A TERRA VAI ARDER PROFETIZA O IPCC

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ANO 15
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Nº 1
TIRAGEM:
H
á duas décadas, os relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) alertam para os riscos do aquecimento global e sugerem que é decisiva a contribuição humana
nas alterações do sistema climático do planeta. O relatório mais
recente, de fevereiro, provocou comoção inédita pois as previsões
tornaram-se mais agudas e o tom, quase apocalíptico.
Jacques Chirac, o presidente da França, exprimiu um sentimento
mais vasto ao pedir a criação de uma Autoridade Mundial do Clima, algo como um governo planetário para o aquecimento global.
Os franceses não gostavam da idéia de “governos mundiais” e, tradicionalmente, prezam a soberania nacional. Mas Chirac ficou impressionado – e, certamente, aproveitou para cutucar Washington,
um esporte que pratica com desenvoltura desde a invasão americana do Iraque, em 2003.
Surpreendentemente, pela primeira vez, o governo George W.
Bush recebeu com palavras elogiosas um relatório do organismo.
Os Estados Unidos continuam a recusar o Protocolo de Kyoto,
mas agora articulam uma iniciativa internacional para o clima, junto
com parceiros asiáticos.
O IPCC tem autoridade. É um misto de congregação científica
mundial e colegiado de burocratas indicados pelos governos nacionais. A autoridade do IPCC não suprime a divergência entre os
cientistas, que é a mola impulsionadora da própria ciência. Especialistas sérios discordam fundamentalmente do relatório. A mídia é
que não ofereceu espaço para suas críticas.
Veja as matérias às páginas 6 a 9
C
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28 000 EXEMPLARES
A TERRA VAI ARDER,
PROFETIZA O IPCC
Imagem de satélite mostra o furacão Katrina, que
arrasou a cidade de Nova Orleans, em 23 de agosto de
2005. Embora o aquecimento global não possa ser
responsabilizado pela catástrofe, os cientistas temem
que o fenômeno provoque outros furacões como este
África no plural
ada escola brasileira, pública ou privada, por determinação do MEC,
é agora obrigada a classificar nominalmente a “raça” dos seus alunos,
no ato da matrícula. É que a Secretaria da Igualdade Racial (Seppir)
pretende conhecer a distribuição dos “negros” no sistema escolar.
Quem são os “negros”? No censo, há “pretos”, “pardos”, “brancos”,
mas não “negros”. Para a Seppir, “negros” são, indistintamente “pretos” e “pardos”. E o termo é sinônimo de “afrodescendente”.
Ninguém fala em “eurodescendentes”. Por que se fala em
“afrodescendente”? A Europa não é uma unidade cultural. Seria a África –
ou, ao menos, a África Subsaariana – uma unidade cultural? Essa é a pergunta inaugural da seção África-Brasil, uma novidade de Mundo em 2007.
Pág. 12
TOM, 80 ANOS
© Juvenal Pereira/Folha Imagem
● Editorial – Enquanto o garoto João Hélio, de 6 anos,
era barbaramente arrastado
até a morte atrás de um carro roubado, os morros do
Rio de Janeiro assistiam à
guerra das milícias com o
narcotráfico. A cidade tornou-se terra de ninguém.
Pág. 3
● No Pentágono elaboram-se
planos para um eventual ataque ao Irã. Mas Israel parece à
frente dos Estados Unidos, e
já tem tudo pronto. No papel.
Pág. 3
● O venezuelano Hugo
Chávez proclamou a invenção de um “novo socialismo”, muito diferente dos socialismos dos séculos XIX e
XX. Os chavistas sabem dizer o que não é, mas nada
dizem sobre o que é o “socialismo do século XXI”.
Pág. 4
● Fidel Castro está deixando a
vida, para entrar na História. O seu lugar parece reservado a um novo Líder providencial que, como tantos
antes dele, acredita conhecer
o caminho da redenção.
Pág. 5
● Diário de Viagem – Moscou
está na moda. Moscou se veste na última moda. Na antiga capital dos czares e dos
imperadores vermelhos desfilam automóveis de marcas
famosas e se erguem reluzentes shopping-centers.
Pág. 10
● O Meio e o Homem – Lula,
com o PAC, atualiza a idéia de
converter a Amazônia numa
fronteira de recursos hídricos
para abastecer o Centro-Sul.
Pág. 11
MARÇO/2007
Nasa
E mais...
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120 CONCURSO NACIONAL
DE REDAÇÃO DE
MUNDO E H&C - 2007
Escreva e se inscreva!!!
Concurso de Redação nasceu, em 1996, com
o objetivo de estimular o hábito de ler, escrever, estudar e refletir. O desenvolvimento contínuo e
prazeroso dessas habilidades é de suma importância,
no mundo contemporâneo, para o processo de for-
mação de cidadãos críticos e bem informados, capazes de se expressar de modo claro, criativo e inteligente. Mas, para que o concurso tenha êxito, é essencial a colaboração dos professores, especialmente
os da área de Comunicação e Expressão.
2. TEMA DA REDAÇÃO
E
m fevereiro de 2007, cientistas e representantes de
dezenas de países, reunidos em Paris no quadro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas
(IPCC), produziram um relatório alarmante. Afirmam,
em síntese, que como conseqüência do efeito estufa provocado pela ação humana, a temperatura média da Terra
poderá subir mais 3ºC, até o ano 2100, o que provocará
derretimento do gelo polar e elevará o nível dos oceanos,
com efeitos devastadores em todo o planeta. Mesmo que
“O dia em que o clima escapará do controle está próximo. Estamos chegando ao irreversível. Nessa urgência, não há tempo para medidas mornas. É hora de
uma revolução em nossas consciências, em nossa economia e em nossa ação política.”
(Jacques Chirac, presidente francês, posicionandose sobre o relatório do IPCC)
PANGEA - Edição e Comercialização de
Material Didático LTDA.
Redação: Demétrio Magnoli, José Arbex Jr., Nelson Bacic
Olic (Cartografia).
Jornalista Responsável: José Arbex Jr. (MTb 14.779)
Revisão: Maria Eugênia Lemos
Pesquisa Iconográfica: Odete Ernestina Pereira
Projeto e editoração eletrônica: Wladimir Senise
Endereço: Rua Romeu Ferro, 501, São Paulo - SP.
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Fax: (0XX11) 3726.4069 – E-mail: [email protected]
1. HISTÓRIA E OBJETIVO DO CONCURSO
O
E X P E D I E N T E
Assinaturas: Por razões técnicas, não oferecemos
assinaturas individuais. Exemplares avulsos podem ser
obtidos no seguinte endereço, em São Paulo:
• Banca de jornais Paulista 900, à Av. Paulista, 900
Fone: (011) 3283.0340.
www.clubemundo.com.br
o ser humano limite imediatamente a emissão de gases
carbônicos, não mais poderá evitar grandes catástrofes
(veja as matérias às págs. 6 e 7).
As conclusões recolocam, com grande urgência, um
debate sobre a relação entre o ser humano, a cultura (entendida como tecnologia, política e economia) e a natureza. Com base nos trechos selecionados a seguir, no seu
conhecimento e na sua sensibilidade, componha uma dissertação que contemple a complexidade do tema.
nós, no perímetro da cidade poluída, no bairro desmembrado,
nas famílias, em nossos corpos enfermos, em nossos genes. O
inimigo está por toda parte e em lugar nenhum, anônimo,
sem fronteiras, no electronicom sem rosto como na camada
esburacada de ozônio, na droga e no colesterol. Em tais condições, a ideologia ‘não dá mais pé’, mas a utopia sim.”
(Lucien Sfez, sociólogo francês, no livro A saúde perfeita)
"Infelizmente não foi possível localizar os autores
de todas as imagens utilizadas nesta edição.
Teremos prazer em creditar os fotógrafos,
caso se manifestem"
(Ernst Lehmann, biólogo de destaque do regime
nazista, 1934. Adolf Hitler era um ambientalista
biocêntrico e vegetariano convicto. Para ele, o
Nacional Socialismo era uma espécie de religião da
natureza. Hitler acreditava que as florestas e a vida
selvagem simbolizavam o passado “puro” da
Alemanha antes do domínio romano, e criou os
primeiros parques e reservas ecológicas da Europa.)
“B oa parte do debate sobre aquecimento global ba- “E is o dia de Iahweh, que vem implacável, e com ele o“Verde que te quero verde. / Verde vento. Verdes ramas.
seia-se no pânico e não na ciência. A ameaça de um
aquecimento global catastrófico é o maior blefe já
praticado contra o povo americano. Ambientalistas
extremistas e suas organizações elitistas exploram o
assunto com o objetivo de levantar fundos, beneficiando-se com milhões de dólares e usando dinheiro
dos contribuintes para financiar suas campanhas.”
(James Inhofe, senador do Partido Republicano
dos Estados Unidos)
A
“ s ideologias hoje parecem mortas como processos dos
sistemas de crenças, se não tomarem a forma mais radical
da utopia. (...) O inimigo não está mais no exterior, não
tem mais de ser combatido ou civilizado. Não é mais o
selvagem, o negro, o amarelo, o judeu, o proletário para o
burguês, o burguês para o proletário. O inimigo está em
furor ardente da ira, reduzindo à terra a desolação e dela
extirpando os pecadores. Com efeito, as estrelas do céu e
Órion não darão à luz. O sol se escurecerá ao nascer, e a lua
não dará a sua claridade. Punirei o mundo por causa de sua
maldade e os ímpios por causa da sua iniqüidade; porei fim
à arrogância dos soberbos, humilharei a altivez dos tiranos.”
