômica que se reflete pela pauta de exportações do país. Para atingir o objetivo proposto, o trabalho apresenta-se assim estruturado: além dessa introdução, o item 2 mostra como a Argentina mergulhou em uma estratégia de neoliberalismo econômico. Esse item explora as razões que levaram o país a esse caminho e a decorrente crise, que teve início no final da década de 1990. O item 3 explora o “novodesenvolvimentismo” e analisa os quatro argumento antes mencionados. Por fim, o item 4 traz as considerações finais. Neoliberalismo e crise na década de 1990 O neoliberalismo sem restrições Os motivos que levaram a Argentina a mergulhar em um tipo de neoliberalismo que se destaca em relação às economias latino-americanas devem ser buscados em suas especificidades como nação. Deve-se, contudo, observar que essas políticas, embora mais rápidas e radicais, foram implantadas em um contexto mais amplo de reformas, cuja percepção de necessidade se difunde velozmente no pensamento econômico. Não apenas na Argentina, mas em praticamente toda a América Latina, as políticas neoliberais ganham força a partir da década de 80. O contexto é de abandono das ideias cepalinas1, em especial a de que o desenvolvimento econômico estaria relacionado com a promoção de políticas intervencionistas de estímulo ao setor industrial. Observou-se, nesse período, o que muitos consideram um esgotamento do modelo de desenvolvimento governado pelo Estado. Vários economistas passaram a acreditar que os problemas de baixo dinamismo eram decorrentes do excesso de intervencionismo estatal. A esse baixo crescimento econômico somavam-se os problemas de inflação elevada, alto deficit público, desemprego, etc. Os ideais neoliberais começam a se disseminar pelo mundo2, sendo praticamente aceita a ideia de que os países em desenvolvimento sofriam de diversos males por suas restrições em implantar as políticas recomendadas pelo Consenso de Washington. Apesar de se disseminarem rapidamente, tais políticas não foram imediatamente aceitas, conforme demonstra Silva (2013). O caso da Argentina, no entanto, chama atenção quanto à rapidez com que os ajustes foram realizados. Quais seriam os motivos para isso? As respostas para essa questão são respondidas a partir de duas particularidades do país vizinho. R ev ist a Cad ern os de E con omia, Chap e có, v. 1 7, n. 3 3, p . 17 -34, j ul./ d ez. 201 3 18 Neoliberalismo e crise na economia argentina: algumas constatações sobre os anos 1990 e 2000 i) a história de sucesso do modelo primário-exportador e a fragilidade do seu processo de substituição de importações3: Os argentinos possuíam uma lembrança muito agradável dos períodos de prosperidade econômica proporcionados pelo liberalismo. Foi assim em 1850, quando o país experimentou um rápido crescimento econômico liderado por seu modelo primário-exportador. Esse bom desempenho estendeu-se ao início do século XX e o país experimentou novamente altos índices de crescimento, impulsionados, dessa vez, pelas exportações de cereais. Os períodos de prosperidade, fundamentalmente resultado do dinamismo das exportações primárias, incentivados pela existência de poucas restrições ao livre funcionamento do mercado, deixaram boas recordações aos argentinos, criando a crença de que liberalismo econômico é sinônimo de progresso. Estreitamente relacionado a essa questão está o fato de que o processo de substituição de importações, ocorrido na Argentina, não obteve êxito em tornar a indústria o eixo dinâmico da economia. No período de 1946 a 1976, as tentativas de desenvolvimento industrial foram barradas pelo baixo dinamismo das exportações primárias, que não eram capazes de gerar as divisas necessárias às importações de produtos industrializados. Além disso, o mercado de trabalho argentino apresentava-se em constante conflito distributivo. A economia, operando próxima ao pleno emprego, garantia poder de barganha à classe trabalhadora, o que se chocava com os interesses das classes dominantes. Assim, a indústria não teve as condições necessárias ao seu florescimento, de forma que o eixo dinâmico da economia a continuou ser o setor primário. ii) os benefícios das reformas e da relação com os Estados Unidos: Esse ponto diz respeito ao pensamento argentino sobre os frutos que seriam colhidos das reformas liberalizantes e, por consequência, de uma relação mais próxima com os EUA. Cervo (2000) ilustra perfeitamente o pensamento predominante nas classes dirigentes sobre o assunto. Os argentinos acreditavam que um país em desenvolvimento não deveria manter atrito com a potência hegemônica, pois uma relação conflituosa, embora sem grandes custos no curto prazo, certamente traria grandes prejuízos futuros. As nações em desenvolvimento deveriam seguir os rumos ditados pelos países desenvolvidos, pois assim criariam um sentimento de reciprocidade e os ganhos econômicos das nações desenvolvidas seriam compartilhados com os países emergentes. Nesses termos, a autonomia da política exterior não estaria relacionada à sua capacidade de promover confrontos, mas em sua objetividade na obtenção de ganhos econômicos provindos da relação de proximidade com as nações poderosas. Para uma economia em desenvolvimento, a abertura econômica significava ganhos tecnológicos, pois segundo acreditava o ministro Cavallo, as nações desenvolvidas tinham uma dívida com as subdesenvolvidas, de forma que facilitariam esse salto evolutivo4. Mais do que isso, os argentinos ainda acreditavam que em troca do reconhecimento dos EUA como grande potencial mundial, tornar-se-iam a referência daquele país em assuntos relacionados à América Latina. Os EUA favoreceriam a modernização de suas forças armadas de forma que a Argentina se tornaria o “Braço Forte dos EUA na América Latina”. Procuravam ainda Criar uma zona de Paz no Cone Sul da América, para isso tendo fortalecido sua segurança mediante a obtenção do tratamento especial por parte dos EUA e sua inclusão como membro especial da OTAN. Além de uma relação privilegiada de poder, os argentinos esperavam acesso especial de seus produtos primários no mercado norte-americano. Portanto, além dos ganhos econômicos, esperavam ganhos militares e prestígio internacional, semelhante à época em que Perón estava no comando da nação. O país procurava romper definitivamente com o R ev ist a Cad ern os de E con omia, Chap e có, v. 1 7, n. 3 3, p . 