Era Heliogábalo Transexual?

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Era Heliogábalo Transexual?
José Pacheco1
Heliogábalo (204-222) foi imperador romano, entre os 14-18 anos, ainda que o
exercício do poder, efectivamente, tivesse sido da mãe, Júlia Soémia e da avó materna,
Júlia Maesa2. De resto, teriam sido elas que inventaram a história, num momento de
vazio de poder, do rapaz ser filho biológico, por via de uma relação adúltera3, da mãe
com o falecido imperador Caracala.
Nasceu Vário Avito Bassiano mas logo que foi proclamado imperador, com o apoio da
guarda pretoriana, alterou, por razões políticas ou para «provar» descendência, o nome
para Marco Aurélio Antonino e mais tarde para Heliogábalo, um deus da sua Síria
natal4.
O seu preceptor, o eunuco Gannys, comandaria algum tempo o exército romano, tendo
vencido o imperador Macrino (165-218) em Antióquia. Depois Heliogábalo mandou
matá-lo, por ele o ter admoestado relativamente a alguns desvarios de conduta,
aconselhando-o a pautar o seu comportamento pela prudência e temperança.
Em escassos três anos teve uma movimentada vida matrimonial5, numa rotação mais ou
menos semestral, com três mulheres e um homem. Aos 15 anos casou, numa luxuosa
cerimónia, com a bela e elegante Júlia Cornélia Paula. Não tardou em divorciar-se para
casar com a vestal Júlia Aquila Severa, eventualmente para aumentar as hipóteses de ter
1
Psicólogo Clínico.
De resto teriam sido as primeiras mulheres a entrar no senado romano.
3
Tanto pode querer significar que não valorizariam muito o adultério como que para ascender ao poder
todos os meios eram «legítimos». Em simultâneo, o episódio parece mostrar que, mesmo que
frequentemente os romanos nomeassem, por via parlamentar ou pelo poder das armas, a variável dinastia
também tinha algum peso. Teriam dado algum jeito as «semelhanças físicas» do jovem com Caracala que,
de resto, seria primo da mãe. Em qualquer dos casos, estas até poderiam resultar de um sonho – foi o caso
do boato da imperatriz que teria tido relações sexuais com um gladiador ou, no mínimo, um sonho erótico
tão intenso que um dos filhos era a cara chapada do presumível amante.
Em qualquer dos casos, a mãe de Heliogábalo também ficou afamada de ter levado uma vida semelhante
às prostitutas e até o nome do filho seria Vário, por ter sido concebido a partir do sémen de vários
homens… Claro que não devia passar de uma graçola, uma vez que o pai se chamava Sexto Vário
Marcelo. Em qualquer dos casos, o senado romano aceitou esta nova progenitura para Heliogábalo.
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Aelius Lampridius afirmou que esta designação só teria sido adoptada depois da sua morte. De resto,
teria tentado introduzir em Roma o culto ao deus sírio El-Gabal. No entanto, essa questão em Roma era
mais ou menos secundária, na época, porque, para os romanos, que aceitavam que todos os deuses eram
verdadeiros, o culto a um novo deus não era visto como uma concorrência aos deuses já estabelecidos
que, de resto, na sua maioria, era de origem grega ainda que latinizados no nome. O que pode ter deixado
os romanos enfurecidos foi Heliogábalo ter tentado eliminar os outros deuses, em detrimento de um deus
menor, o Sol Invicto, e de forçá-los a assistir às cerimónias religiosas que ele próprio realizava. De resto,
os eventuais conflitos com os cristãos sempre estiveram no facto de estes desejarem impor um deus único
e eliminar o culto de todos os outros.
5
Se tivermos em conta que, alguns autores ainda lhe atribuem mais dois casamentos com mulheres
desconhecidas a movimentação matrimonial ainda seria maior. Ou seja, teria casado nove vezes
(incluindo também as duas repetições com as mesmas mulheres e o casamento com outro homem) no
curto espaço de três anos, o que deve fazer com que o imperador seja o mais rápido da história neste jogo
do casa / descasa. A não ser que, nalguns períodos, estivesse casado, em simultâneo, com duas pessoas.
Se considerarmos que o célebre historiador Edward Gibbon (1737-1794), na História e Declínio do
Império Romano, ainda lhe atribuiu inúmeras concubinas, o imperador não tinha mãos a medir.
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uma progenitura parecida com os deuses6. É provável que os romanos tenham
considerado escandaloso este casamento, na medida em que as vestais deviam
permanecer virgens durante trinta anos, sob pena de serem sepultadas vivas7. Fosse por
isso ou não, acabou por se divorciar e casar com Annia Faustina, que era filha de um
senador descendente da família do imperador Marco Aurélio e viúva de um homem que
Heliogábalo mandara matar. «Fracasso» matrimonial ou não voltou aos braços de Júlia
Aquila Severa. Depois, a sério ou a brincar, «casou» com Hierócles8, um escravo auriga
de quem diria, segundo Herodiano, ser amante, mulher e rainha dele, chegando mesmo
a tentar que lhe fosse atribuído o título de imperador e de marido, para que «ele» ficasse
com o de imperatriz e esposa, sempre pronta a realizar o seu papel doméstico e erótico.