/ O barco vai sobre o mar e o cavalo na montanha.”
(Federico Garcia Lorca, poeta, dramaturgo e
militante antifascista espanhol, assassinado pelas
tropas de Francisco Franco, em 1936, no poema
“Romance sonâmbulo”)
(Isaías 13,9-11)
“P ára, contempla, observa: Não são miragens / De
“R econhecemos que a separação entre a humanidade e a
um mundo perdido no tempo ou no sonho (...) É o
aqui e o agora de um Brasil que é teu e desconheces.
/ São as árvores, / Os bichos, / As águas , / Os crepúsculos / Do Pantanal matogrossense. / Todo um mundo natural / Que pede para ser compreendido, amado, respeitado.”
natureza, a totalidade da vida, leva a humanidade à sua
própria destruição. Apenas a reintegração da humanidade à totalidade da natureza pode fortalecer o nosso povo.
A luta pela conexão com a totalidade da vida, com a própria natureza, a natureza na qual fomos gerados, este é o
significado mais profundo a verdadeira essência do pensamento Nacional Socialista.”
(Carlos Drumond de Andrade, no poema
“Último olhar”)
2007 MARÇO
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A
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D
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O
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I
A
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CIDADE EM TRANSE
O terrível assassinato do garoto João Hélio
Fernandes, 6 anos, causou, com razão, uma grande
comoção nacional. Os aspectos mais brutais do crime foram realçados pela época do ano em que tudo
aconteceu: 7 de fevereiro, justo quando a “cidade
maravilhosa” começava a fazer os preparativos finais
para a “maior festa do mundo”.
Mas, se a indignação moral é compreensível, e até
um sinal saudável de que a sociedade está viva, ela
ameaça obscurecer o grave problema de fundo: o Rio
de Janeiro é terra de ninguém. O Estado prova-se incapaz de preservar a ordem na capital fluminense. Para
acrescentar ironia à tragédia, o assassinato de João
Hélio praticamente coincidiu com a entrada em cena
da Força Nacional, especialmente enviada ao Rio para
auxiliar no combate ao crime.
Nada é mais sintomático do caos do que a multi-
H
plicação das assim chamadas milícias, forças paramilitares que “vendem”, nas favelas e bairros adjacentes, um
esquema de proteção contra os narcotraficantes. Originárias de Jacarepaguá, elas atuam hoje em, pelo menos,
oitenta comunidades do Rio. Seus integrantes são, majoritariamente, policiais, agentes penitenciários e bombeiros – isto é, funcionários públicos pagos para preservar a
ordem pública.
Se já é altamente irregular o fato de agentes públicos
privatizarem os seus serviços para executar uma função
que o Estado não consegue cumprir, mais ainda é o método de “venda” dos serviços. Não se trata, em absoluto,
de uma livre escolha do “freguês”, mas sim de pura extorsão, à maneira das gangues de Al Capone na Chicago dos
anos 1930. Ou a população paga pela “proteção”, ou ficará também exposta aos ataques das milícias – além do
habitual terror exercido pelos narcotraficantes.
Em outras palavras, a própria força pública se desintegra e libera o câncer: grupos armados que agem
com maior desenvoltura do que faziam os sinistros
esquadrões da morte à época da ditadura militar. O
problema central, portanto, consiste no fato de que a
sociedade perdeu o controle sobre o seu braço armado. Mas tal controle é um pressuposto da democracia. As instituições democráticas não podem conviver com a ação arbitrária – eventualmente, terrorista
– de grupos que agem impunemente, ainda mais
quando tais grupos são formados a partir da própria
força pública.
No limite, a agonia que João Hélio experimentou, ao longo dos quilômetros por onde seu corpo foi
arrastado, pode ser lida como uma perturbadora advertência de que valores muito preciosos para toda a
sociedade também agonizam no Rio.
O IRÃ, NA MIRA DE ISRAEL
Saudita e Turquia. E as defesas aéreas do Irã
são muito mais avançadas que as do Iraque
de 1981. Um desembarque por terra parece
ainda mais improvável.
Outro problema grave é que, segundo
cientistas que participaram do programa
nuclear do Iraque e depois deixaram o país,
o ataque a Osirak representou apenas um
golpe momentâneo. Quando Saddam
Hussein invadiu o Kuwait, em 1990, seus
cientistas estavam muito perto de produzir uma bomba-A.
O programa atômico iraniano tem história. Graças às reservas de petrodólares,
o Irã construiu nos últimos 20 anos uma
ampla teia de parcerias – com a China,
Rússia, Paquistão, Coréia do Norte e
Ucrânia – para alcançar a bomba-A. E foi
o maior beneficiário do desmantelamento
parcial dos antigos estoques de armas atômicas da União Soviética, por conta da
aliança com as repúblicas islâmicas da exURSS. O pai do programa atômico iraniano foi Abdul Qhader Khan, que chefiou
programa semelhante no Paquistão.
O Irã é, também, o maior freguês de
mísseis de origem russa e norte-coreana. O
Shehab-2, uma variante do Scud-C russo,
transporta carga de 700 quilos à distância
de 500 quilômetros e pode atingir bases
americanas no Iraque, Kuwait, Catar e Omã.
O Shehab-3, variante do Nodong nortecoreano, poderia transportar ogivas nucleares à distância de 1,3 mil quilômetros, atingindo as cidades de Tel Aviv e Haifa, em Israel, e o reator nuclear israelense de Dimona.
© AFP
á dois anos, Meir Dagan, o chefe do
Mossad, o serviço secreto israelense, compareceu ao Parlamento de seu país para
declarar que o programa nuclear do Irã alcançara o ponto de “não-retorno”. A projeção era de que o Irã teria armas atômicas
em 2010. Naquele momento, Israel já havia “vazado” para a imprensa um plano de
ataque às instalações atômicas do Irã, caso
a República Islâmica prosseguisse buscando a bomba. O plano envolveria um ataque combinado de caças-bombardeiros F15 e da força terrestre de elite Shaldag.
Tudo previsto. Até porque Israel tem
no currículo a destruição do reator nuclear iraquiano Osirak, em 1981, levada a
cabo pela Força Aérea. Tudo previsto. No
papel, é claro: uma intervenção militar israelense no Irã seria operação
militar de altíssimo risco e representaria um golpe duro nas perspectivas de paz no Oriente Médio para as próximas décadas.
As dificuldades começam pela
geografia. As instalações nucleares
do Irã – com destaque para as
plantas de Natanz e Arak e o reator de Bushehr – ficam centenas
de quilômetros mais longe do que
o Osirak iraquiano. Espertos, os
técnicos iranianos construíram as
três plantas a centenas de quilômetros uma da outra, o que transforma um ataque simultâneo em
pesadelo de logística. Também
não seria tranqüilo para os israelenses pilotarem seus aviões pelo
espaço aéreo da Jordânia, Arábia
Fotos de satélite da região de Natanz, no Irã, tiradas, respectivamente, em
2002 e 2006; as imagens mostram expansão das instalações da usina nuclear
Esses mísseis estão prontinhos para uso.
O programa iraniano é uma ameaça
real a Israel. Mas, se os israelenses têm
possibilidades reduzidas de suprimi-lo, o
que pretendem com suas ameaças de ataque? Ao que tudo indica, a batalha verbal
tem dois objetivos: refrear a corrida nuclear do Irã e forçar as potências mundiais, principalmente os Estados Unidos, a
adotarem medidas reais de contenção.
Israel, aliás, já fez isso. Às vésperas da
Guerra do Golfo, em 1991, os israelenses
chegaram a ameaçar um ataque nuclear
“reduzido” contra Saddam Hussein. O
ataque não existiu, mas a ameaça talvez
tenha surtido efeito: os Estados Unidos de
fato invadiram o Iraque, que lançou mísseis contra Israel mas não utilizou suas
armas mais assustadoras, como ogivas carregadas com armas químicas.
O curioso é que o governo iraniano,
apesar das freqüentes ameaças contra Israel, provavelmente pretende apenas usar
o poderio nuclear como força de dissuasão,
para evitar um hipotético ataque dos Estados Unidos. Parece que, como Israel, o
Irã elabora planos de ataque para jamais
atacar - e, sim, para ganhar pontos no
equilíbrio regional de poder.
Mas as corridas armamentistas têm sua
própria lógica e nem sempre podem ser controladas. Na Europa do início do século XX,
as potências armaram-se até os dentes. Ninguém queria ir à guerra, até que um evento
acidental acionou as máquinas de matar.
Veio a Primeira Guerra Mundial, que deixou 60 milhões de mortos.
MARÇO 2007
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PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
VENEZUELA
UM SLOGAN EM BUSCA DE UM PROJETO
O que é o “socialismo do século XXI” ? Hugo Chávez e seus seguidores não têm uma
resposta, mas sabem que precisam procurá-la.
Q
Newton Carlos
Da Equipe de Colaboradores
© AFP
uando conquistou um segundo mandato, em dezembro de 2006, o presidente Hugo Chávez disse que o socialismo, em sua versão venezuelana, significa “no político
mais democracia e no econômico mais desenvolvimento
coletivo, com a finalidade de satisfazer as necessidades
dos povos e não para que uma minoria se enriqueça em
detrimento da vida das maiorias empobrecidas e miseráveis”. Desde então não se para de debater o significado
desse vago enunciado, que ganhou o rótulo de “socialismo do século XXI”. O que veio à tona como espinha
dorsal do chavismo chegou a ser considerado “mais um
slogan” pelo ministro do Exterior brasileiro, Celso
Amorim, tal a ausência de conteúdo.