17 -34, j ul./ d ez. 201 3 19 Neoliberalismo e crise na economia argentina: algumas constatações sobre os anos 1990 e 2000 fechamento econômico, implementado diversas reformas que em sua percepção iriam inaugurar um novo paradigma de desenvolvimento. Por excelência, um desenvolvimento voltado ao exterior (CERVO, 2000). Do neoliberalismo à crise A forte concepção desenvolvida pelos argentinos de que o melhor caminho para o desenvolvimento seria seguir o receituário neoliberal foi responsável pela consecução de uma rápida onda de reformas. As novas políticas seguiram as recomendações de Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, sendo pauta de controvérsia nas discussões sobre suas consequências no desempenho do país. Dentre as reformas que mais chamaram a atenção está o Plano de Conversibilidade. Implementado em 1991, o plano fixou a paridade do peso argentino de um para um com o dólar americano. O modelo adotado baseava-se num regime cambial duro, o currency board, que atrelava a moeda nacional ao dólar como uma forma de combater a inflação e resgatar a credibilidade junto às autoridades monetárias do país (BATISTA JÚNIOR, 2002; FERRARI; CUNHA, 2005). A implantação da conversibilidade foi eficiente na medida em que praticamente eliminou o problema inflacionário (Figura 1). Além disso, nos primeiros anos do plano, a economia do país vizinho apresentou melhores índices de crescimento econômico (Figura 2). Aparentemente, a nação observava uma luz no fim do túnel, já que até o momento convivia com um baixo crescimento econômico e elevados índices de inflação. Para se ter uma ideia dos problemas vivenciados até então, basta lembrar que em 1988, a crise se mostrava tão grave que o país suspendeu o pagamento da dívida externa. Em 1989, quando Carlos Menem assume o governo, a inflação anual apresentava-se por volta dos 5.000% e as reservas cambiais não chegavam a 500 milhões. Figura 1 - Variação do INPC na economia Argentina no período de 1990 a 2008 (abril/2008 = 100) Fonte: Indec (2008). O plano de conversibilidade mostrou sucesso inegável quando se trata do controle da inflação, pois fez com que a variação nos índices de preços se estabilizasse ao longo de toda a década. Contudo, o plano passou por diversos problemas, não sendo possível sua sustentação. A paridade cambial mostrou grandes dificuldades em absorver choques externos e, semelhante ao que se observou no Brasil, o crescimento baseado na expansão da renda superior ao próprio crescimento econômico - ocasionou significativo endividamento externo. R ev ist a Cad ern os de E con omia, Chap e có, v. 1 7, n. 3 3, p . 17 -34, j ul./ d ez. 201 3 20 Neoliberalismo e crise na economia argentina: algumas constatações sobre os anos 1990 e 2000 Os investimentos produtivos não foram suficientes para contrabalançar a entrada de capitais, de forma que o ingresso de recursos via taxa de juros elevada serviu apenas para financiar o consumo. O aumento dos juros internos, utilizado com o intuito de aumentar a entrada de recursos, fez ainda com que a conta de juros, no balanço de pagamentos, apresentasse significativo crescimento em sua posição deficitária no final da década de 1990 5 (CUNHA et al., 2006). Embora a tradição liberal acreditasse que a conversibilidade aumentaria o fluxo de capitais para o país, em função do aumento de confiança (BELLUZZO, 2000), o deficit em transações correntes foi um problema recorrente no Plano de Conversibilidade. O maior crescimento econômico observado no período de 1992 a 1998 (média de 6% ao ano) trouxe consigo um deficit de mais de US$ 60 bilhões, fato recorrente na economia argentina segundo Bello (2002). Esse deficit teve que ser financiado com a entrada líquida de capitais. Observase, então, o papel fundamental que desempenharam as privatizações para o modelo, pois somente em investimentos externos diretos o país captou os US$ 60 bilhões necessários (FERRARI; CUNHA, 2005). A situação foi se agravando conforme se chegava ao final da década de 90, principalmente em função da sequência de choques exógenos que sofreu a Argentina durante o período. A fuga de divisas foi inevitável diante crise asiática em 1997, do default russo em 1998, da desvalorização do real em 1999, e da queda nos preços das commodities agrícolas e minerais. Como se não bastassem tais problemas, uma crise de confiança que teve início em 1999 e se agravou em 2001, disseminando-se entre os argentinos. A perda de confiança aumentou o problema da falta de divisas. As reservas internacionais, que no início de 2001 representavam mais de 21 bilhões, passaram, em agosto do mesmo ano, para um patamar de menos de 15 bilhões. Embora o país tenha recebido ajuda do FMI para recompor suas reservas, o agravamento da crise fez com que o país chagasse ao final do ano com menos de 14 bilhões. No último trimestre observa-se ainda uma queda de 1/3 no volume de depósitos bancários e saldos negativos na conta capital de um montante que girou em torno de seis bilhões. Diante da forte crise e das manifestações populares, evidenciou-se a impossibilidade de manutenção do peso e do próprio governo 6 (FERRARI; CUNHA, 2005). Não é exagero afirmar que as políticas neoliberais e o Plano de Conversibilidade levaram o país para uma crise sem precedentes em sua história. Os índices de crescimento econômico despencaram, levando a revoltas por parte da população que saiu às ruas para cobrar dos governantes explicações sobre o caos econômico que se consolidara. Observandose o PIB de 1993 a 2002, vê-se a significativa queda que o indicador mostra no auge da crise. Como se pode observar na Figura 2, o