Encerrou o ciclo, voltando a casar com Júlia Cornélia Paula, a primeira mulher. Numa
versão mais tardia, do século IV, da Historia Augusta9, também teria casado, numa
cerimónia pública, com Aurélio Zótico, um atleta escultural de Esmirna, de quem o
imperador facilmente poderia ter conhecido os dotes sexuais, na medida em que, na
época, os atletas actuavam nus.
Nogueira, Silva & Mateus (2010) defenderam, como diversos outros autores, que o
imperador teria uma perturbação da identidade do género. A defesa do «diagnóstico»
decorre apenas dos seguintes indicadores: Gostaria de actividades (como cardar lã),
jogos e passatempos femininos; tinha maneirismos de mulher (sobretudo na voz ou a
menear as nádegas quando andava na rua), gostava que lhe chamassem menina, vestia
vestuário ligeiro, punha colares, usava peruca10, pintava os olhos, maquilhava-se em
excesso e depilava totalmente o corpo11. Teria também desejado castrar-se e que lhe
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Racionalmente parece ser um argumento menor, se considerarmos que os imperadores romanos se
consideravam divinos, ainda que Heliogábalo, ao intitular-se com o nome de um deus, de que era
sacerdote supremo, tivesse sido o único a reforçar essa divinização, ainda que para outras fontes tivesse
afirmado que não desejava ter filhos. De resto, os cristãos tiveram algumas complicações com os romanos
por não reverenciarem o imperador como um deus. Em qualquer dos casos, teria quebrado uma tradição
romana.
7
Pelo menos no século anterior, Domiciano (51-96) esteve ligado ao escândalo das Vestais em que três
vestais foram queimadas vivas, em 83, e mais tarde, Cornélia, em 90, foi enterrada viva, sempre na
suposição de que teriam rompido o voto de castidade. Em todos os casos, a «confissão» foi obtida através
de tortura.
8
Aparece com a auréola de gigante com um pénis do tamanho de um burro, ainda que o imperador lhe
apreciasse também os enormes testículos. O «casamento», que segundo Dião Cássio fora o mais
«estável», teria incluído uma cena de desfloração e até uma lua-de-mel… Em qualquer dos casos, apesar
do casamento heterossexual ser uma cerimónia informal, privada e sem registo escrito, um escravo não
podia casar e, no plano social, não era aceitável o casamento entre pessoas do mesmo sexo. No entanto,
na análise deste caso, seria de somenos importância, porque simplesmente um imperador, dentro de certos
limites, tinha o direito de fazer o que muito bem lhe apetecia.
9
É bom ter presente que esta colectânea de textos, de seis autores, onde se podem encontrar as biografias
de vários imperadores de Roma, entre 117-284, pauta-se pela ficção, sátira e anedotas. O texto referente a
Heliogábalo tem sido atribuído a Aelius Lampridius e é geralmente aceite que pelo menos uma parte da
biografia é claramente ficcionada e onde o autor recorreu, com frequência, à sátira. Também neste caso
teria consumado o «casamento», ainda que episódico, porque Hierocles, enciumado, conseguiu que
Zótico tomasse uma mistela que o deixou completamente impotente.
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Herodiano afirmou que o excesso de maquilhagem fazia com que ficasse com mau aspecto quando
seria um belo rapaz de lindos cabelos. Outras fontes asseguram que seria gordo mas, aos olhos dos
romanos, isso não o desfearia. Desconhece-se se uso de maquilhagem decorria de se sentir mulher ou se,
usando-a, sobretudo nas suas saídas nocturnas, frequentes entre a juventude romana, o disfarce visava
esconder a sua condição de imperador ou se tinha o intuito de mais facilmente encontrar parceiros sexuais
masculinos nas tabernas e bordéis de Roma. É preciso ter em conta que, na época, a cidade teria um
milhão de habitantes, no contexto de um império onde viveriam entre 50 a 100 milhões de habitantes.
11
Apesar de então a depilação ser também realizada pelos homens, o imperador ter-se-ia depilado com o
intuito de «parecer mais mulher». O exagero discursivo relativamente a esta questão não nos deve fazer
fizessem uma vagina mas os cirurgiões, eventualmente receosos desse empreendimento
não resultar, limitaram-se a fazer-lhe uma simples circuncisão12.
Dizem os autores citados que não teria qualquer sinal de hermafroditismo, o que,
independentemente de tudo o resto, parece óbvio. De acordo com uma das fontes, Dião
Cássio (155-229)13, o seu original desejo seria até ser hermafrodita, porque o que pediu
aos médicos não foi exactamente a castração mas que imaginassem uma forma de, por
incisão, introduzir no seu corpo uma vagina de mulher. Não seria pois uma castração ou
mesmo a construção de uma vagina o que o imperador desejava mas uma operação
ainda mais complexa – o transplante de uma vagina… Daria, de acordo com algumas
fontes, metade do império a quem o conseguisse mas nunca saberemos se teria falado de
algo que desejava muito ou se só o disse porque tinha consciência de que era uma
solicitação impossível.