Chávez aparece, ao mesmo de tempo, como líder de
direita e de esquerda. Exibe um discurso populista e se
cercou de expoentes da velha guarda comunista dos anos
1960, como José Vicente Rangel, seu ex-vice presidente,
e de ex-guerrilheiros como Ali Rodriguez, que chegou a
ocupar o cargo governamental de maior importância estratégica, o de ministro do Petróleo. “Em Chávez coexistem de modo constante tensões idealísticas e o mais puro
pragmatismo”, foi o que disse outro ex-guerrilheiro,
Teodoro Petkoff, hoje um misto de jornalista e político
de dura oposição a Chávez.
Com a liderança da tentativa de golpe em 1992
Chávez representou o papel de herói momentâneo de estudantes universitários e de uma esquerda radical e igualmente golpista. O próprio Chávez tinha como seu ponto
de partida a teoria da “árvore de três raízes”. A origem
mais remota foram “ensinamentos” não só de Simon
Bolívar, mas especialmente de seu “educador”, Simon
Rodriguez, e de Ezequiel Zamora, caudilho federalista
do fim do século XIX.
Simon Rodriguez insistia na necessidade de a América Latina buscar soluções próprias. “A América Espanhola
é original e originais tem de ser suas instituições e seu
governo e também seus meios de fundar um e outro. Ou
inventamos ou erramos.”, proclamou o professor de
Bolívar. O presidente venezuelano estaria procurando
inventar para não errar?
Já Ezequiel era um admirador das revoluções “liberais” européias. Falava com freqüência de “liberdade,
igualdade e fraternidade” e, em sua insurgência federalista,
empregou “slogans” como “terra e homens livres, eleição
popular e horror à oligarquia”. Passado e presente se confundem num universo cada vez mais ampliado de divagações. Chavistas anunciam inclusive uma “guerra de
baixa intensidade, interna e com os americanos”. Mas a
pergunta permanece: o que é o “socialismo do século
XXI”, citado por Chávez como alternativa à morte? Socialismo ou morte, jurou em sua posse.
O jornal Tal Qual, de Caracas, fez a pergunta a
chavistas e não chavistas. Resposta de Aurora Morales,
partidária de Chávez: “Para nós, o socialismo do século
XXI nasce de uma necessidade concreta. O modelo
unipolar, a grande concentração do capital
transnacional, a voracidade com que o Império atua em
escala mundial nos levou a tomar essa postura.” Nesse
O presidente Hugo Chávez tornou hábito a convocação permanente de grandes assembléias populares,
para comunicar seus planos de governo e atacar os adversários (em particular, o presidente Bush)
caso, o socialismo de Chávez poderia ser sintetizado
como antiamericanismo.
Também França e Suécia, lembrou um intelectual da
oposição, são contra um país erigido em Império. Poderiam ser fontes de inspiração de Chávez? Um porta-voz
do Centro Internacional Miranda, oficialista, admitiu que
“só sabemos o que não deve ser o socialismo do século
XXI”. Não será “uma economia baseada no capitalismo
de Estado, nem um sistema totalitário fechado. Não queremos parecer com Cuba.”
Afinal, a grande definição. “O socialismo do século
XXI não tem nada a ver com os dos séculos XIX e XX”,
segundo Rodolfo Sanz, personalidade do círculo do poder. Tudo indica que, até agora, imagina-se o “novo socialismo” a partir do financiamento público de cooperativas e de empresas capitalistas de propriedade estatal. Mas,
para entender o fenômeno Chávez, é preciso identificar
com clareza os seus adversários, inclusive George W. Bush.
Um acadêmico americano escreveu que Chávez não existiria sem Bush e seu anti-chavismo primário, que incluiu
o patrocínio de um fracassado golpe de Estado.
O chavismo surgiu com a derrocada da muito elogiada “mais longa continuidade democrática do continente”, que a Venezuela conheceu a partir da queda da ditadura de Perez Jimenez, em 1958. Por várias décadas alternaram-se no poder a Ação Democrática, que se dizia
social-democrata, e o Copei, um partido social-cristão.
Ao longo desse período, o contingente de pobres ultrapassou a metade da população.
Criou-se o grande paradoxo venezuelano: o abismo
entre a opulência do Estado, regado a petróleo e saqueado por uns poucos, e a miséria da grande maioria. Somas
gigantescas foram dilapidadas na megalomania dos grandes projetos. Com o dinheiro do petróleo os três poderes
do Estado chafurdaram na corrupção, enquanto o peso
da dívida externa, incompreensível diante do faturamento
bilionário das exportações, provocou um conjunto de
medidas de “ajuste” econômico, ditadas pelo FMI.
Essas medidas resultaram no “caracazo”, que assinalou
o fim da estabilidade política venezuelana. Caracas explodiu em protestos populares em 1988, pouco depois da posse
de Carlos Andrés Perez, da Ação Democrática. Os protestos foram sufocados, às custas de muitas mortes. Um Perez
desmoralizado enfrentou a tentativa de golpe de Chávez
em 1992, mas foi destituído em 1993 e condenado por
corrupção em 1994. Estava aberto o caminho para a ascensão de um líder que ocupa o lugar simbólico de “salvador da pátria” (veja a matéria à pág. 5).
Chávez usa o dinheiro do petróleo em políticas sociais. É essa mudança histórica que explica a mobilização
de amplos setores pobres em favor de um militar transformado em caudilho e com ambições à eternidade. O
populismo tem, apenas, resultados imediatos. A
eternização do poder do caudilho pode depender de um
projeto mais sofisticado e mais consistente, como o tal
“socialismo do século XXI”. Desde que o rótulo seja preenchido com algum conteúdo...
2007 MARÇO
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A
4
VENEZUELA
O REI MORREU, VIVA O REI!
Reprodução
© Juventud Rebelde/AFP
H
á, certamente, mais do que uma simples coincidência
cabalística no fato de que Hugo Chávez, o presidente da
Venezuela, tenha surgido como um novo líder, uma nova
referência ideológica de esquerda na América Latina, na
mesma época em que se anuncia a morte do presidente
(ou, como preferem alguns, ditador) cubano Fidel Castro. Se o velho líder é um remanescente da Guerra Fria,
quando o mundo era dividido em “esferas de influência”
controladas pelos Estados Unidos e pela hoje extinta
União Soviética, o candidato a substituí-lo, seu admirador confesso, é resultado de uma realidade geopolítica e
ideológica bem mais complexa. Mas trata-se, em ambos
os casos, da construção de uma figura messiânica, de um
profeta que promete encarnar as supostas virtudes da
nação, do “povo” e de “nuestra América”.
Ou, em outros termos: tanto Fidel quanto Chávez
expressam, de maneiras distintas, uma determinada relação política entre o dirigente político e a sociedade que
ele pretende representar, marcada pela idéia de que um
líder, um “homem forte”, ousado, decidido e identificado com as aspirações populares poderá resolver os problemas sociais e econômicos da nação. Nesse sentido
abrangente, não há nada de novo no front. A figura do
“grande líder” percorre a história da América Latina. Basta
pensar em Getúlio Vargas, no Brasil, e Juan Domingo
Perón, na Argentina, se queremos ficar no século XX e
restritos a uma área geográfica próxima.
Mas não se trata de um fenômeno especificamente
latino-americano. Durante duas décadas, a partir do final dos anos 20 do século passado, Josef Stalin encarnou,
na União Soviética, a figura do “pai dos povos”. Era o
senhor absoluto do Partido Comunista (PCUS) e
controlava com mão de ferro as instituições de
governo. Sua vontade era lei, sua palavra era definitiva. Uma máquina incessante de propaganda o
descrevia como um sujeito infalível, a própria
encarnação da Revolução Russa de 1917, o depositário das esperanças de toda a humanidade. Essa
máquina de propaganda foi definida como “culto
à personalidade” pelo sucessor de Stalin, Nikita
Kruschev, que denunciou parte dos seus crimes
no 20º Congresso do PCUS, em 1956.
Na Alemanha, entre 1932 e 1945, Adolf Hitler,
o representante maior das supostas virtudes da raça
ariana e da “pureza germânica”, também acumulou poderes ilimitados. Os soldados juravam fidelidade ao Führer (chefe máximo), e não ao país
ou às instituições. Como Stalin, Hitler era também objeto do culto à personalidade do líder. Processos mais ou menos semelhantes aconteceram,
ao longo do século passado, na Itália de Benito
Mussolini, no Portugal de Oliveira Salazar, na
Espanha de Francisco Franco, apenas para citar
os casos mais conhecidos.
Outros exemplos se multiplicam aos borbotões na Ásia, na África, no Oriente Médio. Mesmo nos Estados Unidos, freqüentemente citado como o país de democracia mais estável do
O venezuelano Chávez parece herdar a mística de líder providencial que cercou Fidel
Castro. Um e outro, contudo, fazem parte de uma tradição autoritária que não se limita
à América Latina
Fidel Castro e Hugo Chávez: ícones de uma América Latina que busca os seus caminhos,
ainda presa a um passado que oscila entre a tradição de autoritarismo nacionalista e a relações
de subordinação aos Estados Unidos
planeta, os presidentes Woodrow Wilson e Franklin
Roosevelt acumularam poderes extraordinários, quase
ditatoriais, em nome da necessidade de conduzir o país
à vitória na guerra (e, no caso de Roosevelt, também
reconstruir os Estados Unidos após a Grande Depres1959
são de 1929). Mas nem Wilson, nem Roosevelt foram
cercados pelas engrenagens do culto à personalidade.