Produto Interno Bruto argentino mantém crescimento estável até o primeiro trimestre de 1998. A partir daí economia Argentina não mostra indícios de crescimento, com o PIB iniciando tendência de queda no primeiro trimestre de 2001. No primeiro trimestre de 2002 a crise chega ao seu ponto culminante. Nesse período o PIB retrocede aos níveis de 1993. O PIB é apenas um dos indicadores. Diversos outros problemas devem ser mencionados. As taxas de desemprego atingiram valores ainda não observados ao longo da década de 90. Seu exponencial crescimento ocorre exatamente a partir de 1999. Conforme se observa na Figura 3, a taxa de desemprego que era 17,4% em 2001 atinge quase 20% em 2002. Um aspecto importante merece ser mencionado quanto à evolução no nível de desemprego. Esse problema não é exclusivo do período de crise, pois durante o período inicial das reformas, a taxa de desemprego também mostrou acentuado crescimento. Segundo o R ev ist a Cad ern os de E con omia, Chap e có, v. 1 7, n. 3 3, p . 17 -34, j ul./ d ez. 201 3 21 Neoliberalismo e crise na economia argentina: algumas constatações sobre os anos 1990 e 2000 Indec (2008), essa taxa girava em torno de 5,7% em 1988, chegando a 20,2% em maio de 1995, estabilizando-se e voltando a crescer significativamente na crise de 2001. Os reflexos do desemprego foram sentidos no nível de pobreza da população argentina. A queda no nível de renda real dos argentinos fez a pobreza crescer rapidamente. Em maio de 1988, 29,8% da população encontravam-se abaixo da linha da pobreza. Em maio 1990, esse número havia aumentado para 42,5%, reduzindo-se até 1995 quando volta a crescer. Em maio de 2002, o número de pessoas abaixo da linha da pobreza atinge, espantosamente, mais da metade da população argentina (54,3% da população) (Figura 4). Os problemas vivenciados a partir da crise de conversibilidade se refletem em manifestações populares. Além do conhecido “Panelaço”, as eleições legislativas de 2001 apresentaram resultados surpreendentes, demonstrando uma verdadeira crise de representação partidária no país (TORRE, 2004). Para se ter uma ideia desse descontentamento, o nível de abstenção aumentou em mais de 50% e os votos em branco cresceram mais de 100%. Espantoso também foi o crescimento dos votos nulos, que passaram de 161.760 para 2.261.332. O ano de 2002 marca o início da recuperação no nível de atividade econômica. Alguns autores têm chamado essa fase de “novo-desenvolvimentismo”7. Outros, por sua vez, discutem a possibilidade de tratar-se apenas de uma política de reversão ao período Menemista8. No entanto, embora os índices de crescimento apresentem melhoria, diversos problemas estiveram presentes. O item a seguir demonstra que o ideário neoliberal pode ter impactado negativamente na economia da Argentina, dificultando sua recuperação e consolidação de uma nova forma de desenvolvimento. Recuperação econômica? O suposto “novo-desenvolvimentismo” argentino A recuperação econômica da Argentina, após a crise da conversibilidade, é apresentada por alguns autores como um avanço para um novo modelo de desenvolvimento: um “novo-desenvolvimentismo”. Esse novo modelo surge como uma reação às políticas neoliberais da década de 1990, que pregavam o fim do Estado desenvolvimentista e culpavam o excesso de intervenção estatal por uma série de problemas observados. Assim sendo, cabe observar as características principais desse modelo de desenvolvimento. Diversos autores tem abordado a ideia de novo-desenvolvimentismo, entre eles estão Bresser-Pereira e Nakano (2002; 2003), Bresser-Pereira (2004) e Bresser-Pereira e Gala (2007). Essa concepção teórica tem feito grandes avanços ao demonstrar uma visão de desenvolvimento que congrega ideias do antigo desenvolvimentismo, corrigindo suas falhas especificamente no que diz respeito aos excessos de intervenção estatal. Na economia argentina, o estudo do novo-desenvolvimentismo ganha relevância a partir dos trabalhos desenvolvidos pelo Grupo Fénix, formado por intelectuais da Universidade de Buenos Aires (SILVA, 2013)9. Como críticos das ideias neoliberais os defensores da estratégia novodesenvolvimentista advogam a intervenção do Estado de forma conjunta ao fortalecimento da iniciativa privada. Por isso, o novo-desenvolvimentismo diferencia-se do “antigo”, principalmente em relação à participação do Estado na economia. Enquanto o nacional desenvolvimentismo assumia que o Estado era o principal responsável pela promoção do desenvolvimento - quase como promotor de um crescimento a qualquer custo, de forma a completar a revolução capitalista nos países em desenvolvimento, promovendo a poupança R ev ist a Cad ern os de E con omia, Chap e có, v. 1 7, n. 3 3, p . 17 -34, j ul./ d ez. 201 3 22 Neoliberalismo e crise na economia argentina: algumas constatações sobre os anos 1990 e 2000 forçada e realizando os investimentos necessários em termos de infraestrutura - o novodesenvolvimentismo lhe atribui uma função consideravelmente menor. Este ainda mantém sua função vital para o desenvolvimento, mas suas ações são mais limitadas, uma vez que procura reforçar a política industrial. Cabe, contudo, considerar que em ambos os modelos de desenvolvimento, o Estado apresenta-se como agente fundamental. O novodesenvolvimentismo, no entanto, reconhece a importância do mercado, mas procura regulamentá-lo, garantindo o seu melhor funcionamento. O Estado deve garantir o bom funcionamento do mercado e prover as condições gerais da acumulação de capital, tais como educação, saúde e infraestrutura de transportes, comunicações e energia. “A ideia geral é que só um Estado forte, um Estado capaz, pode garantir um mercado forte” (BRESSER-PEREIRA, 2007, p. 13). Trata-se agora de um Estado que reconhece as limitações do mercado, e procura reduzi-las, mas, não às custas dos elevados deficit públicos que se tornaram populares nos anos 60 na América Latina. O novo-desenvolvimentismo proposto por Bresser-Pereira (2007) admite ainda que o período de indústria