Pedia aos seus amantes que o espancassem, depois de o apanharem a cometer
«adultério», para exibir socialmente as marcas dessa experiência. Ninguém poderá
afirmar que este comportamento remete para a perturbação da identidade do género,
para o masoquismo ou para ambos. A submissão era ainda referenciada a propósito de
ter relações sexuais com mulheres, mas apenas para saber agradar aos seus amantes
masculinos ou para que estes, «apanhando-o» em flagrante delito, lhe dessem o
respectivo correctivo.
Claro que esta formulação parte de um suposto eventualmente errado sobre a mulher
romana. Em Roma, a mulher podia sair de casa, sem autorização do marido, geria o
pessoal doméstico, era orgulhosa e corajosa. De resto, o próprio imperador estaria
eventualmente a servir de fachada para as mulheres da família ocuparem o poder. No
século I, houve um período em que se registou uma relativa igualdade entre os dois
sexos, incluindo a norma de que o homem devia tratar a mulher com consideração e
mesmo ser monogâmico. No século I, apesar de se considerar que o amor conjugal era
facultativo, emergiu um cenário em que se defendeu a igualdade entre homem e mulher,
as relações monogâmicas e o companheirismo e o amor conjugal, marcado por um ideal
de ternura, amizade, ajuda mútua e virtude. Mas, entre os esposos, não devia haver troca
excessiva de carícias, ou seja, o marido não devia tratar a esposa como uma amante
vulgar, ou seja, continuavam a separar o prazer sexual do matrimónio. De resto,
perder de vista que, ao nível da diferenciação entre o masculino e o feminino, ao nível do vestuário e dos
adornos eram bem mais escasso do que viria a acontecer, na Europa, a partir da Idade Média Tardia.
12
Noutras versões, a circuncisão teria sido realizada para se tornar sacerdote supremo do deus Sol
Invicto. Por outro lado, se tivermos em consideração que os romanos, tal como os gregos, eram
abertamente contra a circuncisão, é duvidoso que os cirurgiões não tivessem algum receio de usar esta
última opção. Era um símbolo e uma identidade judaica e os romanos legislaram abundantemente sobre a
matéria, chegando nalguns casos a obrigar os judeus a colocar um peso no pénis para repuxar os restos do
prepúcio e voltarem a ser «normais». De resto, para invocar o estatuto de não judeu bastava exibir o
prepúcio. Claro que uma outra hipótese remete para ser mais uma forma de denegrir este imperador
«maldito» nas histórias construídas para justificar o seu assassinato.
13
Neste caso, apesar de contemporâneo de Heliogábalo, só pode ter contado a sua história em segunda
mão, uma vez que não vivia em Roma durante o período em que foi imperador. Para além disso,
mantendo o cargo de cônsul depois da queda do imperador, seria natural que o denegrisse, pelo menos se
quisesse manter a posição política que ocupava. O texto afirma que «… preguntó a los médicos si podian
idear la manera de introducir en su cuerpo una vagina de mujer por medio de la incisión, prometiéndoles a
cambio enormes sumas de dinero» (LXXX.16.7). Pode-se inferir que haveria aqui um desejo de castração
mas o texto não o afirma expressamente.
excluíam e censuravam a paixão amorosa, enquanto excesso, equiparável à gula, ainda
que Catulo (87-54 a.C.), apaixonado, tivesse escrito poemas de amor.
No século II, o adultério do homem era tão grave com o da mulher [Epícteto (50-130),
ao considerar que o adultério era um roubo, situou-se nesta perspectiva]. No
relacionamento sexual a nível conjugal, só era permitido fazer amor à noite, sem
lâmparinas acesas, sob pena de serem julgados libertinos. A esposa não de devia despir
completamente à frente do marido e se fizesse amor apenas por prazer14 seria
considerada impura. Se considerarmos estes parâmetros, a ideia de que o imperador
procurava ser como as outras mulheres está longe de ter sido alcançada: ou as
«professoras» não foram muito boas ou ele queria tornar-se uma excepção no plano
feminino.
Numa ocasião teria entrado em Roma de costas para que fosse «possuído». Não se pode
afirmar se foi uma simples provocação, se um desejo homossexual ou se isso
significava que se sentia mulher. Em qualquer dos casos, teria uma série de «olheiros»
com a missão de detectar, sobretudo nos banhos públicos, os machos mais dotados que
levaria para o palácio imperial, onde, quando interagiam sexualmente com ele, este
simplesmente, de joelhos e nu colocava as nádegas em posição para o coito anal,
fazendo o papel de Vénus.
Assim como caprichos vários, enquadráveis na ordem dos luxos e dos prazeres do corpo
e da mesa. No que respeita ao vestuário e adornos, Heliogábalo teria introduzido hábitos
muito mais luxuosos, provenientes de várias zonas do Médio Oriente, do que era
costume entre os romanos, independentemente do vestuário ser masculino ou feminino.