Não se trata, em hipótese nenhuma, de traçar um sinal de igual ou sequer de semelhança entre todos esses
governos, regimes e líderes. Isso seria um disparate. Ainda assim, uma lei geral emerge desses processos históricos: o acúmulo de poderes nas mãos de um governante,
não importa as razões, sempre acontece às custas da democracia, cujo pressuposto básico é o equilíbrio entre os
poderes. Quanto mais democrática, participativa e equilibrada é uma sociedade, menor a possibilidade de um
“pai dos povos” instalar-se no poder. “Infeliz é o país que
precisa de heróis”, disse o grande dramaturgo alemão
Bertolt Brecht.
Podemos, agora, voltar à América Latina: aqui, é a
debilidade estrutural das instituições democráticas que
permite a multiplicação incessante e recorrente de “caudilhos” e salvadores da pátria. Tal debilidade não tem
nada a ver com um suposto “destino” ou “caráter nacional” latino-americano, mas com causas históricas concretas, incluindo a desigualdade social e a dependência econômica em relação aos países centrais da economia capitalista.
Mas, novamente, tampouco é apenas na América Latina que a democracia faz água. Se o século XX foi tão
pródigo em situações que demandaram extrema concentração de poder, em todo o planeta, e se nada indica que
o século XXI vá ser muito diferente (basta pensar no tremendo poder acumulado por George Bush para travar a
suposta “guerra contra o terror”), é a própria possibilidade da representação democrática que está em questão.
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PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
HUMANIDADE CONTROLA O
AQUECIMENTO GLOBAL
T
alvez este não seja o ano mais quente
da história dos registros de temperatura,
mas certamente o relatório publicado em
fevereiro pelo Painel Intergovernamental
sobre Mudanças Climáticas (IPCC) é o
mais quente de todos os alertas climáticos
produzidos pelos cientistas.
A constatação de aumento nas concentrações atmosféricas de gases de estufa (especialmente dióxido de carbono, o CO2,
metano, o CH4, e óxido nitroso, o N2O)
não é nova. Também não é exatamente
novo o reconhecimento de que as temperaturas globais conheceram aumento no
século XX e, em particular, ao longo das
últimas décadas. Corrigindo e completando dados divulgados em relatórios anteriores, o IPCC revela que, no período de
12 anos entre 1995 e 2006, 11 anos estiveram entre os 12 mais quentes desde
1850, quando se iniciaram os registros
térmicos de alcance global. Também informa que nos cem anos entre 1906 e 2005
ocorreu aumento de 0,740C nas temperaturas médias globais.
As verdadeiras novidades do relatório
encontram-se no grau de certeza proclamado a respeito das causas do aquecimento global e das previsões de elevação das
temperaturas ao longo do século XXI.
O IPCC sustenta que, com alto grau de
probabilidade:
● As atividades humanas, e não fatores
naturais, são as principais responsáveis
pelo aquecimento global observado.
● O padrão registrado de aquecimento da
troposfera e resfriamento da estratosfera
deriva da emissão de gases de estufa e da
rarefação da camada de ozônio, dois processos ligados às atividades humanas.
● A redução da massa de gelo no planeta
decorre também do aquecimento global
e deve-se às interferências antropogênicas
sobre o sistema climático.
● As interferências antropogênicas já
provocam mudanças em padrões de
circulação das massas de ar no hemisfério norte e aumento de tempestades
extra-tropicais.
● O aumento das temperaturas médias
nas noites mais quentes e mais frias e
nos dias frios é um efeito do aquecimento global e está ligado às atividades humanas.
Os cenários projetados pelo IPCC para
o aquecimento global variam entre o
preocupante e o assustador. Numa hipó-
O AQUECIMENTO DO SISTEMA CLIMÁTICO É INEQUÍVOCO E AGORA É EVIDENTE POR MEIO DE OBSERVAÇÕES DE AUMENTOS NAS
TEMPERATURAS MÉDIAS GLOBAIS DA ATMOSFERA E DOS OCEANOS, FUSÃO GENERALIZADA DE NEVE E GELO E ELEVAÇÃO GLOBAL DO
NÍVEL MÉDIO DO MAR.
(...) A MAIOR PARTE DO AUMENTO DAS TEMPERATURAS MÉDIAS GLOBAIS DESDE MEADOS DO SÉCULO XX É,
MUITO PROVAVELMENTE, RESULTANTE DA ELEVAÇÃO DAS CONCENTRAÇÕES DE GASES DE ESTUFA PRODUZIDAS POR FONTES
ANTROPOGÊNICAS.
(...) INFLUÊNCIAS HUMANAS PERCEPTÍVEIS ATUALMENTE SE ESTENDEM A OUTROS ASPECTOS DO CLIMA, INCLUSIVE
AQUECIMENTO OCEÂNICO, TEMPERATURAS MÉDIAS CONTINENTAIS, TEMPERATURAS EXTREMAS E PADRÕES DE VENTOS.
(IPCC, CLIMATE CHANGE 2007: THE PHYSICAL SCIENCE BASIS, FEVEREIRO DE 2007)
Mapa 2
Mapa 1
Bombeiros tentam combater incêndio na
Reserva Extrativista Chico Mendes, no Acre.
Segundo o coordenador da operação de
combate ao fogo, a maior parte dos
incêndios foi provocada por fazendeiros ou
pequenos agricultores, alguns deles da
própria reserva, que ateiam fogo para limpar
o campo desmatado
tese tão otimista quanto irrealista, baseada no pressuposto da manutenção constante das emissões de gases de estufa nos
níveis de 2000, ocorreria aumento das
temperaturas médias globais de 0,10C por
década, o que significa uma elevação térmica de 10C em 2100. Nesse caso, as interferências antropogênicas no sistema climático que já ocorreram continuariam,
inercialmente, a provocar aquecimento.
Os outros cenários, mais realistas,
apontam para um aquecimento global de
1,80C a impressionantes 4,00C em 2100.
Esses cenários dependem de combinações
complexas de fatores naturais e
antropogênicos. Mas, segundo a lógica dos
modelos utilizados pelo IPCC, os fatores
antropogênicos têm peso maior na evolução do sistema climático.
A cobertura da mídia tratou o relatório
como um consenso científico indiscutível
(veja a matéria à pág. 7). Uma grande
companhia petrolífera anunciou que financiará estudos de economistas ou cientistas
ambientais dispostos a contestar o IPCC.
Mas, ao contrário do que parece, há cientistas independentes que, sem financiamento de gigantes do petróleo ou do governo
americano, discordam do relatório.
Os cientistas dissidentes não contestam as informações factuais sobre temperaturas globais e, portanto, reconhecem
que as últimas décadas foram marcadas por
uma nítida tendência de aquecimento. O
que eles discutem são as causas do aquecimento e as projeções sobre o comportamento do sistema climático.
Esses críticos do IPCC não concordam
que seja razoável afirmar, com um elevado grau de confiança, que os fatores
antropogênicos são decisivos para o aquecimento global. O relatório atual, como
os anteriores, subestimaria o peso de fatores naturais decisivos, como a dinâmica
das massas de ar e correntes marítimas.
As dúvidas não são descabidas. A revista americana Time, na capa de sua edição de 10 de setembro de 1945, um mês
após a rendição japonesa na Segunda
Guerra Mundial, exibia um desenho da
Terra suando, acompanhado pela manchete “O mundo está fervendo”. É que a década anterior havia sido a mais quente de
toda a história registrada. Contudo, três
décadas mais tarde, no 31 de janeiro de
1977, a capa da mesma revista trazia a
manchete “O grande congelamento”, que
remetia a um artigo no qual discutia-se
uma aparentemente clara tendência ao
resfriamento global. O ciclo se fechou no
3 de abril de 2006, quando a capa da Time
expunha a foto de um urso polar encurralado pela fusão dos gelos árticos e as páginas internas reproduziam o alarme do
aquecimento global.
As capas da Time obedeceram ao ritmo de um processo natural, descoberto
em 1997, que atrai a atenção de muitos
cientistas insatisfeitos com as explicações
da moda. O processo é a Oscilação
Decadal do Pacífico (ODP), um ciclo
comprovado ao longo do século XX de
mudanças na temperatura das águas superficiais do Oceano Pacífico. A ODP alterna fases quentes e frias com duração de
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A O CLIMA GLOBAL, AFIRMA O
IPCC
O APOCALIPSE, SEGUNDO O IPCC
“N
© Caio Guateli/Folha Imagem (25/09/2005)
ossa Terra está degenerada nesses últimos tempos. Há indícios de que o mundo
está rapidamente chegando ao fim.” A avaliação guarda indisfarçável semelhança
com certas passagens do relatório do IPCC sobre o aquecimento global – ou, pelo
menos, com as sínteses do relatório difundidas pela mídia. Mas a profecia apocalíptica
foi escrita há quase cinco milênios e está gravada num tablete de argila da civilização assíria, de aproximadamente 2800 a.C.
A última frase do tablete assírio oferece os “indícios” do fim do mundo: “Suborno e corrupção generalizaram-se”. Embora esse traço esteja presente entre nós, ele
separa conceitualmente a profecia ancestral do texto do IPCC, que faz parte de
uma tradição recente na qual o apocalipse tem causas ecológicas. Fogo e inundações
assinalariam o encerramento da era do pecado e o início do Milênio, na maioria das
profecias apocalípticas cristãs. O ecologismo apocalíptico contém esses elementos
narrativos, o que talvez explique a sedução que exerce sobre o grande público.
cerca de três décadas. Nas fases quentes,
as águas oceânicas registram picos de aquecimento superiores a 20C e os fenômenos
El Niño são mais freqüentes e intensos que
os La Niña. Nas fases frias, registram-se
picos de resfriamento também superiores
a 20C e os fenômenos La Niña são mais
freqüentes e intensos que os El Niño.