infante, que necessitava de excessiva proteção, não mais existe. O modelo de substituição de importações adotado nos países em desenvolvimento foi superado e as políticas industriais não devem mais ser as protecionistas, mas sim as de estímulo às exportações. Contudo, esse crescimento para fora não pode ser baseado na exportação de produtos com baixo valor agregado, mas prioritário para manufaturados ou produtos primários com alto valor. Não se trata de uma abertura indiscriminada, mas sim planejada e orientada, de forma a viabilizar uma indústria nacional competitiva. Quando à ortodoxia convencional, o novo-desenvolvimentismo diferencia-se principalmente com relação à crença de que o mercado é uma entidade perfeita que se autorregula. Pelo contrário, para o novo-desenvolvimentismo, o mercado tem inúmeras limitações que merecem ser consideradas. Para o novo-desenvolvimentismo é necessário reforçar as estruturas sociais e institucionais presentes no mercado. Este modelo apresenta uma visão histórica do desenvolvimento, com instituições que exercem um papel fundamental. Para o novo-desenvolvimentismo, um governo bom é aquele que promove o desenvolvimento econômico com distribuição de renda e políticas voltadas ao mercado, mas que ao mesmo tempo procure corrigir suas falhas. De acordo com essa percepção, as políticas econômicas seriam instituições que deveriam ser reforçadas a fim de garantir o desenvolvimento. Além de políticas econômicas diferenciadas do que normalmente prega o receituário ortodoxo, o novo-desenvolvimentismo seria marcado por uma estratégia nacional de desenvolvimento econômico bem definida, com um Estado ativo, mas de forma alguma irresponsável (BRESSER-PEREIRA, 2007). Sicsú, Paula e Miguel (2007) utilizaram-se do termo novo-desenvolvimentismo proposto por Bresser-Pereira e ampliaram-no com vistas a uma melhor discussão sobre o tema. Para os autores, o novo-desenvolvimentismo tem origens em diversas correntes teóricas, em especial mencionam a visão keynesiana e de pós-keynesianos contemporâneos como Davidson e Stiglitz de complementaridade entre Estado e mercado e a visão cepalina neo-estruturalista, que defende uma estratégia de transformação produtiva com equidade social, compatibilizando crescimento econômico sustentável com distribuição equitativa de renda. O novo-desenvolvimentismo, para os autores, encontra-se entre o meio termo entre o extremo de um Estado forte com mercado fraco e o outro extremo com um Estado fraco e um mercado forte. Para os autores, a melhor opção é a constituição de um Estado forte que estimula o desenvolvimento de um mercado forte. A proposta do novo-desenvolvimentismo consiste, portanto, na percepção de que um Estado forte é necessário para garantir o desenvolvimento econômico10. Mais que isso, R ev ist a Cad ern os de E con omia, Chap e có, v. 1 7, n. 3 3, p . 17 -34, j ul./ d ez. 201 3 23 Neoliberalismo e crise na economia argentina: algumas constatações sobre os anos 1990 e 2000 juntamente com os interesses de mercado, o Estado deve viabilizar a implementação de políticas macroeconômicas defensivas e expansivas. As primeiras se referem àquelas que reduzem a sensibilidade do país a crises (tais como as crises cambais) e as segundas estariam relacionadas à promoção do emprego, especialmente nos períodos recessivos. Devem ser utilizadas políticas industriais e de comércio exterior. No primeiro caso, deve-se estimular a inovação e o progresso técnico, no intuito de se criar uma base industrial forte, capaz de ampliar significativamente o valor agregado aos produtos nacionais e criar uma competitividade autêntica para os produtos exportados. No segundo caso, deve amenizar a vulnerabilidade externa, de forma a evitar que choques externos determinem a fuga de divisas e problemas cambiais. O novo-desenvolvimentismo demonstra também a importância de uma redução na desigualdade social, com melhor distribuição de renda para os agentes. Nesse caso, coloca-se em um meio termo entre os que defendem simplesmente as políticas educacionais e sociais como melhor forma de reduzir as desigualdades e entre aqueles que acreditam no crescimento econômico forte e continuado como a forma mais eficiente de garantir um melhor perfil distributivo e desenvolvimento econômico11. O novodesenvolvimentismo acredita, portanto, que um crescimento econômico continuado é uma condição necessária, mas não suficiente para amenizar problemas de desigualdade, pois são indispensáveis políticas sociais e educacionais para garantir o acesso da população a melhores condições de vida. Os indicadores: indícios de incerteza quanto ao desenvolvimento da Argentina A partir de 2002, a Argentina mostrou uma rápida recuperação econômica. Essa afirmação fica evidenciada quando se observam os dados de crescimento do Produto Interno Bruto argentino. No entanto, esse item demonstra que a economia do país continua a apresentar diversos problemas. Alguns indicadores econômicos sequer recuperaram patamares anteriores a crise e outros mostram sinais de extrema debilidade. Embora algumas análises indiquem que a Argentina esteve prestes a ingressar em um novo padrão de desenvolvimento, as variáveis analisadas na sequência mostram que tais afirmações devem ser vistas com cautela. Nesse caso, admite-se que embora o crescimento observado seja inegável, diversos indicadores sociais estão debilitados, o que leva a concluir que o desenvolvimento econômico 12, no sentido original que o termo representa, mostrou-se bastante precário no país. i) crescimento - PIB e emprego: Conforme já mencionado, passada a crise vivenciada pela economia Argentina em 2001, os indicadores de PIB e emprego apresentam uma significativa melhora. Quanto ao primeiro indicador, desde o ano de 2002 observa-se que o produto argentino mostra forte e continuado crescimento. Após um período de tão grave crise econômica esperava-se certa recuperação da atividade produtiva no país. Antes de se considerar que se trata de um novo modelo de desenvolvimento, cabem algumas considerações sobre essa rápida recuperação. Katz (2007) afirma que a recuperação econômica ocorre porque houve uma completa desarticulação do antigo sistema produtivo. Observou-se, no período de crise, um forte barateamento da força de trabalho somado ao grande contingente de desempregados. Isso viabilizou uma farta disponibilidade de mão de obra a preços muito baixos. Dessa forma, o sistema produtivo argentino, com um pequeno estímulo 13, encontrou possibilidades para voltar a crescer. Da mesma forma, cabe destacar que a crise também gerou uma significativa capacidade ociosa, estando o setor industrial pronto para essa recuperação. R ev ist a Cad ern os de E con omia, Chap e có, v. 1 7, n. 3 3, p . 