Os historiadores romanos, afirmam simplesmente que nunca repetia o mesmo vestuário.
Os adornos incluíam colares, braceletes e tiaras, onde abundavam o ouro e as pedras
preciosas. O vestuário era igualmente luxuoso, com tecidos de púrpura dourados.
Prostituir-se e fazer o elogio das prostitutas e dos prostitutos pode ter sido uma fórmula
para lhe acentuar os traços de feminilidade, ao mesmo tempo que era uma fórmula para
o humilhar ainda mais. Claro que situar isso no discurso directo do imperador ainda
dava maior crédito ao que acabavam de afirmar. Na verdade, à matrona romana eram
atribuídas predominantemente outras características, como a beleza, a bondade de
carácter e a discrição e não tanto a exibição através do vestuário ou dos adornos. Assim,
os discursos sobre Heliogábalo iriam colocá-lo muito mais ao nível da mulher prostituta
do que propriamente no plano de uma respeitável matrona romana. Ou seja, colocavam
o imperador num plano que ultrapassava o mero desejo de ser mulher, situando-o
naquilo que seria uma das mais miseráveis condições sociais e morais, na perspectiva
dos romanos.
Eventualmente, as suas extravagâncias e bizarrias15, sexuais e não só, terão levado a avó
e a tia, Júlia Mameia, para manterem o poder, a substitui-lo pelo primo Alexandre
14
Por exemplo, se usasse alguma estratégia para evitar ter filhos ou mesmo se os não tivesse por um
qualquer problema de esterilidade.
15
Decalcadas de muitos outros imperadores, como Nero, Calígula, Domiciano ou Cómodo. Por exemplo,
o historiador Suetónio (69-130) afirmou que Nero «Castrou o jovem Esporo e tratou de fazer dele uma
mulher, de facto casou com todas as cerimónias habituais, incluindo um dote e um véu nupcial. Depois
levou-o para sua casa e tratou-o como sua esposa. Esporo arranjava-se como as melhores imperatrizes,
passeava-se pela cidade em liteira e beijava Nero em público» ainda que se desconheça se, também este,
era um relato fidedigno. Claro que aqui a cena fica esbatida porque concretizar este abuso com um
Severo. Era fácil porque os seus desmandos de conduta já tinham levado os militares a
se ter arrependido do apoio que lhe tinham dado anteriormente, tendo mesmo ocorrido
várias revoltas. Depois de acusado do sacrifício de crianças16 e de sadismo, ele e a mãe
acabaram por ser decapitados e com os corpos nus arrastados pelas ruas da cidade e pela
arena do circo, acabando o de Heliogábalo por tingir de vermelho as águas do Tibre, um
castigo aplicado aos «tiranos monstruosos», para evitar que pudessem ter direito a uma
sepultura assim como às honras funerárias.
Conclusões
As informações disponíveis17, independentemente de acreditarmos na sua fiabilidade,
permitem tanto afirmar que tinha, com «grande probabilidade», uma perturbação da
identidade do género, como que era travesti, feiticista travestido, hermafrodita
assumido, masoquista, sádico, exibicionista, homossexual, homossexual passivo,
bissexual ou outra coisa qualquer, num excessivo cardápio patológico e/ou de
preferências sexuais, difícil de imaginar numa só pessoa e num tão curto espaço de
tempo18. Depois, não se podem misturar algumas afirmações que só revelam uma
profunda ignorância conceptual: Por exemplo Espejo Muriel, que o diagnostica de
transexual, mais à frente é capaz de afirmar que nas suas relações homossexuais seria
activo e passivo19. Efectivamente, a autêntica possibilidade de acertarmos no
diagnóstico seria conseguirmos viajarmos no tempo e entrevistar Heliogábalo e colocarlhe as questões que fazem parte da lista de critérios actualmente utilizados.
Isso não significa que não consideremos fascinante fazê-lo porque, com frequência, o
legado que nos deixaram é, no plano da construção literária, requintado e recheado de
detalhes pitorescos e pícaros. Mas não tenhamos ilusões, estas facetas que hoje deleitam
milhões, por via dos actuais meios de comunicação, já faziam as delícias dos romanos
num capítulo onde quase tudo se pode fantasiar sobretudo porque só muito raramente,
ao longo da história da humanidade, a actividade sexual fez parte da vida pública. Daí
também a ampla curiosidade que sempre suscitou mesmo quando estamos mais ou
escravo era de muito menor importância, comparativamente a ser o próprio imperador a realizar, em si
próprio, uma tal transformação. Nesse sentido, a originalidade da história é aparente, uma vez que,
simplesmente, se inverteu o estatuto dos personagens.
16
Esta acusação mesmo que não fosse verdadeira era muito importante. Basta ter em consideração que os
romanos tinham eliminado até os sacrifícios com animais – o que gerou alguns conflitos com os cristãos
que inicialmente o admitiam. Simbolicamente tinham substituído esses rituais pelo vinho, que os cristãos
também acabaram por adoptar. Em qualquer dos casos foi também afirmado que teria mandado matar
«todas» as crianças de nascimento nobre e belas, o que parece ser um exagero, pelo menos se
considerarmos que o poder político e económico estava centralizado em mil a duas mil famílias. Teria
sido uma autêntica mortandade.