A ODP atravessou uma fase quente entre 1925 e 1946, que influenciou o sistema
climático e expressou-se na capa da Time
do final da Segunda Guerra Mundial. Entre 1947 e 1976, verificou-se a fase fria da
ODP. Na reta final dessa fase, a Time não
falou sozinha. Menos de três anos antes de
sua capa sobre o “grande congelamento”,
no 30 de junho de 1974, o jornal O Estado
de S. Paulo anunciou, em letras garrafais,
que “A Terra caminha para uma nova era
glacial”. Depois de 1977, começou uma
nova fase quente, que estaria perto do seu
final ou já teria terminado. Na interpretação de parte dos críticos do IPCC, está se
confundindo o “aquecimento global” com
essa fase quente da ODP.
As médias térmicas do período
1965-1975 são, de modo geral, um
pouco menores que as do período
1937-1946 (veja o Mapa 1). Já as
médias de 1995-04 são geralmente
maiores que as de 1940-1980 (veja o
Mapa 2). Essas informações não representam prova definitiva de coisa nenhuma, mas podem ser interpretadas
como indícios do impacto da ODP nas
temperaturas globais.
Os críticos do IPCC não formam
um grupo homogêneo e nem todos atribuem a mesma importância à ODP. A
maioria deles concorda que as emissões
antropogênicas de gases de estufa interferem no sistema climático global. Mas
o ponto que os une é o ceticismo diante da noção de que a humanidade assumiu o controle do clima planetário.
O futuro próximo dirá quem tem razão. Mas não deixaria de ter graça a leitura de uma profecia da “nova era do
gelo” numa Time de algum dia de 2035...
A capa da revista Life de setembro de 1993 trazia a manchete: “O ano do tempo
assassino. Por que a natureza enlouqueceu?” Nos doze meses anteriores, os Estados
Unidos haviam experimentado os desastres provocados pelo furacão Andrew, na
Flórida, por uma forte tempestade de inverno que atingiu toda a costa leste e por
extensas inundações na bacia do Mississipi, no Meio Oeste. Sob o impacto desses
eventos, e dos alertas científicos sobre o aquecimento global, o público não se espantou diante da incrível manchete que acusava a natureza de insanidade, atribuindo-lhe uma vontade assassina.
Não é fácil romper com raízes cravadas no subsolo cultural. O ambientalismo
nasceu com o movimento romântico, que se ergueu no fim do século XVIII, como
reação às Luzes. Os românticos adoravam um passado idealizado, pleno de pureza e
avesso à racionalização da natureza. Eles contestavam o progresso, contrapondo-lhe
o universo das emoções, a sensação do sublime, a força da tradição. Civilização e
natureza, na abordagem romântica, funcionam como pólos opostos: a primeira é
perdição; a segunda, refúgio e salvação.
O romantismo americano, especialmente com o escritor e filósofo Henry David
Thoreau (1817-62) está diretamente associado ao pensamento ambientalista. Thoreau
defendia a conservação dos recursos naturais e a preservação de ambientes e paisagens
em terras públicas. Foi um dos precursores de passatempos recreativos “ecológicos”,
como a canoagem e caminhadas em trilhas selvagens. Thoreu fazia parte do movimento transcedentalista, que valorizava a experiência sensível e a intuição individual.
Entre eles, alguns radicais, que viriam a influenciar o movimento hippie dos anos
1960, propunham a formação de comunidades naturalistas e o vegetarianismo.
Ralph Waldo Emerson (1803-82), ensaísta e poeta, amigo de Thoreau, liderou
o movimento transcedentalista e tornou-se o ponto de referência intelectual de
John Muir (1838-1914), o “pai” dos parques nacionais americanos e fundador do
Sierra Club, a mais antiga das organizações ambientalistas. Muir foi um geólogo
amador e um pioneiro no estudo do trabalho de erosão dos glaciares, no vale de
Yosemite, na Califórnia. A partir dele, o romantismo ecológico estabeleceu uma
sólida ponte com o pensamento científico.
O relatório do IPCC faz parte do discurso científico, está recheado por um
amplo aparato de modelagem computadorizada e se veste nas roupagens da estatística de probabilidades. Mesmo assim, está ligado por fios invisíveis à tradição do
pensamento ambiental, que se desenvolveu na sopa do romantismo e da adoração
de um “mundo natural” intocado que só existe na imaginação da humanidade.
Além disso, a recepção pública do relatório não poderia deixar de expressar a coleção de preconceitos do ambientalismo popular.
O ambientalismo popular é uma mercadoria vendida na tevê, no cinema, nos
jornais e revistas. Suas “verdades” simplórias – “a Amazônia é o pulmão do mundo”, “a natureza enlouqueceu”, “a Terra está doente”, “precisamos salvar o planeta”
– tornaram-se componentes de um repertório cultural bem conhecido, que identifica o aquecimento global em praticamente qualquer evento meteorológico, como
uma tempestade tropical, os dias muito quentes do verão, as noites sem brisa ou as
chuvas torrenciais que redundam em inundações urbanas.
Noticiando o relatório do IPCC, o jornal O Estado de S. Paulo escreveu que o
aquecimento global seria, agora, um fenômeno irreversível. A palavra “irreversível”
não consta do relatório – e não seria escrita por um cientista. Tudo é reversível, na
escala do tempo geológico. Há uns 12 mil anos, encerrou-se a glaciação mais recente e provavelmente caminhamos, no longo prazo, para outra glaciação. As previsões
científicas sobre o aquecimento global são probabilísticas, ou seja, incorporam uma
margem de erro – que, no caso, é bastante significativa.
Sobretudo, a tradução do relatório pela mídia virtualmente ignorou os cientistas
que discordam do IPCC. Mas eles existem e também são gente séria (veja a matéria à
pág. 6). Mas gostamos muito de apocalipse. Especialmente na sua versão ecológica...
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AQUECIMENTO GLOBAL
PROTOCOLO OU ENCRUZILHADA DE KYOTO?
Dez anos após a assinatura, o acordo que prevê a redução das emissões de gases que causam o efeito estufa avançou pouco. E, de acordo
com o IPCC, ele é insuficiente para reduzir mudanças climáticas
Protocolo de Kyoto completa seu décimo aniversário
diante de uma dupla encruzilhada. Avançou pouco a redução das emissões de gases de estufa e o Painel
Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC)
afirma que as suas metas são incapazes de impedir mudanças climáticas de peso, com graves conseqüências para
a vida no planeta (veja a matéria à pág. 6).
Assinado em 1997, o Protocolo entrou em vigor em
fevereiro de 2005, sob ferrenha oposição dos Estados
Unidos, o maior emissor individual de gases de estufa. O
presidente americano George W. Bush retirou-se do acordo em 2001, sob o argumento de que suas metas compulsórias de emissões feriam os interesses econômicos de
seu país. Bush também protestava contra os termos do
acordo, que não previa metas específicas de redução de
emissões para os países em desenvolvimento.
Segundo o acordo, o mundo deveria alcançar, entre
2008 e 2012, uma redução de 5,2% nas emissões dos seis
gases que comprovadamente aceleram o efeito estufa. Para
que o Protocolo entrasse em vigor, deveria ser ratificado
por países que respondem por, no mínimo, 55% das emissões de gases. Isso só foi possível após a adesão da Rússia, o
terceiro maior emissor mundial em 2004, que buscava uma
maior aproximação com a União Européia.
A Europa sempre foi o grande contraponto aos Estados Unidos, lutando pela ratificação do Protocolo, que
contou com a adesão de 141 países, inclusive o Brasil.
Foi o Brasil, aliás, que sugeriu uma cláusula engenhosa
do acordo. Trata-se do Mecanismo de Desenvolvimento
Limpo (MDL), que prevê a possibilidade de países industrializados financiarem projetos de seqüestro de carbono (como a recuperação de matas) em países em desenvolvimento. Esses projetos são computados nas metas
de redução de emissões dos países avançados.
Acontece que as reduções obtidas até agora, pelos
países industrializados aderentes ao Ptotocolo, foram
modestas. Enquanto isso, os Estados Unidos aumentaram suas emissões em 10% nos últimos dez anos e, entre
os chamados países emergentes, as emissões de gases de
estufa aumentam rapidamente.
Mesmo a Europa, discursos à parte, pouco progrediu
nas metas estabelecidos pelo Protocolo de Kyoto. Em fevereiro, o diretor do Programa da ONU para o Ambiente, Achim Steiner, declarou que a Europa “não está fazendo sua parte”. Segundo Steiner, se o ritmo atual for
mantido, apenas quatro países da União Européia terão
atingido os objetivos definidos pelo acordo em 2012.
Mas o Protocolo defronta-se com uma segunda encruzilhada, de acordo com os estudos mais recentes do
IPCC. O relatório do organismo, divulgado no início
deste ano, prevê a necessidade de impedir a liberação de
650 bilhões de toneladas de CO2 (de um total estimado
em 1,4 trilhão) até 2100 para evitar um aumento médio
da temperatura global de 4,50C no período, o que causaria elevação do nível médio dos mares de 18 a 59 centímetros, com efeitos trágicos para as áreas costeiras em
todo o planeta.