17 -34, j ul./ d ez. 201 3 24 Neoliberalismo e crise na economia argentina: algumas constatações sobre os anos 1990 e 2000 Figura 2 – Evolução do PIB argentino de 1993 a 2008 25 Fonte: Indec (2008). Evidentemente, com a recuperação do PIB argentino, os níveis de desemprego passaram por uma forte queda (Figura 3). No entanto, observando-se cuidadosamente os dados, vê-se que a taxa de desemprego em 2007 apenas chega próximo ao nível observado antes do início da década de 1990. Segundo o Indec (2008) a taxa de desemprego era de 5,7% em 1988, mais baixa que a observada no último trimestre de 2008 (7,3%). Figura 3 – Evolução trimestral das taxas de desemprego e subocupação nos aglomerados urbanos, a partir do primeiro trimestre de 2003 25,0 19,7 20,0 17,4 14,3 15,0 17,3 15,1 13,6 11,6 10,2 10,0 8,5 7,4 5,0 0,0 1990 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 Fonte: Indec (2008). Não resta dúvida que a primeira metade dos anos 2000 representa um período de recuperação no que diz respeito à magnitude do PIB e emprego. De forma alguma, refuta-se essa afirmação. No entanto, acredita-se ser difícil afirmar que o país atingiu uma nova fase de desenvolvimento. Especialmente porque é comum a ocorrência de ciclos econômicos no país. Esses ciclos têm acontecido em uma média de 6 a 7 anos (1975-1976, 1982, 1989-1990, 1995 e 2001-2002) (KATZ, 2007). Os ciclos da economia Argentina também são enfocados por Amico (2008). Para esse autor, a economia do país passa por períodos de crise e recuperação econômica que estão R ev ist a Cad ern os de E con omia, Chap e có, v. 1 7, n. 3 3, p . 17 -34, j ul./ d ez. 201 3 Neoliberalismo e crise na economia argentina: algumas constatações sobre os anos 1990 e 2000 relacionados a diversos aspectos macroeconômicos. Trata-se de repetir a velha dinâmica do stop and go que Diamand (1978 apud AMICO, 2008) chama de “pêndulo argentino”. Cabe, contudo, observar que o autor conclui que este ciclo não tem sido capaz de superar, por um lado, a escassa inclusão social e laboral e, por outro, a restrição interna de divisas que comumente barra o desenvolvimento argentino. ii) a questão social: A deterioração social pela qual passou a Argentina durante a década de 1990, mostrouse sem precedentes na sua história. O modelo neoliberal, inicialmente aceito pela maioria da população, trouxe consequências devastadoras sobre o país vizinho tão logo começaram as reformas. A pobreza, que era um fenômeno pouco conhecido, passa a ganhar uma escala sem precedentes. No ano de 1989, o número de pessoas abaixo da linha da pobreza14 representava 20,9% da população. Observe-se que o percentual declina consideravelmente no início da década de 1990, mas logo volta aumentar (maio de 1996). Em maio de 2003, o percentual de pessoas abaixo da linha da pobreza representa mais de 50% da população15 (Figura 4). O que mais chama a atenção e que deve ser considerado é o fato de que embora os níveis de pobreza tenham se reduzido, sequer atingem os patamares observados no final da década de 1980. Em 2006, o percentual de pessoas pobres atingiu 26,9% contra os 20,9% observados em 1989. Figura 4 – Percentual da população argentina abaixo das linhas da pobreza e de indigência 60,0 50,0 40,0 30,0 20,0 10,0 Linha da pobrez a m ai /0 /0 ai m 2 m 2º ai / 0 se 3 m 03 1º se m 0 2º se 4 m 0 1º se 4 m 05 2º se m 0 1º se 5 m 0 2º se 6 m 06 1 0 9 /0 /9 ai ai m m 7 98 ai / ai m m 6 /9 5 /9 ai m m ai /9 ai m /9 4 3 2 /9 /9 ai ai m m 0 ai / m 9 /9 /8 ai ai m m 91 0,0 Linha da indigência Fonte: Indec (2008). Comportamento semelhante é observado pelo número de pessoas abaixo da linha da indigência16. Em 1989 representavam 8,0% da população e, apesar da recuperação econômica observada após a crise de 2001, 8,7% da população estavam abaixo da linha de indigência no segundo semestre de 2006, ou seja, mal conseguem acesso aos produtos básicos para sua alimentação. A Figura 5 mostra que a situação não é muito diferente quando se observa o número de lares abaixo da linha da pobreza. Em maio 1989 o percentual de lares argentinos abaixo da linha pobreza representava 19,7% do total e no segundo semestre de 2006 representavam 19,2%. Quanto ao número de lares abaixo da linha da indigência, observa-se que em maio de 1989 estes representavam 5,9% da população. No segundo semestre de 2006 representavam 6,3%. R ev ist a Cad ern os de E con omia, Chap e có, v. 1 7, n. 3 3, p . 