17
Esparsas, fragmentárias e de difícil certificação quanto à sua veracidade.
18
Parece-nos que, nem mesmo Krafft-Ebing (1840-1902), que reuniu a maior colecção de casos de
parafilias e de extravagâncias sexuais, na célebre Psicopatologia Sexualis, conseguiu um caso que tivesse,
em simultâneo, tantas preferências sexuais.
19
Se fosse transexual, simplesmente quando se relacionava com um homem, para ele próprio, sentir-se-ia
um heterossexual mais que perfeito… Na análise das questões relacionadas com o transexualismo, nunca
se deve perder de vista que este termo remete para o sexo biológico e não para qualquer preferência de
interacção sexual. Ou seja, se o imperador se sentia mulher e preferia interagir sexualmente com um
homem a relação seria heterossexual. É admissível que, para um observador externo ingénuo, essa relação
sexual seja homossexual. É inconcebível que para um investigador que afirma, com toda a certeza, que o
rapaz era transexual, entenda que quando se relacionava com um homem estaria a ter uma interacção
«homossexual».
menos conscientes que a fantasia ou a mentira deliberada vagueiam, sós ou de mãos
dadas, alegremente nas historietas de cariz sexual.
Sobre a veracidade da história
Existe uma probabilidade elevada de uma parte destes relatos poderem ser falsos e
exagerados e remeterem apenas para a propaganda ou para a contra-informação política.
O mexerico, o rumor e o boato sobre a vida íntima e sexual sempre fizeram parte da
vida social, incluindo as sociedades antigas. Uma fórmula fácil era inventar acusações
de uma determinada pessoa ter costumes infames. Quase sempre com a finalidade de
ganhar vantagens – económicas, de estatuto ou políticas. De igual modo, ontem como
hoje, sobretudo na política, o insulto e a obscenidade fizeram parte dos «argumentos»
menos dispendiosos para a inteligência. Neste caso, o imperador teve uma vida tão curta
que, eventualmente, uma parte significativa das historietas poderá ter sido construída
para justificar, a posteriori, a sua destituição e assassinato.
Os escândalos sexuais (infidelidades, divórcios, etc.), reais ou ficcionados20, eram um
leitmotiv frequente dos membros do Senado, para atacar os rivais políticos. Assim como
o recurso, apesar de proibido, ao uso de obscenidade para denegrir e impressionar o
adversário, fosse ele político ou intelectual.
De resto, a conjugação das diversas historietas acaba por trair, em parte, a sua
veracidade, na exacta medida em que agarram estereótipos de proveniência vária e
acabam por pintar um quadro exagerado para um só imperador… e num tão curto
espaço de tempo. Se o olharmos numa perspectiva actual, ele padronizava o
homossexual masculino quando desejava homens sobredotados21, imitava o travesti ou
uma minoria de transexuais quando exagerava os símbolos típicos do outro sexo, no
vestuário, nos adornos ou na pintura, o masoquista quando gostava de ser molestado, o
sádico quando molestava os outros, o heterossexual quando casava e tinha relações
sexuais com mulheres, mesmo que com o subtil argumento de aprender com elas a ser
mulher22.
Eventuais variáveis culturais implícitas
20
Esta questão põe em causa a veracidade de muitas histórias que chegaram até nós. Por exemplo, Júlia
(39 a.C.-14), filha do imperador Augusto (63 a.C. -14), teria escandalizado o próprio pai por andar, à
noite, nas ruas de Roma com o seu cortejo de amantes. Pelo menos, ao nível de casamentos, teve uma
vida movimentada, uma vez que casou sucessivamente com Marcelo, o general e ministro de Augusto,
Agripa (62 a.C.-12) e o futuro imperador Tibério (42 a.C.-37), que, tendo sido adoptado por Augusto era
seu irmão electivo. De algum modo, a orgia romana não terá passado de uma lenda. Relativamente aos
filmes, mais recentes, sobre a Roma Antiga, Rafael de España (2009) considera que «…o mais erróneo (e
venenoso), a meu ver, é apresentar uma sociedade romana dominada pelo vício e pela corrupção»20 [«…
el más erróneo (y venenoso), a mi entender, es presentar la sociedad romana dominada por el vicio e
corrupción» [España, Rafael de (2009) – La Pantalla Épica, T&B Editores], na medida em que esta
perspectiva limita-se a esconder a justificação, a perspectiva e os interesses clássicos e modernos da
agenda judaico cristã que sempre defenderam que os romanos teriam uma sexualidade permissiva e
desinibida, marcada pelas mais desenfreadas paixões amorosas [referido por Quatrecasas, Alfonso (2009),
Amor y Sexualidad en la Antigua Roma, Grupo Difusión].
21
Teria chegado a oferecer cargos públicos a libertos em função do tamanho dos órgãos genitais ou do
excelente desempenho sexual.