Mas nem tudo são más notícias, quando se trata dos
dez anos da assinatura do Protocolo de Kyoto. Nos Estados Unidos, muitas empresas e estados estão embarcando na redução voluntária da emissão de gases. A Califórnia, por exemplo, anunciou sua disposição de reduzir em
30% as emissões até 2016. O motivo é simples: em um
país conhecido pela força dos consumidores, a opinião
pública começa a cobrar de empresas e autoridades uma
contribuição para um planeta mais limpo. Empresas vistas como “ecologicamente corretas”, experimentam altas
maiores em suas ações cotadas em bolsas de valores.
Há também sinais evidentes de uma nova postura do
governo Bush. Enroscado na guerra do Iraque petrolífero, e buscando uma menor dependência das importações de combustíveis fósseis, o governo começa a incentivar o uso de fontes de energia menos poluentes. Na
América do Sul, Bush articula o acordo do etanol com o
Brasil, a fim de criar um contrapeso à influência da Venezuela. Ao mesmo tempo, esboça um acordo sobre emissões de gases de estufa com países da Ásia/Pacífico, de
modo a abrir uma alternativa à liderança européia na
“diplomacia climática” global.
Os europeus, comprometidos politicamente com o
sucesso do Protocolo, têm que reagir a tempo de salvá-lo
da falência anunciada. A União Européia anunciou, em
janeiro, que pretende cortar em 20% as emissões de CO2
até 2020, em relação aos números de 1990. Daqui a pouco
mais de uma década, 10% de todos os automóveis que
rodam em suas estradas deverão queimar biocombustíveis.
No discurso, a Europa vai mais longe e propõe um corte
de 30% nas emissões até 2020, desde que os outros países desenvolvidos – leia-se Estados Unidos – também
adotem a meta ousada.
No futuro próximo, o mapa das emissões de gases de
estufa sofrerá mudanças profundas. Antes de 2020, a
China ultrapassará os Estados Unidos, tornando-se o
maior emissor de CO2. A Índia, que já está ultrapassando o Japão, deixará a Rússia para trás em 2020 e assumirá a terceira posição mundial (veja o Gráfico). Calculase que, em 2030, as emissões totais dos países em desenvolvimento superem as do mundo industrializado.
O novo mapa das emissões implica mudanças na política internacional para o clima. Se o Protocolo de Kyoto
tiver uma segunda versão, os chamados países emergentes – China, Índia, Brasil e México, principalmente –
serão inevitavelmente pressionados a adotar limites compulsórios de emissões. Por sorte, justamente nesses países
se concentram as melhores oportunidades de redução de
emissões, pois o crescimento da infra-estrutura industrial e energética poderia ocorrer já, com o uso de tecnologias “limpas”. No fundo, atrás dos discursos ambientais,
esconde-se a corrida rumo a essas tecnologias – uma disputa que toca nos interesses econômicos vitais das grandes potências globais.
Emissões de Dióxido de Carbono por Países
(1990-2025)
9000
CHINA
MILHÕES DE TONELADAS MÉTRICAS DE CO2
O
8000
ESTADOS
UNIDOS
7000
6000
5000
4000
3000
ÍNDIA
RÚSSIA
2000
JAPÃO
1000
BRASIL
0
1990
2002
2010
2015
2020
2025
Fonte: Agência Internacional de Energia, 2005
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AQUECIMENTO GLOBAL
CINCO ESTRATÉGIAS ENERGÉTICAS
Os níveis de emissões de gases de estufa dependem da combinação de fontes de
energia de cada país. É assunto de alta política, sob influência cada vez maior da
“diplomacia climática”
Roberto Candelori
Especial para Mundo
D
© Allan Kilgour
esenvolvimento econômico e consumo de energia são
quase sinônimos. Energia significa, na era industrial, sobretudo combustíveis fósseis – e, desde meados do século XX, principalmente petróleo. Portanto, as emissões
de gases de estufa per capita são diretamente proporcionais ao PIB per capita das nações. Certo?
Nem tanto. As emissões per capita de CO2 nos Estados Unidos giram em torno de 20 toneladas métricas ao
ano mas na França elas não ultrapassam 6,5 toneladas
métricas. Como explicar uma diferença tão acentuada
entre países desenvolvidos?
O petróleo, já chamado de “ouro negro”, continua a
representar um elemento estratégico fundamental para o
desenvolvimento das nações. Mas as matrizes energéticas
nacionais apresentam profundas diferenças, que refletem
a diversidade de recursos naturais disponíveis e também
as políticas estratégicas adotadas pelos Estados. Investiguemos cinco casos exemplares.
Torre de resfriamento de usina termoelétrica
na Nova Zelândia
■ O Japão, sem paletó e gravata
O Japão tem na queima de combustíveis fósseis, principalmente o petróleo, o eixo da sua matriz energética.
Signatário do Protocolo de Kyoto e detentor de uma das
maiores economias do mundo, com um PIB que gira em
torno de 4,6 trilhões de dólares, o Japão aparece entre os
grandes emissores de gases de estufa. Mas suas emissões
per capita são menores que as americanas, em virtude do
peso maior da fonte nuclear.
O país se comprometeu a cortar suas emissões de gases
de estufa em 6% até 2012. Até aqui, adotou apenas medidas tímidas. Numa iniciativa inusitada o presidente da
Toyota Motor, a maior companhia do Japão, propôs em
2005 uma campanha
nacional para convencer
os cidadãos a poupar
energia abandonando os
(2004)
paletós e gravatas no verão. Essa “revolução
indumentária” teria o
propósito de reduzir o
consumo nacional de ar
condicionado.
■ Estados Unidos, campeão do efeito estufa
Maior economia do mundo, os Estados Unidos, com
apenas 5% da população do globo, consomem um quarto de
todo o petróleo produzido no planeta. Sua matriz de energia
baseia-se na queima de combustíveis fósseis, que responde
por cerca de 85% da energia consumida (veja o Gráfico).
Mesmo assim, os Estados Unidos se recusaram a assinar o Protocolo de Kyoto (veja a matéria à pág. 8). Mas
agora o presidente George W. Bush anunciou o programa
“Vinte em dez”: o governo quer que o consumo de gasolina do país diminua 20% nos próximos dez anos. O etanol
seria responsável por 75% da compensação dessa redução.
Balanços energéticos
% 70
60
50
40
30
20
10
0
EUA
JAPÃO
FRANÇA
CHINA
BRASIL
CARVÃO
PETRÓLEO
GÁS
NUCLEAR
HIDRO
OUTROS
FONTE: Agência Internacional de Energia (AIE), 2007
■ A França e a alternativa nuclear
Importante membro da União Européia
e defensora ferrenha das
metas de redução de
emissões, a França preconiza ações enérgicas
para conter o avanço do
efeito estufa. O presidente Jacques Chirac
declarou recentemente
que “a carência cada vez
maior de recursos e a
luta contra o aqueci-
mento global exigem uma revolução no nosso modo de
produção e consumo”. Foi além e sugeriu nada menos
que um comitê global de governança sobre o clima, algo
que Washington jamais aceitará.
A França singulariza-se, entre as grandes potências globais, pelo peso dominante das usinas nucleares na sua matriz energética. A geração de energia nessas usinas não libera
gases de estufa. Os ambientalistas sempre apontaram os riscos associados aos resíduos radioativos (o “lixo nuclear”) e
combateram o programa elétrico francês. Mas, atualmente,
abriu-se uma notável dissidência: o cientista James Lovelock,
autor da Hipótese de Gaia e um ícone de movimentos “verdes”, pronunciou-se favorável à estratégia nuclear.
■ A China, ainda na era do carvão
A China transforma-se, gradativamente, numa das maiores potências mundiais e já preocupa outros gigantes, como
Estados Unidos e Japão. O volume das suas exportações tem
aumentado, nos últimos anos, em ritmo vertiginoso, superior a 30%, inundando o planeta com manufaturados baratos.
Evidentemente, a demanda por energia aumenta em velocidade similar e, com ela, as emissões de CO2.
A matriz energética chinesa reflete o passado da era
industrial, baseando-se no carvão mineral, o mais “sujo”
dos combustíveis fósseis, e na queima doméstica de lenha e fezes de animais. Mas, nos últimos cinco anos,
duplicaram as importações de petróleo.
O futuro das emissões globais de gases de estufa depende, em grande parte, da evolução da matriz chinesa.
A substituição do carvão consumido no país por petróleo é insustentável, dos pontos de vista econômico e
ambiental. A introdução de fontes “limpas”, em larga
escala, mudaria a face do país e do mundo.
■ O Brasil, líder na biomassa
Na matriz energética brasileira, os derivados de petróleo respondem por mais de 40% da energia consumida.
A queima de óleo diesel impulsiona a maior parte do
transporte nacional. Mas são as queimadas e o desmatamento os grandes vilões brasileiros no palco das emissões
globais de gases de estufa.
Mas o Brasil também se distingue positivamente. A
fonte hídrica responde por 15% do total e a biomassa,
por mais de 25%. Por enquanto, o consumo de biomassa
baseia-se no álcool de cana e na queima de carvão vegetal
e lenha. Mas o país aposta na exportação de energias alternativas, principalmente os biocombustíveis.
No passado recente, as estratégias energéticas nacionais organizaram-se apenas ao redor de cálculos de custos e dos projetos de poder geopolítico. Atualmente, a
escolha da matriz energética exige o compromisso com a
busca de recursos de baixo impacto ambiental. Eis um
dos grandes desafios do século XXI.
Roberto Candelori, filósofo formado pela USP, é
colaborador do caderno FOVEST, da Folha de S. Paulo,
e professor de Atualidades no Colégio Móbile, da
cidade de São Paulo
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Carlos Serapião Jr.