17 -34, j ul./ d ez. 201 3 26 Neoliberalismo e crise na economia argentina: algumas constatações sobre os anos 1990 e 2000 Figura 5 – Lares abaixo da linha da pobreza e indigência 45,0 40,0 35,0 27 30,0 25,0 20,0 15,0 10,0 5,0 06 06 2º se m 05 m 1º se m se 2º 1º se m 05 04 04 m m se se 2º 3 03 m se ai m 2º Lares abaixo da linha da pobrez a 1º 2 /0 1 m ai /0 0 /0 ai m m ai /9 ai m ai m /0 9 8 7 /9 6 m ai /9 5 /9 ai m m ai /9 ai m /9 4 3 2 m m ai /9 1 /9 ai /9 m ai /9 ai m m ai /8 0 9 0,0 Lares abaixo da linha da indigênc ia Fonte: Indec (2008). Além de ficarem mais pobres, os argentinos trabalharam um número de horas semanais muito elevado comparativamente a outros países. A Figura 6 mostra que o número de horas anuais trabalhadas na Argentina (2100h) supera o número de horas em alguns países desenvolvidos – Alemanha (1460h), Suécia (1580h) e França (1550h) - e também o número de horas trabalhadas em alguns países da América Latina - México e Chile (1900h) e Brasil (1800h). Figura 6 – Número de horas anuais trabalhadas na Argentina e em alguns países desenvolvidos e da América Latina 2500 2100 2000 1900 1900 1800 1500 1580 1550 Suécia França 1460 1000 500 0 Alemanha Argentina Méxic o Chile Bras il Fonte: Elaborada pelo autor a partir de Katz (2005). Os indicadores de concentração de renda também não se mostram tão favoráveis. No início da década de 1990, o índice de Gini estava em 0,501. Durante o período liberalizante a concentração de renda aumentou significativamente, atingindo seu ápice em 2002 (Gini = 0,578). A partir de então, o índice mostra clara tendência declinante. Contudo, como os outros indicadores apresentados, não chega a se reduzir aos níveis observados em 1990. R ev ist a Cad ern os de E con omia, Chap e có, v. 1 7, n. 3 3, p . 17 -34, j ul./ d ez. 201 3 Neoliberalismo e crise na economia argentina: algumas constatações sobre os anos 1990 e 2000 Figura 7 – Índice de Gini para as regiões metropolitanas da Argentina de 1990 a 2006. 0,600 0,578 0,580 28 0,560 0,539 0,540 0,531 0,530 0,526 0,519 0,515 0,520 0,501 0,500 0,480 0,460 1990 1994 1997 1999 2002 2004 2005 2006 Fonte: Cepal, Balance Preliminar de las Economías de América Latina y el Caribe, 2008. Enquanto observa-se essa significativa deterioração social, as empresas argentinas gozam de uma situação muito favorável. Conforme demonstra Katz (2007), enquanto cai a participação dos salários na renda, os lucros das empresas apresentam incrementos consideráveis. Em 2005, por exemplo, 77% das companhias que possuíam ações na bolsa de valores declararam rendimentos muito significativos e os lucros das 500 maiores empresas do país duplicaram em comparação aos obtidos dois anos antes. Não bastasse essa discrepância, os índices de produtividade na economia Argentina são os maiores dos últimos 15 anos. Enquanto esses índices aumentam os salários pioram e a pobreza e desigualdade persistem. iii) a participação do Estado no desenvolvimento: Após as diversas afirmações sobre o papel do Estado no desenvolvimento econômico argentino, cabem algumas rápidas considerações. Uma das políticas preconizadas pelo receituário neoliberal é a obtenção de superávits primários. Em anos mais recentes, segundo dados do Indec (2008), a arrecadação bruta de impostos aumentou consideravelmente, pois girava em torno de 57 bilhões de dólares em 2001, passando para 144 bilhões em 2005. No entanto, a maior arrecadação, ao invés de ser destinada a melhorias sociais, acabou se convertendo em pagamentos da dívida. No ano de 2006, a Argentina antecipou o pagamento de 10 bilhões de dólares ao Fundo Monetário Internacional. As críticas a esse pagamento estiveram presentes no pensamento de diversos economistas argentinos. Em especial, referem-se ao fato de que se destinado ao combate dos problemas sociais, esse valor teria uma grande representatividade. Um Estado Forte, nos moldes preconizados pelo “novodesenvolvimentismo”, priorizaria políticas desse tipo. Contudo, se observados os gastos do setor público argentino em melhorias sociais, constata-se que estão longe de ser suficientes. R ev ist a Cad ern os de E con omia, Chap e có, v. 1 7, n. 3 3, p . 17 -34, j ul./ d ez. 201 3 Neoliberalismo e crise na economia argentina: algumas constatações sobre os anos 1990 e 2000 Figura 8 – Gastos públicos em melhorias sociais 25 21,8 20,7 19,3 20 20,3 20,2 19,3 18,8 18,1 15 11,4 11,3 11,0 9,7 10 5 0 1990/91 1995/96 Governo Central 2000/01 Governo Geral 2005/06 Setor Público Não Financ eiro Fonte: Cepal, Balance Preliminar de las Economías de América Latina y el Caribe, 2008. Dificilmente um Estado forte aumentaria sua arrecadação sem oferecer recursos para melhoria das condições de vida da população. Conforme se observa na Figura 8, os gastos sociais do setor público não sofreram grandes variações desde 1990. Um pequeno incremento, mesmo que praticamente insignificante aconteceu próximo à crise. No entanto, em seguida já começa a reduzir-se (2005/06). Katz (2007) faz uma crítica ferrenha à política fiscal do governo, afirmando que a mesma tem sido utilizada para beneficiar as grandes empresas presentes no país. A recuperação do crescimento econômico estaria relacionada, portanto, aos incentivos oferecidos pelo governo, além de subsídios e isenções fiscais, que tem favorecido grandes corporações multinacionais. O próprio pagamento antecipado da dívida externa foi visto como uma forma de aumentar a autonomia das grandes empresas multinacionais, permitindo aos capitalistas locais manejar a política cambial sem grandes preocupações com as pressões externas. Além disso, após implementar uma política de privatizações, o debate atual gira em torno da regulação das empresas privatizadas. Embora o governo argentino tenha despendido significativos esforços em regulamentação, evita uma completa reestatização porque, segundo Katz (2007), prefere manter os ganhos desses negócios nas mãos dos grandes capitalistas industriais. Nesse contexto, o governo Kirchner preferiu a regulação dos contratos, que apenas se consolida quando tem objetivo de favorecer os grandes empresários, não prejudicando os ganhos das companhias privatizadas. Essa política tem priorizado negociações pontuais, que avaliam caso a caso as especificidades das empresas privatizadas, de forma a oferecer benefícios específicos para cada uma delas. O maior problema está no fato de que a atual política favorece os ganhos privados e transfere as perdas ao setor público 17. iv) a prioridade do modelo primário exportador: Um dos pontos fundamentais no suposto novo modelo de desenvolvimento observado na Argentina é a grande representatividade do modelo primário-exportador. O país foi beneficiado, ao longo dos anos 2000, pelo grande aumento da demanda mundial de alimentos, que favorecem a economia do país devido à suas condições naturais. Alguns dados mostram importância do setor primário-exportador para a economia argentina. Em 2007 as exportações de produtos primários representaram 23% do total do valor exportado (10 bilhões de dólares), R ev ist a Cad ern os de E con omia, Chap e có, v. 1 7, n. 3 3, p . 