22
Superficialmente contraditório, se pensarmos que sendo a mulher passiva pouco ou nada tinha a
aprender sexualmente, a não ser posicionar-se… ou nem isso…
E outras variáveis culturais podem ter aqui uma importância significativa. No plano
religioso não se pode escamotear que Heliogábalo, de acordo com estas historietas, teria
sido sacerdote supremo23, ainda na Síria, num templo do deus com o seu próprio nome,
representado por um falo, e que estava associado a rituais orgíacos de natureza
bissexual, assim como ao sacrifício de animais e de crianças. Pelo menos nalguns
templos, na Fenícia, os sacerdotes usavam um vestuário muito aproximado ao usado
pelas mulheres. Que, quando viveu em Roma, no seu fanatismo religioso, tentou que o
deus Heliogábalo, ou o deus Sol Invicto, substituísse Júpiter na chefia da imensidão de
deuses que povoavam o império romano. E que se revigorassem as deusas-mãe
(Astarté) do Médio Oriente que estavam associadas a rituais de castração dos
sacerdotes24. De resto, teria realizado um casamento simbólico entre Baal, divindade
fenícia priápica, com Juno, Minerva, Urânia, deusa romana das prostitutas e dos
fornicadores.
Claro que o imperador, destituído e assassinado, não conseguiu assegurar as suas
funções sociais. No entanto, isso pode nada ter a ver com o hipotético transexualismo.
Compreensão da situação segundo os critérios de «diagnóstico» romanos
Na época, a grelha de análise dos fenómenos sexuais não era a nossa. De facto, tudo
girava em torno de uma só dicotomia activo (homem) / passivo (mulher)25. Mesmo na
pederastia essa era a dicotomia: activo (mais velho) / passivo (adolescente). Esta
dicotomia era de difícil aplicação no caso do sexo oral: os gregos deram a volta à
questão colocando o receptor de pé e o emissor de joelhos, superficialmente numa
posição de submissão. Para os romanos, seria aceitável que uma mulher, uma escrava ou
um escravo o praticassem, assim como para um cidadão, sexualmente activo, ser felado
mas ele fazê-lo seria uma injúria suprema26.
De resto, muitas vezes, usavam com alguma liberdade literária, a palavra mulher para
significar «passivo», como na expressão: «César, o homem de todas as mulheres e a
mulher de todos os homens», ou seja, «homossexual passivo» e mulher eram termos que
poderiam ser equiparados. A «homossexualidade passiva» seria um crime para um
cidadão mas um dever para um escravo27. Considerava-se que o «homossexual
masculino 28 passivo» tinha falta de virilidade e, consequentemente, não eram admitidos
23
Parece, superficialmente, duvidoso que já tivesse um cargo sacerdotal tão elevado aos 14 anos.
As informações aqui são um pouco confusas. Seguramente, nos templos da deusa frigia Cibele,
aconteciam tanto as orgias, as castrações de sacerdotes, os sacrifícios de animais e a veneração de uma
pedra sagrada estavam presentes. No entanto, os deuses cananitas e fenícios, como El (Ras Shamra, na
Síria), representado pelo touro e deus da fertilidade seria consorte de Asherat e de Anat (por vezes, seria
irmã), com quem teve relações sexuais, depois de mergulhar nas ondas do mar, de as beijar e abraçar
dando um filho divino a cada uma delas. Asherat ou Astarté, mãe dos deuses, teria tido setenta filhos e foi
reverenciada por vários povos, incluindo os Hebreus, como deusa da fertilidade, do amor e da procriação.
Admite-se que a Afrodite grega, que daria lugar à Vénus romana, seria uma deusa inventada a partir de
Astarté. Asherat e Anat poderiam ser duas deusas diferentes ou eventualmente duas facetas (Escuridão /
Luz) da mesma deusa.
25
Esta concepção, inicialmente formulada pelos gregos, só começou a ser ameaçada nos finais do século
XIX. Até a Inquisição a utilizou ainda que lhe tivesse dado uma tonalidade aristotélica: activo evoluiu
para agente e passivo para paciente…
26
Consequentemente, os historiadores romanos colocaram Heliogábalo a beijar o sexo de Hierócles,
ainda que achassem que só o facto de dizê-lo seria vergonhoso.
27
Ao contrário da Grécia Antiga onde esse papel era desempenhado pelo efebo.
28
Designado impudicus e na Grécia Antiga diatithémenos.
24
ou eram expulsos do exército. Esta era avaliada através de sinais como o modo de
vestir-se, de andar, certos gestos ou a pronúncia29. Se, pelo contrário, apresentasse sinais
de virilidade exagerados podia considerar-se que tinha uma feminilidade secreta30. A
homossexualidade passiva era censurada e desprezada tal como a prostituição31, a
paixão amorosa ou a infidelidade. No entanto, ser «passivo», no plano sexual,
significava que se estava a rebaixar e seria uma injúria suprema e um horror. Mesmo
numa relação heterossexual, se um homem fosse «passivo» com uma mulher, se tal
facto fosse conhecido publicamente, seria objecto de comentários jocosos e
maliciosos32.