Especial para Mundo
MOSCOU EM TEMPO DE EUFORIA
alar sobre Moscou num breve artigo é
para mim difícil. Porque já tenho tanta
estrada de Moscou, onde vivi dois anos e
meio entre 1994 e 1997, passei férias praticamente todos os anos desde então e agora, novamente, moro na cidade há oito
meses. Além disso, sou casado com uma
russa e temos duas filhas. Não dá para resumir num artigo minha relação com
Moscou ou como vejo e penso a capital
da Rússia, atualmente. Melhor escolher
apenas uns pontos pouco usuais e emitir
algumas opiniões.
Não pretendo mencionar números do
tipo população, renda per capita etc. Isto
se encontra na Internet. Vou citar apenas
uma estatística, para se ter uma idéia da
revolução pela qual passa a Rússia: a economia cresce 6,5% ao ano desde 1999,
surfando a alta mundial dos preços do
petróleo e do gás natural, que representam parcela substancial das exportações do
país. Moscou concentra boa parte desse
crescimento, por ser capital política, econômica e cultural – uma soma de Brasília,
São Paulo e Rio de Janeiro.
Na Rússia, dois sinais de prosperidade
de uma cidade são o percentual de carros
importados e a quantidade de novos prédios residenciais. Em Moscou, esse percentual
deve estar na faixa de 80% do total e os
condomínios de luxo pululam por toda
parte. É a segunda melhor capital da Europa para novos projetos imobiliários, após
Istambul. Há dez anos, quando morei aqui
como diplomata (hoje trabalho no setor
privado, em comércio exterior), no máximo 10% da frota era formada por importados. E não me lembro de ter visto muitos prédios em construção.
Outra coisa: não havia nenhum
shopping center na cidade, exceto o GUM
da Praça Vermelha, que era bem fraquinho. Hoje, Moscou deve ter quase o mesmo número de shoppings de São Paulo,
certamente mais do que no Rio de Janeiro. Além das lojas para consumo de classe
A, que se aglomeram no centro, onde há
todas – rigorosamente todas – as melhores grifes européias. Como as fortunas russas têm mais ou menos uma década, há
uma febre consumista extraordinária,
exibicionista, narcisista.
Nas amplas avenidas de Moscou ou
nas ruelas do centro antigo, Porsche
© Dmismir
F
Em Moscou, os símbolos da velha ordem czarista
convivem, hoje, com a mais arrojada arquitetura
da nova Rússia capitalista
Cayenne e outros modelos do gênero são
figurinhas fáceis – como, digamos, o
Pajero Full em São Paulo. A classe média
também é emergente e está se vestindo
cada vez melhor, sendo coisa do passado
as pessoas se vestirem de maneira mais
ou menos uniforme na Rússia, sobretudo em Moscou. O padrão é quase europeu das melhores cidades, com uma diferença interessante: em Moscou, vê-se
nas ruas muito mais gente jovem!
Uma coisa que não mudou, porque
sempre funcionou muito bem, é o metrô
moscovita: onipresente e de alta eficiência. Claro, é lotadíssimo nos horários de
pico, mas a população é tão acima da média de bonita, que um passeio nesses horários é recomendável. Para o moscovita,
o metrô é opção relativamente confortável nos dias de trânsito infernal, do qual
curiosamente muitos aqui parecem se orgulhar, como sinal de progresso.
No quesito restaurantes, a capital russa ainda deixa a desejar. A quantidade e a
variedade já é enorme, mais do que no Rio
de Janeiro, menos do que em São Paulo.
Mas a classe média, que é no fundo quem
carrega o piano do capitalismo em qualquer país, ainda não tem o hábito de salir
a comer como, por exemplo, em Buenos
Aires. Há exceções, cada vez mais freqüentes, de restaurantes com boa relação preço-qualidade, o que requer arte e tradição. Assim, vai levar algum tempo até
Moscou conquistar excelência nisso.
Por ser um tema urgente no Brasil, falemos de segurança. Segundo a ONU, a
Rússia é um país violento, logo após Colômbia e Venezuela, tecnicamente empatado com o Brasil. Mas a violência aqui
não atinge as pessoas aleatoriamente. Ela
está concentrada em guerras em fronteiras remotas, nas disputas mafiosas e em
acertos de contas em geral. Não se parece
com a violência urbana no Rio de Janeiro
ou em São Paulo. Pode-se caminhar na rua
à noite sem sobressalto, salvo abordagem
da própria polícia para pedir documentos, mas sem arma apontada.
Agora alguns lugares imperdíveis, além
da Praça Vermelha: a Universidade Estatal
de Moscou, a Catedral de Cristo Salvador
(que tem uma enorme cúpula de ouro maciço), a galeria Tretchakóvsky (sobretudo a
ala dos pintores realistas russos dos século
XIX), o restaurante Pushkin, um dos mais
sofisticados de Moscou, e o Mosteiro de
Novodévchy, no centro-sul da cidade. A ir
a algum shopping, sugiro o Mega, onde a
loja âncora principal é a IKEA.
Jim O’Neill, do banco de investimentos Goldman Sachs, inventou a sigla BRIC
(Brasil, Rússia, Índia e China) para destacar aquelas que seriam as novas grandes
potências da globalização. Uma visita a
Moscou evidencia que, por aqui, todos os
que estão ganhando dinheiro acreditam na
profecia de O’Neill. É um giro e tanto nas
expectativas de um país que há apenas uma
década estava desacreditado, e que conhece
ciclos sucessivos de euforia e depressão.
Carlos Serapião Jr., diplomata licenciado e mestre em Negócios Internacionais, é autor do
romance de negócios Dinheiro rápido (RG Editores, 2005) e co-autor do manual
universitário Comércio exterior e negociações internacionais (Saraiva, 2007)
2007 MARÇO
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A
10
Nelson Bacic Olic
Da Redação de Mundo
PAC RELANÇA PROJETOS DE
HIDRELÉTRICAS NA AMAZÔNIA
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Usina Jirau
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BOLÍVIA
E
OCEANO
PACÍFICO
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CHILE
ARGENTINA
PARAGUAI
© Filipe Mesquita de Oliveira
des do Sudeste e do Centro-Oeste.
O rio Madeira é afluente da margem
direita do Amazonas, seu mais importante
tributário e o terceiro maior curso fluvial da
América do Sul. Formado pela confluência
dos rios Beni e Mamoré, procedentes dos
Andes bolivianos, o Madeira corta os estados de Rondônia, onde passa pela capital,
Porto Velho, e do Amazonas. Alguns rios da
sua bacia, como o Madre de Diós, cruzam
território boliviano e têm nascentes nos Andes peruanos (veja o Mapa).
As usinas hidrelétricos no Madeira fazem parte de um quadro de acordos internacionais. Jirau, cerca de 50 quilômetros a jusante da fronteira com a Bolívia,
e Santo Antonio, 6 quilômetros a montante de Porto Velho, integram um dos
18 projetos da Iniciativa de Integração da
Infra-estrutura Regional Sul-Americana
(IIRSA), lançada na Conferência de
Brasília, em 2000. O projeto inclui, ainda, uma hidrelétrica binacional (BrasilBolívia), uma hidrelétrica exclusivamente
boliviana (Cachuera Esperanza, no rio
Madre de Diós) e, por fim, uma hidrovia.
As novas usinas do Madeira reativaram
a polêmica sobre os impactos sociais e
ambientais do aproveitamento do potencial
hidrelétrico da Amazônia. A inundação de
grandes áreas florestadas exige a remoção de
expressivos contingentes populacionais ribeirinhos e indígenas. Além disso, os lagos artificiais submergem vastas extensões de matas
e interferem nas dinâmicas naturais. Esses
são fortes argumentos usados por aqueles que
se opõem à construção das usinas. Por fim,
as grandes distâncias em relação aos principais centros consumidores, localizados no
Centro-Sul do país, impõem significativos
custos e perdas de transmissão.
Os críticos dos projetos têm um ponto
indiscutível a seu favor: a experiência da
usina de Balbina, construída no rio
Uatumã, um dos afluentes da margem esquerda do Amazonas. Balbina foi um desastre econômico, ambiental e social. Situada cerca de 200 quilômetros ao norte de
Manaus e projetada fundamentalmente
D
presidente Lula inaugurou seu segundo mandato anunciando o aparentemente ambicioso Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC), um conjunto de
obras, concentradas especialmente na
área de infra-estrutura, com o objetivo
de promover o crescimento do PIB a taxas da ordem 5% no período 2007-12.
As iniciativas do PAC receberão aportes
financeiros do Orçamento, de empresas
estatais e da iniciativa privada, e terão
acompanhamento permanente do governo. O programa foi apresentado, com
pompa e circunstância, como um passaporte visado rumo ao sonhado crescimento econômico sustentável.
O PAC mira, entre outros alvos, eliminar uma série de “gargalos” nas infraestruturas viária e energética que impedem o crescimento mais expressivo da
economia. Especialistas alertam que um
ciclo sustentado de expansão econômica
sem pesados investimentos na área energética reproduziriam, talvez já em 2009,
o mesmo cenário que provocou o
“apagão” elétrico de 2001.
Esse é o contexto que cerca a intenção do governo de ampliar a oferta de
energia, com a retomada ou construção
de termelétricas, usinas nucleares e hidrelétricas. Em particular, o novo fervor
desenvolvimentista sustenta a retomada
da idéia de aproveitar os recursos hídricos
da Amazônia para a geração de eletricidade. Sintomaticamente, pouco antes de
anunciar o PAC, Lula apontou um dedo
acusador para os “entraves ambientais”
ao crescimento da economia nacional,
provocando lamentos no movimento
ambientalista e ranger de dentes no próprio Ministério do Meio Ambiente.