17 -34, j ul./ d ez. 201 3 29 Neoliberalismo e crise na economia argentina: algumas constatações sobre os anos 1990 e 2000 passando para 25% em 2008 (15 bilhões de dólares). Embora a representatividade percentual em relação às exportações totais tenha se mantido praticamente inalterada, o volume em dólares de produtos primários exportados cresceu cerca de 48% em 2008. Já as manufaturas de origem agropecuária representavam 34% do total das exportações em 2007 (mais de 15 bilhões de dólares), mantendo os mesmos 34% em 2008, mas passando, em valores monetários, a representar cerca de 21 bilhões de dólares. Um crescimento de 36% em relação ao ano anterior (Figura 9). Figura 9 – Composição das exportações argentinas em 2007 e 2008 Fonte: Elaborada pelo autor com base em Indec (2008). Se somados os dois grupos de exportações (produtos primários e de origem agropecuária) observa-se que estes representam quase 60% do valor das exportações argentinas nesses dois anos. Evidencia-se, dessa forma, a dependência da economia Argentina desse setor. Ao contrário, as exportações de manufaturas representaram apenas 31% do total de exportações em 2007 e 30% em 2008. O bom desempenho das exportações deve ser considerado como um reflexo da maior demanda mundial por alimentos, fato que garantiu à Argentina uma posição confortável quanto as suas reservas cambiais18. Não por acaso, os defensores do novo-desenvolvimentismo argentino (Grupo Fénix) defendem uma modificação significativa na atual cadeia produtiva, priorizando bens com maior valor agregado (SILVA, 2013). Isso porque um crescimento econômico pautado principalmente no setor primário corre sérios riscos. Um desaquecimento na economia mundial como já é evidenciado atualmente pode trazer sérios prejuízos para uma economia que prioriza crescer via exportações de produtos com baixo valor agregado. Outra crítica ao modelo de crescimento baseado no setor primário é o fato de que este prioriza o enriquecimento de uma classe econômica em detrimento de outras. A busca por uma maior produtividade determina uma grande concentração de terras, a destruição de culturas regionais (em especial das pequenas estruturas agroindustriais açucareiras, vinícolas e ervateiras), o empobrecimento dos camponeses, a expropriação dos pequenos agricultores e a expulsão do homem do campo19 (KATZ, 2007). Considerações finais O artigo procurou demonstrar que mesmo apresentando melhores indicadores de crescimento ao longo dos anos 2000, a economia argentina permaneceu com diversos problemas, levando a concluir que a economia do país vizinho avançou pouco em termos de desenvolvimento. Nesse sentido, após o período de crise, uma modesta recuperação dificilmente pode ser caracterizada como uma nova fase de desenvolvimento. Analisaram-se R ev ist a Cad ern os de E con omia, Chap e có, v. 1 7, n. 3 3, p . 17 -34, j ul./ d ez. 201 3 30 Neoliberalismo e crise na economia argentina: algumas constatações sobre os anos 1990 e 2000 para isso quatro questões básicas: os índices de crescimento do PIB e a evolução do desemprego; o problema social vivenciado na Argentina; a participação do Estado na promoção do bem-estar e incentivo ao desenvolvimento e; a vulnerabilidade do modelo primário-exportador. As conclusões principais são de que apesar dos maiores índices de crescimento, a Argentina continua apresentando sérios problemas sociais, especialmente a alta incidência da pobreza e indigência de sua população. Se considerado que o desenvolvimento econômico só se admite quando um maior nível de bem-estar é atingido, observa-se ser arriscado chamar o período pós-crise de uma nova etapa de “desenvolvimento”. Trata-se apenas de uma fase de recuperação pela qual passa o país, já que os indicadores sociais sequer atingiram os patamares observados antes da década de 1990. Da mesma forma, se o conceito de novodesenvolvimentismo requer um Estado forte, com políticas pró-desenvolvimento e garantias de maior equidade social, observa-se que a participação do Estado argentino nesses quesitos ainda é muito modesta, especialmente porque os gastos sociais praticamente não aumentaram em um período de elevadas necessidades da população. Além disso, parece manter-se refém dos interesses dos grandes grupos econômicos, que controlam setores estratégicos para o desenvolvimento do país (ex: setor energético). Por fim, ao avaliar-se o modelo de desenvolvimento econômico argentino, observa-se que o mesmo continua a priorizar o setor primário-exportador. Trata-se de uma forma de crescimento significativamente frágil e dependente do mercado externo. Ainda deve-se destacar que são comuns ciclos de recessão e retomada de crescimento na economia do país vizinho. Por fim, cabe dizer que esse trabalho procurou estabelecer um contraponto às eufóricas afirmações sobre a dinamicidade vivenciada pela economia argentina. Não se trata de uma análise pessimista, mas sim realista, que admite a recuperação econômica, mas ao mesmo tempo olha para alguns problemas que ainda persistem. Evidentemente também se admite a necessidade de estudos mais detalhados sobre os quatro pontos analisados e que deram subsídio a essas conclusões. Notas 1 Não é objetivo deste trabalho apresentar detalhadamente as ideias de Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL) sobre o subdesenvolvimento. Para uma visão mais aprofundada sobre o assunto, sugerem-se os textos de Rodriguez (1981) e Rodriguez (2002). Neles é possível observar e comparar a evolução do pensamento cepalino no que diz respeito à explicação do subdesenvolvimento e porque o mesmo persiste atualmente em algumas economias latino americanas. 2 Segundo Milcheski (2013), os próprios meios de comunicação contribuíram para disseminação das ideias neoliberais. É a conclusão que a autora chega ao analisar os casos do Brasil e do México. 