E neste ponto, todas as histórias são coerentes e vão desembocar no mar de provas de
que Heliogábalo era «passivo». E sendo passivo, manifestava uma clara falta de
virilidade e seguramente de incompetência para o desempenho dos papéis sociais
atribuídos ao cidadão e ao imperador. Ou seja, não estava em jogo se era ou deixava de
ser homossexual. No entanto, se tivesse um papel de receptor no coito anal, teria
seguramente um vício que não era natural para o cidadão. Ou seja, o básico para um
homem era ser activo, independentemente do sexo do amante ou da vítima. A história
de Heliogábalo representa uma completa reversão de papéis, no relacionamento com os
seus amantes. Não sabemos se, ao lhe acentuar e exagerar o seu papel feminino e
passivo, assim como no papel de escravo, simplesmente pretendiam destitui-lo de ter as
qualidades necessárias para o exercício do poder. Isso parece-nos mais provável do que
propriamente o desejo de lhe atribuir um sinal de transexualismo. Ou seja, a dicotomia
que usavam nada tinha a ver com a dicotomia, inventada na segunda metade do século
XIX, homossexual / heterossexual.
Em paralelo, noutro ângulo de análise é preciso considerar que, numa sociedade
esclavagista, a sexualidade entre o senhor e o escravo ou a escrava era tão natural e
normal como usar um qualquer utensílio doméstico. Para um cidadão tudo o que mexia
podia ser objecto de interesse sexual, excepto, entre os que tinham direito de cidadania,
a mulher virgem ou casada e o adolescente masculino. Neste contexto, o escravo nunca
poderia opor qualquer resistência ao abuso sexual, para mais de um imperador; assim,
as manifestações de sadismo eram mais ou menos aceites, desde que exercidas por um
cidadão. Assim, nenhum mal havia que um escravo fosse passivo mas, para um cidadão
essa postura seria simplesmente uma infâmia. No entanto, colocar um imperador a
apaixonar-se por um escravo era um modo de ridicularizá-lo na exacta medida em que
não era normal nem concebível que se apaixonasse por um mero instrumento sexual que
se poderia, a nosso bel-prazer usar passivamente. Em parte porque a dicotomia activo /
passivo também continha a dimensão dominador / submisso que nada tinha a ver com o
ideal de reciprocidade, defendido actualmente para qualquer tipo de relacionamento
sexual.
As histórias tentam provar até à saciedade que Heliogábalo era «passivo», algo
impensável para o seu estatuto de cidadão e de imperador. Não provam de todo que
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Na história de Heliogábalo estes ingredientes são frequentemente referidos sem que nos seja possível
cogitar se remetiam para considerá-lo «homossexual passivo», no sentido moderno do termo ou se,
simplesmente para aquilo que era o cerne da questão em Roma – ser ou não ser passivo.
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Eventualmente um ou outro gladiador seria homossexual ou travesti e isso era visto como paradigma
dessa feminilidade disfarçada.
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No entanto, anualmente realizava-se a 25 de Abril a festa dos prostituídos.
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Séneca (2 a.C.-65) referiu-se ao horror que seria uma mulher ficar na posição superior de coito, ou seja,
«cavalgar o homem».
fosse transexual33 porque não é possível saber se efectivamente se sentia mulher
internamente e se o seu sexo biológico lhe provocava algum tipo de mal-estar. Sabe-se
apenas que outros lhe atribuem esse desejo mas, com a melhor das facilidades, podia ter
apenas em vista reforçar a ideia de que era passivo e as mulheres eram, por definição,
passivas. De resto, curiosamente, não se concebia, no caso das mulheres, se
exceptuarmos as tríbades e as fantásticas amazonas, como muitos séculos depois se
haveria de fazer, que pudessem ser activas. Ao contrário do que acontecia no caso dos
homens que podiam ser activos (senhores/velhos) ou passivos (escravos/adolescentes).
Curiosamente mesmo os seus casamentos e recasamentos com mulheres são quase
sempre mencionados ao de leve. E claramente menosprezados quando se pretende fazerlhe o diagnóstico de perturbação de identidade do género. Em parte por eventualmente
os autores considerarem que seriam casamentos arranjados, dissociados de erotismo,
romantismo e sexo. Em parte por aceitarem, sem reticências, que a mulher não teria
qualquer tipo de interesse sexual. Mas, neste caso, é pelo menos intrigante a dança de
casamentos «heterossexuais»34 de Heliogábalo, sobretudo o «regresso» às esposas de
quem se divorciara. Como é curioso que, apesar do lado efémero destes matrimónios,
todas, enquanto imperatrizes, tivessem tido moedas cunhadas com a sua efígie, facto
que, pelo menos no plano simbólico, parece revelar que tiveram algum relevo social. De
resto, Dião Cássio tentou dar a volta à superficial contradição, ao assegurar que teve
relações sexuais com as esposas e com outras mulheres mas como um mero treino para
ser uma mulher mais «real» quando estivesse com os seus amantes masculinos.