Na lista de obras do PAC encontram-se duas usinas projetadas para o rio
Madeira: Jirau e Santo Antonio. A expectativa é que juntas venham a gerar
6.450 megawatts (MW), destinados a
complementar o abastecimento
energético da Região Norte e também a
reforçar a oferta de eletricidade nas re-
Rio Be
O
AS USINAS DO RIO MADEIRA
Rio Madeira
para suprir as necessidades energéticas dessa cidade, sua capacidade geradora revelouse insuficiente para atender a capital do
Amazonas, em função do rápido crescimento populacional e industrial da cidade.
Balbina foi implantada sobre desnível
muito pequeno. Em conseqüência, seu
reservatório inundou cerca de 2,5 mil km2,
área não muito inferior à inundada para a
construção da usina de Tucuruí, no rio
Tocantins, que tem capacidade de geração incomparavelmente maior. Cada
megawatt produzido por Balbina submergiu cerca de 30 vezes mais áreas florestadas
que Tucuruí, causando danos irreparáveis
ao meio ambiente em geral e à biodiversidade em particular. A construção de
Balbina também desarticulou o modo de
vida tradicional das populações ribeirinhas
do Uatumã, além de inundar parte consi-
derável da reserva dos Waimiri-Atroari,
grupo indígena ameaçado de extinção.
No caso das usinas do Madeira, estudos apresentados pelas empresas responsáveis pelos projetos – Furnas Centrais
Elétricas e a construtora Norberto
Odebrecht – indicam, previsivelmente,
que os impactos ambientais serão
minimizados pelos cuidados tomados e
técnicas utilizadas. Contudo, especialistas e ambientalistas não estão convencidos e alertam para tragédias de grandes
dimensões. As críticas não se restringem
ao Brasil. As usinas já chamaram a atenção do governo da Bolívia, pois Jirau será
construída nas proximidades do território boliviano e teme-se que áreas do país
vizinho sejam também inundadas. Eis aí
mais uma possível fonte de embaraços nas
relações entre Lula e Evo Morales.
MARÇO 2007
11
PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
ÁFRICA-BRASIL
“AFRODESCENDENTES”, UMA
INVENÇÃO POLÍTICA
ÁSIA
ra outros cinco possam adicionados, parciÁ F R I C A
almente, a esse conjunto. É uma África áraCOSTA
be-muçulmana, fruto da ocupação levada a
DO
COSTA COSTA
ESCRAVO DO
DO
ÁREA
OURO MARFIM
cabo inicialmente pelo império árabe (sécuISLAMIZADA
ÁREA
los VII ao XIII) e, posteriormente, pelos
DO CONGO
ÁREA
BRASIL
turco-otomanos (séculos XIII ao XIX). A
ORIENTAL
ANGOLA
dupla herança formada pelo Islã e pela línOCEANO
gua árabe aproximam, cultural e socialmenPACÍFICO
OCEANO
te, a África do Norte do Oriente Médio. Essa
ÍNDICO
África não estabeleceu relações profundas
OCEANO
Deslocamento
ATLÂNTICO
interno de escravos
com o Brasil.
Bantos
A África Subsaariana, muito extensa e
Sudaneses
variada, engloba mais de 40 Estados.
FONTE: Adaptado de F. M. Salzano e N. Freire-Maia, Populações brasileiras: aspectos demográficos, genéticos e antropológicos, p.28
Identificada como a “África Negra” pelas
potências imperiais do século XIX, apresenta-se como um tras são faladas apenas por poucos milhares de indivídumosaico humano e cultural e uma babel lingüística. Ela é os. Do ponto de vista étnico, alguns especialistas enumeum fruto da justaposição de dinâmicas etno-culturais ram mais de meia centena de etnias, enquanto outros
autóctones, de heranças deixadas pelo processo de ocu- identificam mais de um milhar delas. Entre as etnias afripação colonial europeu e da influência árabe-islâmica. canas, algumas congregam milhões de membros; outras,
apenas alguns milhares. Países como a Nigéria e a RepúHá muitas “Áfricas” ao sul do Saara.
Muitos tentaram estabelecer o número exato de gru- blica Democrática do Congo são constituídos por centepos étnicos do continente africano – e fracassaram. Não nas de grupos étnicos que, inclusive, se espalham por
há concordância quanto ao número de etnias ou de lín- países vizinhos. A arbitrariedade das fronteiras traçadas
guas existentes no continente. Uma solução foi tentar agru- pelo colonizador europeu adicionou complexidade e tenpar a diversidade em grandes troncos ou ramos. Mas não são, fomentando guerras étnicas. Mas uma África Subsaariana na qual as fronteiras étnicas representassem fronhá consenso nem sequer sobre uma classificação geral.
No continente africano existem pelo menos 1500 lín- teiras políticas nacionais abrigaria certamente mais de 200
guas. Algumas delas possuem milhões de locutores; ou- Estados (veja o Mapa 1).
Uma célebre e radical generalização divide a África Subsaariana em dois grandes raMapa 1
mos étnicos: sudaneses e bantos. Os primeiros aparecem com grande expressão na porÁFRICA: GRUPOS ÉTNICOS
ção ocidental do continente, circundando a
Europa
região do Golfo da Guiné. Os bantos estão
Ásia
presentes em extensas áreas do centro-sul e
MAR MEDITERRÂNEO
do leste africanos. Indivíduos desses dois grupos foram trazidos como escravos para o Brasil (veja o Mapa 2).
TRÓPICO DE CÂNCER
Do grupo sudanês, foram trazidos escravos provenientes de lugares onde se localizam,
atualmente, países como Nigéria, Gana e
Costa do Marfim. O Nordeste brasileiro, em
especial o Recôncavo Baiano, recebeu a maior parte deles. Os bantos, bem mais numerosos, eram originários da Bacia do Congo, do
EQUADOR
planalto dos Grandes Lagos e, especialmente,
OCEANO
das colônias portuguesas de Angola e
ÍNDICO
OCEANO
Moçambique. Esses escravos foram levados
ATLÂNTICO
tanto para o Nordeste (Pernambuco e
Maranhão) quanto para o Sudeste (Rio de
Janeiro e São Paulo).
A África está no Brasil, em todos os lugares. De certo modo, somos todos
TRÓPICO DE CAPRICÓ
RNIO
“afrodescendentes”. Mas ninguém é apenas
“afrodescendente”. Isso é o que a Seppir não
quer entender.
EQUADOR
São Luís
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BIQ
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Recife
Salvador
Rio de Janeiro
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O
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
classifica censitariamente a população brasileira nas categorias “branco”, “preto”, “pardo”, “amarelo” e “indígena”. Segundo os dados do último censo, os “pretos” representam cerca de 6% da população total e os “pardos”,
cerca de 42%.
Nada disso tem significado racial. A espécie humana
não se divide em raças e os geneticistas já demonstraram
que mais de 80% da população brasileira tem significativa ancestralidade africana, o que significa que a maior
parte dos que se declaram “brancos” também são, em
alguma medida, “afrodescendentes”.
O contrário é, naturalmente, verdadeiro. Entre os
“pretos”, há os que apresentam alguma ancestralidade
européia ou indígena. Mais ainda entre os “pardos”, um
rótulo de mau gosto que, entre outros significados, quer
dizer “branco sujo”, aplicado pelo censo a todos os que,
criativamente, inventam expressões para designar tons de
pele intermediários entre o “branco” e o “preto”.
Toda essa complexa história de miscigenações não serve às finalidades da Secretaria da Igualdade Racial (Seppir),
o órgão governamental engajado na elaboração de propostas de leis raciais. A Seppir, sobretudo, está em guerra contra a existência dos “pardos”, esses quase-brancos, quasepretos, quase-índios da geléia geral brasileira. Ela insiste
em ignorar o censo e o princípio da autoclassificação, reunindo “pretos” e “pardos” numa “raça negra”, que representaria 48% dos brasileiros.
Essa operação já produziu uma frase feita,
segundo a qual o Brasil possui a segunda maior
população negra do mundo, atrás apenas da
Nigéria. A Seppir vai mais longe e, para
enfatizar uma suposta base biológica da sua
“raça negra”, designa os “negros” como
“afrodescendentes”.
O termo surgiu recentemente e é uma
importação política. A sua origem encontrase nos Estados Unidos, o berço das políticas
de ação afirmativa. Foi lá que, a partir da década de 1970, por iniciativa da Fundação Ford
e durante o governo do republicano Richard
Nixon (1969-74), surgiram embrionariamente as cotas raciais nas universidades.
“Afrodescendente” não tem, como se observa, nenhum significado biológico. Não tem
também um significado cultural preciso, pois
os africanos que, na condição de escravos, cruzaram o Oceano Atlântico e se fixaram no
Brasil são originários de muitas “Áfricas”. É
que não há, em nenhum sentido, uma cultura africana, mas inúmeras. África é um singular que, como Ásia, Europa ou América, remete à pluralidade.
Antes de tudo, é preciso distinguir dois espaços macro-regionais africanos: África do
Norte e África Subsaariana. A primeira é formada, integralmente, por cinco países, embo-
ÁREAS DE ORIGEM DO ELEMENTO NEGRO-AFRICANO
MERIDIANO DE GREENWICH
O
Mapa 2
FONTE: Glassner, Martin I. Political Gederaphy, N. York, John Willey & Sons, 1995
2007 MARÇO
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