3 Uma discussão detalhada sobre os motivos que levam a Argentina a reviver seu modelo primário-exportador encontram-se em Cunha et al. (2007) e Cunha e Ferrari (2009). Os autores descrevem o êxito esse modelo, de forma a justificar as crenças de que o liberalismo levaria ao progresso econômico. Além disso, a dificuldade na industrialização também é apresentada pelos autores como justificativa para as reformas. Assim, as ideias presentes no seu trabalho foram, em parte, utilizadas para elaboração desse item. 4 Observa-se nessa concepção que muitos dos ideias neoliberais já estão presentes no pensamento do ministro, pois a concepção de que a tecnologia é um bem que flui livremente pelas fronteiras nacionais está presente principalmente nas análises neoclássicas. 5 A conta de juros no balanço de pagamentos passou de uma posição deficitária de pouco mais do que US$ 1 bilhão, no começo dos anos 1990, para uma média superior a US$ 6 bilhões entre 1999 e 2003. 6 Depois de uma rápida passagem de Rodriguez Saá, a presidência passou ao senador Eduardo Duhalde. 7 Ver estudos de Cunha et al. (2007); Bresser-Pereira (2007) e Katz (2007). Este último autor, apesar de usar o termo novo-desenvolvimentismo, faz diversas críticas ao modelo, procurando mostrar suas rupturas e continuidades comparativamente ao modelo anterior (neoliberal). 8 Ver estudo de Bonvecchi (2004). R ev ist a Cad ern os de E con omia, Chap e có, v. 1 7, n. 3 3, p . 17 -34, j ul./ d ez. 201 3 31 Neoliberalismo e crise na economia argentina: algumas constatações sobre os anos 1990 e 2000 9 Cabe destacar que Silva (2013) faz uma análise cuidadosa das estratégias novo-desenvolvimentistas para o Brasil a Argentina. Com isso, demonstra que o novo-desenvolvimentismo argentino apresenta maiores dificuldades de se consolidar como estratégia de desenvolvimento em função do maior conflito ideológico presente nesse país e da trajetória institucional de cada um. 10 A proposta de um modelo novo-desenvolvimentista rejeita a ideia de Estado um “mínimo” como na interpretação proposta pelo liberalismo de Smith, em que a mão invisível do mercado seria a responsável pela melhor alocação de recursos e, consequentemente, dispensaria qualquer tipo de intervenção Estatal sob pena de prejudicar o bem-estar econômico. Ao contrário, com seu viés pós-keynesiano, os autores estão mais adeptos ao novo-desenvolvimentismo como alinhado às ideias presentes na Teoria Geral de Keynes, que considera a importância de um Estado forte e responsável, com liberdade de oportunidade para todos, que coíba a formação de monopólios e outras mazelas sociais, que seriam decorrência do livre funcionamento do mercado. Mas, ao mesmo tempo, esse Estado deve garantir certo grau de liberdade para o mercado, sob pena de prejudicar a inovação e o crescimento econômico. 11 Essa concepção de desenvolvimento econômico é compartilhada por Bresser-Pereira (2006). Embora não se concorde com a ideia de desenvolvimento do autor, o que será explicitado quando avaliado o caso da Argentina, cabe considerar que para Bresser-Pereira não se deve incluir a distribuição de renda no conceito de desenvolvimento econômico. A ideia é que um crescimento da renda per capita com uma mudança na estrutura produtiva da economia, cedo ou tarde irá se refletir em melhoria das condições de vida da população, de forma que a distinção entre crescimento e desenvolvimento se configura apenas plano teórico. 12 O conceito de desenvolvimento econômico aceito nesse trabalho é o que se considera como diferente de simples crescimento, medido pelo nível de renda da per capita da população. Admite-se, como está presente nos diversos livros texto de economia, que o desenvolvimento é um conceito mais amplo e refere-se não somente ao crescimento no PIB, mas às melhorias gerais no padrão de vida da população. 13 Duas considerações merecem ser feitas sobre esse estímulo. Primeiramente, deve-se considerar a desvalorização cambial e o fim do regime de conversibilidade, que aumentou a atratividade dos produtos argentinos no mercado externo e, em segundo lugar, o aumento dos subsídios oferecidos ao setor industrial, além de uma série de incentivos fiscais (KATZ, 2007). 14 O Indec considera como pobres as pessoas que recebem renda insuficiente para aquisição de uma cesta básica. 15 Apesar de não estar visível na figura, no mês de maio de 2002, o percentual de pessoas pobres atinge cerca de 54,3%, segundo dados do Indec. 16 Enquanto o Indec considera como pobres as pessoas que não possuem acesso a uma cesta básica (que inclui todos os produtos e serviços consumidos), os indigentes representam as pessoas sem condições de acesso a uma cesta básica alimentícia. 17 As perdas aparecem como políticas de favorecimento na concessão de licenças monopólicas, autorização de maiores tarifas sem contrapartida em investimentos, barateamento dos salários, etc. 18 Apesar do nível de reservas cambiais vir se reduzindo nos últimos meses de 2008, a Argentina chegou ao final do ano com mais de 46 bilhões de dólares em reservas cambiais. Para se ter uma ideia do que isso representa atualmente, basta lembrar que no início do ano de 2003, período em que se observavam os fortes sintomas da crise, as reservas cambais mal ultrapassavam o montante dos 10 bilhões de dólares (BANCO CENTRAL DE LA REPÚBLICA ARGENTINA, 2008). 19 De acordo com Katz (2007) enquanto a mão-de-obra do campo representava 24% da população economicamente ativa em 1970 em 2001 representava apenas 8%. Referências AMICO, F. Argentina 2002-2008: ciclo económico, inflación e crecimiento. Revista de economia heterodoxa (UFRJ), n. 10, ano 7. Rio de Janeiro, 2008. BANCO CENTRAL DE LA REPÚBLICA <www.bcra.gov.ar>. Acesso em: 12 nov. 2008. ARGENTINA. Disponível em: BATISTA JÚNIOR, P. N. Argentina: uma crise paradigmática. Estudos Avançados, São Paulo, v. 16, n. 44, jan./abr. 2002. 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