Afirmar que quando frequentava as piscinas públicas ia sempre para a zona reservada às
mulheres parece ser um bom argumento para lhe acentuar um qualquer pendor
feminino, mas considerando as outras informações disponíveis pareceria mais razoável
ir para o lado dos homens onde mais facilmente poderia identificar, ao vivo, os órgãos
sexuais mais generosos e apetecíveis.
Diziam que costumava passear nu, num carro puxado também por três ou quatro
belíssimas mulheres nuas35. Mesmo que fosse, na época uma clara extravagância, tanto
se pode pensar que o fazia porque gostava de estar rodeado de mulheres lindas como o
fazia como provocação ou para, por via delas, chamar a atenção dos homens para si
próprio.
Visitava as prostitutas para as expulsar e fazer o trabalho delas ou para melhor
desempenhar a simulação de uma loba romana que se oferecia ao cliente, nua e de voz
delicodoce. Teria mesmo, estudado com as prostitutas todos os tipos de posições de
coito e de prazeres sexuais. Podia adquirir uma bela e lasciva escrava mas não lhe tocar
por ainda ser virgem.
Noutros casos, afirma-se que preferiria a companhia de anciãos lascivos, efeminados e
passivos para argumentar que seria natural preferir os jovens. Aqui, há uma falha na
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Mesmo a história do seu pretenso desejo de «mudar de sexo» parece, em parte, decalcada da de Nero.
Só que um pouco mais infamante, ou seja, não é um imperador que transforma um escravo numa mulher
é um imperador que deseja transformar-se em mulher…
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Aceitando a hipótese de que era transexual, estes sim seriam autênticos casamentos homossexuais. No
entanto, se a sua orientação fosse heterossexual um autêntico incómodo.
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Claro que era uma clara infracção às normas. Os únicos locais onde eram aceite estar nu eram as
piscinas e os banhos públicos, assim como os atletas nos jogos desportivos.
historiografia romana, por duas ordens de razões: a primeira relaciona-se com o facto da
aceitabilidade da interacção sexual, entre homens, situar-se exactamente na relação
entre um adulto e um jovem, que neste caso seria o imperador – ou seja, seria dos actos
mais «normais» que conseguiram atribuir-lhe; a segunda decorre de, na hipótese de se
sentir mulher, procurar esses homens «efeminados».
É espantoso que Nogueira, Silva & Mateus (2010) não consigam aperceber-se da teia
contraditória em que se envolvem quando, em simultâneo, asseguram que o imperador
era um transexual masculino / feminino e que foi «pioneiro do casamento
homossexual». É de mediana clareza que se era transexual, como propõem, ou seja
sentindo-se mulher, estava a contrair um matrimónio da melhor pureza heterossexual.
Estamos a considerar a questão, como deve ser considerada, na pele do próprio
imperador e não do que a sociedade romana consideraria ou do que, mesmo hoje,
poderia ser considerado pela sociedade. Nem está em causa que, alguns transexuais
possam, na actualidade, depois de terem alterado o sexo, preferirem ter relações sexuais
com pessoas do mesmo sexo. A questão essencial é que se o imperador era transexual,
na concepção actual, ao casar com um homem, estava de facto a realizar um casamento
heterossexual. A não ser que aceitem que, afinal, os casamentos que realizou com
mulheres é que foram «homossexuais» …
Parece-nos pois mais simples. O imperador simplesmente fazia tudo o que os romanos
abominavam no plano sexual, social e religioso, por mera provocação ou transgressão36
ou então foram os historiadores romanos que lhe atribuíram uma grande parte destas
«façanhas» sexuais. A verdade, nua e crua, é que nunca o saberemos. Mas, com toda a
certeza, os poucos, esparsos e fragmentários, elementos disponíveis não permitem fazer
qualquer diagnóstico psiquiátrico, seja o de perturbação da identidade do género ou
outro qualquer. No caso da perturbação da identidade do género falta-nos mesmo saber
o que o imperador sentia interiormente. Apesar de as fontes disponíveis o afirmarem,
não é possível termos segurança sobre a sua fidedignidade. Para além disso, mesmo que
as descrições sejam verdadeiras37, a associação mulher / comportamento sexual passivo
não permite discernir o que queriam significar, numa análise actual: se desejava ser
mulher ou se simplesmente era um homossexual passivo e efeminado.
Referências Bibliográficas
Nogueira, Óscar, Silva, Carla & Mateus, Maria Antónia (2010) – «Heliogábalo»,
Hospital Júlio de Matos, 23:21-27.
36
Cf. «La transgresion al poder! (El emperador Heliogábalo)», Carlos Espejo Muriel, Universidad de
Granada (perso.wanadoo.es/espejo/Heliogabalo.htm).
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Existe uma tendência curiosa e ingénua de julgar que os nossos antepassados seriam sempre
verdadeiros. Está ainda por fazer a história de quando é que os humanos começaram a mentir, ainda que
nos pareça que sempre terá acontecido.
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